quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Café Royal C

100

Perdoe o leitor o narcisismo da crónica. Mas, completa-se hoje o centésimo destes cafés. O espírito desta coluna, que tenho vindo a publicar ininterruptamente no mais antigo jornal português, é o da tertúlia, da livre partilha e debate franco de ideias. O Café Royal é tanto uma homenagem como um símbolo da importância que os cafés tiveram na construção de um determinado tipo de sociedade, aberta, reflexiva, pensante. Algo que, temo, esteja a acabar. Mas o Royal é, também, um ponto de encontro com a minha história pessoal, desde a primeira adolescência até hoje. Desde as primeiras cervejas e conversas, até aos lentos fins de tarde dedilhando solitariamente as notícias dos jornais nacionais. E sim, não me passa despercebida a ironia de um perigoso socialista reivindicar para si o Café dos independentistas. Mas, é exactamente desse respeito pelas ideias dos outros, mesmo aquelas com as quais descordamos, que deve nascer o progresso de qualquer sociedade. E esse é, enfim, o grande combate do nosso tempo, a luta ao sectarismo e à ditadura do pensamento único. Seja nos jornais, nos partidos ou nos cafés. É isso que continuarei a fazer aqui. Mais uma tulipa, sff…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Café Royal XCIX

"Sair da ilha

…é a pior maneira de ficar nela!” Sentenciou Daniel de Sá em Ilha Grande Fechada. Esta frase lapidar sobreviverá ao romance e, injustamente, ao Escritor que foi Daniel de Sá. Embora seja esse, enfim, o desígnio dos grandes, serem perpetuados pelas frases e universais pela eternidade das palavras. O romance é um magistral retrato da condição açoriana, principalmente na fixação que faz de um certo modo de ser ilhéu. Logo a abrir, Daniel de Sá assinala: "Uma ilha grande, fechada, que durante muito tempo só se abriu para deixar sair gente". Este é, talvez, o mais acertado retrato da “açorianidade”, como lhe chamou Nemésio. Uma persona que assenta na aceitação, quase monástica, da clausura da ilha. Como se o horizonte, o mar, fossem aprisionamento em vez de livre navegação. Desde os primórdios do povoamento que as ilhas se cerraram sobre si próprias. E, mesmo nos curtos períodos de cosmopolitismo, desde Angra dos Filipes, à Horta dos Clippers, passando pelo São Miguel de oitocentos, com as suas pequenas elites terratenentes abastadas de laranja, que o essencial de um certo ser açoriano é a sua recusa em abraçar o Mundo. E, até, em se deixar abraçar por ele…
 

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Café Royal XCVIII

Ilhas 

As ilhas foram sempre território de mitos. Platão coloca a Atlântida numa ilha no Atlântico. Erasmus fez crescer a sua sociedade utópica numa ilha. Em A Tempestade, uma das últimas e, também, mais cativantes peças de Shakespeare, o mago Prospero, Duque de Milão, vive numa ilha acompanhado pela sua filha Miranda e os seus livros. As ilhas são eterna fonte de inspiração poética, desde a Ithaca de Ulisses à Ilha do Tesouro de Stevenson. Ou, essa encantatória Ilha dos Amores, com as suas voluptuosas ninfas. Ilhas mágicas e distantes onde, também, Antero se sonhou rei – “Sonho-me às vezes rei, n'alguma ilha, / Muito longe, nos mares do Oriente, / Onde a noite é balsâmica e fulgente / E a lua cheia sobre as águas brilha...”. Certamente que nas academias muitos já se terão debruçado sobre a ontologia das literaturas insulares procurando, quem sabe, um cânone de lavas incandescentes, horizonte e mar. Mas, se há coisa que os escritores das ilhas poderão verdadeiramente dar à Literatura é a sua infinita capacidade de criar pontes, diálogos, de cruzar os oceanos, estreitando as suas margens, numa aproximação que é, no fundo, a essência do ser Escritor. 

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Café Royal XCVII

Ínfimas tiranias

É verdadeiramente paradoxal que, tendo como força motriz a crítica à globalização, os movimentos “populistas” estejam, agora, a globalizar-se. Paradigma desta tendência é o nosferatiano Steve Bannon. O estratega da eleição de Trump, que abandonou a Casa Branca por achar que este tinha capitulado face aos interesses da alta-finança internacional, lançou-se numa campanha global, da Europa à América Latina, de exportação dos seus ideais nacionalistas, protecionistas e xenófobos. Não será fácil combater estes movimentos, como fica demonstrado pelas eleições americanas de terça-feira passada, em que os candidatos trumpianos seguraram o Senado e mesmo a “vitória” dos Democratas para a Câmara dos Representantes foi feita à custa do que, simplisticamente, podemos chamar de “populismos de esquerda”. Talvez o primeiro passo seja identificar o que une todos estes grupos, da extrema-esquerda à extrema-direita. Estou em crer que o que está por detrás destes fenómenos é a Intolerância! Aqueles que acreditam na Democracia terão que começar por aí: pela defesa intransigente dos valores da Tolerância e da Liberdade. Sob pena de o nosso futuro ser de completa e ultrajante subjugação a um incomensurável número de ínfimas tiranias.
 

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Café Royal XCVI

Cuidar

Não herdamos a Terra dos nossos antepassados, Ela é-nos emprestada pelos nossos filhos.” Regresso, com frequência, a este velho provérbio das tribos nativas da América do Norte, pela sua simplicidade e sabedoria. Descobri esta frase através de um anúncio de uma famosa marca de relógios – “Nunca somos donos de um Patek Philippe, apenas tomamos conta dele para a próxima geração.” – e, para um colecionador como eu, a mensagem ressoou intimamente de forma genuína. A verdade subjacente a esta mensagem é de uma singeleza desarmante. Nós não somos donos da Terra. Ela é uma dádiva, que nos cumpre proteger e legar às gerações vindouras. Também as coisas, ou os bens materiais, que ansiosamente buscamos, não são verdadeiramente nossos. São memórias, afectos, que, um dia, no fim desta vida tão frágil e curta, deixaremos para aqueles que vierem depois de nós. Esta consciência da nossa finitude, da nossa absoluta transitoriedade, é, deveria ser, um princípio fundamental da nossa actuação no dia-a-dia, para connosco, para com os outros, para com o lugar e o tempo em que vivemos. Cuidar que cuidamos em vez de destruir. Aplica-se a tudo na vida.