domingo, 12 de novembro de 2023

Carta a um Amigo

                Meu Muito Querido Amigo,

                Apanha-me este teu amável e honroso convite, para que contribua com um texto para o próximo número da GROTTA, num momento particularmente complexo da minha vida. O meu tempo parece que se esvai em turbilhão rápido e intempestivo, dividido entre as solicitações inadiáveis do trabalho propriamente dito, há que agarrar os turistas enquanto eles ainda cá estão e, acima de tudo, enquanto cá continuarem a querer vir, passado que parece estar o Inverno covídico, e este novo projeto, que um pouco inadvertida e surpreendentemente abracei, de tentar fixar em livro e documentário uma História do Surf nos Açores, que muito gozo e labor me tem dado, mas que me deixam com a sensação de que corro atrás de um futuro que não se materializa, na vã tentativa de corporalizar o intangível, de eternizar a própria espuma das ondas, como se estendesse encarecidamente a mão a um nevoeiro intocável e inalcançável, sem nunca ter tempo para efetivamente nada e sem que nunca nada se chegue ao alcance dessa mão.

                Acresce a isto tudo o caso arrepiante dos últimos dois anos, que foram profundamente angustiantes, como sabes, e, acima de tudo, enormemente dececionantes para mim. Toda a histeria pandémica, a distopia sanitária em que a humanidade se mergulhou, o ter que assistir desesperado ao mundo descendo voluntariamente ao calabouço da mais vil opressão e tirania. O pânico vendido às massas como guião oficial da narrativa do Estado. O soçobrar da razão, da civilização, às mãos do cientismo barato e da demagogia populista da política contemporânea rendida à manipulação vil do ser humano pela insanidade covidiota. Tudo isto destruiu-me por dentro, e creio que talvez nos tenha verdadeiramente destruído a todos, enquanto comunidade, enquanto entidade social, emocional e animicamente. Ao que se acrescenta, ainda, o verdadeiro assassinato a sangue-frio perpetrado pelo Estado ao meu modo de vida. Os inconcebíveis e irracionais confinamentos, que destruíram uma indústria feita de amabilidade, a indústria da hospitalidade, como acertadamente lhe chamam no mundo anglo-saxónico. Como poder exercer uma profissão de pessoas quando os governos as impediram de existir, de sair à rua, de se relacionarem entre si e de conviverem umas com as outras? A loucura pandémica matou, por dois longos anos, a fraternidade entre os humanos e fez colapsar aquela que é, talvez, a mais importante atividade de interpelação e concórdia entre as pessoas – o Turismo.

                Agora, corremos todos atrás de uma mirífica recuperação, ofegantemente ansiando por um regresso a um passado que nunca regressará, tentado salvar a pele e a vida, dos nossos negócios, das nossas famílias, não entendendo que o mundo nunca mais será o mesmo. Não, não andará tudo bem, o mundo não voltará para trás, num qualquer novo normal feito das mesmas soluções gastas, intolerantes e segregadoras. Que dividem em vez de juntar, que rotulam e separam, em lugar de congregar. O livre transito dos detentores do passaporte vacinal e os negacionistas, espécie de novos párias contemporâneos portadores de uma peste libertária. Recusamos compreender que nunca nada volta para trás e que o futuro será sempre feito de outros desejos, outras e novas formas de estar na vida e no mundo.

E nós, aqui nos Açores, em São Miguel, particularmente, parecemos correr sempre atrás do prejuízo, nunca antevendo e precavendo os sismos do futuro, nunca criando, mas copiando sempre os métodos e os sistemas dos outros. Assim na pandemia, como agora na euforia pós-pandémica da estagflação planetária.  

                Por estes dias muito tenho pensado sobre o passado e, principalmente, sobre as aspirações dos nossos avós. Os sonhos que acalentaram, os esforços que fizeram para criar uma região mais moderna, mais aberta e, acima de tudo, mais próspera e solidária. O que diriam eles, hoje, de nós? Na pesquisa que estou em mãos de fazer consultei o outro dia, na Biblioteca da Universidade dos Açores, um extraordinário edifício, de uma enorme beleza arquitetónica invulgar, diga-se aliás, o famoso número da revista “Insula”, de 1932, comemorativo do Quinto Centenário do Descobrimento dos Açores e onde Nemésio escreveu um famoso artigo sobre essa coisa de se ser açoriano. O tal que é tantas vezes glosado, tanto por políticos como intelectuais, e mal, diria eu, pela poética, se bem que incorreta, imagem das sereias na escama dos açorianos e da sua dupla natureza, de carne e de pedra, e esses “ossos que mergulham no mar” sem nunca lá verdadeiramente terem metido os pés, que os açorianos nunca foram gente de mar, e onde Nemésio cunha, pela primeira vez, o famoso termo da “Açorianidade”, essa circunstância incandescente da alma que ninguém ainda conseguiu convenientemente definir.

                Por uma luminosa coincidência do destino, deparei-me, nesse número da revista, com um curtíssimo texto do meu bisavô, Augusto Arruda. De entre todas essas altas personalidades da nação, da política e da cultura, Sua Excelência o Presidente da República, Óscar Carmona, a escritora Alice Moderno, o meu outro bisavô, pelo lado paterno, o genealogista Rodrigo Rodrigues, o Almirante Gago Coutinho, o Marquês de Jácome Correia, Aristides da Mota, o poeta Oliveira San-Bento, Brito Camacho, Urbano Mendonça Dias, Hernâni Cidade, o próprio Nemésio, ali estava o meu bisavô materno, com quarenta e poucos anos, sensivelmente a idade que eu próprio tenho agora, despejando em uma dúzia de curtos parágrafos a sua elegia açoriana, o seu lamento por um arquipélago. E, foi isso exatamente que me surpreendeu, a sua profunda melancolia, o seu quase enfado com o devir açoriano e a sua, dir-se-ia, permanente intangibilidade. Este era um homem que sofregamente perseguiu o ensejo de uns Açores encastrados no centro de uma modernidade entre dois continentes e que ali, na celebração do cinquentenário do seu achamento, se vê na circunstância de apontar a incongruência de um arquipélago bafejado pela fortuna da riqueza natural e geográfica, mas que é incapaz de fazer cumprir esse destino e acabando o seu texto com esta reflexão toda ela cheia de tristeza e pesar e, como ele próprio classifica o seu estado de espírito, de mágoa:

                «Razão há pois para que, relanceando os olhos para o estado em que esses cinco séculos nos deixaram, uma mágoa, uma enorme mágoa nos invada a alma, onde teimosamente nos fica a impressão do que poderíamos ser…»

                É esta consciência de um enorme potencial incumprido que julgo que mais profundamente define os Açores e que, em boa verdade, define também o açoriano. É esta consciência do possível que falhou que mais caracteriza o seu histórico ao longo dos séculos e que, extraordinariamente ainda hoje se faz sentir e se reflete na nossa essência de nove rochedos perdidos no meio do grande mar Atlântico como se estivéssemos predestinados a uma grandeza que nunca conseguiremos realmente atingir.

Homem de inquebrantável vontade e inexcedível e incomparável visão, o meu bisavô multiplicou-se em atividades, desde a política, aos negócios, visando sempre o desenvolvimento e a prosperidade dos Açores. Depositou toda a sua esperança no Turismo, como motor primeiro do desenvolvimento e do crescimento económico da região e em especial da sua ilha, São Miguel, acreditando e trabalhando arduamente para que as Furnas, a maior e mais singular hidrópole da Europa e do Mundo, pudesse, de facto, ser o centro e a alma do Turismo dos Açores. Ele e uns poucos outros como ele construíram hotéis e casinos, fizeram brochuras e promoveram feiras, chamaram jornalistas e viajaram pelos centros sociais e económicos da América e da Europa divulgando as maravilhas da sua ilha. Foram tão longe como fundar uma companhia aérea para que os turistas não os sobrevoassem em moderníssimos jatos de ambição transatlântica e para que estas ilhas não se perdessem nesses traços de fumo branco pintados no ar sobre céu que nos envolve.  A SATA, contrariamente ao que hoje querem fazer crer, não foi feita para unir os açorianos, mas para unir os açorianos ao mundo, dando-lhes finalmente centralidade e modernidade e quebrando esses cinco pesados séculos de isolamento. Hoje, quase cem anos passados, os intelectuais do funcionalismo público, confortavelmente instalados no seu salário certo, e os oportunistas da esquerda mais retrograda e nacionalista, fazem petições contra o turismo de massas, desconhecendo, na verdade o que isso seja, o Turismo e as massas, e desconhecendo ainda que nem almoçar condignamente, numa tarde de Verão no Nordeste, se consegue. Numa região que não produz riqueza querem, por medos atávicos de fantasmas que não existem, matar um dos seus poucos sectores exportadores. Os Açores são e serão sempre esta fulgurância adiada, este provir irrealizável e intangível. O “que poderíamos ser…

                E, a questão, parece-me a mim, é exatamente essa. O que somos, verdadeiramente, se não tivermos um desígnio, um projeto, uma ambição comum e conjunta, que nos mobilize e identifique como povo que o quer ser? Como reconhecer essa açorianidade difusa sem mais matéria do que a bruma e o nevoeiro e os cinzentos de chuva e lassidão? Os americanos têm o sonho. Os franceses o orgulho, os ingleses o império da língua. Os italianos o culto da beleza. E os espanhóis, bem ou mal, têm a España que, contra ventos e marés, os agrega como nação compósita de várias nações e onde, se calhar, lá deveria estar, também, a nossa o que, infelizmente, por inépcia dos Filipes e pela audácia conjurada de uns quantos barões lisboetas, amedrontados pela magnificência madrilena, a defenestraram de arremesso para o chão térreo do Terreiro do Paço impossibilitando definitivamente essa grande Ibéria de romantismo anteriano. Portugal terá o quê? O Fado? O Cristiano Ronaldo? A Nossa Senhora de Fátima e os seus infantis pastorinhos? A Saudade, talvez possivelmente a língua? E, nessa ordem de razão, os Açores, então, o que terão? Geografia? Gente? Mar? Talvez, ou talvez não…

                O naturalista Arruda Furtado, que era um darwininano e que não consta fosse da família, uma das grandes figuras portuguesas do Oitocentos, entre a antropologia e a etnografia do açoriano, com tabelas de medição encefálica e tudo, que hoje fariam corar de vergonha os mais reputados cientistas sociais, arvorou uma pureza pátria insular, fruto de séculos de isolamento dos industriosos movimentos da modernidade continental, que dariam ao açoriano a duvidosa notabilidade de ser um português mais puro, mais verdadeiro se bem que mais tacanho e atrasado. Já no século XX, Luís da Silva Ribeiro tentará uma visão mais sebastiânica do tipo insular, classificando esse mesmo isolamento como uma proteção do açoriano, uma barreira conducente a um apuramento genético, se quisermos, dos princípios e ideais do português de Quinhentos. Resta saber se essa herança de uma “Ínclita Geração” mítica e camoniana não se desfez na própria epopeia que a gerou e se, nos Açores, o que ficou não foi a ferida aberta e traumática desse naufrágio pátrio de um Império que nunca verdadeiramente se materializou? No fundo, dos dois, o que fica é essa nota comum da distância, do supremo e imperioso isolamento e apartamento insular. O açoriano é no fundo um exilado do mundo e da história, preso na sua prisão de ilha, rodeado de mar por todos os lados, como uma trincheira intransponível e condenado pela eternidade às tempestades, e aos piratas, e outras calamidades náuticas de impossível superação. Provavelmente, só verdadeiramente realizável na diáspora, contrariando a sarcástica máxima do nosso amigo Daniel de Sá, da pior maneira de ficar na ilha ser sair dela…

                Depois há aquela questão, de que ninguém gosta de falar, que é a do povo e das elites, se é que isso existe por estes calhaus basálticos erguidos vulcanicamente por sobre o mar. O próprio Nemésio, quando se propõe a identificar os tipos diferentes de açorianos, dos quais distingue marcadamente três – o picaroto, o terceirense e o micaelense – remete principalmente para uma caracterização do tipo popular, das gentes da terra, de cabo de enxada, amanhando ao tubérculo, podando o pomar, pronto para saltar à canoa à saga da baleia. Intelectual só mesmo Antero, mas até esse superiormente inatingível, lá alto no Olimpo das Ideias. As grandes elites açorianas, terratenentes e alcandoradas na liteira dourada do morgadio, que tiveram o seu zénite na efervescência liberal e nos movimentos autonomistas, desvaneceram-se como espuma na praia do protetorado metropolitano. Sempre reivindicando, sempre de mão estendida, pedindo, incapazes de conquistar a sua própria alforria e autonomia. Não deixa, também, de ser despiciendo que os grandes nomes da riqueza insular sejam Hicklings e Dabneys e Bensaúdes e outros estrangeirados expatriados e não Camaras, Botelhos ou Cortês-Reais, de local e digníssima nobreza, mas incapazes de multiplicar riqueza…

                Hoje, então, nem se fala, que as elites já nem as há. Estamos entregues ao bulício enxameado do politico-partidarismo, com tudo o que ele traz de apoucamento da razão e da inteligência. O primado do mínimo denominador comum. A exaltação do oportunismo. Em quase cinquenta anos de autonomia a região pouco mais avançou do que meia dúzia de infraestruturas. A democracia do betão-armado, da engenharia civil em detrimento da evolução social e cultural. A monocultura da boçalidade e do servilismo de Estado. Acabámos com os distritos, mas fomos incapazes de gerar uma verdadeira identidade arquipelágica. Só agudizamos ainda mais um bairrismo bacoco, cheirando a mofo e a bafio, cheio de invejazinhas e birras de crianças reivindicando hospitais em cada ilha, escolas secundárias em cada concelho, portos oceânicos e aeroportos e um avião por dia em cada cidade e capelas funerárias em cada freguesia que o defunto da Covoada não pode ir velar para os Arrifes. Quase cinquenta anos de democracia e de Autonomia Administrativa, com Estatuto e Finanças, e a única coisa que conseguimos foi gerar nove açorianos diferentes, de costas voltadas uns para os outros. Mesmo lá fora, nesses outros Açores de abundância, de Lisboa ao Havai, do Brasil às outras Américas, todos são faialenses e terceirenses e ribeira-grandenses e mesmo portugueses antes de serem verdadeiramente, todos, açorianos. E a classe política, nem vale a pena…

                A questão é, voltando atrás, que me perco, onde está o nosso desígnio? Que projeto para a região, que não seja sorver, babando-se, da malga dessas novas especiarias dos euros bruxelenses? Que podem estes Açores ser que não seja só ser pobres e indigentes e coitadinhos com uma pitada, aqui e ali, de chico-espertismo charlatão sacando uns euritos ao erário publico em prol da vivenda assoalhada com piscina e o novo BMW elétrico que é chique ser verde, mas viajar só de avião, com cunha na SATA para ir de rabo numa executiva que não existe. Tudo à custa do ouro não já do Brasil, mas do próximo Quadro Comunitário de Apoio. Até ao dia em que lá, nos cubículos da Rue Joseph II número 30, algum jovem amanuense se proponha olhar com olhos de ver para a conta do deve e do haver da nossa mercearia insular.

                Para mim, e tenho-o muito claro, o caminho do futuro destas ilhas é o Turismo e o Mar. O Turismo como fonte económica de exportação, alicerçado na mais pura idiossincrasia insular que é a comunhão entre o homem e a natureza. E, deixem-se, por amor de Deus, dessas lamechices inúteis e irreais da natureza pura, ou viva, ou intocada e sustentavelsinha. A nossa natureza é uma de harmonia com a mão humana, a nossa natureza são seiscentos anos de virada das terras e de povoamento e de explosão de infestantes, da cana-roca e do novelão, e da criptoméria que viajou do Japão. A única coisa que ainda é verdadeiramente endémica é a carestia e precisamos de nos livrar dela e isso só será possível fazer com a porta aberta ao mundo, fazendo-nos respeitar, mas acolhendo com simpatia e esmero e orgulho na nossa condição de centro deste grande lago Atlântico que o futuro se encarregará de recolocar no centro do grande concerto das Nações. Os arautos da desgraça que veem no Turismo um cataclismo, esquecem que somos nós que mais destruímos, que conspurcamos e negligenciamos. Clamam por uma paisagem pristina quando nem sabem distinguir entre uma azorina e uma conteira. Falam de sustentabilidade quando fomos nós que deixamos ilhas inteiras serem comidas por infestantes. Ao final do dia, são os turistas os que mais se revoltam com a nossa barbárie endémica.

                Já o Mar será o petróleo do futuro. Dele virá energia e alimento e fonte de riqueza, de ciência e de cultura, e nós temos tanto mar que não o conseguimos ver como deve ser, ofuscados na sua imensidão de luz e agitação. Durante séculos os açorianos viveram de costas voltadas para o mar, amanhando a terra, temendo as desgraças e os desmandos do Oceano. O tempo virou, como se de um vento se tratasse, e falta virarmo-nos também para o oceano que nos rodeia, mas sem fitar sempre o horizonte, olhando mais devagar a orla costeira, as praias, as baias e as enseadas, percebendo os contornos, o desenho e a letra da maresia, a partitura cinzelada do mar. E abraçá-lo como uma amante no leito da praia…

                De todas as coisas que a nossa geração poderá deixar para os que vierem a seguir, talvez a mais importante seja essa visão de que não somos o centro do mundo para que ele nos venha salvar, mas que estamos no centro de um mundo, um mundo feito de água salgada e ondas e vida marinha, onde a própria humanidade anseia por mergulhar. O nosso legado deverá ser esse, de uns Açores transatlânticos, multioceanicos, argonáuticos e universais. Desconheço se o cumpriremos, mas todo o horizonte é um imaginário de sonho.

                Aquele forte e sentido abraço,

                Vila Franca do Campo, Agosto de 2022

                Pedro Arruda

Texto para a edição número seis da revista Grotta.