tag:blogger.com,1999:blog-46114021444015575702024-03-21T15:53:35.209-01:00AZOREAN SPLENDORPedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.comBlogger362125tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-11091173665431989552024-03-09T10:59:00.002-01:002024-03-09T10:59:22.140-01:00Para Uma Ideia de Humanidade<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/8/86/Lady-Lilith.jpg/800px-Lady-Lilith.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="690" height="400" src="https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/8/86/Lady-Lilith.jpg/800px-Lady-Lilith.jpg" width="345" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: courier;">Lady Lilith, Dante Gabriel Rossetti</span></div><p></p><blockquote style="border: none; margin: 0 0 0 40px; padding: 0px;"><div class="separator" style="clear: both;">
<p align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><i>desafios do feminino</i> (e do masculino)
<i>num mundo em turbulência</i><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Começo por agradecer à Profª Amélia Lopes o muito honroso
convite para estar aqui hoje. Embora confesse que para mim foi uma surpresa, este
convite. No mundo de hoje, tão propenso aos cancelamentos do tipo woke, ter um “<i>velho
homem branco</i>” a falar sobre mulheres e sobre o feminino é não só surpreendente
como até mesmo pode ser visto como um ato de vandalismo ofensivo, ou então um
ato de bravura. Se bem que, na condição de neto, filho, marido e pai de duas
raparigas, poderei ser talvez uma espécie de súbdito voluntário do império da
mulher. Um subordinado militante do Divino Feminino, por assim dizer, o que, afinal
possa constituir qualificação suficiente para falar sobre a mulher e o homem, a
feminilidade em vez de feminismo, uma vez que os dois não devem ser confundidos,
e a importância destes dois polos aparentemente antagónicos, mas que convergem
e divergem, ao longo do vasto universo da História da Humanidade.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">O pedido que me foi dirigido foi que abordasse os desafios
que se nos colocam hoje, num mundo em turbulência, enquanto homens e mulheres, e
principalmente a questão da igualdade, ou, por antinomia, da desigualdade entre
homens e mulheres. O que me levou a pensar num outro título, que considerei dar
a esta exposição, que foi - Para Uma Ideia de Humanidade – e estou aqui hoje acima
de tudo, precisamente, como um Humanista. No sentido em que a ideia principal
subjacente à razão de Ser é, justamente, o Humano e o humano só o É enquanto expressão
da dualidade efetiva e permanente entre masculino e feminino. E, na minha
modesta opinião, é dessa dialética permanente, entre Homem e Mulher, masculinidade
e feminismo, que nasce o progresso e a evolução do Ser Humano enquanto entidade
unificada. Sendo que, nesta perspetiva, poder-se-á dizer que o feminismo,
afinal, está ele mesmo, desde logo, inserido nesta ideia de Humanismo
verdadeiro, ou Humanismo Pleno, de que gostaria de vos falar.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E, é por estas duas motivações, a de um humanista que vive
diariamente sob o signo do feminino, que gostaria de começar a minha
intervenção, nesta III Cimeira Feminina, com uma pequena provocação. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">“<i>Às mulheres que procuram ser iguais aos homens falta-lhes
ambição</i>.” <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Esta frase de Timothy Leary, o grande mago do psicadelismo
dos anos sessenta, a quem o presidente Nixon apelidou de “<i>o homem mais
perigoso da América</i>” e, perdoem-me, é um “<i>velho homem branco</i>”, como
seria hoje classificado pelas mais radicais defensoras do feminismo woke,
revela, para mim, aquela que é, ou deveria ser a essência do feminismo, ou como
mais à frente procurarei revelar, do tal Humanismo Pleno, que é, não a
igualdade, <i>per si</i>, um valor não obstante fundamental para um
progressista como eu, mas a superação e, em última instância, a transcendência,
que é a aspiração última do Humano, a ambição de uma possível utopia de integração
do género pela sublimação do mesmo, por mais contraditório isto que possa
parecer à primeira vista. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Nesta abordagem ao “feminismo”, visto numa perspetiva histórica,
ou historicista, socorro-me de um outro “<i>velho homem branco</i>”, o grande
historiador Fernand Braudel que disse que a “<i>História se podia dividir em
três movimentos: aquilo que se move rapidamente, o que se move vagarosamente e
aquilo que aparenta não ter qualquer movimento</i>”. Ora a História das
relações entre o Homem e a Mulher poderia, aparentemente, inserir-se nesta
última categoria, ou seja, uma longa e ancestral história de conflito e
desigualdade entre os sexos que se mantêm inalterada ao longo dos séculos. Mas,
ao contrário do que se possa pensar, ou do que é geralmente difundido, na maior
parte das vezes por homens, na história da Humanidade, e na nossa cultura ocidental,
em particular, a ideia, ou a causa feminista, ou do feminismo, não nasce daquilo
que se pretende instituir como uma profunda e ancestral desigualdade entre
homem e mulher, que se perpetuaria ao longo de milénios desde o início dos
tempos. O feminismo, tal como o conhecemos atualmente, como movimento de
emancipação e libertação da mulher, e não são uma e a mesma coisa, é uma causa
relativamente recente, em termos históricos, surgindo sensivelmente ali em meados
do século dezanove, tem, portanto, pouco mais do que cento e cinquenta anos, e é
filho, ou filha, do casamento tumultuoso e nem sempre profícuo entre a Revolução
Industrial e o Capitalismo moderno. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Aquela que é conhecida como a primeira vaga do feminismo foi
um movimento essencialmente anglo-saxónico que grassou pelo Reino Unido e os Estados
Unidos da América, na segunda metade do século dezanove, e que procurava fundamentalmente
nos seus primórdios conceder à mulher direitos sobre a propriedade, a riqueza e
o capital, só mais tarde buscando o direito da representação legitimado no voto.
De certa forma, apesar de perigosa e excessivamente simplista, podemos dizer que
o feminismo é, em parte, o culminar dos ideais do Iluminismo revolucionário
francês e do Liberalismo constitucional de raiz britânica, o que faz dele um
movimento essencialmente político e económico com génese relativamente recente.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Antes desse tumulto oitocentista, a História fez-se livre
desses rótulos de “feminismo” ou de “masculinidade tóxica” com que hoje olhamos
para o mundo. Sem as caracterizações pop, ao estilo Bridget Jones, de que “os
homens são de Marte e as mulheres são de Vénus”. Aliás, e para quem conheça
essas matérias, Vênus e Marte governam-nos por igual, tanto a homens como a
mulheres. Na verdade, e durante muitos milénios, homens e mulheres caminharam
lado a lado, muitas vezes de mãos dadas, pelos percursos da História digladiando-se
e amando-se em igual proporção e, principalmente, dando vida, literalmente, à
História da Humanidade, envolvidos num fogoso e por vezes intenso amplexo feito
de paixões e amizades, discussões e rivalidades, sexo, ódios e,
necessariamente, amor…<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Mas, se calhar, o melhor será começarmos esta história pelo seu
princípio, e no princípio de tudo estava, não o Verbo, não Deus…, mas a Mulher.
Neste caso concreto a Vénus de Willendorf. A Vênus de Willendorf é uma pequena
estatueta em calcário com de cerca de 11 centímetros representando uma mulher
de seios fartos, corpo volumoso e vulva protuberante que os arqueólogos
associam, embora não sem alguma discordância, a ritos ou idealizações da
fertilidade, e que, o dado aqui mais significativo, foi datada de há aproximadamente
25 mil a 30 mil anos, o que faz desta pequena mulher um dos mais antigos
artefactos artísticos feitos por mão humana. A Vénus de Willendorf foi
descoberta no início do século vinte na Áustria. Mais recentemente, em 2008,
foi encontrada na localidade de Schelklingen, na Alemanha, uma outra pequena estatueta,
neste caso feita de marfim de mamute, com cerca de 6 centímetros, representando,
mais uma vez, uma figura feminina, de corpo voluminoso e seios salientes, que
os antropólogos associam ao mesmo tipo de ritos da fertilidade e longevidade, e
a que deram o nome de Vénus de Hohle Fels e que foi datada de há cerca de 40
mil a 45 mil anos, no início do Paleolítico Superior. A importância destes
artefactos, que pela sua dimensão se crê fossem usados como amuletos, prende-se
com a representação do feminino, da fertilidade, da longevidade, e da própria criação
do humano como sendo condição e apanágio da mulher. Ou seja, no contexto daquilo
a que podemos chamar os primeiros traços de civilização, as representações
artísticas, a capacidade para a abstração, nas tribos de caçadores recolectores
do Paleolítico Superior, as conceptualizações artísticas e ritualísticas das
primeiras tribos humanas, pelo menos aquelas que chegaram até nós, incidiam
sobre a fertilidade e o feminino e na representação da mulher. A mulher que dá
à luz, que engorda e se sedentariza, a mulher que envelhece, que, essencialmente,
sobrevive e que faz sobreviver a tribo. A mulher, não como subproduto ou
inferior ao homem, mas como origem e princípio de todas as coisas. Uma espécie
de longo e significativo Matriarcado pré-histórico, se quisermos. Ao longo de
milénios, até aos alvores da civilização, o homem e a mulher são, foram, um
binómio indivisível de equilíbrio na preservação da tribo, da espécie, do Humano.
Um caminho que é relativamente seguro dizer que durou mais de 40 mil anos, até
ao alvorecer da Idade do Bronze.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">É seguro dizer, também, que é com a sedentarização e a
urbanização, com o advento da revolução agrícola, e o que ela traz de
subjacente de propriedade da terra, que os papéis do Homem e da Mulher, no
contexto social e político, se irão progressivamente alterar, ou adulterar, se
quisermos ser mais exatos. Tal como Rosseau nos indica no seu “<i>Discurso
Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens</i>” de que “<i>os
frutos são de todos, e a terra de ninguém</i>”. A propriedade é a mãe de todas
as desigualdades. E, ao longo dos últimos 5 mil anos, das cidades aos reinos,
dos feudos às nações e, finalmente, ao Estado as tenções políticas e sociais
entre homens e mulheres vão-se sucessivamente agravando no sentido de
transfigurar o papel da mulher e de impor uma visão mais redutora e mais desigual
do seu papel nas sociedades, contrariamente ao que haveria sido uma tradição
milenar anterior e, contrariamente também, ao que se poderia entender como a
ordem natural da História da Humanidade, em que homens e mulheres são elementos
igualmente importantes nessa evolução. E, é interessante verificar que na
escala de valores da idealização do feminino a fertilidade irá dar lugar à
castidade, porque a castidade é a forma inicial de assegurar a linhagem e a
linhagem, ou o vínculo, são a primeira forma de assegurar a transmissão da propriedade.
<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Voltando outra vez ao início, a outro início, o das
mitologias fundadoras da nossa civilização, mais especificamente no seu pilar
judaico-cristão, a mulher, ou as mulheres, cumprem, ou cumpriram, na verdade um
papel fundamental, se bem que o mesmo tenha sido sucessivamente e muito politicamente
recalcado, ao longo dos últimos dois a três mil anos, pelas hierarquias das diferentes
Igrejas e Religiões. Harold Bloom, talvez o mais importante crítico literário
do nosso tempo, e em grande medida o símbolo maior do que significa ser-se um “<i>velho
homem branco</i>”, arriscou, inclusive, dizer que o conjunto dos primeiros
livros da chamada Bíblia Hebraica - Genesis, Êxodo e Números - que na tradição
cristã compreendem o grosso do Antigo Testamento, e a que chamou o Livro de J,
teriam sido escritos por uma mulher, mais especificamente, uma cortesã da corte
do rei Roboão, filho de Salomão, no reino da Judia, cerca do ano mil antes de Cristo.
Bloom irá mesmo ao ponto de afirmar que: “<i>A misoginia no Ocidente é uma
longa e sombria história de fracas e equivocadas interpretações da cómica J,
que exalta as mulheres em toda a sua obra, e nunca mais do que nesta história
deliciosamente irónica da criação</i>.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ora, se escavarmos ainda mais nesta tradição judaico-cristã encontraremos
ainda uma outra e superiormente relevante figura feminina – Lilith, a primeira
mulher. De acordo com as mais antigas tradições judaicas Lilith é a primeira
mulher de Adão, criada ao mesmo tempo e da mesma forma que ele, do barro da
terra, moldada pelas próprias mãos de Deus, e não da costela de Adão, como Eva.
As mesmas tradições referem também a revolta de Lilith perante Adão, recusando
subjugar-se a este, a literalmente deitar-se debaixo dele, por ser igual a ele,
abandonando por isso, ou sendo expulsa, do Jardim do Éden, as versões variam, e
tornando-se, desde então, numa espécie de demónio, identificada com a serpente,
instigadora e símbolo principal da queda da Humanidade. Noutra versão, Lilith
tornar-se-á mesmo esposa de Samael, o Anjo da Morte, o veneno de Deus, o
sedutor, o acusador, o Deus-cego e destruidor. O verdadeiro Satanás. À luz do
dogma judaico-cristão, portanto, a mulher que se recusa a submeter ao homem passa
a ser vista como uma representação do mal, um demónio pérfido e pernicioso,
lenta e progressivamente obscurecido ao longo dos últimos milénios.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Já na tradição Suméria, a mais antiga civilização que
conhecemos, cerca de 4500 anos antes de Cristo, Lilitu era igualmente um espírito
ou um demónio, associado à Lua, representando as suas diferentes fases e
estados de espírito, umas vezes benigna outras maligna, e o que pode haver de
mais feminino. Mas, ao mesmo tempo, na tradição Suméria, nomeadamente no Épico
de Gilgamesh, o mais antigo texto escrito que conhecemos, é uma Deusa, de nome Aruru,
a mãe da Humanidade. É uma mulher quem cria o mundo e cria os homens e as
mulheres moldados, pela sua mão, do barro da terra, tal como Deus fará na
tradição judaica.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">No fundo o que aqui me importa assinalar é a profunda e relevante
importância da mulher, do chamado Divino Feminino, na nossa cultura e de como
essas primeiras mulheres, fossem reais ou imaginadas, eram seres livres e
poderosos e iguais em importância e estatuto ao próprio homem, sendo na
progressiva sedentarização das sociedades e sedimentação dos dogmas da Religião
e da Igreja, que são, na verdade, formulações políticas e económicas, que essa
relevância vai ser posta em causa e que a relação da mulher com o homem vai
sofrer a adulteração, e uso a palavra propositadamente, que conhecemos hoje.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Regressemos então ao Jardim do Éden e ao livro do Génesis
que, recordo, de acordo com Harold Bloom, foi muito certamente, primeiramente,
escrito por uma mulher. Depois de Deus, Jeová, ter criado o céu e a terra, Jeová
deu forma a um homem do barro da terra e soprou-lhe o vento da vida pelas narinas
e o homem tornou-se carne. A seguir Jeová plantou um jardim. Da terra cresceram
as árvores boas de se ver e boas de se comer e nesse jardim estavam duas
árvores, a árvore da vida e a árvore do bem e do mal, mais especificamente a árvore
do “<i>conhecimento</i>” do bem e do mal, da qual o homem não se deve aproximar
nem comer o seu fruto. Então, percebendo que não era bom o homem estar sozinho Jeová
criará os animas da terra e os pássaros do ar e os seus nomes ser-lhe-ão dados
pelo homem, mas entre eles não se encontrava o parceiro do homem. Então Jeová
coloca o homem num sono profundo e retira-lhe uma costela e dessa costela dá
forma à mulher e coloca-a ao lado do homem. “<i>Este é osso do meu osso, carne
da minha carne</i>” diz o homem “<i>mulher lhe chamarei, do homem ela foi
separada. Tal como o homem se separa da sua mãe e do seu pai e se une à sua
esposa; eles são uma só carne</i>”. São, portanto, iguais, homem e mulher, e de
se conhecerem, atenção ao termo, conhecer carnalmente neste caso, Eva, a mãe de
todos os homens, conceberá, tal como Jeová havia concebido, Caim e depois Abel.
É importante perceber e realçar que o conhecimento entre o homem e a mulher é também
o conhecimento entre o bem e o mal. O resto da história penso que saberão, mas
o que me interessa destacar aqui é que neste texto original, em hebraico, homem
e mulher são em tudo iguais, carne da mesma carne e são tão criadores como Jeová,
no conhecimento que completam um do outro. O Homem deu nome a todas as criaturas
da terra e é da ligação entre o homem e a mulher, Adão e Eva, que nasce toda a Humanidade.
Homem e Mulher, juntos.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Se olharmos a História ainda noutra perspetiva, a da
História como o relato dos grandes acontecimentos e personalidades, a ideia da
importância e da relevância da mulher ao longo do tempo, da História e da
Literatura, atravessa toda a nossa Cultura Ocidental, e não só. Os primeiros
poemas clássicos, a Ilíada e a Odisseia, nascem por causa de mulheres. O rapto
de Helena, filha de Zeus, a mais bela mulher da terra, por Páris príncipe de
Troia, despoletando uma sangrenta guerra, está na génese da Ilíada. Já a
Odisseia relata-nos as atribulações de Ulisses, na sua viagem de regresso a
Ítaca e, principalmente, de regresso aos braços da sua amada esposa Penélope
que se mantém sempre fiel a Ulisses afastando todos os pretendentes com sábios
estratagemas. A primeira, Helena, símbolo da beleza e da determinação. A
segunda, Penélope, caracterizada como astuta e inteligente. Atributos que devem
ser lidos como uma visão enaltecida do feminino, longe do que poderíamos supor
ser uma visão desdenhável ou aviltante da mulher e da sua importância na
história e na sociedade. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">No Antigo Egipto, Hatshepsut, esposa de Tutmós II, foi designada
faraó após a morte do marido, tendo governado o Egipto por quase vinte anos,
cerca de mil e quinhentos anos antes de Cristo. Talvez uns duzentos anos mais
tarde, na 18ª dinastia, Nefertiti governou ao lado do seu marido Akenaton e
acredita-se que tenha sido faraó após a morte deste e até à maioridade do seu
filho Tutankhamnon. E, obviamente, Cleópatra, a última imperatriz do império Ptolemaico,
educada pelo filosofo Filóstrato, que falava oito línguas e foi amante de Marco
António, e seduziu Júlio Cesar, e que ficou na História não só pela sua beleza,
mas principalmente pela sua astúcia e inteligência.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">No livro dos Juízes, do Antigo Testamento, encontramos Debora,
Juíza, que libertou o povo de Israel do jugo de Canaã. Na Grécia Antiga, uma
sociedade reconhecidamente misógina e esclavagista, temos ainda assim algumas mulheres
que se destacaram, desde logo a grande poetisa Safo de Lesbos, ou as pitonisas,
sacerdotisas do oráculo de Delfos, que gozavam de amplo estatuto e reverência. Artemísia
de Cária, rainha de Halicarnasso, que comandou a armada persa de Xerxes na
batalha de Salamina. E, Platão, na sua República, advoga uma igualdade plena
entre homens e mulheres na organização do estado. Mais tarde, já na nossa era,
Hypatia de Alexandria, enorme matemática, astrónoma, filósofa, será assassinada
por cristãos fanáticos no ano de 417.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">No Oriente, também, a mulher se destaca como elemento proeminente
da história e das sociedades. Cadija Alcora, primeira mulher de Maomé, grande
comerciante e mulher de destaque na sociedade da altura, apelidada da “mãe dos
crentes”. Ou Aisha, terceira mulher de
Maomé, guerreira e libertadora dos Sunitas. E, também, Fátima, filha do
profeta, poetisa, a dos nove nomes, “a sincera”, “a abençoada”, “a casta”, “a
pura”, “a contente”, “a agradável”, “a falada por anjos”, “a radiante”, o que
dá bem conta da sua importância, e esposa de Ali Ibne Abi Talibe, primo de
Maomé e primeiro Iman dos Xiitas. Ou, mais a Oriente, Yeshe Tsogyal, a mãe do Budismo
tibetano, que viveu entre os anos 757 e 817 e que ficou conhecida como “a
imperatriz do Lago do Conhecimento”. E mais para lá, no Oriente do Oriente, na
mitologia da criação japonesa, cinco pares de deuses, masculinos e femininos,
irmãos e irmãs, maridos e mulheres, que por sua vez convocaram Izanami e
Izanagi, Mulher e Homem, que dão origem ao arquipélago do Japão, onde entre os
anos 600 e 770 da nossa era o “país do sol nascente” viria a ter uma sucessão
de cerca de 7 imperatrizes. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">O que pretendo assinalar com estes exemplos de mulheres transcendentes,
no sentido em que se superaram a si mesmas e à sua condição de mulheres, numa História
dita de homens, e de mitologias predominantemente mistas, que convocam tanto o
feminino como o masculino, é que muitas vezes a narrativa mais fácil, ou aquela
que nos é acometida, não é a verdadeira, não é a real. Muitas vezes os factos
desmentem a própria História. Isto não quer dizer que a História, e as
sociedades, não sejam muitas vezes patriarcais, nem que, pelo facto de algumas
sociedades terem sido comprovadamente matriarcais, não haja uma tentativa,
principalmente da História mais recente, de masculinizar, por assim dizer, o
caminho da história humana, talvez por isso mesmo seja tão importante hoje,
relembrar e celebrar estes exemplos femininos que se sublimaram imprimindo os
seus nomes e exemplos nos cânones e no curso da vida e da história humana, para
não cairmos em extremismos básicos, ignorantes e muitas vezes cegos e violentos.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E esses exemplos continuam ao longo do tempo. Lívia Drusila,
mulher de Augusto primeiro imperador de Roma. Ou Agripina, mãe de Calígula. Teodora,
mulher de Justiniano e Imperatriz do Imperio Bizantino. Leonor de Aquitânia,
que viu o seu casamento com Luis VII de França anulado pelo Papa para se casar
com Henrique II de Inglaterra, de cujo casamento viria a nascer o grande
Ricardo o Coração de Leão. A inesquecível Joana d’Arc padroeira da França, heroína
e mártir da Guerra dos Cem Anos. Outra Joana, Johanna Ferrour, líder da revolta
dos camponeses da Inglaterra feudal. Ou Isabel a Católica, Rainha de Castela e
Leão, obreira da última reconquista aos mouros e madrinha das conquistas dos
novos mundos de Cristóvão Colombo. E a lista poderia ser interminável seguindo infinitas
cronologias onde sempre, junto, não por detrás, par a par com os grandes reis,
com os grandes líderes, se impuseram, igualmente, a força e a influência de
grandes, enormes, mulheres. Ou, como bem expressou o comediante americano Jim
Carrey – “<i>por detrás de cada grande homem há uma mulher a revirar os olhos</i>”…<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">E em Portugal? Portugal é desde logo uma nação “mariana”. E
já iremos a Maria, mas desde a sua fundação que Afonso Henriques consagrará
Portugal à Virgem Maria e ao Culto Mariano. Afonso Henriques que, aliás, faz
construir um país em revolta edipiana contra a sua mãe, Dona Teresa, na batalha
de São Mamede, que havia sucedido, como viúva, ao seu marido, o Conde D. Henrique
no governo do então condado portucalense e que alguns historiadores consideram
hoje ser mesmo a primeira Rainha de Portugal. E esta história nacional far-se-á
numa sucessão de grandes mulheres, muitas vezes injustamente esquecidas ou subvalorizadas.
A rainha Santa Isabel, mulher de D Dinis, a do milagre das rosas. Dona Inês de
Castro, rainha do coração de D. Pedro. Brites de Almeida a Padeira de
Aljubarrota. Dona Filipa de Lencastre a mãe da ínclita geração. A nossa Brianda
Pereira, heroína da Batalha da Salga. D Maria I, que embora viesse a ficar
conhecida como a Louca, foi efetivamente a primeira rainha portuguesa e ficou
na História como arqui-inimiga do absolutista Marquês de Pombal, tendo esse
sido mesmo um dos seus primeiros atos no seu reinado, a destituição do Marquês,
por causa do processo dos Távoras. E Dona Maria II, filha de D Pedro IV, líder
dos Liberais, padroeira do teatro nacional e, entre outros dignos feitos, mãe
de 11 filhos em 16 anos. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Não querendo ser acusado de ligeireza, ou de excessivo
desembaraço na corrida contra o tempo da história, deixando de fora tantas outras
notáveis mulheres, como a Marquesa de Alorna e D Carlota Joaquina, Beatriz
Angelo ou Florbela Espanca, Ana de Castro Osório e Maria Melena Vieira da
Silva, ou Sophia e Agustina, seria impossível referir todas, permitam que
destaque, por fim, nestes 50 anos do 25 de Abril, 4 mulheres, ou talvez 5, sem
as quais a revolução, se não impossível, certamente seria outra. A primeira é,
a nossa, Natália Correia, incansável lutadora pela liberdade que, com a coragem
que a caracterizava, apadrinhou a edição de um livro, escrito a três mãos, por
três mulheres, igualmente corajosas, chamado as “Novas Cartas Portuguesas” e
que seria alvo de um mediático processo judicial que consolidaria o desgaste e
a erosão do regime, fruto da vil censura a que foi sujeito. Maria Velho da
Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno são as 3 Marias que completam
com Natália este quase matriarcado da revolução portuguesa, revolução essa que
também não seria possível sem a participação de uma quinta mulher, ou uma supra-mulher,
o sagrado feminino se quisermos, representado pelas mães, as irmãs e as mulheres
dos quase 800 mil soldados portugueses mobilizados no ultramar, entre 1961 e
1974, e cuja relevância na constituição do quadro mental que levaria à
sublevação militar dos Capitães de Abril não está ainda devidamente estudada e valorizada.
<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Ou seja, o que é que podemos inferir destes destaques que
vos apresento? Essencialmente que o progresso da Humanidade, e tenhamos em
conta que Humanidade é um substantivo feminino, seria impossível sem a ação de homens
e de mulheres e que é do seu acontecer conjunto que essa mesma evolução se
constrói. Homem e Mulher, masculino e feminino, estão no centro da roda e do
movimento do devir humano e são inseparáveis desse mesmo movimento, desse
conhecimento. Dai que a questão da igualdade, que não é necessariamente
igualitarismo, entre homens e mulheres, ou da sua emancipação, seja tanto uma
construção como uma constrição moderna e essencialmente materialista, ou até
mesmo uma castração, alicerçada numa visão utilitária da história, feita na
conquista de direitos, na posse, por oposição à visão humanista, feita de aspirações,
ambições e capacidades. A Humanidade é, no fundo, o conjunto, o equilíbrio se
quisermos, das forças, das energias, das oposições e das interligações, entre o
masculino e o feminino. E os grandes desafios, como o individualismo, a vertigem
da quantificação e da informação, a ditadura do instante e do presente, ou a
chamada erosão do género, que se colocam hoje à Humanidade, colocam-se em igual
medida a homens e mulheres e só poderão ser superados pela inclusão, integração
e o equilibro entre essas duas forças, sendo que, em alguns casos, as mulheres,
enquanto portadoras gestacionais da própria vida, enquanto protetoras,
cuidadoras da vida, estarão até talvez mais bem preparadas para os ajudar a superar.
Se bem que, ao mesmo tempo, outros haverá em que a deturpação contemporânea do
feminino, tido já não como proteção, mas como posse, a linha ténue entre
proteção e possessividade na maternidade, por exemplo, é um problema largamente
identificado na psicologia, poderá levar a um agudizar desses mesmo desafios e
dessas crises. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Aqui gostaria de regressar, por breves instantes, a dois
ícones fundamentais da caracterização da feminilidade e que comportam dentro de
si e nas suas nuances muita da essência do Arquétipo Feminino e daquilo que é
hoje esta luta pela sua representação – Maria e Maria Madalena. E que, como já
referi, explicam também, na medida em que foram sendo manipuladas politicamente
pela religião, o ponto em que estamos hoje na dita “<i>guerra dos sexos</i>”.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Maria carrega desde logo dois princípios fundamentais do
feminino; a pureza, na ausência de pecado, a castidade, e o da maternidade, na
forma da dedicação ao filho. Maria, a Virgem Maria, imaculada pelo conhecimento
carnal, é a escolhida por Deus para ser a mãe do Filho de Deus na Terra e para
ser a sua educadora e cuidadora e Maria, a Maria cristã, é assim o símbolo da
separação entre o Homem e Deus e, principalmente, entre Homem e Mulher. Maria
não precisa de “conhecer” o Homem para gerar o descendente de Deus. Uma luta infinita
que ocupara a Igreja durante quase dois mil anos até o dogma da imaculada
conceição ser solenemente consagrado pela bula <i>Ineffabilis Deus</i> pelo
papa Pio IX em 1854. Curiosamente, mais ou menos ao mesmo tempo em que o
socialista libertário, e humanista, francês François Fourier andará a inventar
a própria palavra “<i>feminismo</i>” nas suas críticas diretas ao cristianismo
e ao dogma do pecado original. Fourrier escreverá que: “<i>O progresso social e
as mudanças do período histórico ocorrem em proporção ao avanço das mulheres em
direção à liberdade, e o declínio social ocorre como resultado da diminuição da
liberdade das mulheres</i>.”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Intrinsecamente ligada a Maria e à História do feminino está
outra mulher relacionada com Cristo, mas substancialmente menosprezada ou mesmo
censurada, que é Maria Madalena. Se Maria é pureza e castidade, Madalena será
pecado e, acima de tudo, sexualidade. E é como pecado, na sequência de Lilith,
que será tida pela hierarquia da Igreja ao longo dos séculos, ao ponto do seu Evangelho
ser considerado apócrifo. Ironicamente, ou talvez não, aquela que é tida, pela
própria Bíblia, como a mais devota e significativa discípula de Jesus é-lhe
retirada a condição de apóstolo, e do seu Evangelho, onde se lê, a palavra de Jesus
destruindo um dos dogmas fundamentais da doutrina cristã, a inexistência de
pecado, a Igreja tudo fará para que não seja lido e, palavra iniciática,
conhecido. Porque o pecado é a origem da culpa e se a lei é uma forma de
organização a culpa é uma forma de controlo. E importa lembrar que o pecado
original é precisamente o fruto do conhecimento do bem e do mal, que o Salvador,
Jesus, diz-nos Maria Madalena no seu Evangelho, quanto questionado por Pedro: “<i>Uma
vez que nos explicaste tudo, diz-nos ainda mais isto: o que é o pecado do
mundo?</i>” O Salvador responde: “<i>Não existe pecado</i>. <i>Mas sois vós que
cometeis o pecado quando fazeis o que é semelhante à natureza do adultério, que
se chama «pecado».</i>”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">É assim, muito por via do dogma religioso que a opressão
política do feminino se vai instituir no pensamento e na sociedade patriarcal como
forma de controlo da propriedade. Tornando-se, com a Revolução Industrial e com
a introdução da mulher nas forças produtivas, num instrumento também de opressão
do proletariado pelo poder do capital. E, chegamos assim aos dias de hoje, onde
se questiona qual o papel da mulher, qual a sua representatividade nos lugares
de poder e se criam quotas e exceções para assegurar descriminações positivas
no acesso da mulher e do género, já entendido como para lá do feminino, numa endoutrinação
woke, nos diversos setores da sociedade. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Uma questão fundamental aqui a ter em conta é a questão da interdependência,
ou da “<i>alteridade</i>”, de certa forma, em que homem e mulher são vistos
como sendo já totalmente independentes um do outro e não como interdependentes
entre si. Ou seja, nas sociedades contemporâneas o lugar do homem e da mulher, o
lugar do feminino e do masculino, não se interrelacionam entre si e afirmam-se
quase por oposição um ao outro e já não cuidando um do outro, um aspeto
fundamental, que o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, felizmente um jovem
e asiático, embora homem, caracteriza como “<i>a sociedade do cansaço</i>” onde
a constante procura do sucesso individual nos priva do encontro necessário e imprescindível
com o outro, <i>“A pessoa sente-se livre nas relações de amor e amizade. Não é
a ausência de laços, mas os próprios laços que nos libertam. Liberdade é uma
palavra que diz respeito às relações por excelência. Sem apego não há
liberdade.” </i>Apego esse que, diria eu, é não mais do que o encontro com o
outro, cuja forma primeira é a do conhecimento entre o masculino e o feminino, de
homem e de mulher. Atenção que com isto não estou a fazer qualquer juízo de
valor sobre outras formas de alteridade, nem de censura da projeção de outras
formas de relacionamento, para lá do binómio homem e mulher, estou apenas a
salientar que a recusa ou a imposição do género sobre a existência, da condição
sexual sobre a individual, levará em última instância, na minha opinião, à própria
destruição do género, à destruição da essencialidade do feminino e, por maioria
de razão, também, do masculino e com isso talvez até da própria condição do Ser
Humano. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Do ponto de vista da política e da questão da
representatividade das mulheres na política a ideia de que, por um lado elas
estão sub-representadas ou, por outro lado de que elas estariam melhor
capacitadas para a atividade política encerra, na minha perspetiva, um problema
essencial que é a perda da liberdade. A limitação da escolha individual, sendo
que numa sociedade totalmente livre homens e mulheres devem estar onde
desejarem e puderem estar. Ao procurar libertar a mulher a sociedade estará a,
de certa forma, oprimi-la para ocupar um lugar que lhe é imposto e não
escolhido por si. E a liberdade é a aspiração última do humano. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Como procurei demonstrar atrás, a participação das mulheres
na História não se fez com predeterminações, mas com desígnios individuais. O
papel das mulheres na política foi feito das suas próprias escolhas pessoais. Eleanor
Roosevelt, Rosa Parks, Indira Ghandi, Golda Meir, Benazir Butho ou Maria de Lurdes
Pintasilgo são mulheres que se afirmaram politicamente e na política sem quotas
ou ações afirmativas, apenas pela sua vontade e força pessoal e individual. Da
mesma forma, outros exemplos haveria para se contestar a ideia ilusória de que
por se ser mulher se estaria mais apto para exercer cargos de decisão ou
governação, como creio que os exemplos recentes de frieza e de autoritarismo de
mulheres como Jacinta Arden, primeira-ministra da Nova Zelândia durante a
pandemia, ou Christine Lagarde à frente dos destinos financeiros do Mundo e da
Europa, ou a Sra. Von Der Leyen, que recentemente fez aprovar a “economia de
guerra europeia” e a diretiva europeia de serviços digitais e os seus limites à
liberdade de expressão, de certa forma demonstram sobejamente. Homens e mulheres
carregam dentro de si qualidades e defeitos. São igualmente marcados pelo
conhecimento do bem e do mal e, como todos sabemos, por exemplo, não é a
condição de mãe que faz automaticamente uma boa mãe, mas antes a prática do bem
que nos faz bons pais ou boas mães. E, que nos faz, essencialmente, humanos.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">De certa forma o feminismo hoje, tal como outras formas de
reivindicação de género, de raça, ou de afirmação de escolhas ou visões
sociais, tornaram-se uma forma contraditória de constrangimento individual, de
aprisionamento de liberdades e das potencialidades e das escolhas de cada um,
quase como se uma infinita e cega busca da liberdade se fechasse afinal num
ciclo de clausura e de fanatismo em que a cegueira do dogma volta enfim a
restringir e censurar aquilo que buscava libertar.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Talvez o maior desafio do nosso tempo seja a reconquista
dessa primordialidade do feminino e do masculino, entendidos como equilíbrio
entre si mesmos, e expressões puras da liberdade individual. Da identidade do
Humano. Uma sociedade que não procure a erosão dos sentidos ou dos géneros, mas
a afirmação da diferença como aceitação da individualidade e, nela, da
humanidade. Uma sociedade não de conceitos pré-estabelecidos, ou preconceitos instituídos,
mas de indivíduos livres, que se conhecem na e pela sua diferença. Uma sociedade
enfim do amor, da paixão, do prazer, da ligação entre pessoas, entre homens e mulheres,
de todos os géneros. Uma sociedade de pessoas. Porque não há nada mais
importante, ou poético, na vida do que a liberdade de Ser. E, como nos disse
Antero nas suas “<i>Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século
XIX</i>”: “<i>O Universo aspira (…) à liberdade, mas só no espírito humano a
realiza. É por isso que a história é especialmente o teatro da liberdade</i>”. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">A História da Humanidade é, então, uma história de aspiração
pela liberdade, uma liberdade tanto individual como, por vezes, uma liberdade
coletiva, mas uma liberdade que é essencialmente alicerçada na relação entre
Mulher e Homem. Nas suas conquistas e nos seus sacrifícios, na sua disputa como
no seu amor, no seu devir conjunto e eterno. A libertação da mulher, tal como a
do homem, no sentido uno do Humano, far-se-á da sua interligação, da sua
comunhão, liberta de quaisquer amarras e constrangimentos, mesmo aqueles que se
afirmam como libertadores, na tentativa de alcançar o conhecimento e uma ideia
de Humanidade Plena.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Termino com este belo e seminal poema de Maria Teresa Horta:
<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;">“<i>Sou feita de muitos<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><i>nós<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><i>desobediência e meio-dia<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><i>Sou aquela que negou<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><i>aquilo<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><i>que os outros queriam<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><i>Disse não à minha sina<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><i>de destino preparado<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><i>recusei as ordens escusas<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><i>preferi a liberdade<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><i>e vivo deste meu lado</i>”. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p>
<p class="MsoNormal">Muito obrigado.</p>
<p class="MsoNormal">Vila Franca do Campo, março de 2024.</p></div></blockquote><p> <span> </span><span> texto da participação na III Cimeira Feminina</span></p><p><span><span> </span><span> Teatro Micaelense, 8 de março de 2024</span><br /></span></p><p><br /></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-32557466891584345672023-11-12T10:53:00.001-01:002023-11-12T10:53:14.556-01:00Carta a um Amigo<p><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span>Meu Muito
Querido Amigo,</p><p class="MsoNormal"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Apanha-me
este teu amável e honroso convite, para que contribua com um texto para o
próximo número da GROTTA, num momento particularmente complexo da minha vida. O
meu tempo parece que se esvai em turbilhão rápido e intempestivo, dividido entre
as solicitações inadiáveis do trabalho propriamente dito, há que agarrar os
turistas enquanto eles ainda cá estão e, acima de tudo, enquanto cá continuarem
a querer vir, passado que parece estar o Inverno covídico, e este novo projeto,
que um pouco inadvertida e surpreendentemente abracei, de tentar fixar em livro
e documentário uma História do Surf nos Açores, que muito gozo e labor me tem
dado, mas que me deixam com a sensação de que corro atrás de um futuro que não
se materializa, na vã tentativa de corporalizar o intangível, de eternizar a
própria espuma das ondas, como se estendesse encarecidamente a mão a um
nevoeiro intocável e inalcançável, sem nunca ter tempo para efetivamente nada e
sem que nunca nada se chegue ao alcance dessa mão.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Acresce
a isto tudo o caso arrepiante dos últimos dois anos, que foram profundamente
angustiantes, como sabes, e, acima de tudo, enormemente dececionantes para mim.
Toda a histeria pandémica, a distopia sanitária em que a humanidade se
mergulhou, o ter que assistir desesperado ao mundo descendo voluntariamente ao
calabouço da mais vil opressão e tirania. O pânico vendido às massas como guião
oficial da narrativa do Estado. O soçobrar da razão, da civilização, às mãos do
cientismo barato e da demagogia populista da política contemporânea rendida à
manipulação vil do ser humano pela insanidade covidiota. Tudo isto destruiu-me
por dentro, e creio que talvez nos tenha verdadeiramente destruído a todos,
enquanto comunidade, enquanto entidade social, emocional e animicamente. Ao que
se acrescenta, ainda, o verdadeiro assassinato a sangue-frio perpetrado pelo Estado
ao meu modo de vida. Os inconcebíveis e irracionais confinamentos, que destruíram
uma indústria feita de amabilidade, a indústria da hospitalidade, como
acertadamente lhe chamam no mundo anglo-saxónico. Como poder exercer uma
profissão de pessoas quando os governos as impediram de existir, de sair à rua,
de se relacionarem entre si e de conviverem umas com as outras? A loucura
pandémica matou, por dois longos anos, a fraternidade entre os humanos e fez
colapsar aquela que é, talvez, a mais importante atividade de interpelação e
concórdia entre as pessoas – o Turismo. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Agora,
corremos todos atrás de uma mirífica recuperação, ofegantemente ansiando por um
regresso a um passado que nunca regressará, tentado salvar a pele e a vida, dos
nossos negócios, das nossas famílias, não entendendo que o mundo nunca mais
será o mesmo. Não, não andará tudo bem, o mundo não voltará para trás, num
qualquer novo normal feito das mesmas soluções gastas, intolerantes e
segregadoras. Que dividem em vez de juntar, que rotulam e separam, em lugar de congregar.
O livre transito dos detentores do passaporte vacinal e os negacionistas, espécie
de novos párias contemporâneos portadores de uma peste libertária. Recusamos
compreender que nunca nada volta para trás e que o futuro será sempre feito de
outros desejos, outras e novas formas de estar na vida e no mundo. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">E nós, aqui nos Açores, em São
Miguel, particularmente, parecemos correr sempre atrás do prejuízo, nunca
antevendo e precavendo os sismos do futuro, nunca criando, mas copiando sempre
os métodos e os sistemas dos outros. Assim na pandemia, como agora na euforia
pós-pandémica da estagflação planetária. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Por
estes dias muito tenho pensado sobre o passado e, principalmente, sobre as aspirações
dos nossos avós. Os sonhos que acalentaram, os esforços que fizeram para criar
uma região mais moderna, mais aberta e, acima de tudo, mais próspera e
solidária. O que diriam eles, hoje, de nós? Na pesquisa que estou em mãos de
fazer consultei o outro dia, na Biblioteca da Universidade dos Açores, um
extraordinário edifício, de uma enorme beleza arquitetónica invulgar, diga-se aliás,
o famoso número da revista “<i>Insula</i>”, de 1932, comemorativo do Quinto Centenário
do Descobrimento dos Açores e onde Nemésio escreveu um famoso artigo sobre essa
coisa de se ser açoriano. O tal que é tantas vezes glosado, tanto por políticos
como intelectuais, e mal, diria eu, pela poética, se bem que incorreta, imagem
das sereias na escama dos açorianos e da sua dupla natureza, de carne e de
pedra, e esses “<i>ossos que mergulham no mar</i>” sem nunca lá verdadeiramente
terem metido os pés, que os açorianos nunca foram gente de mar, e onde Nemésio cunha,
pela primeira vez, o famoso termo da “<i>Açorianidade</i>”, essa circunstância incandescente
da alma que ninguém ainda conseguiu convenientemente definir. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Por uma
luminosa coincidência do destino, deparei-me, nesse número da revista, com um
curtíssimo texto do meu bisavô, Augusto Arruda. De entre todas essas altas
personalidades da nação, da política e da cultura, Sua Excelência o Presidente
da República, Óscar Carmona, a escritora Alice Moderno, o meu outro bisavô,
pelo lado paterno, o genealogista Rodrigo Rodrigues, o Almirante Gago Coutinho,
o Marquês de Jácome Correia, Aristides da Mota, o poeta Oliveira San-Bento,
Brito Camacho, Urbano Mendonça Dias, Hernâni Cidade, o próprio Nemésio, ali
estava o meu bisavô materno, com quarenta e poucos anos, sensivelmente a idade
que eu próprio tenho agora, despejando em uma dúzia de curtos parágrafos a sua
elegia açoriana, o seu lamento por um arquipélago. E, foi isso exatamente que
me surpreendeu, a sua profunda melancolia, o seu quase enfado com o devir
açoriano e a sua, dir-se-ia, permanente intangibilidade. Este era um homem que
sofregamente perseguiu o ensejo de uns Açores encastrados no centro de uma
modernidade entre dois continentes e que ali, na celebração do cinquentenário
do seu achamento, se vê na circunstância de apontar a incongruência de um
arquipélago bafejado pela fortuna da riqueza natural e geográfica, mas que é incapaz
de fazer cumprir esse destino e acabando o seu texto com esta reflexão toda ela
cheia de tristeza e pesar e, como ele próprio classifica o seu estado de espírito,
de mágoa:<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-left: 35.4pt;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span><i>«Razão
há pois para que, relanceando os olhos para o estado em que esses cinco séculos
nos deixaram, uma mágoa, uma enorme mágoa nos invada a alma, onde teimosamente
nos fica a impressão do que poderíamos ser…»<o:p></o:p></i></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>É esta consciência
de um enorme potencial incumprido que julgo que mais profundamente define os
Açores e que, em boa verdade, define também o açoriano. É esta consciência do
possível que falhou que mais caracteriza o seu histórico ao longo dos séculos e
que, extraordinariamente ainda hoje se faz sentir e se reflete na nossa
essência de nove rochedos perdidos no meio do grande mar Atlântico como se
estivéssemos predestinados a uma grandeza que nunca conseguiremos realmente
atingir. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Homem de inquebrantável vontade e
inexcedível e incomparável visão, o meu bisavô multiplicou-se em atividades, desde
a política, aos negócios, visando sempre o desenvolvimento e a prosperidade dos
Açores. Depositou toda a sua esperança no Turismo, como motor primeiro do
desenvolvimento e do crescimento económico da região e em especial da sua ilha,
São Miguel, acreditando e trabalhando arduamente para que as Furnas, a maior e
mais singular hidrópole da Europa e do Mundo, pudesse, de facto, ser o centro e
a alma do Turismo dos Açores. Ele e uns poucos outros como ele construíram
hotéis e casinos, fizeram brochuras e promoveram feiras, chamaram jornalistas e
viajaram pelos centros sociais e económicos da América e da Europa divulgando
as maravilhas da sua ilha. Foram tão longe como fundar uma companhia aérea para
que os turistas não os sobrevoassem em moderníssimos jatos de ambição
transatlântica e para que estas ilhas não se perdessem nesses traços de fumo
branco pintados no ar sobre céu que nos envolve. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>A SATA, contrariamente ao que hoje querem
fazer crer, não foi feita para unir os açorianos, mas para unir os açorianos ao
mundo, dando-lhes finalmente centralidade e modernidade e quebrando esses cinco
pesados séculos de isolamento. Hoje, quase cem anos passados, os intelectuais
do funcionalismo público, confortavelmente instalados no seu salário certo, e
os oportunistas da esquerda mais retrograda e nacionalista, fazem petições
contra o turismo de massas, desconhecendo, na verdade o que isso seja, o
Turismo e as massas, e desconhecendo ainda que nem almoçar condignamente, numa
tarde de Verão no Nordeste, se consegue. Numa região que não produz riqueza
querem, por medos atávicos de fantasmas que não existem, matar um dos seus
poucos sectores exportadores. Os Açores são e serão sempre esta fulgurância
adiada, este provir irrealizável e intangível. O “<i>que poderíamos ser…</i>”<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>E, a
questão, parece-me a mim, é exatamente essa. O que somos, verdadeiramente, se
não tivermos um desígnio, um projeto, uma ambição comum e conjunta, que nos
mobilize e identifique como povo que o quer ser? Como reconhecer essa <i>açorianidade</i>
difusa sem mais matéria do que a bruma e o nevoeiro e os cinzentos de chuva e
lassidão? Os americanos têm o sonho. Os franceses o orgulho, os ingleses o
império da língua. Os italianos o culto da beleza. E os espanhóis, bem ou mal,
têm a España que, contra ventos e marés, os agrega como nação compósita de
várias nações e onde, se calhar, lá deveria estar, também, a nossa o que,
infelizmente, por inépcia dos Filipes e pela audácia conjurada de uns quantos
barões lisboetas, amedrontados pela magnificência madrilena, a defenestraram de
arremesso para o chão térreo do Terreiro do Paço impossibilitando
definitivamente essa grande Ibéria de romantismo anteriano. Portugal terá o
quê? O Fado? O Cristiano Ronaldo? A Nossa Senhora de Fátima e os seus infantis pastorinhos?
A Saudade, talvez possivelmente a língua? E, nessa ordem de razão, os Açores,
então, o que terão? Geografia? Gente? Mar? Talvez, ou talvez não…<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>O
naturalista Arruda Furtado, que era um darwininano e que não consta fosse da
família, uma das grandes figuras portuguesas do Oitocentos, entre a antropologia
e a etnografia do açoriano, com tabelas de medição encefálica e tudo, que hoje
fariam corar de vergonha os mais reputados cientistas sociais, arvorou uma
pureza pátria insular, fruto de séculos de isolamento dos industriosos
movimentos da modernidade continental, que dariam ao açoriano a duvidosa
notabilidade de ser um português mais puro, mais verdadeiro se bem que mais
tacanho e atrasado. Já no século XX, Luís da Silva Ribeiro tentará uma visão
mais sebastiânica do tipo insular, classificando esse mesmo isolamento como uma
proteção do açoriano, uma barreira conducente a um apuramento genético, se
quisermos, dos princípios e ideais do português de Quinhentos. Resta saber se
essa herança de uma “<i>Ínclita Geração</i>” mítica e camoniana não se desfez
na própria epopeia que a gerou e se, nos Açores, o que ficou não foi a ferida
aberta e traumática desse naufrágio pátrio de um Império que nunca
verdadeiramente se materializou? No fundo, dos dois, o que fica é essa nota
comum da distância, do supremo e imperioso isolamento e apartamento insular. O
açoriano é no fundo um exilado do mundo e da história, preso na sua prisão de
ilha, rodeado de mar por todos os lados, como uma trincheira intransponível e
condenado pela eternidade às tempestades, e aos piratas, e outras calamidades
náuticas de impossível superação. Provavelmente, só verdadeiramente realizável
na diáspora, contrariando a sarcástica máxima do nosso amigo Daniel de Sá, da
pior maneira de ficar na ilha ser sair dela…<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Depois
há aquela questão, de que ninguém gosta de falar, que é a do povo e das elites,
se é que isso existe por estes calhaus basálticos erguidos vulcanicamente por
sobre o mar. O próprio Nemésio, quando se propõe a identificar os tipos
diferentes de açorianos, dos quais distingue marcadamente três – o picaroto, o
terceirense e o micaelense – remete principalmente para uma caracterização do
tipo popular, das gentes da terra, de cabo de enxada, amanhando ao tubérculo,
podando o pomar, pronto para saltar à canoa à saga da baleia. Intelectual só mesmo
Antero, mas até esse superiormente inatingível, lá alto no Olimpo das Ideias. As
grandes elites açorianas, terratenentes e alcandoradas na liteira dourada do
morgadio, que tiveram o seu zénite na efervescência liberal e nos movimentos
autonomistas, desvaneceram-se como espuma na praia do protetorado metropolitano.
Sempre reivindicando, sempre de mão estendida, pedindo, incapazes de conquistar
a sua própria alforria e autonomia. Não deixa, também, de ser despiciendo que
os grandes nomes da riqueza insular sejam Hicklings e Dabneys e Bensaúdes e
outros estrangeirados expatriados e não Camaras, Botelhos ou Cortês-Reais, de
local e digníssima nobreza, mas incapazes de multiplicar riqueza…<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Hoje,
então, nem se fala, que as elites já nem as há. Estamos entregues ao bulício
enxameado do politico-partidarismo, com tudo o que ele traz de apoucamento da
razão e da inteligência. O primado do mínimo denominador comum. A exaltação do
oportunismo. Em quase cinquenta anos de autonomia a região pouco mais avançou do
que meia dúzia de infraestruturas. A democracia do betão-armado, da engenharia
civil em detrimento da evolução social e cultural. A monocultura da boçalidade
e do servilismo de Estado. Acabámos com os distritos, mas fomos incapazes de
gerar uma verdadeira identidade arquipelágica. Só agudizamos ainda mais um
bairrismo bacoco, cheirando a mofo e a bafio, cheio de invejazinhas e birras de
crianças reivindicando hospitais em cada ilha, escolas secundárias em cada
concelho, portos oceânicos e aeroportos e um avião por dia em cada cidade e
capelas funerárias em cada freguesia que o defunto da Covoada não pode ir velar
para os Arrifes. Quase cinquenta anos de democracia e de Autonomia Administrativa,
com Estatuto e Finanças, e a única coisa que conseguimos foi gerar nove
açorianos diferentes, de costas voltadas uns para os outros. Mesmo lá fora,
nesses outros Açores de abundância, de Lisboa ao Havai, do Brasil às outras
Américas, todos são faialenses e terceirenses e ribeira-grandenses e mesmo
portugueses antes de serem verdadeiramente, todos, açorianos. E a classe
política, nem vale a pena… <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>A
questão é, voltando atrás, que me perco, onde está o nosso desígnio? Que
projeto para a região, que não seja sorver, babando-se, da malga dessas novas
especiarias dos euros bruxelenses? Que podem estes Açores ser que não seja só
ser pobres e indigentes e coitadinhos com uma pitada, aqui e ali, de chico-espertismo
charlatão sacando uns euritos ao erário publico em prol da vivenda assoalhada
com piscina e o novo BMW elétrico que é chique ser verde, mas viajar só de
avião, com cunha na SATA para ir de rabo numa executiva que não existe. Tudo à
custa do ouro não já do Brasil, mas do próximo Quadro Comunitário de Apoio. Até
ao dia em que lá, nos cubículos da Rue Joseph II número 30, algum jovem
amanuense se proponha olhar com olhos de ver para a conta do deve e do haver da
nossa mercearia insular.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Para
mim, e tenho-o muito claro, o caminho do futuro destas ilhas é o Turismo e o
Mar. O Turismo como fonte económica de exportação, alicerçado na mais pura idiossincrasia
insular que é a comunhão entre o homem e a natureza. E, deixem-se, por amor de Deus,
dessas lamechices inúteis e irreais da natureza pura, ou viva, ou intocada e sustentavelsinha.
A nossa natureza é uma de harmonia com a mão humana, a nossa natureza são
seiscentos anos de virada das terras e de povoamento e de explosão de
infestantes, da cana-roca e do novelão, e da criptoméria que viajou do Japão. A
única coisa que ainda é verdadeiramente endémica é a carestia e precisamos de
nos livrar dela e isso só será possível fazer com a porta aberta ao mundo,
fazendo-nos respeitar, mas acolhendo com simpatia e esmero e orgulho na nossa
condição de centro deste grande lago Atlântico que o futuro se encarregará de
recolocar no centro do grande concerto das Nações. Os arautos da desgraça que
veem no Turismo um cataclismo, esquecem que somos nós que mais destruímos, que
conspurcamos e negligenciamos. Clamam por uma paisagem pristina quando nem
sabem distinguir entre uma azorina e uma conteira. Falam de sustentabilidade
quando fomos nós que deixamos ilhas inteiras serem comidas por infestantes. Ao
final do dia, são os turistas os que mais se revoltam com a nossa barbárie
endémica. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Já o
Mar será o petróleo do futuro. Dele virá energia e alimento e fonte de riqueza,
de ciência e de cultura, e nós temos tanto mar que não o conseguimos ver como
deve ser, ofuscados na sua imensidão de luz e agitação. Durante séculos os açorianos
viveram de costas voltadas para o mar, amanhando a terra, temendo as desgraças
e os desmandos do Oceano. O tempo virou, como se de um vento se tratasse, e
falta virarmo-nos também para o oceano que nos rodeia, mas sem fitar sempre o
horizonte, olhando mais devagar a orla costeira, as praias, as baias e as
enseadas, percebendo os contornos, o desenho e a letra da maresia, a partitura cinzelada
do mar. E abraçá-lo como uma amante no leito da praia…<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>De
todas as coisas que a nossa geração poderá deixar para os que vierem a seguir,
talvez a mais importante seja essa visão de que não somos o centro do mundo
para que ele nos venha salvar, mas que estamos no centro de um mundo, um mundo
feito de água salgada e ondas e vida marinha, onde a própria humanidade anseia
por mergulhar. O nosso legado deverá ser esse, de uns Açores transatlânticos,
multioceanicos, argonáuticos e universais. Desconheço se o cumpriremos, mas
todo o horizonte é um imaginário de sonho.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Aquele
forte e sentido abraço,<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Vila
Franca do Campo, Agosto de 2022<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Pedro
Arruda <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">Texto para a edição número seis da revista Grotta.</p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-54053890784514454242022-12-15T16:29:00.001-01:002022-12-15T16:31:00.706-01:00Clube de Leitura<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://www.gradiva.pt/media/3263/steiner.jpg?anchor=center&mode=crop&width=500&upscale=false&rnd=131732739690000000" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="750" data-original-width="500" height="320" src="https://www.gradiva.pt/media/3263/steiner.jpg?anchor=center&mode=crop&width=500&upscale=false&rnd=131732739690000000" width="213" /></a></div><p><br /></p><p>Sessão na BPARPDL, a 12 de Dezembro, para uma leitura de “O Silêncio dos
Livros seguido de Esse Vício Ainda Impune” de George Steiner e
Michel Crépu, edição Gradiva, 2005</p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm;"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm;"><o:p> </o:p>O que é a civilização? Que traços a
caracterizam e onde e quando é que ela começou é uma pergunta que tem ocupado
historiadores, arqueólogos e antropólogos desde há, pelo menos, algumas
centenas de anos.</p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Um episódio muito glosado, em
especial nos memes da internet, é o da conhecida antropóloga americana Margaret
Mead. Reza a lenda que quando questionada sobre qual o primeiro sinal encontrado
de civilização esta terá respondido que seria um fémur cicatrizado com cerca de
15 000 anos descoberto numa escavação arqueológica. Este artefacto
constituiria o primeiro sinal de uma sociedade civilizada pelo que testemunhava,
desde logo, de cuidado e abnegação entre seres humanos. Uma fratura do fémur, o
maior osso do corpo humano, levará, no mínimo, 2 meses, sendo que geralmente o
tempo de cicatrização será de cerca de 4 a 6 meses, para uma recuperação
completa. Nesse período é necessário repouso e imobilização o que coloca o
paciente na completa dependência de terceiros para garantir a sua
sobrevivência. Para Margaret Mead seria esta ideia de entreajuda e de cuidado,
representada naquele osso humano cicatrizado, que, para além de indicar a
transição de uma sociedade nomádica de caçadores recolectores para uma
sociedade gregaria e organizada, que permitia, ela mesma, a realização desse
mesmo cuidado, que separaria os hominídeos, ainda demasiado próximos do mundo
animal, de uma humanidade civilizada. Embora não seja possível comprovar que,
de facto, a famosa antropóloga americana, discípula de Franz Boas, um dos pais
da antropologia moderna, e que ficou conhecida pelas suas teorias avançadas
sobre a liberalidade sexual, que vieram a marcar os anos sessenta do século
vinte, tenha realmente sugerido esta teoria a ideia em si não deixa de ter uma
certa beleza poética que a torna extremamente cativante. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Na historiografia clássica o “<i>berço
da civilização</i>” é colocado nas civilizações mesopotâmicas do crescente
fértil sensivelmente 3 a 4 000 anos antes de Cristo, tendo como
características fundamentais a já referida sedentarização, a agricultura e,
principalmente, a escrita, como fatores distintivos essenciais. A escrita em pequenas
tábuas de argila de carateres cuneiformes seria um dos elementos primordiais à existência
da própria civilização, o que, não sem alguma ironia, fazem do grande “Épico de
Gilgamesh” e da cobrança de impostos os primeiros sinais concretos de um mundo civilizado.
No entanto, outros historiadores, em particular no âmbito da História da Arte,
como H. W. Janson, por exemplo, têm sugerido, ao longo dos tempos, que se deve
recuar bastante mais atrás para detetar provas de civilização, tão atrás como
25 a 30 000 anos, que é a data provável dos mais antigos artefactos
artísticos feitos pelo Homem, no longínquo Paleolítico, encontrados até hoje.
Em 1908, na região de Willendorf, na Áustria, a equipa do arqueólogo Josef
Szombathy desenterrou, de um sítio do paleolítico superior uma pequena
escultura antropomórfica representando uma mulher de seios fartos e ventre
saliente, com cerca de 11 centímetros e esculpida em calcário, que ficou conhecida
como a “Vénus de Willendorf”, por se supor que fosse um objeto de culto de
alguma forma ligado à fertilidade e aos seus rituais. Esta pequena escultura representa,
desde logo, a capacidade do Homem de passar da criação de utensílios próprios
para a execução de tarefas básicas de sobrevivência como caçar, quebrar e lascar
pedras e ossos ou apanhar frutas das árvores, por exemplo, para uma utilização
ritual, baseada numa abstração imaginativa, já não meramente utilitária, mas
ritualística o que lhe confere uma qualidade mais próxima do pensamento e da
imaginação do que meramente da função e da luta pela sobrevivência.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Conforme nos explica Fernand
Braudel na sua “Gramática das Civilizações” o termo civilização afirma-se em
oposição à barbárie: «<i>de um lado, os povos civilizados, do outro os povos
selvagens, primitivos ou bárbaros.</i>» Neste sentido, e é também o próprio
Braudel quem o diz, civilização e cultura são, de certa forma, alegres companheiros
na viagem da História, percorrendo lado a lado, como D. Quixote e Sancho Pança,
a viagem temporal, o itinerário específico, que nos transporta desde os tempos
primitivos das cavernas do paleolítico até aos grandes salões intelectuais da
Europa moderna e contemporânea. Para Braudel as civilizações são um conjunto de
manifestações culturais, societais, económicas, psíquicas, em interação umas
com as outras e com o meio, físico, onde se inserem e que as rodeia, sendo que
a religião, ou a mentalidade, é o “<i>cerne das civilizações</i>”. Como explica
Braudel «<i>em todas as épocas, há uma certa representação do mundo e das
coisas, uma mentalidade colectiva dominante, que anima, penetra toda a massa da
sociedade. (…) Quase sempre as civilizações são invadidas, submergidas pelo
religioso, pelo sobrenatural, pelo mágico; sempre viveram aí, sempre aí foram
buscar as mais poderosas motivações do seu psiquismo próprio.</i>» A
civilização é, assim, a capacidade de formulação de uma determinada ideia e conceção
do mundo, uma projeção, talvez mesmo uma narrativa, do contexto e do lugar do
Homem no Tempo e no Espaço, podendo, por isso, ser definida por um elemento
singular e particular, diríamos que a partícula inicial, o bosão de Higgins de
toda a civilização, que é – a Linguagem. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Se é difícil determinar a origem da
civilização, é ainda mais ou, pelo menos, igualmente difícil, estudar e apontar
a origem da linguagem, tanto que o problema foi apodado como o “<i>mais difícil
problema da ciência</i>”, desde logo por ser impossível comprová-la com evidências,
o pensamento e a sua formulação, em linguagem, são do domínio do etéreo, do
transcendente, fora da materialidade concreta da evidência científica e da
prova física. O Verbo, em boa verdade, não é fossilizável. De qualquer forma,
mesmo perante este aparentemente intransponível obstáculo as teorias modernas
mais consensuais apontam para que a linguagem tenha surgido em ligação estreita
com o surgimento dos chamados traços da “<i>modernidade comportamental</i>”, um
conjunto de formulações e características que distinguem o <i>Homo sapiens</i>
atual dos restantes hominídeos, nomeadamente: a capacidade para o pensamento
abstrato, a profundidade e complexidade do planejamento, o comportamento
simbólico expresso pela arte, a ornamentação, a musica e a dança, e a
tecnologia representada pelo fabrico de lâminas e outros tipos de utensílios
para a caça e outras atividades, algo que, de acordo com a Teoria da Origem
Recente Africana, terá acontecido no Paleolítico Médio, há sensivelmente
200 000 anos, no sul do continente africano. Muitos milhares de anos antes
da escrita cuneiforme, dos primeiros papiros, de Homero, Ovídio, São Paulo e
Santo Agostinho, Dante, Guttenberg, Camões, Cervantes, Shakespeare, Milton,
Whitman, Proust ou Pessoa.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Perdoar-me-ão este relativamente
longo introito, mas a ideia de um Clube de Leitura, congregado nos claustros
monásticos de uma Biblioteca Pública, antigo convento jesuítico, e o simpático
convite que me foi endereçado pela Dra. Iva Matos para que viesse animar uma
das suas sessões, remeteu-me imediatamente, como um redemoinho do pensamento,
para a importância dos livros e o seu valor e papel na História das Ideias e,
por sinédoque, na História dos Homens ou, para usar a expressão de Braudel, na própria
“Gramática das Civilizações”. Refletindo sobre a matéria veio-me imediatamente
à mente o portentoso livro de Irene Vallejo, “O Infinito num Junco”, uma
brilhante elegia pela leitura, pela literatura e, em particular, pelo objeto
físico do livro e a forma como transporta em si, através do tempo e do espaço, dos
rolos de papiro aos codex medievais e aos milhares de paperbacks vendidos hoje
nas lojas dos aeroportos, a luz da Linguagem. Não querendo sobrecarregar os
membros deste Clube com uma tarefa tão árdua e dramática como a de ter de
consumir as suas mais de 400 páginas em poucos dias, veio-me à memoria um outro
livro, um pequeno opusculo de George Steiner, que li há já quase vinte anos,
intitulado “O Silencio dos Livros” que é, então o, tomo que vos sugiro aqui. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Escrito originalmente em 2005, como
um artigo para a conceituada revista francesa “Esprit”, com o título “O Ódio ao
Livro”, este curto ensaio, cujo tema principal é a inata fragilidade do livro e
da leitura, não só pela sua vulnerabilidade ao tempo e aos seus desmandos,
como, também, pela permanente ameaça que o próprio Homem impõe sobre as ideias,
das quais os livros são os principais portadores, “O Silêncio dos Livros” acaba
também por ser, e é esta a ideia que gostaria de partilhar e discutir convosco,
uma ode ao mais profundo e ancestral património da Humanidade e da Civilização,
de todas as civilizações, que são o pensamento e a linguagem e a sua expressão
mais pura, que é – a Oralidade. Como nos diz Steiner, numa imagem, julgo eu,
particularmente feliz «<i>a escrita constitui um arquipélago na imensidade
oceânica da oralidade humana.</i>» De certa forma, esta mesma reunião, de um
Clube de Leitura, onde um grupo de pessoas se sentam em círculo, em redor de
uma mesa ou, imaginemos nós, em torno de uma fogueira, para falar sobre um
livro, está mais íntima e ancestralmente ligada aos primórdios da civilização
humana do que com o surgimento desse objeto a que chamamos livro. Uma espécie
de regresso fictício ao mais profundo mistério das cavernas primordiais onde a
chama do imaginário ilumina as sombras do pensamento. Ainda citando Steiner «<i>(…)
os mais antigos fragmentos datados da Bíblia dos Hebreus são tardios, muito
mais próximos do ‘Ulisses’ de James Joyce do que das suas próprias origens, que
se relacionam com o canto arcaico e a narrativa oral</i>.» Ou seja, embora a
principal preocupação de Steiner ao escrever o seu ensaio fosse as ameaças contemporâneas,
cuja genealogia histórica nos aponta ao longo do texto, ao livro e à leitura,
“O Silêncio dos Livros” acaba, também, por ser um cântico de esperança pela
sobrevivência da literatura, seja ela ficcional ou ensaística, pela via da
sempre presente, e eterna na eternidade do Homem, oralidade que se sustenta no
pensamento. «<i>A escrita – e não vale a pena determo-nos nos diferentes
formatos que o livro foi assumindo</i>», isso fará, e de forma brilhante, Irene
Vallejo em “O Infinito num Junco”, «<i>configura um caso à parte, uma técnica
específica de entre um todo semiótico maioritariamente oral. Milhares de anos
antes do processo de desenvolvimento de formas escritas já se contavam
histórias, já se transmitiam por via oral ensinamentos de caracter religioso e
mágico, já se compunham e se transmitiam formulas encantatórias de amor, ou
então anátemas.</i>» Embalados pelo ritmo pulsante do coração humano, ou pelo
passo cadenciado da migração, do pé ante pé da caminhada humana, os primeiros
homens compuseram cânticos e criaram poemas e partilharam em canções e
histórias «<i>sentimentos e significações</i>.» Como nos diz Steiner: «<i>A
maior parte das pessoas não lê livros. Porem canta e dança</i>.» Ou, de forma
ainda mais contundente e, quiçá, irónica: «<i>a nossa herança intelectual e
ética, (…) vêm-nos de Sócrates e de Jesus de Nazaré. Nenhum deles, contudo, fez
questão de ser autor e muito menos de ser publicado</i>.»<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Não pretendo ser mal interpretado
ou tido como deselegante nesta apologia da oralidade num lugar de silêncios,
uma Biblioteca. Tal como Steiner, também eu, nutro um amor puro, como
certamente todos os membros deste Clube, pela leitura e pela sua mais direta
forma de consumação, que é o livro. Mas, talvez o mais importante a reter,
neste tempo de rápida e asfixiante digitalização e de cada vez maior domínio
das linguagens imagéticas em detrimento da escrita e da leitura, é que na antecâmara
da literatura e na génese da escrita está a capacidade inata do ser humano de
criar e formular ideias e palavras e que essa será sempre a base de toda a
civilização. Tão, ou mais importante, do que o instrumento da comunicação, seja
um livro, um texto, ou uma imagem e um som, é a comunicação em si, a troca e a
partilha de ideias, sensações e emoções, que são a essência do Humano. E, que
se consubstanciam em reuniões e lugares como este.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Como pai sou confrontado constantemente
com o alheamento das minha filhas face à leitura, os livros são para elas um objeto
entediante, quase arcaico, incapaz de lhes conquistar a atenção face à atratividade
e enleamento das imagens, seja nos telemóveis, nas redes sociais, ou na TV, os
filmes, ou as séries da Netflix. Recentemente até a Escola aboliu para a minha
filha mais velha, com apenas 13 anos, os manuais escolares, que eram ainda a
única e solitária forma das crianças lidarem, no seu dia-a-dia, com o papel e
as folhas e as páginas impressas, acentuando-se assim, ainda mais, o
distanciamento dos jovens com o texto, a escrita e, essencialmente, o tempo e o
esforço da leitura. Aquela relação íntima e simbiótica entre o leitor e o texto
e deste com o escritor que Steiner descreve como «<i>o texto implica, entre o
autor e o respectivo leitor, a promessa de um sentido.</i>» A aproximação à
Verdade, que se esvai assim no desenrolar hipnotizante das imagens nos ecrãs
luminescentes que nos rodeiam ofegantemente. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Porém, como nos explica Steiner e
Irene Vallejo, também, as ameaças ao livro sempre existiram, caminharam, aliás,
lado a lado com a criação de grandes Bibliotecas, com os seus exércitos de
escribas, ou copistas e tradutores. Do outro lado da mesma moeda os incêndios,
as cheias e a loucura ou a raiva dos homens acentuaram sempre a fragilidade e perecibilidade
dos suportes escritos das palavras. Desde os conquistadores muçulmanos de
Alexandria, aos militares sérvios que bombardearam a biblioteca de Sarajevo,
passando pelos censores, o <i>Index Librorum Prohibitorum</i> da Inquisição, ou
passando ainda pelos extremistas ideológicos do nazismo ou do estalinismo, ou
até mesmo das fatwas estéticas e filosóficas que ditaram, de uma forma ou de
outra, ao longo da História moderna, o fim do diferente e a destruição do
inimigo, fosse ele um escritor ou um livro. Como diz Steiner: «<i>ao longo da
História, os livros foram sendo sempre lançados para a fogueira.</i>» E, com
eles, alguns escritores também. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">A este propósito permitam-me que
resgate da memória, “<i>a mãe de todas as musas</i>”, outra obra fundamental. «<i>Queimar
era um prazer</i>», é com estas palavras que Ray Bradbury começa o seu sensacional
e talvez presciente romance “Farenheit 451” – «<i>a temperatura a que um livro
se inflama e consume…</i>» Embora muito marcado pelo ambiente político do seu
tempo, publicado em 1953, o subtexto do romance é uma critica à censura
ideológica e política do Macarthismo, o romance é, também, um hino à literatura
e ao papel fundamental dos livros na perpetuação de uma certa ideia de
Humanidade. Montag, a personagem principal do livro, é um bombeiro, numa
inversão metafórica do próprio sentido, cuja missão é queimar livros. Numa
sociedade distópica em que os livros são considerados inimigos da felicidade e
onde os resistentes, os excluídos, os ostracizados, se tornam eles próprios
livros-humanos guardando na sua memória os textos mais adorados. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Alguém é “A Republica” de Platão, outro “As
Viagens de Gulliver”, Montag poderá tornar-se “O Livro de Eclesiastes”, tal
como outros serão Aristófanes, Ghandi, Confúcio, Marx, Thomas Jefferson, ou
Mateus, Marcos, Lucas e João. «<i>Somos igualmente incendiários de livros.
Lemos os livros e queimamo-los, com medo que alguém os descubra. (…) O melhor
será guardar tudo na memória, onde ninguém irá procurá-los. Somos todos constituídos
por pedaços, extractos de história, de literatura, de direito internacional,
Byron, Tom Paine, Maquiavel, Engels, Cristo, tudo está registado</i>.» Há algo
de profundamente maravilhoso e poético nesta ideia de cada pessoa ser um livro,
de cada um de nós poder, não só, guardar dentro de si a memória de um livro,
como, também, de ser pela sua vida e através da oralidade um outro livro a
partilhar com os demais. Será essa, no fundo, a verdadeira eternidade da
literatura, muito para lá da morte física do livro enquanto matéria, a sua
eternidade na memória, seja ela individual ou coletiva e na forma como a
literatura se imiscui na própria intertextualidade do tempo, no “<i>ar do tempo</i>”,
e no “<i>inconsciente colectivo</i>” para usar a formulação de Carl Jung, em
que todos vivemos. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Regressando ao “Silêncio dos
Livros”, no outro ensaio que acompanha Steiner, o ensaísta francês Michel Crépu
remete-nos para Proust e o seu gargantuano “Em Busca do Tempo Perdido” e indica-nos
que «<i>existe um caminho que leva do jardim de Combray ao triunfo da Arte
sobre a morte.</i>» Em “Esse Vício Ainda Impune”, Crépu, resgata a obra, com o
mesmo título, do escritor modernista francês Valery Larbaud e a sua teoria de
como a literatura é, tal como para o narrador de Proust, que ambiciona tornar-se
escritor, uma porta para a eternidade, uma via de superação sobre a própria
morte. O gigantesco romance de Proust tornou-se num dos mais significativos livros
do nosso tempo encerrando nas suas mais de 3 200 páginas divididas em 7
volumes os múltiplos significados e singularidades da vida humana. Uma grande
pintura, um fresco, daquilo que é “A Condição Humana” como lhe chamaria Hannah
Arendt numa fixação autoral e autorizada que só os grandes criadores são
capazes de fazer.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Harold Bloom, um dos mais
importantes críticos literários do nosso tempo, criou a teoria da “Angústia da
Influência”, que sugere que em cada momento, cada grande escritor, se encontra
em luta com os seus predecessores e sucessores numa luta interior pela primazia
no cânone literário. Para Bloom é Shakespeare o vértice superior desta pirâmide
de criação literária sendo ele o mais inventivo e completo escritor da
história, Bloom irá mesmo ao ponto de considerar Shakespeare o “<i>inventor do
humano</i>”. Ora, nesta batalha da angústia da influência os escritores
debatem-se não só com as suas próprias leituras, mas também com a literatura
como um todo, como um imenso corpo sobrenatural, um monstro ou uma estrela de
luz eterna, conforme a perspetiva de cada um, mesmo a que há-de vir, que ainda
se esconde nas sombras do futuro, pressupondo quase uma leitura subconsciente, numa
visão jungiana, que está presente na matéria impalpável da imaginação, num
reino para lá da matéria e acessível apenas pela pena do pensamento e,
possivelmente, do canto doce da oralidade ou da escrita. É também isso que, de
certa forma, nos sugere Crépu na omnipresença cultural de um romance tão vasto
e assoberbante como o “Em busca…”, que poucos hoje terão a disponibilidade e,
ironicamente, o próprio tempo para ler, mas que faz parte, assim mesmo, da
nossa herança cultural coletiva. Hoje essa ambição transcendente do escritor de
abarcar a totalidade da vida é representada pela obra do escritor norueguês Karl
Ove Knausgard, um enorme épico de 6 volumes e, também, mais de 3 000 páginas
intitulado “A Minha Luta”, onde Knausgard conta, ficcionada ou não, a história
da sua vida partindo do momento em que a escreve, aos 40 e poucos anos, entre
os anos de 2009 e 2011. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">No fundo, o amor pelos livros é tão
só um instrumento para a árdua tarefa da Vida, uma enxada para lavrar o solo
fértil do pensamento onde germinam e crescem as flores da imaginação e da
poesia e que invade, como um odor que se espalha por um campo florido levado pela
brisa primaveril, o espírito e a mente de leitores e não-leitores e todos os
tipos de escritores. O que nos sugerem Steiner e Crépu, o que Vallejo descreve
com inigualável mestria, o que liga como uma argamassa de éter o cânone de
Bloom, é essa magia que se transporta e que nos transporta entre a Vida e a
Arte, entre o real e a ficção, e que tem nos livros a sua barca, as suas velas,
o seu navio velejando no oceano não já só da oralidade, mas da linguagem e do
pensamento. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Em 1994, aos 71 anos, Jorge
Semprún, então já um aclamado romancista, guionista e intelectual franco-espanhol
publica, nas prestigiadas edições Gallimard, e como são importantes as editoras
e os editores, os bons editores, um livro intitulado “L’Ecriture ou la Vie”,
uma espécie de objecto híbrido entre a memória autobiográfica, o romance ficcional
e o ensaio histórico, escrito na primeira pessoa, sobre a passagem de um homem,
ele próprio, pelo mais profundo campo do horror e da morte – o campo
concentracional nazi de Buchenwald. Filho de um diplomata, vivendo em Paris, membro
do partido comunista e da resistência francesa, em 1943 Semprún é denunciado e preso
pela Gestapo sendo transferido para o campo de concentração de Buchenwald, no
centro oeste da Alemanha a poucos quilómetros da bela Weimar de Goethe e aonde
ficará detido até 1945 quando as tropas de Patton libertarão os prisioneiros sobreviventes
do campo. “A Escrita ou a Vida” é um relato da batalha de um escritor com a
morte, não apenas a morte concreta e omnipresente do campo de concentração, mas
a morte metafísica da escrita num lugar sem livros, sem leitores, onde a
escrita é apenas mental e a leitura memória e oralidade e desejo, ou sonho, se
é que é possível sonhar na escuridão das «<i>sombras impassíveis e mudas</i>»
dos que já não vivem. Em todo o livro, por onde de certa maneira, passam também
todos os outros escritores com que Semprún se debate na sua angústia blooomiana,
de André Gide, a Cesar Vallejo, de Bakunine a Goethe, de Proust, sempre Proust,
que Semprún também confessa que não leu, que nunca precisou de o ler porque o conhece
intimamente, como se de um familiar se tratasse, há uma teia de pensamento e de
memória, um encadear sucessivo da matéria da história que liga Semprún, que nos
liga a todos, desde a origem da própria História, da Itaka de Ulisses aos pedintes
de Brecht ou aos clássicos de Italo Calvino, num ensejo de superar a própria morte.
<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Steiner, tal como Semprún e Harold Bloom,
são representantes últimos de uma espécie em vias de extinção, a do grande
intelectual europeu e ocidental. Homens de uma craveira e erudição acima da
média, com vidas inteiras dedicadas à academia, à vida pública e, principalmente,
à leitura, baseando a sua participação cívica numa profunda humanidade construída
nas fundações da tradição cultural e civilizacional judaico-cristã. Curiosamente,
os três nasceram na década de vinte do século passado e viveram as agruras
dessa Era que o historiador inglês, Eric Hobsbawm, chamou “dos Extremos”.
George Steiner, nascido em paris em 1929, filho de uma família de judeus austríacos,
com o alvor do nazismo, Steiner emigra, com a sua família, para os Estados Unidos
da América, onde viria a fazer a sua carreira como ensaísta, critico, filósofo
e professor de línguas e literaturas nas mais prestigiadas universidades
americanas e europeias. De entre a sua vasta obra destacam-se volumes como: “No
Castelo do Barba Azul”; “Gramáticas da Criação” e “Lições dos Mestres”. George
Steiner faleceu em 2020 aos 91 anos. Harold Bloom, também ele de origem
judaica, nasce em Brooklyn, Nova York em 1930 e viria a falecer, com 89 anos,
em Outubro de 2019, escassos cinco meses antes de Steiner. Considerado o mais
importante e proeminente critico literário do seu tempo Bloom dedicou toda uma
vida ao estudo e divulgação do cânone literário ocidental, um grande corpo
literário, que para Bloom, constituía a base da nossa cultura e civilização. Tal
como Steiner, Bloom foi um dos mais fervorosos contestatários do politicamente correto
e daquilo a que chamou “as escolas do ressentimento”, assinalando com
particular acutilância a ameaça que essa ditadura das ideologias minoritárias apresenta
para a cultura liberal ocidental baseada nos pilares da liberdade individual e
da tolerância. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Jorge Semprún o mais
velho dos três, nasceu em Madrid, em 1923, no seio de uma família abastada de políticos
e diplomatas espanhóis. Com uma vida dedicada à política, à literatura e ao cinema,
foi membro ativo desde 1942 do partido comunista espanhol, desafiou o franquismo
e o nazismo, viria a ser Ministro da Cultura de Espanha, entre 1988 e 1991, no segundo
Governo de Felipe Gonzalez. No cinema colaborou como argumentista em mais de
uma dezena de filmes com realizadores como Alain Resnais, Costa Gravas e Joseph
Losey. “A Grande Viagem” foi o seu primeiro romance e o mais aclamado,
escreveria mais cerca de vinte livros dos quais “O Regresso de Netchaiev”; “Autobiografia
de Federico Sanchez” e “O Adeus de Federico Sanchez”, o seu nome na
clandestinidade, e “A Escrita ou a Vida”, são os mais significativos. Semprún morre
em Paris, em 2011, com 88 anos. Jorge Semprún foi me apresentado pela minha avó
materna, Leonor Arruda, que era, ela própria, uma leitora avida e insistente,
apreciadora de vários géneros, da prosa à poesia, e, por força do coração, fora
casada com um espanhol, uma devota apaixonada pela literatura de España. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Os livros, como toda a Arte, são
pequenas perolas de pensamento no oceano da vida, frágeis e humanas tentativas
de superar a eternidade da morte. Mas, tal como para Proust, ou Semprún, tal
como para Steiner, ou para cada um de nós, tal como para mim que agora aqui escrevo
estas palavras, ou para as minhas filhas que no futuro encontrarão outras forma
de leitura, o que fica, o que é verdadeiramente importante, e que nos separa da
barbárie que se esconde nos calabouços selvagens da alma, são as ideias, a luz
e a estrela do pensamento e da linguagem, é esse o fio de Ariadne que nos guia
no labirinto da civilização, desde há milhares e milhares de anos, até um futuro
que outros ousarão imaginar e conhecer. Porque se “<i>a memória é a mãe das
musas</i>” é a imaginação que dá à luz o Verbo. E, nós, leitores e escritores,
livros e amantes dos livros somos os guardiões, os bibliotecários, dessa infinita
Luz que deu e dá origem a tudo…<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Pedro Arruda<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">Vila Franca do Campo, Dezembro de
2022<o:p></o:p></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-3776356603997314122022-05-09T12:18:00.006+00:002022-05-12T11:35:09.670+00:00Para uma História do Surf (e do Bodyboard) nos Açores<p style="text-align: center;"><b>Apontamentos e Memórias </b></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiaXJEVh-yI1dhdNzSflwy9ipimdtkA8lPbuMRWDMsJwoOvQHc8gHL3nNe1KwKiRmbTRmpCkfsQiuOI8PRIcFOIPVV2FUCKrC3ZND09U9pYTzlkm8BNNevZnyCIvSNP5-sppAWrJNlUpYrxG7glbyip_E8Q5nlOttKs7EHfyaI-u13xjrZC8CQaKFsV/s3845/IMG_4958.HEIC" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2884" data-original-width="3845" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiaXJEVh-yI1dhdNzSflwy9ipimdtkA8lPbuMRWDMsJwoOvQHc8gHL3nNe1KwKiRmbTRmpCkfsQiuOI8PRIcFOIPVV2FUCKrC3ZND09U9pYTzlkm8BNNevZnyCIvSNP5-sppAWrJNlUpYrxG7glbyip_E8Q5nlOttKs7EHfyaI-u13xjrZC8CQaKFsV/s320/IMG_4958.HEIC" width="320" /></a></div><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Quem, há
vinte ou trinta anos atrás, poderia imaginar que, um dia, seria possível? Para
os mais antigos, como eu, aquele é e será sempre o “Pico da Ganza”. Aquele
cantinho, aquele morro, aquelas ondas, eram uma espécie de refúgio escondido
aonde acedíamos sob risco da própria pele, perseguidos por cães de fila, os
pneus dos carros furados e rendeiros furiosos perseguindo-nos como se fossemos
invasores. Só chegar ao “Pico da Ganza” já era uma realização plena da rebeldia
e da inquietação punk do surf nos anos 80 e 90. O risco, o estar fora da lei,
não olhar a meios, ou a ameaças, para cumprir o chamamento das ondas, das boas
ondas. Uma quase libertinagem aquática e oceânica movida pelo prazer dos tubos
e de deslizar naquelas ondas isoladas e desconhecidas. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Naquele
tempo os Açores eram uma entidade inexistente no universo mundial do Surf. Não
havia fotógrafos. As revistas chegavam com meses de atraso. As fotografias eram
todas do Havai, da Califórnia, do Brasil ou de França. Os destinos eram todos
distantes e exóticos, a Austrália, a Indonésia, nem sequer as Fiji, ou o Taiti,
eram ainda conhecidas. Agora, o distante e exótico somos nós. E, o nosso velho “Pico
da Ganza” é cartaz promocional de uma marca de pranchas de Bodyboard, com
distribuição planetária. Aquilo com que nós sonhávamos, há tantos anos atrás,
olhando as fotografias de outros mares e outras ondas, em oceanos diferentes do
nosso, hoje, algum miúdo igual ao que fomos então, sonha ser surfista, ali,
dentro de um tubo, no “Pico da Ganza”. Quem, então, haveria de dizer…<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Por isso, a
pergunta, então, que fica por fazer é esta: como foi possível esta evolução de
180 graus, num curto espaço de 20 anos? Como, numa região historicamente virada
de costas para o mar, os desportos de ondas, Surf e Bodyboard, conseguiram esta
projeção e esta relevância no seio da sociedade açoriana, influenciando
decisões políticas e fazendo parte do dia-a-dia de tantas famílias e da própria
sociedade açoriana e captando o interesse e a atenção do mundo do Surf um pouco
por todo o globo?<o:p></o:p></span></p><p>
</p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Dizem-nos,
os compêndios e os manuais de historiografia, que o tempo das gerações é medido
em décadas. 25 anos, sensivelmente, é a duração e a mudança entre cada geração.
Porém, nesta história que aqui me interessa contar o tempo mede-se em verões e
as gerações mudam em dias de praia, de sol e de ondas. Em períodos de <i>swell</i>,
ritmos de ondulação, manobras, histórias e experiências. Tudo aquilo que compõe
uma vida, no fundo, que é feita de instantes e singularidades, como o primeiro <i>take-off</i>,
o primeiro <i>drop</i>, o primeiro tubo, a primeira vez naquela onda inóspita e
nunca antes surfada.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Não existem
registos escritos sobre os primórdios longínquos do surf nos Açores. Não
tivemos um Capitão Cook, nem havia aqui um outro tipo de polinésios, que
escrevesse nas crónicas a agitação das ondas nas praias, baías e enseadas
destas ilhas atlânticas nos idos de quinhentos. O Surf, aqui, é um fenómeno
moderno e é, essencialmente, um filho da baleação. Embora ainda não esteja comprovado,
por um estudo aprofundado, de fontes coevas, é seguro dizer-se que o Surf, ou
essa ideia e gesto de correr vagas com auxílio de um objeto de madeira, terá, possivelmente,
aportado aos Açores, Madeira e Cabo Verde, pela mão dos baleeiros do séc. XIX. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Começando a
partir dos anos 30 do séc. XIX, e ao longo de toda a época de ouro da baleação
americana, os grandes navios baleeiros partiam da costa este dos EUA,
nomeadamente dos portos de Nantucket e New Bedford, em grandes viagens anuais
de circum-navegação, que os levavam a cruzar o Atlântico e o Pacífico, em busca
de caçar os grandes cetáceos e na procura de óleo, gordura e espermacete.
Nessas viagens, era frequente a recolha de marinheiros originários das ilhas
tendo, assim, muitos açorianos, madeirenses e cabo-verdianos chegado ao Havai
levados nessas longas rotas da baleação. De igual forma, muitos americanos se
fixaram nos Açores como agentes de navegação, dos quais o exemplo maior e mais
significativo é, sem dúvida, a família Dabney, que se sediou na Horta.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">No final do
século dezanove, entre 1878 e 1887, dá-se uma grande leva de emigração açoriana
e madeirense para o Havai. Famílias inteiras são contratadas pela <i>Hawaiian
Sugar Planters Association</i> para trabalharem nos campos de cana-de-açúcar,
muitos deles levando mulheres e filhos e fixando-se permanentemente nesse
arquipélago do pacífico. Estima-se que neste período cerca de 10 500
portugueses se fixaram nas ilhas havaianas, até cerca de 11% da população do Havai,
pelo ano de 1910, ser de ascendência portuguesa. Os portugueses, apelidados de
“<i>Pukiki</i>” pelos nativos havaianos, levaram consigo várias tradições que, ainda
hoje, se mantêm e fazem parte da cultura popular do Havai, como as “malassadas”
ou o culto do “Espírito Santo”, ainda hoje celebrado, no início de maio, em
vários pontos dessas ilhas do Pacífico.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O nosso
cavaquinho, um instrumento originário do Minho e historicamente muito popular
entre os marinheiros, por ser maneirinho e fácil de transportar, é o pai do
famoso <i>Ukelele</i> havaiano e é seguro dizer-se que terá chegado ao Havai,
precisamente, pela mão dos marinheiros portugueses das escunas baleeiras de
novecentos. É, aliás, esta correlação de causas e efeitos que nos permite dizer
que esses mesmos marinheiros terão tido contacto com a prática do surf no Havai,
nesse tempo, e que poderão, talvez, ter trazido a mesma para as ilhas
atlânticas. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Nos anos 80
do século passado era costume ver miúdos a apanhar ondas, carreiras, em
pranchas improvisadas de esferovite ou em pequenas canoas, quase caixas, feitas
de madeira ou de lata, no centro da baía de Rabo de Peixe. Ao que tudo indica,
e pelo que era relatado pelos próprios, essa era uma prática passada entre
gerações, anterior mesmo aos primeiros surfistas das ilhas. Esses relatos
permitem pressupor que entre os homens do mar haveria esse conhecimento e essa
tradição do divertimento nas ondas com recurso a algum tipo de “pranchas”, um
conhecimento passado ao longo dos tempos, de geração em geração. Não é,
portanto, inverosímil pressupor que este estreito contacto entre os povos dos
dois arquipélagos, dos dois maiores oceanos, tenha levado a trocas culturais e
que algum emigrante açoriano possa ter trazido, de volta, essa tradição havaiana
de correr vagas de mar com o auxílio de uma prancha. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Também é
possível especular que as duas grandes guerras mundiais terão trazido surfistas
aos Açores. O Surf moderno tem a sua primeira expansão após os jogos olímpicos
de 1912, com as tournées mundiais do campeão olímpico de natação, o havaiano
Duke Kahanamoku, que popularizou o desporto, por vários países, fazendo demonstrações
documentadas de surf na Califórnia, na Austrália e no norte da Europa. Durante
a 1ª guerra mundial, a marinha dos EUA teve uma importante base militar na
cidade de Ponta Delgada, entre 1917 e 1919, <i>Naval Base 13 – Mid-Atlantic
Naval Base Ponta Delgada</i>, com o seu comando naval na antiga residência do Cônsul
Hickling, também ele um americano radicado nos Açores, na freguesia de São
Pedro, comandada pelo Almirante Herbert Owar Dunn. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Natural de
Rhode Island, Dunn era amante dos desportos náuticos, nomeadamente da vela, e
podemos imaginar os marinheiros americanos a disfrutarem, nos seus momentos de
lazer, das praias e das ondas das Milícias e do Pópulo, em pranchas de madeira
improvisadas. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O mesmo
poderá ter ocorrido durante a segunda guerra mundial, nas ilhas de Santa Maria,
entre 1941 e 1945, período em que o Governo Português assinou um acordo de
cedência militar, com o Governo americano, visando a cedência do aeroporto para
missões de defesa do esforço de guerra dos aliados, e Terceira, na Base das
Lajes, a partir de 1943, com varias centenas de militares e aviadores
americanos ai estacionados, muitos deles originários da Califórnia, onde, por
essa altura, o Surf era já um desporto popular e em franco crescimento.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Nos quarenta
anos que mediaram entre a segunda guerra mundial e os anos oitenta o Surf nas
ilhas terá sido uma atividade maioritariamente de turistas e de alguns, muito
poucos, entusiastas. Velejadores e marinheiros terão certamente trazido
pranchas e experimentado as ondas açorianas. Rusty Miller, o famoso e reputado
surfista californiano, cruzou o Atlântico nos anos 50, num navio-escola, e
passou nos Açores, embora, de acordo com o seu próprio relato, não tenha aqui
surfado, mas outros como ele poderão tê-lo feito. Pedro Martins de Lima o
“primeiro” surfista português, viajava regularmente aos Açores na mesma altura,
para velejar, fazer caça submarina e, quem sabe, apanhar ondas com o seu amigo
Leo Weitzenbaur. E, claro, temos a história épica do Carlos “Garoupa” Medeiros
que, no final dos anos 40, construiu, ele próprio, uma prancha de madeira de
criptoméria, inspirado pelos filmes de Hollywood do Cine-teatro Vilafranquense
e surfando, solitário, as inchas no baixio sob o olhar atento e imponente do
Ilhéu de Vila Franca do Campo. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Ao contrário
do que se poderia pensar o conceito de lazer é extraordinariamente recente na
história da humanidade. A ideia de tempo livre só entrou no léxico
civilizacional há sensivelmente cento e cinquenta anos com o advento da
revolução industrial e a libertação da força de trabalho. Até lá as atividades
humanas, para além de comer e dormir, eram ocupadas em funções ditas
reprodutivas como caçar, cultivar, transformar, comerciar, aprender, entre
outras ocupações estritamente funcionais e utilitárias. Não fazer nenhum é uma
conquista moderna, aliás, inscrita na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, no seu Artigo 24, em 1948, se bem que, e infelizmente, tenha muito pouco
de realmente universal.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Da mesma
forma, o ato de desfrutar da orla marítima, de gozar a praia, o oceano e as
ondas, também só entrou nos hábitos sociais do mundo ocidental no virar do
século dezanove para o século vinte. “<i>As Praias de Portugal, guia do
banhista e viajante</i>”, de Ramalho Ortigão, teve a sua primeira edição em
1876 e seguia a então moderníssima tendência de incentivar a descoberta e
usufruto da vida à beira-mar como fonte de saúde, de bem-estar e de saudável
ocupação do tempo livre. Ir a banhos, como então se dizia, era para Ramalho
Ortigão algo tão chique e moderno como é para nos hoje comer sushi por
encomenda entregue pelo estafeta da Glovo. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Tirando o Havai
e outras ilhas do Pacífico, a ideia de tirar prazer de uma atividade no mar era
absolutamente estranha para todo o Ocidente. O mar era local de faina, de gesta
e de labor, ou aventura. O oceano era mais um local de perigo do que de
conforto, ou de alegria. O Adamastor em oposição à Ilha dos Amores que era,
como o próprio nome indica, uma ilha. Terra firme e segura e luxuriante. Só no
século XX o ocidente descobriu o encanto e o chamamento das ondas e a arte de
ser levado por elas, ou de se levar com elas.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">A minha
primeira onda foi na praia do CDS, na Costa da Caparica, algures pela
primavera/verão de 82 ou 83, numa prancha Suntalon do Rodrigo Carmona.
Lembro-me dessa carreirinha</span> <span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">como se fosse hoje, em linha reta desde o <i>outside</i> até arrojar,
como um cetáceo, na areia. A paixão, que logo se transformou em vício, foi
instantânea e levou a que numa Nauticampo, poucos meses depois, os meus pais me
comprassem uma Atunas, azul com quilhas aparafusadas e gráficos coloridos no <i>deck</i>.
<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Comparativamente,
a Atunas era um míssil ao lado da Suntalon. Com os seus rails curvos, <i>crescent
tail</i> e <i>nose</i> curto, ao lado do formato charuto das Suntalon, a minha
Atunas fazia-me acreditar ser um exímio corredor de vagas. No entanto, ambas
eram iguais na tortura cutânea. Os decks picotados e as horas infindáveis que
passávamos na água provocavam chagas profundas e dolorosas nos nossos peitos
imberbes e infantis. Aqueles primeiros verões, imersos em felicidade e água
salgada, foram o meu ato iniciático na religião das ondas. Para alguém, como
eu, que não acredita em Deus o mar tornou-se, desde então, na minha única fé. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Um ou dois
anos depois uma apendicite aguda levou-me ao bloco operatório do Hospital Santa
Maria, o resultado foi a remoção do apêndice e, a minha mãe, pesarosa,
ofereceu-me, em jeito de recompensa, uma Morey Boogie Mach 7-7 e um fato
O’Neill, um <i>short-john</i>, denominado O’No, que era lindo de morrer,
azul-marinho e verde-água, mas perfeitamente inútil nas águas geladas das
praias do litoral de Lisboa, não que isso me preocupasse, que a vontade e a
excitação de estar na água era tanta que o frio era uma coisa que não se me
assistia. Para além do Rodrigo, também fazia parte desse grupo das primeiras
surfadas o atual Ministro da Cultura, o Pedro Adão e Silva, os dois
bodyboarders arrependidos que cedo, como São Pedro fez a Jesus, renegaram as
suas pranchas, o Pedro tinha uma BZ stinger, se não me engano, e abraçaram o
Surf, que era uma forma mais exigente, mais endinheirada e mais amiga das
miúdas, de apanhar ondas. Eu, provavelmente por ser mais remediado, ou mais
preguiçoso, deixei-me ficar pela arte dos el rolos e dos 360… <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">E depois,
metem-se as férias, nos Açores, nos fluorescentes anos 80… <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">De todas as
coisas que o 25 de Abril de 74 deu a Portugal, e foram muitas, e foram
importantes, talvez a menos óbvia seja dizer que lhe deu a primeira verdadeira
geração de surfistas nacionais. Se bem que, se tivermos em conta aquilo que o
Surf representa de liberdade e afirmação pessoal, então, até fará sentido a
ligação à Revolução dos Cravos. Até à revolução a evolução do Surf em território
continental fez-se muito à imagem do que foi a sua evolução nas ilhas, ou se
calhar até em menor escala e a um ritmo mais lento do que nas ilhas, vivendo da
influência de viajantes, turistas e outros nómadas, hippies dos anos 60 e 70,
na sua maioria americanos e australianos, com o ocasional francês, que corriam
a costa portuguesa em busca de um sentido para a vida e no entretanto</span>, <span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">enquanto o destino não aparecia, iam
apanhando umas ondas. Eram esses viajantes que iam deixando, aqui e ali, umas
pranchas, alguns ensinamentos e muitos sonhos nas cabeças dos poucos jovens
surfistas portugueses.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Com o 25 de
Abril, e acima de tudo com a partida para o Brasil de um número significativo
de crianças e jovens, fugidos com as famílias às incógnitas do PREC, e ainda mais
com o regresso desses jovens a Portugal cheios do sal, do samba e do espírito
de Ipanema, é que nasceu, em pleno, o Surf em Portugal. De igual modo, nas
ilhas, é esse contacto com o exterior, com a América, também com o Brasil e
principalmente com o continente, Lisboa nomeadamente, que se dá a génese do
Surf no arquipélago. São miúdos cujas famílias tinham contacto direto com o
exterior que vão trazer não só os materiais, pranchas, fatos e outro tipo de
equipamento, mas a cultura e o espírito do Surf para os Açores. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Partindo do
início dos anos 80, quando eu comecei a surfar, aqui em São Miguel já havia uma
meia dúzia de surfistas. O Carlos Gouveia, mais conhecido como “Perna”, um terceirense
naturalizado micaelense, que surfava todos os tipos de mar com a mesma bonomia
e que conseguia a coisa espantosa de ter uma namorada, mais tarde sua mulher,
que aguentava horas e horas, sentada no carro, a ler, à espera dele enquanto
ele surfava Rabo de Peixe clássico. Para quem conheça ou consiga imaginar o
largo em frente à igreja de Rabo de Peixe em meados dos anos oitenta percebe
que este é em si mesmo um feito digno de registo. O “Perna” tinha um irmão que
por brincadeira apelidamos de “Braço”. O Marco Sousa e o Armindo, dois homens
da vela que por isso, julgo eu, se aproximaram do Surf. O Marco depois foi
também parapentista e sempre que me via, fosse onde fosse, perguntava “o que é
que fazes aqui”, como se ficasse sempre espantado de me ver. Foi com o Marco e
o Armindo que surfamos, pela primeira vez, nos areais de Santa Bárbara, que na
altura era uma praia sem areia fruto da apanha ilegal de areia para a
construção civil. Estes eram os mais velhos, por terem sensivelmente mais 10
anos do que nós.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Fazem ainda
parte desta primeira geração, se assim lhes podemos chamar, o Henrique Areias.
Os irmãos "Violante" Pedro e o Manuel Medeiros. O Paulo “Sagão” Ramos. O Francisco Cabral
de Melo. O Paulinho “Picuruta” Santos. O Rigoberto Oliveira. O Miguel Read. Bruno
Brum. Guy Costa. O Rui Horta Santos. E, o João Carlos Fraga, no Faial e o João
Monjardino, na Terceira.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Depois,
havia os da nossa idade. O Zé Albergaria, os irmãos Valdemar, Pedro e “Valdinho”
Bettencourt d'Oliveira. O Pedro Neves. Luis Paiva. O Joao Brilhante e o Miguel “Fru”.
O Paulo “Gadelha” e os “Romis”. O Zé e o Valdinho eram dois talentos natos, com
uma habilidade e uma queda natural para apanhar e deslizar nas ondas e um
estilo, no Surf o estilo é tudo, sem precedentes e é preciso ter em conta que
nessa altura não havia filmes, nem spots na TV ou vídeos do YouTube. Não havia
comparação nem orientação. Aprendíamos observando as revistas, imaginando o
antes e o depois dos movimentos fixados no milésimo de segundo da fotografia.
No final dos anos 80 os “valdinhos” foram, inclusive, ao Havai e trouxeram consigo
de volta pranchas do Eric Arakawa, se não me engano, uma espécie de Fórmula 1
das ondas, naquele tempo. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">No Bodyboard
formou-se naquela altura um pequeno grupo, quase um gang, de miúdos apaixonados
e havidos por apanhar ondas, onde eu me incluía quando aterrava, “o português”,
na ilha, nas férias, e do qual faziam parte o André Almeida e Sousa, o Diogo
Cymbron e o Bernardo Rodrigues. O Bernardo era, ainda é, aquele tipo de pessoa
que é bom em tudo o que faz. Surfava melhor que nós todos, tocava guitarra,
tinha boas notas e um sucesso absolutamente invejável com as raparigas, tudo
coisas que nos deixava a todos a querer ser como o Bernardo. O André ficou
conhecido como o “Selvagem”, o Diogo era o “Punk Rural” e a mim foi-me dada,
pelo Zé “Minhoca”, a sensacional alcunha do “Pavarotti”, ou <i>parvaroti</i>
como a minha avó Leonor gostava, ironicamente, de dizer. Paralelamente, havia o
Pedro Machado, o Alvarinho e os irmãos Moniz, Joao e o seu irmão mais novo o
Vasquinho, que era, também, um enorme talento natural, com um estilo de <i>dropknee</i>
que, provavelmente, na altura, em Portugal, seria apenas comparável ao do malogrado
Ricardo Horta. Uns anos mais tarde, surgiu também, o grupo dos Sousa Lima, que
carregavam consigo, em doses iguais, o entusiasmo e os materiais topo de gama. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Esta é a
primeira geração de surfistas a sério em São Miguel e foram estes que tornaram
a imagem dos corredores de vagas algo habitual nas praias da costa sul, desde a
Ribeira Quente aos Mosteiros e desbravaram, com coragem, inconsciência e muita ousadia
os principais spots da costa norte - Rabo de Peixe, Areais, Monte Verde e Sta.
Iria, que eram, naquele tempo, ao que se cingia o <i>North Shore</i> micaelense.
<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Este foi um
tempo e uma história feita de criatividade, adolescência, bravura, asneiras,
pranchas, fatos, carros inesquecíveis, viagens marcantes, escaldões, boiões de
Nívea, escapadas às escondidas dos pais e dos avós, copos, festas, finos na
Cascata, socos no Cheers, amassos no Pópulos e não, ninguém metia <i>wax</i> no
cabelo, os cabelos louros e descolorados eram só dos dias inteiros passados na
praia debaixo do sol….<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">A história
da evolução do Surf moderno está intimamente ligada à evolução das tecnologias
e da própria globalização. Em “<i>The World in The Curl: An Unconventional
History of Surfing</i>”, Peter Westwick e Peter Neushul explicam bem como a
invenção e o desenvolvimento de novos materiais compósitos e o acesso e
liberalização de meios de deslocação no planeta, com o advento dos aviões a
jato, tiveram um papel fundamental na disseminação do Surf pelo globo. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O
desenvolvimento das espumas de poliuretano, fruto do esforço científico da
segunda guerra, é um elemento fulcral na expansão da indústria do Surf. As espumas
de poliuretano, inventadas por Otto Bayer, tiveram um papel fundamental na
indústria aeronáutica do tempo da guerra, sendo que muitos dos principais
centros de desenvolvimento da força aérea americana ficavam precisamente na
Califórnia. Após a guerra, muitos destes engenheiros enveredaram por outros
voos associando o seu conhecimento científico e de engenharia ao uso desses
mesmos materiais na construção e multiplicação de pranchas. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">É esta
relativa facilidade na produção de equipamentos para a prática de Surf que vai
permitir a sua democratização, embora este nunca tenha sido um desporto barato.
Em 1971, Tom Morey, engendrou, na sua garagem no Havai, o primeiro protótipo da
prancha de bodyboard a que chamou de Boogie Board, em homenagem ao <i>Boogie
Woogie</i>, um estilo de blues do qual Tom era particularmente fã. Daí nasceu a
sua marca Morey Boogie que, em 1977, vendeu à gigante fabricante de brinquedos
Mattel, tornando-se o bodyboard tão ou mais popular que a Barbie e o Ken.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O acesso a
materiais é fundamental para o desenvolvimento do Surf. Sem pranchas e fatos
não há Surf ou Bodyboard, só bodysurf. As <i>surf shops</i>, nos anos oitenta,
eram inexistentes nos Açores e raras em Portugal. Em Ponta Delgada a MAP uma
loja de material náutico e de pesca, do Honorato, era onde, lá de quando em
vez, se conseguia comprar um fato ou uns pés de pato, depois a Jamé passou a
ter também algum material técnico para além do habitual <i>surf wear</i>, mas a
maioria do material vinha de fora, principalmente dos EUA, ou do continente, dada
a facilidade de muitos jovens açorianos contactarem familiares emigrados na
América e pedir para enviarem, fatos e pranchas. Em Lisboa, o cenário não era
muito melhor com meia dúzia de lojas espalhadas pela Costa da Caparica e no
eixo linha Cascais. Esta escassez de material fazia com que as pranchas
durassem anos e fossem sendo remendadas e reparadas consoante o uso e a
necessidade. O mesmo com os fatos, feitos daquilo que à luz da tecnologia
moderna era não polietileno fino e maleável, como o que temos hoje, mas um
quase couro, duro e ressequido. Uma técnica comum para ajudar a vestir os fatos
era o uso de sacos de plástico, ou meias, para melhor fazer deslizar os membros
do corpo para dentro daquelas autênticas armaduras de borracha. E pazadas de
creme Nívea, no pescoço e outras zonas da anatomia onde o neopreno ressequido
tinha tendência a queimar</span> <span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">a pele, como alcatrão seco, depois de horas e horas de fato vestido.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">No campo das
pranchas de bodyboard para além da 7-7 e da BZ Stinger, dois clássicos
absolutos da altura, havia outras pranchas que despertavam a cobiça da
miudagem. Turbo e Wave Rebel eram duas outras marcas que dominavam o mercado e
também a Génesis, do visionário brasileiro Marcus Kal Kung. Por cá o Bernardo
surfava com uma Mach 20, o modelo mais futurista da Morey, com as suas quilhas
retrateis e o <i>deck</i> em vinil, com gráficos ao melhor estilo <i>cyber
disco</i> dos anos 80, uma espécie de hit do Giorgio Moroder em formato prancha
de bodyboard. Olhando para a prancha hoje parece um tanque de guerra, mas como
ela andava e como ele a fazia andar… <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O meu único
encosto relativo com o mundo da “prozada”, patrocínios, marcas e campeonatos
foi quando o meu tio João Augusto, ligado ao negócio da importação de alimentos
para pássaros, recebeu uma proposta para representar em Portugal uma marca sul
africana de waveskis, a Wave Warrior, que por sinal, na altura, estava a lançar
uma gama de pranchas de bodyboard com <i>slicks</i> em fibra. Uma novidade
absoluta no mercado, mas um flop tanto técnico como comercial. Sendo o único
“surfista” da família, fui chamado para ser consultor e atleta da marca, uma
aventura que foi tão rápida e curta, como fracassada. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Que eu tenha
conhecimento só houve dois <i>shapers</i>, dignos desse nome, na ilha de São
Miguel, o João Brilhante, uma das mais singulares e marcantes personagens do
Surf açoriano e o Dário Correia. Claro que havia alguns curiosos e inspirados e
corajosos aspirantes a <i>shapers</i> como os irmãos Mário e Jorge e as suas
Crystal Voyagers, que, ao que sei, se auto exilaram na paradisíaca Caldeira da
Fajã do Santo Cristo, e consta que o Francisco Cabral de Melo também se terá
aventurado no fabrico de pranchas. Mas, nada sequer comparável aos sucessos
comerciais de marcas como a Semente ou a Pólen, os dois grandes gigantes do
Surf nacional nos anos 80 e 90. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Ser surfista,
naquele tempo, era tratar bem do material, saber estimar e cuidar e ser <i>vintage</i>
antes do tempo…<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Rastejantes,
sapos, pensos higiénicos, lombas, boogies, moreyboogies, etc., etc., eram
muitos os epítetos que marcavam a “má” relação entre surfistas e bodyboarders
ao longo dos loucos anos 80 e 90. O estigma era tão grande que, na verdade, a
grande maioria da malta da minha geração, que começou a apanhar ondas de Bodyboard,
mais tarde ou mais cedo, a certa altura da vida, passaram a fazer Surf e alguns
deles hoje fazem <i>paddle</i> que é a versão gondoleira dos desportos de ondas,
algo que só comprova que nem todas as evoluções são no sentido positivo, mas
adiante. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O ponto
central aqui é que o Bodyboard era tanto do ponto de vista financeiro como
desportivo mais acessível do que o Surf. Por metade do preço era possível
comprar uma prancha de Bodyboard e, com metade da chatice, era possível começar
a curtir, verdadeiramente desfrutar, umas ondas. Como costumávamos dizer o Bodyboard
era mais fácil de aprender, mas mais difícil de evoluir, enquanto no Surf a
curva evolutiva era ao contrário, era mais difícil de pôr em pé, mas ir em
frente, todos iam… <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Ao contrário
do que acontecia no continente onde a clivagem entre surfistas e “rastejantes”
era mais profunda, com atritos e inimizades constantes, em muito potenciadas
pelo <i>crowd</i>, que era já muito em praias como as da Costa ou da Linha, nos
Açores, o número reduzido de gente no mar e o facto de sermos todos basicamente
primos uns dos outros levava a uma mais saudável convivência entre os subgrupos
de surfistas. Aliás, a única separação, a haver alguma, era entre betos e alternativos
e os mistos, mais conhecidos como betos-alternativos. Embora, uma amiga minha
do liceu D Pedro V tivesse a teoria que todos os surfistas eram betos e
gostavam de INXS… mas já estou a fugir do tema. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Como já
referi, o primeiro grupo de bodyboarders, a sério, de São Miguel era composto
pelo Bernardo, o Diogo, o André, eu, quando vinha nas férias, e a inolvidável
Guilhermina. A Guilhermina era o Volvo GL do pai do Bernardo que nos levava
pelas estradas, ruas e canadas da ilha, as vezes em contramão, em busca de
ondas, cervejas, miúdas e juventude. Os carros, aliás, são uma parte importante
desta história. Para além da GL do Bernardo, havia a Renault 4L dos
Albergarias, um dos, se não o mais marcante <i>surf vehicle</i> da ilha,
durante aqueles anos, e que, para além de literalmente voar, tinha uma
aparelhagem que valia mais do que o carro todo e com um bom gosto musical de
fazer inveja a qualquer rádio alternativa britânica. Havia, também, um Opel
Corsa, dos pais do Diogo, que eu espatifei uma vez à saída de um bar porque me
apetecia pão quente às tantas da noite, mas também já estou a fugir do tema… <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Antes dos
carros, havia os sapatos e as boleias. Antes de alguém ter a carta, fazíamos
todos cerca de um a quatro anos de diferença de idades, mas não se notava,
andávamos a pé ou à boleia. Da Fajã de Baixo até ao Pópulo ainda eram um par de
quilómetros que de manhã, à ida, ainda se faziam facilmente, ao fim do dia era
telefonar a pedir boleia aos pais, mães e avós. Depois havia as boleias, às
escondidas, para a Ribeira Grande, em carrinhas de caixa aberta de lavradores
ou camiões das obras na estrada da Ribeira Grande antiga. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Nesta altura
o Bernardo e o Vasquinho eram os melhores talentos na água. Logo depois surgiu
uma nova geração, uns cinco anos mais novos do que nós e a quem passamos a ser
nós a dar boleia, onde se destacavam o Serginho, o Ricardo “Caveira”, o
Miguili, o Ivo Batista, que era tão bom na água como na grande área, e um miúdo
franzino e sempre sorridente chamado Ricardo Moura. Estes putos entraram na
água e no mundo do bodyboard açoriano lançando aéreos e el rolos e dando-nos
calças a nós todos. E, o Moura, não fora o azar de um tímpano, poderia ter
muito bem sido um dos melhores bodyboarders nacionais, quem ficou a ganhar com
isso foram os rallies. O único defeito dos miúdos era gostarem de Offspring…<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Logo a
seguir vem uma outra leva, cheia de talento e, gosto eu de pensar, com a enorme
vantagem de terem malta na água para observar, coisa que nós não tínhamos tido,
a nossa foi uma aprendizagem de instinto, cassetes VHS mil vezes rebobinadas,
com uns clips do Eurosport que misturavam windsurf, com Bodyboard, com Surf, e
as revistas emprestadas, recortadas e mil vezes folheadas, fujo outra vez… esta
segunda leva tinha o Bruno “animal”, o Corvelo, o Rijo e o Pedrim Correia, que
hoje é patrocinado pela Pride, que acabou de lançar uma prancha, que só por ter
uma foto do “Pico da Ganza” no slick devia, também, ter o nome dele estampado
no deck.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Apesar de
tudo, nos Açores, Surf e Bodyboard sempre conviveram e sempre se incentivaram
um ao outro, a união faz a força e ainda bem que assim foi…<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Costumo
dizer que só é local quem nunca viajou. Viajar é uma parte fundamental da
vivência do Surf. A ideia e a prática da viagem está, até, na génese do Surf
moderno, com essa autêntica viagem de peregrinação de Duke Kahanamoku, em redor
do mundo, ofertando a dádiva da arte de correr ondas aos pagãos e aos não
iniciados. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Procurar
ondas, na praia ao lado, naquela baía do outro lado da falésia, percorrer a
costa, ou sonhar com costas distantes, em outros continentes e ilhas
paradisíacas, é, também, ser surfista. Desde o filme “<i>Endless Summer</i>” do
John Severson, estreado em 1966, que essa mística do “<i>search</i>”, da
procura, está impressa no mais íntimo de cada surfista, de cada um de nós,
aqueles que se deixaram tomar pela ânsia de conquistar a magia das ondas. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Também aqui,
nestas ilhas atlânticas, a História do Surf é feita de viagens, desde os
baleeiros, aos velejadores, passando por militares estacionados ou peregrinos
desterrados, ou aqueles a quem eu chamo os expatriados. Até as viagens entre as
ilhas ou dentro das ilhas experimentando e mapeando novos spots, novas ondas e
emoções, são também uma forma de se ser verdadeiramente surfista.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O conceito
dos expatriados é fundamental para compreender a evolução do Surf nos Açores.
Estou a falar dos continentais que nos anos 80 e 90, por razões relacionadas
com o Surf, ou não, escolhem os Açores para viver, trazendo consigo desde logo
as pranchas e o hábito não sazonal de surfar. Assim de repente recordo dois
nomes: o Pires dos Santos e o José Maria Pyrrait. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O João Luis
Pires dos Santos era um verdadeiro profeta das ondas, alguém que dedicou a sua
vida, de uma forma radical e quase monástica, a uma certa ideia e conceção das
ondas e do Surf, não como um desporto, ou uma atividade de lazer, mas como uma
religião. Uma quase maçonaria das vagas, com rituais de iniciação, cerimoniais
secretos e conhecimentos ocultos. A paixão que tinha pelo mar e a sua visão do
Surf deixou não só uma marca profunda como um legado, principalmente na ilha
Terceira, mas não só, que vai para além da célebre COCOVAMA, a Confraria dos
Corredores de Vagas de Mar, e que perdurará no tempo. Embora num plano muito
diferente do meu, tivemos até algumas polémicas, o João Luís foi alguém que me
marcou pessoalmente, pela sua cultura e desenvoltura, e que merecia uma mais
justa homenagem e celebração por tudo aquilo que fez pelo Surf nos Açores.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Mas, não deixa
de ser irónico como muitas vezes são estes mesmos expatriados os mais acérrimos
defensores do localismo como se quisessem defender a sua pátria adotiva dos
erros cometidos nas suas pátrias de origem…<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O Pyrrait
era outro estilo, grande, sonoro, aberto e aventureiro. O Pyrrait tornou-se
açoriano pela razão mais sincera de todas, o amor. Amor as ondas, à liberdade
de as viver, e amor a uma açoriana. Anos mais tarde o Pyrrait recebia-nos, a
mim e ao André, em Ribeira D’Ilhas, sempre com a sua alegria e cervejas
Budweiser estupidamente geladas. O Pyrrait foi também, se não estou em erro, o
fotógrafo da primeira e famosa <i>surf trip</i> da SurfPortugal ao Açores, que
se tornou lendária pela forma como alicerçou, ainda mais, na mente dos
açorianos, essa ideia de que os surfistas eram uma espécie James Deans das
ondas, jovens rebeldes sem causa e salvação…<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">A lista dos
expatriados é longa e diversa, uns vieram e partiram, outros ficaram, alguns
regressam, de tempos a tempos. O Hugo Valente é um de muitos professores que
começaram carreira e assentaram nos Açores. A Joana Cadete e o João Silvestre.
O Duarte Filipe, pai do Jácome Correia. O Marco Costa, pai da Azores Atlantic
Surfers. O Zé Seabra, que, para além de ter dado início à primeira verdadeira
escola de Surf de São Miguel, fora de outros projetos mais de âmbito social,
como o do Luís Melo no Clube K e Clube Naval de Rabo de Peixe, ou do João
Brilhante com os miúdos de São Roque, o Seabra, dizia eu, foi um desbravador de
picos e alguém que nos fez a todos olhar com outros olhos para o potencial de
lugares que eram, até a sua coragem e experiência o mostrar possível, vistos
como insurfáveis. Uma das minhas primeiras incursões na Fajã do Araújo, algures
no início dos anos 2000, foi com o Zé e o Valente, numa surfada da qual nunca
na minha vida me esquecerei. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">São muitos,
e não é possível, nesta lista de memórias pessoais falar de todos. Hoje,
talvez, dois dos mais relevantes, por razões opostas, obviamente, mas
igualmente importantes, pela natureza do seu trabalho e da sua marca no
panorama do Surf açoriano, são o Rodrigo Heredia, campeão europeu, profissional
do Surf e das competições, que alavancou o desenvolvimento do Surf como produto
turístico. E, o João Rei, artista, designer e profissional do amor pela pureza
e pela alma do Surf, que importa todos os dias a candura e o espírito sulista
de Sagres para estas nossas ilhas de bruma. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Eu próprio,
sou de certa maneira um expatriado. Açoriano em Lisboa e Português nos Açores.
Nascido de famílias micaelenses, que vinha cá nas férias, e que acertei
residência permanente na ilha em 1998.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Estes são só
alguns exemplos da importância destes expatriados e das viagens na construção
de um universo de Surf nas ilhas, tal como as muitas viagens pontuais de
surfistas estrangeiros e de revistas, como a viagem dos irmãos Greg e Rusty
Long às Flores, na perseguição de um <i>swell</i> gigante no atlântico. E
tantas outras, de revistas como a Surfing, a Surf Session e, claro, as muitas
que a SurfPortugal fez ao longo dos anos.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Ainda no
âmbito das viagens duas em particular. Em 1990 ou 91 um grupo gigantesco de micaelenses
embarcou na fragata em Ponta Delgada rumo à Maré de Agosto. Entre eles iam um
grupo substancial de surfistas e bodyboarders que, por especial alinhamento dos
astros, ou sorte se quiserem, apanhou algumas das melhores e maiores inchas das
últimas décadas. Instalados em tendas no forte da Praia Formosa passamos uma
semana de surf, música e enamoramento só possível quando se tem 15 ou 16 anos.
O <i>swell</i> estava tão bom que até as esquerdas, do lado este da praia,
funcionaram e alguns de nós optaram por essa onda para fugir ao <i>crowd</i> e
lançar o olho atrevido às miúdas que iam para aí fazer <i>topl</i>ess. Surfamos
até não conseguir mais, comemos cachorros-quentes e latas de atum, bebemos
cervejas com os Repórter Estrábico, engatamos miúdas ao som dos Trovante, e
fugimos a correr com rolos de papel higiénico na mão dos donos das casas que
tinham o azar de ter os portões a dar para a ribeira onde por alguma razão
alguém achou que era o melhor substituto de uma casa de banho. Um grupo ficou
numa tenda gigante do Diogo Cymbrn que se tornou uma espécie de quartel-general
e centro de convívio todas as noites. E ficaram célebres os gemidos do Diogo, a
sofrer de dores nos pés das feridas dos pés de pato, enquanto dormia com o
Bernardo ao lado. Eu, o André e o João Henrique ficamos numa outra tenda,
mínima, que não dava para os três, mas não fazia mal porque o João Henrique
praticamente nunca dormiu lá que tinha sempre outra companhia. O João não
surfava e acabou, infelizmente, como tantos outros, por se perder nesse
universo infernal do consumo de drogas. Nessa viagem iam também um grupo de
surfistas do continente, com o João Antas, o Miguel Fortes e, julgo eu, se a
memória não me atraiçoa, os irmãos Villas-Boas. Numa onda o João Antas abriu a
cabeça nas pedras, ou com a prancha, e foi ao centro de saúde suturar o escalpe
para uma horas depois estar de novo na água. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Pela mesma
altura, eu o Bernardo e o Diogo fomos, na pior surf trip de sempre, de
expedição à ilha Terceira na esperança mal prevista de apanhar ondas em Santa
Catarina não sabendo que era Verão e o Surf, como todos sabemos, é um desporto
de Inverno. Dessa viagem ficam as memórias da Twins, das noites dormidas no
quartel dos bombeiros e uma senhora no parque de campismo de Porto Martins ao
ver-me limpar o doce de amora cujo frasco se tinha partido dentro da mochila com
os dedos e a língua gritar em sobressalto e sotaque fundo da ilha: “<i>wuei pá
nã mames nos dedos que te podes cortjá…</i>” <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Em 1998,
quando acabei o curso, numa espécie de contrato de compra e venda com os meus
pais, fui 6 meses de pranchas e mochilas as costas para os EUA e o México, na
procura de viver em pleno esse sonho do Endless Summer e foi onde acabei por
decidir vir viver para os Açores e onde, ainda hoje, de certa maneira, procuro ainda
viver esse sonho…<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O que penso
que fica deste caminho é a noção de que, ao contrário de locais como a
Califórnia, a Austrália, de certa forma o Brasil e o Norte de França, que desde
os anos 40 viam o Surf a crescer exponencialmente, nos Açores, e até mesmo em
Portugal continental, a primeira grande geração de surfistas surge no final dos
anos 70, início de 80. E isso leva-me a um outro conceito importante, que é o
de retorno. É no final dos anos 90, no virar do milénio, quando esta geração (a
geração conhecida como do Portugal Radical) tinha acabado os cursos e regressa
aos Açores, para continuar a sua vida, trabalhar, constituir família, essas
coisas sérias e adultas, que se dá o primeiro grande boom, a verdadeira
ignição, daquilo a que podemos chamar uma cultura de Surf na região. E, é
quando podemos, com segurança, afirmar que o Surf se assume como um motor de
desenvolvimento económico e social no seio da sociedade açoriana. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Ainda esta
manhã, o António Benjamim, um dos sócios da <i>surf shop</i> Espaço Azul, me
dizia que a loja fará no próximo ano 20 anos. Esta longevidade, ou como se diz
em História Económica, esta sustentabilidade do mercado, só é possível porque
existe desde então para cá uma comunidade, um grupo coeso e sustentado, de
clientes que permite a manutenção do negócio. Não que alguma vez eles irão ficar
ricos à conta disso, mas, e isto é importante, poderão certamente deixar o
negócio à próxima geração.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">A melhor
figura para ilustrar aquilo que foram os últimos vinte e tal anos do Surf nos
Açores é, inquestionavelmente, o Luis Melo. O Luís representa esse crescimento,
essa evolução segura e constante que o Surf tem tido nas ilhas. Eu e o Luís
coincidimos temporalmente no regresso aos Açores, ali no final dos anos 90.
Nesse tempo ainda éramos meia dúzia os que surfavam regularmente e, no Inverno,
não eram poucas as vezes que chegávamos aos Areais, Monte Verde ou Rabo de
Peixe, dois metrões clássico <i>off-shore</i> e ficávamos no carro sentados à
espera meia hora, uma hora, a ver se chegava mais alguém para não surfarmos
sozinhos. Uma noite, no Forno, fui ter com o Luís e trocamos números de
telemóvel, sim já havia telemóveis, e combinamos avisar sempre que fôssemos ao
mar, foi assim, isso e o facto de eu ter ficado sem carta de condução durante
um ano por o medidor de alcoolemia estar avariado…, que nos tornamos
companheiros de ondas e de projetos ligados às ondas durante mais de uma
década. Para além de ser uma excelente pessoa, com uma retidão e uma
honestidade absolutas, que muitos confundem com altivez ou antipatia, o Luís
tem uma extraordinária qualidade, a disciplina. É essa forma de estar na vida
que faz do Luís não só um ótimo parceiro na água, algumas das melhores e
maiores ondas que já surfei foram com ele, como um ótimo organizador e
colaborador em tantos projetos como provas, campeonatos, associações e um sem
número de programas. O Luís é não só o homem dos mil desportos, como o homem
das múltiplas atividades. Para além de ter promovido duas escolinhas de Surf,
vários campeonatos amadores e o primeiro programa de TV regional dedicado aos
desportos radicais, o Alta Pressão, com a Joana Cadete e realizado pelo Bruno
Correia e o Alexandre Jesus, o Luís, fruto também de ser um professor de
educação física considerado por todos, trouxe para o Surf uma imagem de
respeitabilidade que até então pura e simplesmente não existia. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Nos anos
2000 o associativismo ligado ao Surf era inexistente ou, na melhor das
hipóteses, comatoso, nos Açores. Quando em 2008 o Rodrigo Heredia imagina
trazer os campeonatos nacionais e mundiais para São Miguel, a única associação
local era a recentemente ressuscitada ASSM, Associação de Surf de São Miguel,
que era presidida pelo João Brilhante. Nesse momento gerou-se uma discussão,
que passados todos estes anos pode parecer obtusa e disparatada, entre duas fações,
ou duas ideias antagónicas do caminho que o Surf devia seguir em São Miguel e
nos Açores. Por um lado, uma conceção mais conservadora e protecionista, se
quisermos, que entendia que as ondas açorianas deviam ser resguardadas da
massificação mediática e turística, restringindo os eventos e os campeonatos e
privilegiando os locais, representada pelo João Brilhante. Do outro lado, uma
ideia de que era preciso apanhar rapidamente o comboio do progresso e
orientá-lo no sentido dos melhores interesses dos locais, mas não só, se não a
coisa ia rebentar, como rebentou, e a malta ia ficar a ver passar o comboio,
basicamente vinham os de fora fazer a festa e lançar os foguetes, para os
políticos aplaudirem, e nós ficávamos a apanhar as canas. Eu, o Luís, o Vasco
Medeiros e um grupo de outros malucos estávamos desse lado da barricada e foi
assim que nasceu a USBA, União de Surfista e Bodyboarders dos Açores. A única
agremiação de desportos de ondas que juntou surfistas e bodyboarders e não teve
medo de o colocar no nome até hoje em todo o país e, creio eu, no mundo. A USBA
consumiu 8 anos das nossas vidas e apesar de todos os erros e disparates,
pessoalmente perdi muito dinheiro com a USBA, fomos responsáveis, junto com o
Rodrigo, é certo, que era ele o detentor da licença da ASP para realizar os
campeonatos e os governos só queriam era patrocinar campeonatos mundiais, mas
fomos responsáveis por uma série de iniciativas que, estou certo, permitiram
não só solidificar as bases da nossa comunidade de amantes dos desportos de
ondas, como projetar os Açores como destino de Surf no mundo todo, mas mais
importante de tudo, julgo eu, sedimentou na sociedade açoriana uma imagem do
Surf e dos surfistas, nos antípodas dos hippies junkies de antigamente, mas de
pessoas normais que apenas sofriam com uma paixão maluca por essa coisa louca de
apanhar ondas. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Para mim,
pessoalmente, ter trazido aos Açores os campeonatos nacionais e mundiais de
Surf e Bodyboard, o Mundial da IBA em Santa Catarina, feito em parceria com a
AST, Associação de Surf da Terceira, com o Carlos Leal à frente, uma das
melhores pessoas com que tive o privilégio de me cruzar na vida, e o Paulinho
Costa, uma lenda do Bodyboard nacional, ter podido trazer o Mike Stewart aos
Açores e apertar a mão ao Tom Curren, entre tantas outras iniciativas maiores e
mais pequenas, cursos de juízes, palestras, conferências, é algo que trarei
para sempre comigo, no meu íntimo, com a certeza que é fruto, também, desse
trabalho que muito do que existe hoje continua, e continuará no futuro, para
outras gerações, e que os desportos de ondas e os locais onde os mesmos são
praticados nunca mais serão tratados como, por exemplo, os Areais foram no
passado. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">E, é essa
caminhada, desde ser estaleiro de construção civil para ser hoje cartaz de
candidatura a Reserva Mundial de Surf, que os Areais representam, que, para
mim, marca uma história absolutamente singular de como no espaço de uma
geração, com uma conjugação de vontades, se consegue mudar um local, uma
comunidade e apontar para um futuro melhor para todos nós…<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Há pouco
mais de 20 anos atrás, a praia dos Areais de Sta. Bárbara era, literalmente, um
estaleiro de construção civil. Abandonada, negligenciada, deixada pelas autoridades
públicas à mercê da rapina e da selvajaria de empreiteiros, rendeiros e
proprietários, toda aquela linha de costa, desde Santana à Ribeira Seca, ou
mesmo até ao Palheiro e às Piscinas da Ribeira Grande, abarcando o Monte Verde,
era uma zona de ninguém. Ou, de quase ninguém. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Um dado
histórico e sociológico que temos que compreender é que a sociedade e a cultura
açoriana foram sempre pouco atreitas ao mar, receosa e temente do oceano. A
construção da história açoriana fez-se ao longo dos seus quinhentos anos de
ligação e de exploração da terra. Até as igrejas, na sua maioria, estão viradas
de costas para o mar. O mar era de onde vinham os piratas, as tempestades e
outro tipo de ameaças. Era da terra que vinha a riqueza e o mar era mais porta
de saída do que de entrada dessas riquezas. Mesmo as pequenas comunidades
piscatórias eram frágeis e ostracizadas, vivendo numa economia mais de
subsistência do que de exportação. Os homens da baleia estavam na verdade em
terra, trabalhando as vinhas e os campos quando ao longe se avistavam os bufos
das baleias e se lançavam roqueiras e correrias até aos botes. E, a descoberta
do mar e da orla marítima como lugar de lazer é uma conquista contemporânea, é
um fenómeno recente e já nosso, dos nossos pais e não muito mais longe do que
isso. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Este, para
mim, é que é um dos aspetos fundamentais desta história. Este verdadeiro conto
de Cinderella que leva a que um lugar sujo e abandonado seja hoje uma praia
limpa, a maior parte das vezes, vigiada, protegida, com restaurantes, balneários,
estacionamento, hotéis, resorts, vídeos no YouTube, cartaz de promoção
turística, cenário publicitário, ex-libris de uma cidade e com surfistas na
água o ano inteiro.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Apesar dos
Açores terem tido contacto com o Surf desde meados do século XIX e serem
certamente dos primeiros lugares do país a contar com esporádicos surfistas
desde o dealbar do século XX, é só após a revolução que a orla marítima vai
ganhar relevância no contexto da sociedade portuguesa e açoriana e é só com a
geração do Portugal Radical que os desportos de ondas vão, lenta mas
afirmativamente, ganhar peso e lastro como interlocutores respeitados no xadrez
social e político. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Não estou
com isto a dizer que foram os surfistas que salvaram os Areais, não foram,
tanto não que o mesmo, por exemplo, não foi possível fazer com Rabo de Peixe,
foram as regras de Bruxelas e as oscilações económicas que moldaram a economia
no sentido de ser cada vez menos rentável extrair areia daquele local. Mas,
foram certamente, também, os surfistas que dignificaram aquele local e
contribuíram para que o mesmo fosse visto pelos políticos de outra maneira. E
nós estávamos lá e lembro-me bem das primeiras conversas com o Ricardo Silva,
na altura Presidente da Câmara Municipal, e com o Fernando Monteiro, arquiteto
responsável pelo projeto, sobre a construção de um estacionamento e de um apoio
de praia nos Areais e isso passou-se há pouco mais de 20 anos. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Costuma-se
dizer que a única voz que os políticos realmente ouvem, e não é por vontade, é
por obrigação, é a das urnas. Quando um político olha para um grupo de pessoas
não vê indivíduos, nem cidadãos, vê votos. E isso, neste caso concreto, nesta
história, é o elemento mais importante. A coisa mais importante na História do
Surf nos Açores não foram as ondas, que as há e muitas e de qualidade,
felizmente, não foram as pranchas, os fatos e os materiais mais ou menos
baratos e acessíveis, não foram os dirigentes e as associações, ou os eventos
com mais ou menos projeção mediática. A coisa mais importante foram os
surfistas, fomos nós. Médicos, advogados, engenheiros, professores,
empresários, carpinteiros, músicos, artistas, surfistas a tempo inteiro, fomos
nós, foi haver gente na água o ano todo tornando natural e apetecível aos olhos
dos outros, dos que nos olham de terra, a existência daqueles locais, daqueles
pedaços de costa esquecidos e negligenciados durante tantos anos, décadas, e
levando a um lento, mas progressivo e já não reversível virar das mentalidades
açorianas de frente para o mar. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">O André
“Galinha”, o Sérgio Aparício, o “Xolim”, o Serginho e todos os miúdos e graúdos
e turistas que nestes anos tem experimentado o batismo das ondas. O Pedro e o
Almeida. Todos os putos que entraram num campeonato, o Jácome e o Nicolau, o
Xico Benjamim e o Peter Helión, o Pedrim e o Rijo, o Miguel Reis, o Luís, o
Afri, o Hélder, o “Tricky”. As miúdas, todas as raparigas e mulheres que se redescobriram
no mar e na liberdade das ondas, uma espécie de nova emancipação no oceano. O
João e o Gui e mais todos os pais e filhos e netos que vão juntos ao mar, seja
de semana ou no fim-de-semana, seja na Maia ou no Baixio da Vila, nos Areais ou
na Fajã do Araújo, seja em merrecas, espumas, meio-metrinho ou dois metrões, do
flat ao gigante e os vagalhões do Marco Medeiros em Santana ou na Viola. A História
do Surf e do Bodyboard nos Açores é feita dos seus surfistas e bodyboarders,
tantos e ao mesmo tempo tão poucos, que ao longo destas últimas duas décadas
conquistaram para si e deram a ganhar aos açorianos essa dádiva pura da
natureza que são esses pedaços de magia em que a terra se enamora do mar em
ondas…<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Para quem,
como eu, assistiu a essa viagem e percorreu esse caminho não deixa de ser fabuloso
perceber aonde chegámos. Ainda há muito para andar, tanto para fazer. A luta
pela preservação do oceano e pela defesa da orla marítima não se faz com fotos
bonitas e estátuas de bronze ou slogans e prémios de belo efeito, mas de
medidas concretas, obras, mesmo aquelas que ficam debaixo do chão e não dão
votos, organização, planeamento e priorização de investimentos. Mas, quantos
mais surfistas houver e mais empenhados eles forem, de fim-de-semana ou do ano
todo, pros ou paparucos, de verão ou de inverno, maior e melhor será o futuro
do Surf nos Açores. Aloha…<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">
</span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: 12pt; line-height: 107%;">Vila Franca
do Campo, Maio de 2022<o:p></o:p></span></p><p><br /></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-6061992791393276492021-09-04T13:02:00.003+00:002021-09-04T17:47:49.607+00:00Em defesa da Heresia, uma resposta a Maria do Céu Patrão Neves.<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://static.dw.com/image/17425992_403.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="450" data-original-width="800" height="225" src="https://static.dw.com/image/17425992_403.jpg" width="400" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">Galileu Galilei observando os astros</div><p></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"></p><p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0cm; mso-margin-top-alt: auto;"><span style="color: #333333; font-family: "Georgia",serif; font-size: 10.5pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Os caminhos da intolerância são
tortuosos e enviesados. Ela infesta-se como uma erva daninha, procurando os
buracos, os vazios, por onde trilhar o seu infestante precurso. Agarrando-se,
grudando-se, como uma trepadeira, um denso e espesso manto que abafa e encobre.
Como um nevoeiro, dir-se-ia, que tudo envolve na sua opacidade húmida e
palpável. A Democracia é o único sistema político que nos insta à tolerância,
que permanentemente nos obriga ao exercício da aceitação do outro e do respeito
pela diferença, num permanente equilíbrio de oposições. Hannah Arendt, filósofa
alemã, de origem judaica, teorizou profusamente sobre as origens do
totalitarismo e da intolerância, sobre o papel do bem e do mal nas nossas
vidas, individuais e coletivas, e sobre, nas suas próprias palavras, a “<i>terrivelmente
normal banalidade do mal</i>”. Num dos seus escritos, Arendt, ela própria
fugida ao terror nazi, advertiu que: “<i>Se não formos perdoados, libertos das
consequências dos nossos atos, a nossa capacidade de agir estaria, por assim
dizer, confinada a um único ato do qual nunca poderíamos recuperar, seríamos
vítimas das suas consequências para sempre</i>.”<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0cm; mso-margin-top-alt: auto;"><span style="color: #333333; font-family: "Georgia",serif; font-size: 10.5pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Vem este pequeno introito a propósito do
artigo, </span><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: 10.5pt;"><span style="color: #804000;"><a href="https://www.acorianooriental.pt/pagina/opiniao#" target="_blank">publicado hoje</a></span><span style="color: #333333;">, pela Professora Maria do Céu
Patrão Neves sobre aquilo a que a própria chama, de forma bastante genérica, de
“negacionistas”. Este debate maniqueísta e excessivamente simplista,
amplificado à exaustão pela comunicação social, entre aquilo que poderíamos
chamar de “situacionistas”, no sentido dos que aceitam acriticamente os
postulados da ditadura pandémica e todos os outros, que vão desde o pobre
trabalhador que se viu layoffizado, ao mais aguerrido e galvanizado
anti-vaxxer, passando por largas centenas de cidadãos que apenas perguntam
porquê(?), e a que se convencionou englobar no vasto chapéu-de-chuva de
“negacionaistas”, este debate, dizia eu, está inquinado na origem, porque se autoanula
na sua própria polarização dogmática e cuja expressão máxima nacional foi o
epiteto de “obscurantismo”, cozido como um crachá, pelo Sr. Vice-almirante, no
peito de todo e qualquer “negacionista” que tente fazer ouvir a sua voz em
oposição aos ditames da ditadura sanitária e à narrativa oficial do
totalitarismo pandémico. Como se ser-se crítico da conformidade pandémica fosse
toda uma nova e abominável forma de heresia.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0cm; mso-margin-top-alt: auto;"><span style="color: #333333; font-family: "Georgia",serif; font-size: 10.5pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Uma das grandes e talvez primeiras
vítimas desta pandemia foi, precisamente, o pluralismo. Vastos sectores das
nossas sociedades parecem ter caído, voluntariamente, no precipício do
unanimismo acéfalo, apregoando uma espécie de consenso medieval sobre o dogma
pandémico. E, o mais absurdo de tudo isto, é que o fazem acoberto de um fervor
cientificista, uma quase encíclica científica, que é, ela própria, a antítese
de tudo aquilo que a ciência, a verdadeira ciência, representa enquanto campo
de dúvida e de permanente interrogação do saber. E, é precisamente na esteira
deste fio de pensamento fascizante, de uma suposta superioridade intelectual
dos pró-covid versus os contra-covid, que o artigo de Patrão Neves se insere,
sugerindo, de forma aviltante, numa quase xenofobia intelectual e das ideias, que
os “negacionistas” são todos irracionais e culpados do supremo crime de não professarem
do pensamento único e é, por isso mesmo, que tal artigo merece resposta.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0cm; mso-margin-top-alt: auto;"><span style="color: #333333; font-family: "Georgia",serif; font-size: 10.5pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Patrão Neves, entre outras coisas
absurdas, como misturar a pandemia com as alterações climáticas, declara a
incapacidade de raciocinar de todos aqueles que ponham em causa a “ciência”
pandémica, utilizando para isso o argumento emocional dos óbitos. 17 mil em
Portugal, um milhão e trezentos mil na Europa, mais de 4 milhões e meio em todo
o mundo, são a prova da superior razão pandémica e da vil ignorância
negacionista. “<i>Eram pessoas, com os seus projectos e vida e famílias,
pessoas como nós e morreram.</i>” Diz-nos, lacrimejando, suponho eu, Patrão
Neves. O problema do populismo é a sua própria fragilidade argumentativa. A
morte é, em si mesma, uma componente última, da vida. É uma inevitabilidade
real à qual o covidiotismo procura opor-se, como uma espécie de coiote à caça
do Bip-bip. A morte é impossível de parar ou de conter e, no processo, é o
coiote que sai chamuscado. O que Patrão Neves não diz é que a taxa de
letalidade da Covid-19 é de 3% e que mais de 70% das mortes, ditas, por
Covid-19 tinham acima de 70 anos, quando a esperança média de vida é 80. (E, já
nem vale apena aqui entrar na questão dos PCR...).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0cm; mso-margin-top-alt: auto;"><span style="color: #333333; font-family: "Georgia",serif; font-size: 10.5pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">Ao longo do tempo, tem sido a própria
pandemia a pôr em causa todas as supostas verdades do discurso oficial, seja na
letalidade do vírus, na forma de disseminação, na eficácia da vacina, na sua
transmissibilidade e imunização. Seja, na evidencia empírica, protagonizada
pela Suécia, de que nada do que foi feito em Portugal era, em boa verdade,
necessário. Porém, para Patrão Neves, questionar tudo isto é um sinal de
“ignorância”, numa inversão indesculpável e inaceitável de tudo aquilo que
deveria ser o debate, já não só científico, mas acima de tudo e isso sim,
democrático. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0cm; mso-margin-top-alt: auto;"><span style="color: #333333; font-family: "Georgia",serif; font-size: 10.5pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT;">No mais, a lógica de Patrão Neves é
apenas um libelo infeliz pejado de intolerância e autoritarismo, igual a tantos
outros que temos visto, por estes dias da peste, que vivemos desde Março de
2020. Um comboio de fel, carregado, nas suas próprias palavras, de “<i>falta de
paciência</i>”, “<i>exasperação</i>”, “<i>emoções primárias</i>”,
irracionalidade e insustentabilidade de ideias e, mais triste, ou cómico se
quisermos, numa extraordinária incapacidade de se ouvir e ler a si própria, de
alguém que começa por defender a necessidade de um pensamento único, mas acaba
a apelar ao espírito crítico, como única forma de o instituir. Pois quanto a
isso, da minha parte, nada contra. </span></p><p></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-26343468816529070572021-08-12T14:27:00.000+00:002021-08-12T14:27:05.886+00:00 Negacionista Involuntário <p>Primeiro foi uma pandemia sustentada num teste pouco fiável e com uma mortalidade, felizmente, reduzidíssima. Foram as máscaras, as superfícies, o distanciamento e os confinamentos. Depois foi a panaceia vacinal que tudo iria curar e trazer a ansiada alvorada do novo normal. E, então, vieram as variantes que não podiam ter nacionalidade e que só podiam ser nomeadas em código. Agora a vacina já não cura, já não impede a infeção, nem a transmissão e nem sequer a tão almejada imunidade de grupo. Uma vacina tão imprescindível, universal e maravilhosa que até as crianças saudáveis tem que ser inoculadas, mas à qual não levantaram as patentes e, no resto do mundo, apenas menos de 10% da população conseguiu ser picada com tão mágico elixir. Pelo caminho o vírus segue a sua marcha, a mortalidade por Covid é a menos de 2% da mortalidade global e mais de 80% é acima dos 70 anos (e tudo isto baseado no tal teste manipulável à vontade do freguês…). Entretanto, no auge da ditadura pandémica, um passaporte vacinal e a segregação e a xenofobia viral. Tudo acoberto desse novo dogma chamado “ciência” e a espada dessa nova inquisição chamada “comunicação social”. E o negacionista sou eu?!? Continuação de boas férias…</p><p>P. S. Este curto post foi previamente censurado pelo Facebook. É isto o “novo normal”…</p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-70236748112112004622021-07-08T22:04:00.001+00:002021-07-08T22:04:15.002+00:00Em louvor da Tolerância <p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4d/Contemporary_illustration_of_the_Auto-da-fe_held_at_Validolid_Spain_21-05-1559..jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="442" data-original-width="765" height="231" src="https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4d/Contemporary_illustration_of_the_Auto-da-fe_held_at_Validolid_Spain_21-05-1559..jpg" width="400" /></a></div><div style="text-align: center;">Auto-de-fé, Jan Luykens, 1559</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;">A História da Humanidade é uma
história de intolerância ou, dito de outra forma, é a estória da luta pela
tolerância. E, é uma saga que recua a mais de 2 milhões de anos atrás, às lutas
entre o <i>homo habilis</i> e o <i>homo erectus</i>, predecessores do designado
<i>homo sapiens</i>, designação essa que, olhando o estado do mundo hoje, se
diria ser, no mínimo, ligeiramente exagerada. Desde tempos imemoriais, antes
mesmo que houvesse história, os humanos desconfiaram uns dos outros e evoluíram
em permanente conflito. Citando Tucídides que, com a sua História da Guerra do Peloponeso,
é considerado o pai da História, “<i>toda a Terra é uma sepultura de homens famosos</i>”.
Um dos períodos mais negros desta infindável história de beligerância entre
homens que se supunha serem iguais durou quase mil anos e teve como rosto essa
infame instituição chamada Santa Inquisição. A Inquisição nasce, no séc. XII,
como um tribunal católico que visava combater a heresia e a blasfémia,
basicamente, aquilo a que hoje chamaríamos delito de opinião. Em nome do dogma
da fé e contra a heresia, que mais não é do que uma divergência de pontos de
vista, foram cometidos alguns dos mais horrendos crimes contra a dignidade do
homem, o saber, a ciência, a tolerância e, numa palavra, contra a humanidade. O
mais famoso de todos os inquisidores é, sem dúvida, o espanhol Tomás de
Torquemada, confessor da Rainha Isabel a Católica, que ficou conhecido no seu
tempo como “<i>o martelo dos hereges</i>”. Em Portugal, ao longo de quase 300
anos, e até à sua extinção em 1821, foram inúmeros os autos-de-fé, sendo a
consequência mais gravosa de muitos deles a fogueira método pelo qual se
queimava não só o corpo, mas, acima de tudo, o espírito dos hereges. Em O Nome
da Rosa, Umberto Eco descreve assim o real Grande-Inquisidor Bernardo Gui: “<i>Era
um dominicano de cerca de setenta anos, frágil mas direito de figura.
Impressionaram-me os seus olhos cinzentos, frios, capazes de fixar sem
expressão, em que muitas vezes, porém, havia de ver bailar lampejos equívocos,
hábil tanto em ocultar pensamentos e paixões como em exprimi-los de propósito.</i>”
… “<i>Concluí que, de algum modo singular, ele estava inquirindo, e valia-se de
uma arma formidável que todo o inquisidor no exercício da sua função possui e
manobra: o medo do outro.</i>” <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;">Vem este curto introito histórico
a propósito de uma nova “heresia”, perseguida com fervor inquisitorial pela
turba fanática e os seus muitos grande-inquisidores de hoje – a anti-vax. Neste
tempo de aguda polarização, desde o início da loucura pandémica que qualquer
tipo de dissinto é tido como heresia e quem ousar questionar essa nova fé científica
é imediatamente apostado de negacionista. Embora, não deixe de ser irónico que
o negacionismo tenha inicialmente sido usado para apontar pejorativamente os críticos
das alterações climáticas, essa sim uma pandemia de consequências globais e genocidas.
Mas, neste auge do fervor pandémico, os novos torquemadas do covidismo e inquisidores
da vacinação escolheram imolar na fogueira do segregacionismo todos aqueles
que, por qualquer íntima razão, escolheram e decidiram, fazendo uso do seu livre-arbítrio, recusar a vacina. Subitamente, é como se todo um novo vagão de cristãos-novos
se formasse na sociedade açoriana, portuguesa, mundial, de pessoas ostracizadas
pelo crime de pensamento. Esta intolerância primária e abjeta é não mais do que
um novo auto-de-fé, onde, à luz de um dogma, de uma inusitada e ignóbil fé, se
procura queimar quem pensa de forma diferente, com o mesmo autoritarismo e sobranceria
moral dos torquemadas de antigamente. Mesmo que estivesse em causa um vírus com
uma letalidade de 90% em vez dos 2% que este tem. (Isto se acreditarmos nos próprios
métodos e números da OMS. Um dia far-se-á a história dos testes RT-PCR e das
mortes "com" e "de" Covid-19). Mesmo, dizia eu, que esta pandemia fosse verdadeiramente uma
ameaça mortal à sobrevivência da humanidade, quando, para a travar, abdicamos
dos fundamentos do que nos faz humanos e de algo tão primordial à existência como
é a tolerância a pergunta que fica é: estamos a lutar para salvar exatamente o
quê? Se um mundo de cego e totalitário conformismo e intransigência, ou uma
civilização que funde os seus pés na tolerância e no respeito como essência de
todas as aspirações humanas. Eu escolho seguir e acreditar neste último. <o:p></o:p></p><br /></div><p></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-66260909127695507932021-06-26T18:41:00.000+00:002021-06-26T18:41:14.261+00:00os componentes do olhar<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/5/54/Lange-MigrantMother02.jpg/461px-Lange-MigrantMother02.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="599" data-original-width="461" height="400" src="https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/5/54/Lange-MigrantMother02.jpg/461px-Lange-MigrantMother02.jpg" width="308" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">Migrant Mother (1936) photo by Dorothea Lang</div><br /><p></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;">Imaginemos, por um momento, um
país civilizado. E, imaginemo-lo numa ilha que é essa a forma verdadeira de
todas as utopias. Nesse país todas as pessoas são educadas e letradas, cursaram
as mais prestigiadas universidades, completando doutoramentos e pós-doc. A economia
é pujante e efervescente, exalando dinamismo e empreendedorismo e todos os
outros ismos da língua e do inevitável anglicismo. Desemprego inexistente e
superavit permanente. Nesse país o Estado é uma entidade magnânima e protetora.
Provendo zelosamente as mais básicas necessidades dos cidadãos. Sistema de
Saúde Universal, com cobertura a cem porcento. Maternidades de ponta, médicos
de família com rácio de 1 para 10 e cuidados primários e políticas para a
prevenção na saúde tão eficazes que o mais moderno centro de tratamento
oncológico era um imenso e ecoante vazio. Os melhores números na educação, zero
abandono escolar, iguais taxas de reprovação. No desporto um acumular de
medalhas e vitórias em mundiais e olimpíadas. As forças de segurança,
desarmadas, desempenham funções cívicas, auxiliando crianças e idosos. O exército,
dedicado apenas a missões de paz em países estrangeiros, empobrecidos,
dizimados pela fome, a pobreza e a guerra. Não existem cidades, nem campo,
nesse país, todo o território é um vasto e geométrico subúrbio equilibrando suavemente
a natureza e o urbanismo numa síntese perfeita e harmónica entre a terra e o
homem. Imaginemos que esse país é súbita e misteriosamente atacado por uma
pandemia, provocada por um vírus desconhecido e, potencialmente, letal. O
Governo decreta imediatamente um confinamento geral que é escrupulosamente
respeitado por toda a população. O país entra em pausa. Os cidadãos, recolhidos
aos seus lares amplos e modernos, acompanham pelas televisões o evoluir da
situação. Ouvem-se os melhores especialistas, os mais doutos sábios e cientistas,
números são analisados, gráficos desenhados, curvas e planaltos, equações e
extrapolações, relatórios clínicos e múltiplos cenários. Os governantes exortam
o civismo e a responsabilidade individual, a nação inteira une-se na batalha
pandémica. Indiferente ao estrito confinamento e distanciamento, ao uso permanente
de máscara e etiqueta respiratória, o vírus segue o seu variante caminho,
positivando constantemente, internando esporadicamente e matando raramente.
Trabalhadores e empresas abraçam o teletrabalho, os negócios fechados vivem das
subvenções do Estado. Os jovens comunicam por Tik-tok e os pais por Whatsapp. A
sociedade prossegue num confortável alheamento a narrativa pandémica até que um
dia, como se despertasse de um sonho, alguém decide sair à rua e, espreguiçando-se
num prolongado abrir dos braços, respirar.</p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;">Imaginemos, agora, uma outra ilha.
Pobre, deficitária, caótica. Governada pela cobiça e a incompetência. Onde a pobreza
grassa e a saúde escassa. Onde o medo medra, como uma acha, soprada em
labareda, disseminando-se a uma velocidade maior que a contaminação do bicho.
Onde o confinamento não é mais do que uma pandemia em cima de uma pandemia,
impondo destruição e desigualdade em cima de confusão e desunião. Onde a
demagogia e o populismo são armas de arremesso no autoritarismo simplista e o
mais básico bom-senso é liminarmente suprimido no êxtase do fascismo sanitário.
Imaginemo-nos, então, a nós e perguntemo-nos em que mundo habitamos nós,
verdadeiramente?</p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;">Num mundo perfeito qualquer
pandemia é benigna. No nosso mundo a pandemia começa, de facto, dentro de cada
um de nós, mas não na bioquímica, antes sim na forma como o nosso olhar se
lança sobre as cambiantes de cada dia e como o coração, e o pensamento, abraçam
as emoções que compõem a sinfonia da Vida, porque é isso que verdadeiramente nos faz humanos. <o:p></o:p></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-5661854628794994302021-05-25T17:33:00.003+00:002021-05-25T18:00:06.370+00:00Os testes PCR e ratinhos de laboratório<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjtSbxbZPwmkyPlnyTY8LXcB-dsV4f5H4OkiXEL3U7h0zwbhhdJkqHw4yf6BrcnBDl33sbs-CtR6x2axknnwnttByEvU8TzRo78tGz8GqicoF-lPcdwIN2ZdCA89JY2queTotfLFzmayjQ/" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="486" data-original-width="922" height="211" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjtSbxbZPwmkyPlnyTY8LXcB-dsV4f5H4OkiXEL3U7h0zwbhhdJkqHw4yf6BrcnBDl33sbs-CtR6x2axknnwnttByEvU8TzRo78tGz8GqicoF-lPcdwIN2ZdCA89JY2queTotfLFzmayjQ/w400-h211/image.png" width="400" /></a></div><br /><p></p><p></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-indent: 35.4pt;">Abordemos,
então, a questão dos testes. Mas, antes, duas notas prévias. Em primeiro lugar,
o necessário desmentido do rótulo de negacionista. Não que me chocasse sê-lo,
mas porque não nego a existência do vírus, nem entro em cabalas e teorias de conspiração
sobre a sua origem e os lucros que gerou e em proveito de quem. Embora, quanto mais
avançamos neste pesadelo pandémico, mais me sinta tentado a fazê-lo. O que nego,
sim, é esta pseudociência que se impôs sobre as nossas vidas e que pretende
comandar o mundo com a régua e o esquadro dos esquemas de Excel e Power Point,
esquecendo que o mundo é feito de pessoas e a vida composta por emoções. E,
acima de tudo, esquecendo que a ciência só o é se for questionada e
questionável. Para os doutos gurus da Saúde Pública a sociedade é uma abstração
estatística, convertida em números e equações, sem a condição essencial do
sentimento. Para os matemáticos da epidemiologia a sua verdade é 100% infalível
e as nossas vidas não passam de linhas num gráfico e casas decimais num eterno
e incomensurável RT. Depois, não me arrogo o estatuto de especialista, nem alardeio
uma verdade única e apenas faço uso do meu direito a olhar as coisas e a pensar
o mundo, colocando perguntas e questionando a narrativa oficial do medo, do
autoritarismo e da Verdade Suprema Pandémica com que, Governos, Comunicação
Social e os ditos “especialistas”, nos querem dominar. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-indent: 35.4pt;">De acordo com o
CDC americano, “<i>uma epidemia refere-se a um aumento, por vezes súbito, do
número de casos de uma doença acima do que é normalmente espectável numa
população numa determinada zona</i>”. Em paralelo a esta definição é importante
ter em conta aquilo a que o CDC chama, também, de “<i>linha de base</i>” ou
nível endémico de doença, que é o nível expectável de doença, num determinado
grupo, sem qualquer tipo de intervenção externa, uma vez que os vírus que
causam doenças respiratórias são hoje relativamente comuns. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-indent: 35.4pt;">Rudolf Virchow,
um eminente médico alemão do séc. XIX, postulou que uma epidemia é “<i>um fenómeno
social que tem alguns aspetos médicos.</i>” Esta perspetiva, dir-se-ia, quase
sociológica do fenómeno de alastramento de uma doença é fundamental, não só para
a sua compreensão, mas, essencialmente, para a sua defesa. O caminho mais
rápido para destruir um vírus é através do seu hospedeiro. Posto de uma forma
muito simples a abordagem epidemiológica à doença é o encarceramento dos
hospedeiros limitando ou impedindo, assim, a sua propagação. O único, perdoem-me
o eufemismo, problema desta abordagem é que os hospedeiros somos todos nós. Chegamos,
então, à questão dos testes. Perante a óbvia impossibilidade de encarcerar toda
a população, e por mais que eles o desejassem, os epidemiologistas recorrem à
testagem para, entre outros aspetos, como por exemplo a avaliação da já infame
taxa de incidência, isolar potenciais portadores do vírus, reduzindo assim o
risco da sua disseminação. Os hoje famosos RT-PCR são testes desenhados para detetar
material genético de um organismo específico, no caso o vírus SARS-CoV-2. Só que,
e mais uma vez recorro ao eufemismo, há dois problemas fundamentais com os
RT-PCR, a sua sensibilidade, ou seja, a capacidade de detetar, e
especificidade, a capacidade de detetar aquilo que queremos que detete. Ora,
são os próprios laboratórios que admitem que a sensibilidade de um PCR é de 83%
e a especificidade rondará os 97%. Num estudo anterior ao Covid-19, feito pelo Governo
Inglês, a taxa de falsos positivos do RT-PCR foi estimada em 2,3% com um desvio
padrão de 0,8% a 4%. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-indent: 35.4pt;">E aqui chegamos
ao caso açoriano. A estratégia, de combate à pandemia, do Sr. Tato Clélio
assenta, basicamente, na simples e simplista contabilidade dos testes positivos
para estabelecer diferentes níveis de risco, não importando para nada, e isto
não é um pormenor despiciendo num arquipélago com 9 universos de amostragem
distintos, nem o número de testes realizado, nem o número de internamentos,
outra questão fundamental. O número de testes realizado por ilha é um aspeto fundamental,
desde logo pela probabilidade e capacidade de deteção de casos positivos, e depois por causa do chamado “limite de prevalência”. Com uma prevalência baixa
a probabilidade de falsos positivos sobe exponencialmente. É exatamente por isto,
que vários organismos médicos internacionais aconselham a verificação dos
testes por uma contra-análise como, também, e principalmente, a avaliação clínica,
ou diagnóstico, dos positivos de forma a determinar, com exatidão, se são, de
facto, positivos para infeção por SARS-CoV-2, em lugar de serem, como muitas vezes são, assintomáticos ou meros portadores de carga viral residual. E é aqui, que a questão dos
internamentos se torna fundamental, para determinar a existência, ou não, de uma
epidemia na região. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-indent: 35.4pt;">Desde o final
janeiro que a percentagem de testes positivos na região tem sido sistematicamente
abaixo dos 4%, mesmo abaixo de 3%, tirando um dia na vaga de abril. Ao mesmo
tempo, o número de internamentos não ultrapassa os 5 a 10, tendo tido um máximo
de 20 em abril e, mesmo assim, longe do pico de 28 em janeiro. Com base nesta
informação há várias questões que se colocam: Não deveria a DRS informar, com transparência
e clareza, o número de testes realizados por ilha e o contexto epidemiológico
(sintomatologia, contato próximo, etc.) desses testes? Tendo em conta o número extremamente
reduzido de positivos (nos últimos 10 dias foram feitos uma média de 1800
testes por dia, que resultaram numa média de 22, 1,2%, casos positivos) não
deveriam os mesmos ser sujeitos a contra-análise sistemática? Sabendo-se que os
casos positivos, dando de barato que são de facto positivos, são
maioritariamente em faixas etárias mais jovens e de menor risco, não deveria
este facto ser tido em linha de conta na ponderação da situação? Sabendo-se que
os internamentos se mantêm totalmente estabilizados desde o início da pandemia
não deveria este critério ser utilizado para definição dos níveis de risco? Ao que
acresce os cataclísmicos e, esses sim, mensuráveis em euros de dívidas, moratórias
e falências e insolvências, efeitos dos confinamentos na economia. E, também, a
condenação trágica de toda uma geração aos efeitos devastadores nas suas aprendizagens
e sociabilização. Não deveria, isto sim, ser a base da estratégia de luta
contra os efeitos da pandemia?<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm; text-indent: 35.4pt;">É que, talvez
assim, o Sr. Tato Clélio, e os restantes responsáveis políticos, tivessem uma epifania,
e descobrissem que, afinal, não existe nenhuma epidemia na região, havendo sim
um vírus, talvez já quase endémico, abaixo da "linha de base", que provoca uma doença grave, mas que, infeliz
ou felizmente, tem grupos de risco bem definidos e delimitados por idade e
comorbilidade, e nos poupassem, a todos nós, aos efeitos arrasadores desta loucura
pandémica. Bem sei que isso significaria a perda de emprego do Sr. Tato, e de
holofote mediático do Sr. Clélio. Mas, para nós todos, era um descanso merecido
das agruras destes tempos, repletos de cega insensibilidade e vil autoritarismo,
e um retorno aos ritmos plácidos de uma certa e ansiada normalidade, já para
não falar, do remeter para um qualquer rodapé da história os desmandos do Sr. Tato
Clélio que, com a sua vaidade televisiva, insiste em tratar a ilha de São
Miguel como uma imensa experiência de teoria epidemiológica em que cada um de
nós é um misero ratinho de laboratório que, em nome da vida, deixámos de viver…<o:p></o:p></p><br /><p></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-45019609569001077902021-05-21T20:57:00.001+00:002021-05-21T20:58:01.316+00:00Da Saúde Pública e do propósito de salvar vidas<p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj1qYDZgSnt_9pwzPP9-CRzhypIuZHZ9LiPYSv2qT7TZh_BOxbtTN3G2DAEWdtx07FM_CuFLUChFgM8vio2vW_HsotkV_8sNqKb148dqEbknv-YxKyeWojVELkkfCS8Z-K1Z4oloB0axXY/" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="309" data-original-width="567" height="174" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj1qYDZgSnt_9pwzPP9-CRzhypIuZHZ9LiPYSv2qT7TZh_BOxbtTN3G2DAEWdtx07FM_CuFLUChFgM8vio2vW_HsotkV_8sNqKb148dqEbknv-YxKyeWojVELkkfCS8Z-K1Z4oloB0axXY/w320-h174/image.png" width="320" /></a></div><br /><p></p><p></p><p class="MsoNormal">Vivemos, quase há um ano e meio, mergulhados nesta
tempestade pandémica e temos as nossas vidas subjugadas à autoridade dos
critérios epidemiológicos dos especialistas em Saúde Pública. Passado todo este
tempo, continuamos, em grande medida, a abordar o vírus SARS-CoV-2 como se
fosse um vírus desconhecido e, com isso, estamos lentamente a destruir os
alicerces mais profundos da nossa vida em comunidade, agudizando o fosso entre
classes sociais e criando clivagens e desigualdades que perdurarão no tempo,
muito para lá do termino desta pandemia. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Embora o conceito de Saúde Pública só tenha ganho
notoriedade nestes últimos tempos, Portugal tem uma longa tradição nesta
disciplina médica. Um dos seus pais foi o médico iluminista Ribeiro Sanches, natural
de Penamacor, companheiro de Diderot, Voltaire, Rousseau, entre outros, na <i>Encyclopédie</i>,
que foi um conselheiro fundamental do Marquês de Pombal na reconstrução da
cidade de Lisboa, após 1755. Mais recentemente, o médico Arnaldo Sampaio, pai
do ex-Presidente da República Jorge Sampaio, lançou as bases de uma Saúde
Pública que, nas suas próprias palavras, era a ciência “<i>da preservação
integral da saúde do Homem</i>”, com ênfase, diria eu, na palavra Integral e no
H grande da palavra Homem. Nesta pandemia, não têm sido poucos os especialistas
que têm alertado para a necessidade de abordagens de Saúde Pública que atentem
à baixa perigosidade e capital sazonalidade do vírus, como o Dr. Jorge Torgal;
para a importância de perspetivar a pandemia lançando mão de outras ciências,
como a psicologia, a sociologia, a economia, percebendo-se o papel fulcral que
os diferentes agregados familiares e populacionais desempenham na sua
propagação, como tem defendido o insuspeito Dr. Francisco George, na esteira do
que o próprio denomina como Nova Saúde Pública; ou, ainda, o papel fundamental
que, em Saúde Pública, as estratégias de comunicação desempenham na cativação e
cooperação das populações com os procedimentos clínicos e medidas a
implementar, como explica o Dr. Constantino Sakellarides.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">Infelizmente, nos Açores, todo este conhecimento parece ser
letra morta às mãos de uma visão estatística e semafórica da pandemia, que olha
para as ilhas, e para os 19 concelhos, como se fossem compartimentos estanques
e fixamente delineados em quadros de Excel e gráficos de Power Point. Uma Saúde
Pública em que as pessoas são meros transportadores do Vírus, uma espécie de
Ubers da contaminação. Ou, o pior de tudo, que usa como principal utensílio de
sustentação das suas decisões e estratégias, os níveis de incidência da
contaminação, que se alicerçam em algo tão falível e cientificamente
questionável como são os testes RT-PCR, que detetam a presença de matéria viral
e não a sua capacidade real de infeção. Mas não entremos, por agora, por aí.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">O que importa realçar, neste momento, é que a estratégia de
combate à pandemia nos Açores procura, pura e simplesmente, tal como em março
de 2020, conter a disseminação do vírus e concentra-se, apenas, no resultado
positivo de um teste que não determina se a pessoa está ou não com a doença. Esta
estratégia não tem em linha de conta todos os avanços científicos já feitos na
análise de grupos de risco, a sua demografia, taxas de letalidade, contaminação
por assintomáticos, sazonalidade, transmissibilidade, vacinação e, não menos
importante, as devastadoras consequências socias e económicas que o combate à
pandemia têm tido. Ao fim de um ano e meio de pandemia importaria perceber que
o sofrimento das crianças, dos jovens, das famílias, dos trabalhadores e dos
empresários é tão merecedor de atenção como o dos pacientes Covid. A
proporcionalidade é, afinal, uma das matrizes do Estado de Direito. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">A questão dos Direitos Fundamentais é, efectivamente, algo
extremamente importante de se ater em maio de 2021. Como bem explica Henrique
Pereira dos Santos, “<i>a Liberdade não é um pormenor, é uma questão central
que deve ser ponderada ao mesmo nível que outros fatores no momento da tomada
de decisão.</i>” Os sucessivos ataques à Constituição, ou à própria Lei de
Bases da Saúde, que garantem o direito ao trabalho e ao lazer, passando-se de
um Estado de Emergência para um verdadeiro Estado de Permanência, são uma
inaceitável inversão do Contrato Social e do Estado de Direito, em que são os Cidadãos
que são colocados ao serviço do Estado e não, como deveria ser, o Estado a
servir os Cidadãos. É neste ponto, e pegando no caso da ilha de São Miguel, não
por qualquer bairrismo espúrio, mas porque não deve ser tratado de forma igual
coisas que são na verdade diferentes, que importa questionar o Governo Regional
dos Açores sobre a razoabilidade e a proporcionalidade das suas opções.
Sabendo-se que esta é a ilha com maior capacidade hospitalar instalada, aliás o
próprio Secretário da Saúde afirmou que o Plano de Contingência do HDES tinha
previstas até 80 camas para tratamento Covid, não é compreensível, nem
económica ou socialmente aceitável, que se tenha, de ânimo leve, optado por
forçar um confinamento generalizado a toda a ilha apenas porque o número de
casos ativos subia, enquanto o número de internados nunca ultrapassou os 20. Não
é admissível que seja a população da ilha de São Miguel a ser chamada a
proteger um débil Serviço Regional de Saúde, quando é obrigação do Governo
garantir que é o HDES, e o SRS no seu todo, que está devidamente capacitado
para salvar a população da ilha e, por maioria de razão, dos Açores. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">A tudo isto acresce aquele que é hoje o maior problema desta
pandemia: a grave questão dos prejuízos na educação e das consequências
psicológicas, nas crianças e jovens e nas suas famílias, que levam por junto já
quase seis meses sem ensino presencial, e a destruição de largos sectores da
economia, com particular acuidade na cultura, no lazer, na promoção da saúde
física e no bem-estar e, finalmente, no Turismo. Se há uma linha da frente da
pandemia, para usar a metáfora bélica tão na moda na boca dos políticos, ela é
composta, hoje, por estas centenas de pessoas anónimas que sofrem as agruras da
falta de trabalho e de receitas ao mesmo tempo que, esse mesmo Estado, lhes
impõe o cumprimento de todas a suas despesas e obrigações, principalmente para
com o próprio Estado. Ao contrário daquilo que é a narrativa demagógica dos
Governos, as ajudas anunciadas são insuficientes, são burocráticas e na maioria
dos casos não chegam efetivamente às pessoas. Mais de 20 dias depois de um
populista anúncio de injeção de 2 milhões de euros, do programa Apoiar.pt, que
numa avaliação por alto, do número de candidaturas, significaria pouco mais de
1000€ por empresa, a realidade é que esse dinheiro não chegou ainda ao terreno.
<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">É por isso que, neste momento, se afigura como fundamental
rever as estratégias de combate à pandemia e os critérios a ela aplicados.
Desde logo, importaria utilizar como fator de ponderação principal o número de
internamentos, em lugar da taxa de incidência de 100/100 mil. Em vez de se
colocar todo o ónus do combate à pandemia nos cidadãos, é ao Estado que compete
assegurar os meios de combate ao vírus e à doença de Covid 19, protegendo os
grupos de risco, assegurando as condições de tratamento dos casos mais graves e
incrementando a vacinação da população. Ao mesmo tempo, e por outro lado, seria
imprescindível instituir instrumentos eficazes e diretos de ajuda às famílias,
às empresas e aos trabalhadores, que permitam salvar a economia e preparando,
desde já, um Plano de Recuperação Económica da Ilha de São Miguel. Sob o risco
de, não o fazendo, estarmos a hipotecar o futuro e a condenar-nos, a todos, indiscriminadamente,
desde o reformado, ao empresário, passando por funcionários públicos e demais
trabalhadores, a décadas de austeridade e sofrimento, a que a gravíssima crise
económica que iremos certamente viver obrigará. A perda de criação de riqueza
na ilha de São Miguel, o aumento de desemprego associado, e o consequente desequilíbrio
da balança contributiva, são os componentes inflamáveis de um cocktail
explosivo de depressão económica, instabilidade social e pobreza, que farão da
crise de 2008 uma brincadeira de crianças ao pé do verdadeiro tsunami que aí
vem. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal">É urgente que os políticos sintam mais e quantifiquem menos,
que tenham verdadeiramente noção das agruras de quem sofre e se compadeçam com
as milhares de vidas que, nesta pandemia, perderam a sua Vida. Insistir neste
mesmo caminho, que faz das pessoas meros números numa estatística, e da vida um
simples relatório clínico, é salvar “vidas” até não haver mais vidas para
salvar. <o:p></o:p></p><br /><p></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-16002538621134958252021-04-30T19:38:00.004+00:002021-04-30T20:05:16.431+00:00A violência doméstica do Sr. Tato Clélio<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://imagens.publico.pt/imagens.aspx/1462003?tp=UH&db=IMAGENS&type=JPG&w=334&h=334&act=cropResize" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="225" data-original-width="225" src="https://imagens.publico.pt/imagens.aspx/1462003?tp=UH&db=IMAGENS&type=JPG&w=334&h=334&act=cropResize" /></a></div><p>Ao fim de um ano inteiro de vírus,
há uma coisa que é já perfeitamente clara: o vírus não se combate assim. A opção
governativa pelo confinamento, a grande clausura populacional, tem uma comorbilidade
maior que a pandemia e uma taxa de letalidade infinitamente superior do que a
Covid-19, já para não falar nesse importante pormenor de que afecta todas as
faixas etárias de forma cega e despótica. Nos Açores, a Covid matou 30 pessoas,
em 4893 casos positivos diagnosticados. Uma extraordinária taxa de letalidade
de 0,6%. Se extrapolarmos para o cômputo geral da população a Covid matou 0,01%
de açorianos. Uma notícia desta semana dava conta que os óbitos oficialmente
contabilizados como sendo com Covid-19 representavam, imagine-se, 0,9% de todos
os óbitos ocorridos na região, num total de 2439, um amento de 7,4%
relativamente ao ano anterior. É importante fixar estes números porque o que
estas estatísticas nos dizem é que, de facto, se morreu mais em 2020, embora
pouco para uma pandemia, mas não foi de Covid, houve mais cerca de 7% de mortes
de outras causas que não o maléfico vírus. Se invertermos os números
descobrimos que a taxa de sobreviventes à Covid na região é de aproximadamente,
preparem-se, 99%. Dir-me-ão alguns que estes números se devem às políticas
governativas que tem contido os contágios e permitido que os hospitais consigam
lidar com os casos que desaguam nas urgências e enfermarias e dir-me-ão também
que os sacrifícios que são pedidos à generalidade da população são necessários perante
tão devastadora maleita. Mas, pergunto eu, será legitimo que para debelar um
vírus com uma taxa de letalidade de 1% se destrua toda uma economia? Se arruíne
a infância e a adolescência de 10% da população? Que se dizime a escolaridade
e o futuro de toda uma geração? Que se isole e condene os últimos anos de vida
de toda uma outra geração de idosos? Que se condene ao calvário das dívidas à
banca centenas de empresas? Que se exproprie o direito ao trabalho de milhares
de empresários e trabalhadores? Tudo para proteger, não as pessoas, mas os
hospitais? Será moralmente aceitável que se destruam sociedades inteiras porque
os Sistemas de Saúde não foram capacitados para aguentar uma pandemia? Em Março
do ano passado até se poderia aceitar que sim, mas agora a resposta é impreterivelmente
não! E, já nem vale a pena falar da desmesura daquilo a que eufemisticamente se chama de “apoios” do Estado, da sua infinda burocracia e diminuta grandeza face
ao enorme cataclismo provocado pela ditadura sanitária. O que neste momento
está verdadeiramente em causa é que ao fim de mais de um ano de pandemia o Estado,
os governos e os políticos de turno, continuam a colocar o ónus da culpa nas
pessoas e a não conseguir assumir os seus próprios erros e fraquezas. O que é
verdadeiramente chocante e inaceitável é que continuamos a ser nós, os cidadãos,
os malcomportados, os infeciosos, em vez de serem os políticos, que não conseguem
produzir e distribuir as vacinas, que deixaram hospitais de campanha vazios,
que não aumentaram a capacidade dos hospitais e não souberam ou quiseram proteger
as pessoas, a assumir as suas debilidades e a pagar pelos seus erros. Esta absurda
inversão da ordem democrática e do Estado de Direito teve o seu mais caricato e
odioso episódio ontem, protagonizado pelo nosso Sr. Tato Clélio. Visivelmente perturbado
pela gargalhada televisiva da semana anterior o Sr. Tato Clélio, depois de uma lamentável
e auto-congratulatória masturbação pública à mão de PowerPoint decidiu apontar armas
aos órgãos de comunicação social e à forma como são feitas notícias sobre a
pandemia, lamentando-se por a imprensa regional não lhe ajudar na disseminação
da boa propaganda covídica, aquela que leva a cidadãos respeitadores e obedientes
e não à insurreição cidadã. No mundo do Sr. Tato Clélio não é ele que manda fechar
escolas e restaurantes, é o vírus. O tal vírus que mata 1% dos infetados. <a name="_Hlk70702837">No mundo do Sr. Tato Clélio </a>todos devíamos estar
respeitosamente sossegadinhos em casa para que ele possa desenhar curvas
descendentes nos seus graficosinhos de PowerPoint e vangloriar-se de conter uma
pestilenta pandemia. No mundo do Sr. Tato Clélio não é por culpa dele que as
cidades ficam desertas, as crianças perdem o contacto com os amigos e a
desenvoltura da escola, e as empresas vão à falência, tudo ao arrepio daquilo
que o próprio anunciou que iria fazer quando aqui chegou, em novembro, qual Jorge
Jesus da pandemia. O Sr.Tato Clélio é realmente um exemplo clássico do abusador,
num caso de violência doméstica, que pede perdão por bater na vítima e que
ainda lhe diz que só lhe bate por culpa desta e para seu bem. Malvados micaelenses
que o transformam num esbirro, logo ele que é um querido e só quer salvar-nos de nós próprios.
O problema é que nós, todos nós, estamo-nos a comportar de facto como vítimas,
levamos e pedimos desculpa, incapazes de nos levantar e dizer basta a esta despótica, desconexa e inaceitável violência que são as decisões e medidas da Autoridade de Saúde do Sr. Tato Clélio. Mas, em toda esta desgraça há uma coisa que convém
nunca esquecer. É que, nesta parábola da violência doméstica, o Sr. Tato Clélio
é apenas o cinto, a mão que brande o cinto tem um nome e chama-se Governo Regional
do Açores e o seu presidente é José Manuel Bolieiro.</p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><o:p></o:p></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-59773252001916952182021-04-25T17:19:00.003+00:002021-04-25T17:20:04.472+00:00O Dilema da Liberdade na Era do Vírus <p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://wahooart.com/Art.nsf/O/9DPLHX/$File/Jackson+Pollock-Number+1.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="526" data-original-width="800" height="210" src="https://wahooart.com/Art.nsf/O/9DPLHX/$File/Jackson+Pollock-Number+1.JPG" width="320" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">n.º 1 Jackson Pollock</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="text-align: left;"><br /></span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span style="text-align: left;">A liberdade é uma das mais antigas
e interiores aspirações do ser humano. Desde a liberdade individual, a
autonomia do ser, a maioridade, se assim se pode dizer, expressa na
independência pessoal, ou na acepção mais anglo-saxónica e provavelmente mais correcta, a
liberdade da </span><i style="text-align: left;">adulthood</i><span style="text-align: left;">. Até à liberdade dos povos e a sua
autodeterminação, da qual todas as sociedades têm uma expressão, um passado ou
uma aspiração. Mas hoje, na era do vírus, a liberdade foi capturada pela
autoridade do Estado. O respeito, seja ele individual ou colectivo, que é a
base de todas as liberdades, está refém de uma subserviência acrítica, que os
Governos impõem, com o megafone noticioso, aos indivíduos, aos cidadãos, sob a
chantagem da retórica da “vida”. Trocamos a responsabilidade, que sustenta a
liberdade, como pilares fundamentais da vida social, por uma escravidão
consciente e voluntária. Às crianças foi-lhes impedida a infância, aos idosos
foi-lhes aprisionada a velhice, aos mais desprotegidos foi lhes expropriado o
direito ao trabalho e a uma vida digna, o acesso à educação preso no ensino à
distância, um serviço de saúde universal, aprisionado pelas suas próprias deficiências
e debilidades, mesmo o direito ao ar-livre, foi nos espoliado por decreto, sob
o pretexto de uma ameaça invisível, amplificada pela voragem mediática na culpa
cidadã. Já não é o vírus a ameaça, somos todos nós, cada um de nós, feios e
malcomportados, como crianças irresponsáveis. Festejamos a liberdade confinados
ao recolhimento obrigatório e não há qualquer grama de ironia nisto. Há, essencialmente,
uma liberdade que falta, que não se cumpriu. A igualdade e a fraternidade das
coisas simples num mundo de créditos bancários. A liberdade maior da independência
financeira, a básica liberdade da autonomia em relação ao poder. Tantas pequenas
liberdades que afinal nunca brotaram, que nunca floresceram realmente, ninguém
as regou com a água da vida, ninguém chegou sequer a plantá-las. A liberdade
primeira e fundamental do serviço ao outro em lugar do ser serviçal de um
Estado arrogante e dominador. A liberdade da independência do espírito. A liberdade
criativa, audaz, arrojada e vanguardista. Uma liberdade sem medos, sem amarras,
sem os grilhões das coisas certas e das obrigações mesquinhas e mundanas e medíocres.
A liberdade sincera e responsável que se abraça no outro, no que é diferente e
distante. Falta a liberdade interior, a liberdade mais íntima do ser. A liberdade
da escolha, do voo livre e sem rumo, a liberdade cheia e plena do
contentamento. Uma liberdade livre de clamar pela própria liberdade, hoje e
sempre e em cada nova madrugada. A liberdade do amor. Tudo isso falta, hoje, nesta
era do vírus. Não vejo que haja muito para celebrar. Mas, hoje mais do que
nunca, quando levantarmos a voz para exclamar liberdade, realizemos o que
verdadeiramente está em causa. Só poderá haver liberdade quando verdadeiramente
compreendermos que a autoridade não está no Estado mas em cada um de nós e que
a primeira obrigação do Estado é respeitar os cidadãos e não o respeitinho
subserviente e envergonhado dos cidadãos pelo Estado que, sentado nos seus
tronos de poder, se ri, à gargalhada, do infortúnio que nos esmaga nesta Era do
Vírus. Hoje, mais do que nunca, gritemos a uma só voz, Viva a Liberdade! Mas, amanhã também e depois e sempre, cada novo dia, sejamos nós a própria Liberdade.</span></div><p></p><p class="MsoNormal" style="margin-bottom: 0cm;"><o:p></o:p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: left;"></div><p><span> </span><br /></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-6503607564706435872021-04-01T06:54:00.000+00:002021-04-01T06:54:07.068+00:00Café Royal CCXX<p><b>Fim.</b></p>
<p class="MsoNormal">PARC Life Travel. A Comercial Cervejaria. Big 21. Singular
Bistrô. GeoFun. Tui. Açoraudio. Amplisom. RCEventos. Ruido Açores. Estes são só
alguns nomes de empresas que fecharam para sempre ou que viram o seu direito ao
trabalho expropriado pelo Estado e pela brutal crise económica e social
provocada por esta pandemia. Ao mesmo tempo, dezenas de hotéis fechados e sem perspetiva
de voltar a abrir. Menos 30% de camas no Alojamento Local. Ah, e a Dona Maria
Amaral das doces Fofas da Povoação. Ontem terminaram, também, muitas das
moratórias bancárias ao crédito de famílias e empresas, naquele que será
certamente o primeiro movimento de uma enorme avalanche de mais insolvências,
falências, desemprego e destruição de famílias e vidas individuais que aí vem.
Também, hoje, fecha este “Café Royal”, em luto, em homenagem, a todo um modo de
vida, feito de contacto entre pessoas, de simpatia e hospitalidade que se
perdeu, quem sabe, permanentemente. Às páginas deste mais antigo jornal
português, o meu obrigado sincero. Aos leitores, o meu agradecimento sentido.
Entretanto, cuidem-se. Este vírus só passará quando aprendermos todos a viver
com ele, na certeza, todavia, de que todos temos que morrer um dia… <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-27930958654912456732021-03-25T08:58:00.001-01:002021-03-25T08:58:03.778-01:00Café Royal CCXIX<p><b>A malandragem</b></p>
<p class="MsoNormal">A saga rocambolesca da Azores Park, em toda a sua garotagem,
incúria e desonestidade, é mais um daqueles assuntos que retratam de forma fiel
aquilo que melhor distingue a vida pública nacional, tal como o bacalhau marca
a nossa gastronomia – a malandragem. Estão lá todos os ingredientes habituais:
suspeitas de corrupção; ameaças; conluios; gestão danosa; incompetência; favorecimento;
envolvimento dos dois maiores partidos políticos; ligações obscuras entre a
política e o futebol; eventual dolo de detentores de altos cargos públicos e
dinheiro, muito dinheiro, com proveniências, portadores e destinos ainda por
explicar. Num imenso rol de interligações sombrias entre o público e o privado.
Independentemente do que venha a ser provado em tribunal, há um julgamento,
político, que se pode, desde já, fazer: o dos executivos que geriram a Câmara Municipal
de Ponta Delgada ao longo de todo este processo. Os americanos têm uma
expressão que se aplica neste caso como uma luva: “<i>not on my watch</i>”. O que
sabemos hoje, pelo que já veio a público, é que tudo se passou no turno deles e
um deles é, agora, o nosso Presidente Amigo. Resta saber se tudo aconteceu por ignorância,
por desleixo ou por manifesta má-fé. <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-34663620290440270212021-03-18T07:43:00.004-01:002021-03-18T07:43:36.797-01:00Café Royal CCXVIII<p><b>A nova laranja</b></p>
<p class="MsoNormal">Os Açores sempre viveram da riqueza do solo. Desde o pastel,
ao santificado reinado da vaca leiteira, passando pelos cereais e a laranja, até,
nos nossos dias, em que o boom do Turismo se fundou nas características naturais
das ilhas, as principais fundações do edifício produtivo açoriano estiveram
sempre solidamente alicerçadas no seu afortunado chão. O período de ouro da chamada
“época da laranja” teve o seu lento ocaso com uma crise no lado da oferta com o
ataque da cochonilha, que foi, paulatinamente, corroendo a produtividade dos
pomares e a qualidade do fruto. A praga da <i>coccus hesperidum</i> foi, por assim
dizer, a poda final no comércio da laranja. Hoje, porém, os Açores vivem,
novamente, uma encruzilhada perigosa, desta vez com uma dupla crise, mas do
lado da procura, com o penoso e arrastado fim da lavoura, cujos mercados vão
diminuindo ao mesmo ritmo que a concorrência vai aumentando, e a obliteração dos
fluxos do Turismo, às mãos da insanidade da Covid. Mas, se no sec. XIX, houve engenho
para substituir a laranja pelo ananás, nos dias que correm não se vislumbra nem
energia, nem talento, nem tão pouco um “fruto” alternativo que possa produzir essa
mudança. <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-32085784632668343752021-03-11T07:19:00.002-01:002021-03-11T07:19:20.035-01:00Café Royal CCXVII<p><b>O PS e Marcelo</b></p>
<p class="MsoNormal">Está lançado o segundo período da década Marcelo. Numa anódina
cerimónia onde, simbolicamente, os cumprimentos deram lugar a pomposas e distanciadas
vénias, Marcelo entrou, tranquilamente, no seu segundo mandato. Ferro
Rodrigues, derreteu-se em elogios ao perfil político de Marcelo. E, muitos altos
dirigentes socialistas encurvaram-se em encómios ao Prof. de Direito e o mais
tik-tokiano presidente que a república portuguesa já teve ou terá. Bem sei que
a política não é hoje lugar de romantismos, nem, tão pouco, de particulares ideologias.
É-me, também, de cristalina clarividência, a estratégia socialista, perante uma
direita órfã, de cinicamente apoiar o campeão do centro-direita, procurando com
isso garantir a sobrevivência governativa junto do eleitorado dos sem-partido,
mesmo que isso implique ostracizar a sua própria militância e esconjurar a sua
história. Como diria o outro: “<i>é a política, estúpido!</i>”. Mas, o que os líderes
do PS escolhem não ver é que, quando chegar a hora, que inevitavelmente chegará
com o clímax da crise, Marcelo será o primeiro a, sem pestanejar um segundo, queimar
o PS no mesmo lume onde o partido hipotecou agora a pureza dos seus princípios.
<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-87783476485536818202021-03-04T07:59:00.006-01:002021-03-04T07:59:52.707-01:00Café Royal CCXVI<p><b>A Era do Vírus</b></p>
<p class="MsoNormal">Completámos, nestes “idos de Março”, o ano um da Era Covid. Já
antes o bicho se remexia nas entranhas orientais de Wuhan, mas estava demasiado
distante para que dele déssemos conta. Depois, a peste começou a atacar em
Bergamo, aí já suficientemente ocidental e vizinha para que os alarmes
mediáticos zunissem com sonora histeria. Então, primeiro numa fábrica do norte,
depois na figura de um reputado banqueiro, o bicho aterrou em Portugal, com
honras de telejornal, tanto que nunca mais de lá saiu. Logo aí, a dupla
ditadura do fascismo sanitário e estatístico abateu-se, como uma tempestade
inclemente, sobre nós. A nossa vida foi abalroada pelas imposições do R(t), do
x por 100 000, das curvas e dos planaltos, dos RT-PCR e das UCI e esse
surreal e doloroso número de 12(!) Estados de Emergência. E, de tudo isto, o
que fica é a aflitiva angústia de que, à custa de um vírus que afeta pouco mais
de 7% da população, que matou 2% dos que infetou, que representa, aliás, menos
de um oitavo do total de óbitos no país, condenámos liminarmente à morte todo
um modo-de-vida e as mais básicas e primordiais das liberdades e princípios do
Estado de Direito. Bem-vindos ao futuro… <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-20368384514858284712021-02-25T07:18:00.001-01:002021-02-25T07:18:19.920-01:00Café Royal CCXV<p><b><i>Bulldozeriando</i></b></p>
<p class="MsoNormal">O Ocidente sempre lutou pelos valores fundacionais do
Humanismo. Aquilo a que Karl Popper chamou “<i>Sociedade Aberta</i>” – Liberdade,
Igualdade e Solidariedade. Porém, o atual nevoeiro pandémico veio adensar o
manto de arbitrariedade e autoritarismo das forças do Império da Intolerância. Por
toda a Europa, governos acossados por um absurdo maniqueísmo moral, refugiaram-se
cegamente nas masmorras soturnas e insalubres do fascismo sanitário,
transportando-nos a todos, novamente, como condenados nos tétricos vagões de
Birkenau, rumo a um extermínio civilizacional que julgávamos permanentemente ultrapassado.
A mais recente insanidade covídica é a peregrina ideia de um “passaporte viral”,
espécie de medieval salvo-conduto, que permite aos mais abastados e vacinados cruzar
fronteiras entre países. O mais chocante nesta proposta abstrusa é perceber como
os governos procuram corrigir as arrasadoras consequências de encarceramentos ilógicos
e discriminatórios à custa de investidas de bulldozer sobre a equidade, as liberdades
individuais e os valores essenciais do mais básico humanismo. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-71310701901043059872021-02-18T10:05:00.001-01:002021-02-18T10:05:06.512-01:00Café Royal CCXIV<p><b>A vitamina</b></p>
<p class="MsoNormal">Nos últimos tempos, António Costa tem-se referido ao Plano
de Recuperação e Resiliência e aos fantásticos euros que supostamente por aí veem,
já não como a “bazuca”, mas como a “vitamina”. Este súbito câmbio de expressão metafórica,
embora menos bélico, é, infelizmente, muito mais sinistro. O que esta imagem
medicinal revela é simplesmente o quão alienado, ou néscio, anda o nosso Primeiro-ministro,
ao ponto de julgar que se pode ressuscitar um morto com pastilhas de Cecrisina.
Por culpa do seu desgoverno da pandemia, a economia está moribunda. E, em alguns
sectores, como é o caso das indústrias criativas ou da hospitalidade, por
exemplo, empresas há que já foram liminarmente eutanasiadas por decreto do
governo, sem que qualquer panaceia as possa, milagrosamente, reviver. Mas, esta
ideia de que se pode curar um morto com uma colher de vitamina, é o mesmo tipo
de pensamento mágico que lhe faz acreditar que é a vacina que nos vai salvar do
mafarrico viral. O que Costa nunca percebeu é que o problema não era o vírus,
nem a cura, mas a absoluta ausência de saúde que já antes nos acometia. De
tanto querer curar a doença esqueceu-se que o mais importante é haver saúde.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-1967635911971038762021-02-11T07:15:00.001-01:002021-02-11T07:15:06.495-01:00Café Royal CCXIII<p><b>Ode à inépcia</b></p>
<p class="MsoNormal">Bolieiro é um “<i>gajo porreiro</i>”. Ar bonacheirão e agradável
bonomia, é difícil não se simpatizar com a figura. Mesmo a sua exagerada
propensão para o rococó discursivo, passa mais por anedótica do que antipática.
Acresce, a sua notória “estrelinha” política, que fez com que os cargos lhe caíssem
no colo, sem que para isso tivesse de se esforçar ou, se quer, mostrar qualquer
tipo de particular competência. Foi assim em Ponta Delgada, é assim no Palácio
de Santana. Na Câmara, desde os terrenos da Calheta, ao rocambolesco “Azores
Parque”, (vendido por 500, vai ser em parte recomprado por 5 milhões, porque alguém,
por tolo ou dolo, se esqueceu que lá metido estava o imprescindível Parque de Máquinas)
o que fica do mandato de Bolieiro é uma infinita incompetência. Já no Governo, o
que rapidamente se percebe é que quem realmente manda não é o mesmo que sorridentemente
nos prometeu um governo “<i>transformista</i>”, nem nada do que foi prometido é
para ser cumprido. Das passagens a 60€, às tristes e embaraçosas nomeações,
passando pela surrealista transmutação do Fundo Regional de Coesão em Direção
Regional dos Assuntos Corvinos, a presidência de Bolieiro é uma Ode à Inépcia. <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-56979738259148560742021-02-04T08:23:00.003-01:002021-02-04T08:23:29.198-01:00Café Royal CCXII<p><b>O Atoleiro</b></p>
<p class="MsoNormal">Hergé, pai de Tintin, embora controverso, foi um
extraordinário criador. Autor de inúmeros álbuns de banda-desenhada, inventou várias
personagens memoráveis. Oliveira da Figueira, vendedor ambulante lisboeta, foi
uma delas. Protótipo do português manhoso, vendendo traquitanas no deserto, é o
paradigma da chico-espertice nacional. Aquilo a que vamos assistindo, sem surpresa,
em torno da vacinação, é mais uma demonstração dessa tendência portuguesíssima para
a batotice. O desenrascanço, usado para resolver problemas, é uma virtude e
deve ser cultivado. Mas, a aldrabice, prejudicando o próximo, é um gesto obsceno
e condenável. Por cá, no Atoleiro do Bolieiro, vamos assistindo, com acentuado pavor,
à virulenta purga que a geringonça da direita insular vai cinicamente fazendo em
tudo o que é administração pública. Depois das infindáveis juras de respeito pelas
pessoas. E, as promessas de ser diferente do que lá estava antes. Com a aparente
passividade cúmplice do seu respaldo parlamentar, vão desfazendo tudo quanto é
cargo, num afã digno de uma trituradora. Do administrador ao inspetor, até,
qualquer dia, o chapéu largo da “confiança política” servir, também, no
contino, no motorista e na funcionária da limpeza, encarregue de vazar o lixo…<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-5294126914426543262021-01-28T05:31:00.005-01:002021-01-28T05:31:49.833-01:00Café Royal CCXI<p><b>São Marcelo</b></p>
<p class="MsoNormal">Estas presidenciais não foram mais do que uma pequena e
irritante lomba, um curto semáforo, no marcelismo reinante. Essa foi, aliás, a
melhor metáfora da noite. As imagens daquele homem só, ao volante, conduzindo
sem nexo pelas ruas de uma cidade universitária deserta, às curvas, parando nos
semáforos, acossado por <i>paparazzis</i>, em busca de um rumo ou, quiçá, de um
tempo útil para estacionar. Antes, tínhamos acompanhado o seu ar melancómico, de
andar arrastado, a ir buscar um bitoque ao tasco do bairro, saco de plástico
caído sob o peso dos ombros. Ou, o aspeto ascético, monástico até, do
candidato/presidente, sozinho em casa, deambulando um pouco atarantado pela
cozinha, as garrafas de vinho passado, abrindo uma carta do banco no preciso
momento em que as televisões lhe cantavam vitória, num justo e adequado final
para uma campanha em que esse homem, que se julga providencial, achou com toda
a arrogância que nem precisava de ir a jogo. Levado por uma ideia sebastiânica
de si próprio, líder solitário e autocrata que, como o velho de Santa Comba, salvará
intrépido o país. Ao mesmo tempo, 60,5% dos eleitores disseram estar-se a
marimbar para esta patetice em que se tornou a política à portuguesa.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-2069916766081438022021-01-21T07:47:00.002-01:002021-01-21T07:47:52.659-01:00Café Royal CCX<p><b>1921</b></p>
<p class="MsoNormal">Olhando os noticiários, fica-nos como que uma inquietação aflitiva
pela balbúrdia em que se encontra o mundo. Porém, se recuarmos cem anos percebemos
que o fio condutor da História foi, quase sempre, afinal, a irracionalidade. Nos
EUA, Woodrow Wilson, o pai da Liga das Nações, agonizava decadente o fim da sua
presidência, incapaz de convencer os americanos dos méritos da sua política
externa, e substituído depois por um desconsiderado e desconhecido Warren G. Harding.
Em Portugal, António José de Almeida esforçava-se por fazer sobreviver um dos 15(!)
governos a que daria posse nesses ebulitivos anos de 20 e 21. Numa coincidência,
quási astrológica, Portugal e o Mundo vivem, hoje, também, mudanças igualmente significativas
no cenário político. À hora que escrevo, nos EUA, prepara-se o início de uma anómala
cerimónia de inauguração, marcada profundamente pelo ansiado fim da era Trump. Por
cá, no domingo, teremos as mais polarizadas, populistas, demagógicas, atípicas e
caóticas presidenciais da nossa história recente. No pano de fundo de tudo isto,
o espírito pandémico, insensível aos desmandos humanos, segue assolando o mundo,
tal-e-qual como há cem anos atrás… <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-19793993441336275092021-01-14T07:07:00.002-01:002021-01-14T07:07:30.013-01:00Café Royal CCIX<p><b>Vidas efémeras</b></p>
<p class="MsoNormal">Lembram-se do HIV, o célebre vírus da SIDA? Esse mal-afamado
e hollywoodiano ícone dos anos oitenta, que espalhou pânico e morte a toda uma
geração? Em 2020 morreram de SIDA, em todo o mundo, cerca de 1 milhão de
pessoas. Mesmo assim e neste tempo regido já não pelos astros, pela filosofia,
ou, gostaríamos nós, pela ciência, mas antes pelo opressivo jugo da estatística,
o HIV é apenas responsável por pouco mais de 1 porcento das 60 milhões de
mortes que fatalmente acontecem, todos os anos, pelo mundo fora. Fatalmente, ou
se calhar não, uma vez que, por exemplo, a maior causa de morte global são as
doenças cardiovasculares, muitas delas provocadas por maus hábitos de vida,
como a obesidade e o sedentarismo, que matam mais de 17 milhões de pessoas
todos os anos. Ou, os cancros que matam perto de 10 milhões, muitos deles
derivados da má alimentação ou da poluição, tudo causas eminentemente humanas. Ou,
ainda, a diabetes Tipo II, essa suprema doença da modernidade, que é responsável
diretamente por quase 1,5 milhões de mortes todos os anos, sensivelmente o
mesmo número de pessoas que a OMS estima que terão morrido por efeito da
Covid-19, em 2020, em todo o mundo. <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4611402144401557570.post-44657843872965937062021-01-07T07:36:00.001-01:002021-01-07T07:36:51.144-01:00Café Royal CCVIII<p><b>Tudo igual…</b></p>
<p class="MsoNormal">Passou o ano, mas nada mudou. Nem já a velha máxima
lampedusiana nos é útil, não houve nem um pequeno pedaço de algo que mudasse
para que tudo ficasse na mesma. Vivemos num penoso e encadeado continuar. Enquanto,
ingenuamente, estourávamos as rolhas do champanhe, na felicidade dos poucos
familiares com que a estupidez governamental permitiu que nos reuníssemos,
continuavam os jornais a contar infetados como se houvesse Covid desde o princípio
da existência. O Estado de Emergência prosseguiu na sua incontestada permanência.
Os políticos seguiram, desavergonhadamente, nos seus compadrios abjetos, forjando
currículos e demissões e outras pindéricas falcatruas. E, é o simplório Tino quem
expõe cruamente as verdades: Marcelo, afinal, não passa de um palhaço e Ventura
não vale um calhau. Por cá, mudou o Governo, mas a porcaria ficou… muito pior! As
mesmas soluções gastas, os mesmos esquemas e arranjinhos e negócios obscuros, mais
tachos e <i>jobs </i>para os<i> boys</i> <i>and girls</i>. E, quando
perguntarem o que fez crescer o CHEGA!, não foi o cruzar de uma qualquer linha
vermelha, foi, justamente, deixarmos que tudo ficasse na mesma, ou pior.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal">in <a href="https://www.acorianooriental.pt/" target="_blank">Açoriano Oriental</a></p>Pedro Arrudahttp://www.blogger.com/profile/02222575200073178838noreply@blogger.com0