sábado, 9 de março de 2024

Para Uma Ideia de Humanidade

 

Lady Lilith, Dante Gabriel Rossetti

desafios do feminino (e do masculino) num mundo em turbulência

Começo por agradecer à Profª Amélia Lopes o muito honroso convite para estar aqui hoje. Embora confesse que para mim foi uma surpresa, este convite. No mundo de hoje, tão propenso aos cancelamentos do tipo woke, ter um “velho homem branco” a falar sobre mulheres e sobre o feminino é não só surpreendente como até mesmo pode ser visto como um ato de vandalismo ofensivo, ou então um ato de bravura. Se bem que, na condição de neto, filho, marido e pai de duas raparigas, poderei ser talvez uma espécie de súbdito voluntário do império da mulher. Um subordinado militante do Divino Feminino, por assim dizer, o que, afinal possa constituir qualificação suficiente para falar sobre a mulher e o homem, a feminilidade em vez de feminismo, uma vez que os dois não devem ser confundidos, e a importância destes dois polos aparentemente antagónicos, mas que convergem e divergem, ao longo do vasto universo da História da Humanidade.

O pedido que me foi dirigido foi que abordasse os desafios que se nos colocam hoje, num mundo em turbulência, enquanto homens e mulheres, e principalmente a questão da igualdade, ou, por antinomia, da desigualdade entre homens e mulheres. O que me levou a pensar num outro título, que considerei dar a esta exposição, que foi - Para Uma Ideia de Humanidade – e estou aqui hoje acima de tudo, precisamente, como um Humanista. No sentido em que a ideia principal subjacente à razão de Ser é, justamente, o Humano e o humano só o É enquanto expressão da dualidade efetiva e permanente entre masculino e feminino. E, na minha modesta opinião, é dessa dialética permanente, entre Homem e Mulher, masculinidade e feminismo, que nasce o progresso e a evolução do Ser Humano enquanto entidade unificada. Sendo que, nesta perspetiva, poder-se-á dizer que o feminismo, afinal, está ele mesmo, desde logo, inserido nesta ideia de Humanismo verdadeiro, ou Humanismo Pleno, de que gostaria de vos falar.

E, é por estas duas motivações, a de um humanista que vive diariamente sob o signo do feminino, que gostaria de começar a minha intervenção, nesta III Cimeira Feminina, com uma pequena provocação.

Às mulheres que procuram ser iguais aos homens falta-lhes ambição.”

Esta frase de Timothy Leary, o grande mago do psicadelismo dos anos sessenta, a quem o presidente Nixon apelidou de “o homem mais perigoso da América” e, perdoem-me, é um “velho homem branco”, como seria hoje classificado pelas mais radicais defensoras do feminismo woke, revela, para mim, aquela que é, ou deveria ser a essência do feminismo, ou como mais à frente procurarei revelar, do tal Humanismo Pleno, que é, não a igualdade, per si, um valor não obstante fundamental para um progressista como eu, mas a superação e, em última instância, a transcendência, que é a aspiração última do Humano, a ambição de uma possível utopia de integração do género pela sublimação do mesmo, por mais contraditório isto que possa parecer à primeira vista.

Nesta abordagem ao “feminismo”, visto numa perspetiva histórica, ou historicista, socorro-me de um outro “velho homem branco”, o grande historiador Fernand Braudel que disse que a “História se podia dividir em três movimentos: aquilo que se move rapidamente, o que se move vagarosamente e aquilo que aparenta não ter qualquer movimento”. Ora a História das relações entre o Homem e a Mulher poderia, aparentemente, inserir-se nesta última categoria, ou seja, uma longa e ancestral história de conflito e desigualdade entre os sexos que se mantêm inalterada ao longo dos séculos. Mas, ao contrário do que se possa pensar, ou do que é geralmente difundido, na maior parte das vezes por homens, na história da Humanidade, e na nossa cultura ocidental, em particular, a ideia, ou a causa feminista, ou do feminismo, não nasce daquilo que se pretende instituir como uma profunda e ancestral desigualdade entre homem e mulher, que se perpetuaria ao longo de milénios desde o início dos tempos. O feminismo, tal como o conhecemos atualmente, como movimento de emancipação e libertação da mulher, e não são uma e a mesma coisa, é uma causa relativamente recente, em termos históricos, surgindo sensivelmente ali em meados do século dezanove, tem, portanto, pouco mais do que cento e cinquenta anos, e é filho, ou filha, do casamento tumultuoso e nem sempre profícuo entre a Revolução Industrial e o Capitalismo moderno.

Aquela que é conhecida como a primeira vaga do feminismo foi um movimento essencialmente anglo-saxónico que grassou pelo Reino Unido e os Estados Unidos da América, na segunda metade do século dezanove, e que procurava fundamentalmente nos seus primórdios conceder à mulher direitos sobre a propriedade, a riqueza e o capital, só mais tarde buscando o direito da representação legitimado no voto. De certa forma, apesar de perigosa e excessivamente simplista, podemos dizer que o feminismo é, em parte, o culminar dos ideais do Iluminismo revolucionário francês e do Liberalismo constitucional de raiz britânica, o que faz dele um movimento essencialmente político e económico com génese relativamente recente.

Antes desse tumulto oitocentista, a História fez-se livre desses rótulos de “feminismo” ou de “masculinidade tóxica” com que hoje olhamos para o mundo. Sem as caracterizações pop, ao estilo Bridget Jones, de que “os homens são de Marte e as mulheres são de Vénus”. Aliás, e para quem conheça essas matérias, Vênus e Marte governam-nos por igual, tanto a homens como a mulheres. Na verdade, e durante muitos milénios, homens e mulheres caminharam lado a lado, muitas vezes de mãos dadas, pelos percursos da História digladiando-se e amando-se em igual proporção e, principalmente, dando vida, literalmente, à História da Humanidade, envolvidos num fogoso e por vezes intenso amplexo feito de paixões e amizades, discussões e rivalidades, sexo, ódios e, necessariamente, amor…

Mas, se calhar, o melhor será começarmos esta história pelo seu princípio, e no princípio de tudo estava, não o Verbo, não Deus…, mas a Mulher. Neste caso concreto a Vénus de Willendorf. A Vênus de Willendorf é uma pequena estatueta em calcário com de cerca de 11 centímetros representando uma mulher de seios fartos, corpo volumoso e vulva protuberante que os arqueólogos associam, embora não sem alguma discordância, a ritos ou idealizações da fertilidade, e que, o dado aqui mais significativo, foi datada de há aproximadamente 25 mil a 30 mil anos, o que faz desta pequena mulher um dos mais antigos artefactos artísticos feitos por mão humana. A Vénus de Willendorf foi descoberta no início do século vinte na Áustria. Mais recentemente, em 2008, foi encontrada na localidade de Schelklingen, na Alemanha, uma outra pequena estatueta, neste caso feita de marfim de mamute, com cerca de 6 centímetros, representando, mais uma vez, uma figura feminina, de corpo voluminoso e seios salientes, que os antropólogos associam ao mesmo tipo de ritos da fertilidade e longevidade, e a que deram o nome de Vénus de Hohle Fels e que foi datada de há cerca de 40 mil a 45 mil anos, no início do Paleolítico Superior. A importância destes artefactos, que pela sua dimensão se crê fossem usados como amuletos, prende-se com a representação do feminino, da fertilidade, da longevidade, e da própria criação do humano como sendo condição e apanágio da mulher. Ou seja, no contexto daquilo a que podemos chamar os primeiros traços de civilização, as representações artísticas, a capacidade para a abstração, nas tribos de caçadores recolectores do Paleolítico Superior, as conceptualizações artísticas e ritualísticas das primeiras tribos humanas, pelo menos aquelas que chegaram até nós, incidiam sobre a fertilidade e o feminino e na representação da mulher. A mulher que dá à luz, que engorda e se sedentariza, a mulher que envelhece, que, essencialmente, sobrevive e que faz sobreviver a tribo. A mulher, não como subproduto ou inferior ao homem, mas como origem e princípio de todas as coisas. Uma espécie de longo e significativo Matriarcado pré-histórico, se quisermos. Ao longo de milénios, até aos alvores da civilização, o homem e a mulher são, foram, um binómio indivisível de equilíbrio na preservação da tribo, da espécie, do Humano. Um caminho que é relativamente seguro dizer que durou mais de 40 mil anos, até ao alvorecer da Idade do Bronze.

É seguro dizer, também, que é com a sedentarização e a urbanização, com o advento da revolução agrícola, e o que ela traz de subjacente de propriedade da terra, que os papéis do Homem e da Mulher, no contexto social e político, se irão progressivamente alterar, ou adulterar, se quisermos ser mais exatos. Tal como Rosseau nos indica no seu “Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens” de que “os frutos são de todos, e a terra de ninguém”. A propriedade é a mãe de todas as desigualdades. E, ao longo dos últimos 5 mil anos, das cidades aos reinos, dos feudos às nações e, finalmente, ao Estado as tenções políticas e sociais entre homens e mulheres vão-se sucessivamente agravando no sentido de transfigurar o papel da mulher e de impor uma visão mais redutora e mais desigual do seu papel nas sociedades, contrariamente ao que haveria sido uma tradição milenar anterior e, contrariamente também, ao que se poderia entender como a ordem natural da História da Humanidade, em que homens e mulheres são elementos igualmente importantes nessa evolução. E, é interessante verificar que na escala de valores da idealização do feminino a fertilidade irá dar lugar à castidade, porque a castidade é a forma inicial de assegurar a linhagem e a linhagem, ou o vínculo, são a primeira forma de assegurar a transmissão da propriedade.

Voltando outra vez ao início, a outro início, o das mitologias fundadoras da nossa civilização, mais especificamente no seu pilar judaico-cristão, a mulher, ou as mulheres, cumprem, ou cumpriram, na verdade um papel fundamental, se bem que o mesmo tenha sido sucessivamente e muito politicamente recalcado, ao longo dos últimos dois a três mil anos, pelas hierarquias das diferentes Igrejas e Religiões. Harold Bloom, talvez o mais importante crítico literário do nosso tempo, e em grande medida o símbolo maior do que significa ser-se um “velho homem branco”, arriscou, inclusive, dizer que o conjunto dos primeiros livros da chamada Bíblia Hebraica - Genesis, Êxodo e Números - que na tradição cristã compreendem o grosso do Antigo Testamento, e a que chamou o Livro de J, teriam sido escritos por uma mulher, mais especificamente, uma cortesã da corte do rei Roboão, filho de Salomão, no reino da Judia, cerca do ano mil antes de Cristo. Bloom irá mesmo ao ponto de afirmar que: “A misoginia no Ocidente é uma longa e sombria história de fracas e equivocadas interpretações da cómica J, que exalta as mulheres em toda a sua obra, e nunca mais do que nesta história deliciosamente irónica da criação.”

Ora, se escavarmos ainda mais nesta tradição judaico-cristã encontraremos ainda uma outra e superiormente relevante figura feminina – Lilith, a primeira mulher. De acordo com as mais antigas tradições judaicas Lilith é a primeira mulher de Adão, criada ao mesmo tempo e da mesma forma que ele, do barro da terra, moldada pelas próprias mãos de Deus, e não da costela de Adão, como Eva. As mesmas tradições referem também a revolta de Lilith perante Adão, recusando subjugar-se a este, a literalmente deitar-se debaixo dele, por ser igual a ele, abandonando por isso, ou sendo expulsa, do Jardim do Éden, as versões variam, e tornando-se, desde então, numa espécie de demónio, identificada com a serpente, instigadora e símbolo principal da queda da Humanidade. Noutra versão, Lilith tornar-se-á mesmo esposa de Samael, o Anjo da Morte, o veneno de Deus, o sedutor, o acusador, o Deus-cego e destruidor. O verdadeiro Satanás. À luz do dogma judaico-cristão, portanto, a mulher que se recusa a submeter ao homem passa a ser vista como uma representação do mal, um demónio pérfido e pernicioso, lenta e progressivamente obscurecido ao longo dos últimos milénios.

Já na tradição Suméria, a mais antiga civilização que conhecemos, cerca de 4500 anos antes de Cristo, Lilitu era igualmente um espírito ou um demónio, associado à Lua, representando as suas diferentes fases e estados de espírito, umas vezes benigna outras maligna, e o que pode haver de mais feminino. Mas, ao mesmo tempo, na tradição Suméria, nomeadamente no Épico de Gilgamesh, o mais antigo texto escrito que conhecemos, é uma Deusa, de nome Aruru, a mãe da Humanidade. É uma mulher quem cria o mundo e cria os homens e as mulheres moldados, pela sua mão, do barro da terra, tal como Deus fará na tradição judaica.

No fundo o que aqui me importa assinalar é a profunda e relevante importância da mulher, do chamado Divino Feminino, na nossa cultura e de como essas primeiras mulheres, fossem reais ou imaginadas, eram seres livres e poderosos e iguais em importância e estatuto ao próprio homem, sendo na progressiva sedentarização das sociedades e sedimentação dos dogmas da Religião e da Igreja, que são, na verdade, formulações políticas e económicas, que essa relevância vai ser posta em causa e que a relação da mulher com o homem vai sofrer a adulteração, e uso a palavra propositadamente, que conhecemos hoje.

Regressemos então ao Jardim do Éden e ao livro do Génesis que, recordo, de acordo com Harold Bloom, foi muito certamente, primeiramente, escrito por uma mulher. Depois de Deus, Jeová, ter criado o céu e a terra, Jeová deu forma a um homem do barro da terra e soprou-lhe o vento da vida pelas narinas e o homem tornou-se carne. A seguir Jeová plantou um jardim. Da terra cresceram as árvores boas de se ver e boas de se comer e nesse jardim estavam duas árvores, a árvore da vida e a árvore do bem e do mal, mais especificamente a árvore do “conhecimento” do bem e do mal, da qual o homem não se deve aproximar nem comer o seu fruto. Então, percebendo que não era bom o homem estar sozinho Jeová criará os animas da terra e os pássaros do ar e os seus nomes ser-lhe-ão dados pelo homem, mas entre eles não se encontrava o parceiro do homem. Então Jeová coloca o homem num sono profundo e retira-lhe uma costela e dessa costela dá forma à mulher e coloca-a ao lado do homem. “Este é osso do meu osso, carne da minha carne” diz o homem “mulher lhe chamarei, do homem ela foi separada. Tal como o homem se separa da sua mãe e do seu pai e se une à sua esposa; eles são uma só carne”. São, portanto, iguais, homem e mulher, e de se conhecerem, atenção ao termo, conhecer carnalmente neste caso, Eva, a mãe de todos os homens, conceberá, tal como Jeová havia concebido, Caim e depois Abel. É importante perceber e realçar que o conhecimento entre o homem e a mulher é também o conhecimento entre o bem e o mal. O resto da história penso que saberão, mas o que me interessa destacar aqui é que neste texto original, em hebraico, homem e mulher são em tudo iguais, carne da mesma carne e são tão criadores como Jeová, no conhecimento que completam um do outro. O Homem deu nome a todas as criaturas da terra e é da ligação entre o homem e a mulher, Adão e Eva, que nasce toda a Humanidade. Homem e Mulher, juntos.

Se olharmos a História ainda noutra perspetiva, a da História como o relato dos grandes acontecimentos e personalidades, a ideia da importância e da relevância da mulher ao longo do tempo, da História e da Literatura, atravessa toda a nossa Cultura Ocidental, e não só. Os primeiros poemas clássicos, a Ilíada e a Odisseia, nascem por causa de mulheres. O rapto de Helena, filha de Zeus, a mais bela mulher da terra, por Páris príncipe de Troia, despoletando uma sangrenta guerra, está na génese da Ilíada. Já a Odisseia relata-nos as atribulações de Ulisses, na sua viagem de regresso a Ítaca e, principalmente, de regresso aos braços da sua amada esposa Penélope que se mantém sempre fiel a Ulisses afastando todos os pretendentes com sábios estratagemas. A primeira, Helena, símbolo da beleza e da determinação. A segunda, Penélope, caracterizada como astuta e inteligente. Atributos que devem ser lidos como uma visão enaltecida do feminino, longe do que poderíamos supor ser uma visão desdenhável ou aviltante da mulher e da sua importância na história e na sociedade.

No Antigo Egipto, Hatshepsut, esposa de Tutmós II, foi designada faraó após a morte do marido, tendo governado o Egipto por quase vinte anos, cerca de mil e quinhentos anos antes de Cristo. Talvez uns duzentos anos mais tarde, na 18ª dinastia, Nefertiti governou ao lado do seu marido Akenaton e acredita-se que tenha sido faraó após a morte deste e até à maioridade do seu filho Tutankhamnon. E, obviamente, Cleópatra, a última imperatriz do império Ptolemaico, educada pelo filosofo Filóstrato, que falava oito línguas e foi amante de Marco António, e seduziu Júlio Cesar, e que ficou na História não só pela sua beleza, mas principalmente pela sua astúcia e inteligência.

No livro dos Juízes, do Antigo Testamento, encontramos Debora, Juíza, que libertou o povo de Israel do jugo de Canaã. Na Grécia Antiga, uma sociedade reconhecidamente misógina e esclavagista, temos ainda assim algumas mulheres que se destacaram, desde logo a grande poetisa Safo de Lesbos, ou as pitonisas, sacerdotisas do oráculo de Delfos, que gozavam de amplo estatuto e reverência. Artemísia de Cária, rainha de Halicarnasso, que comandou a armada persa de Xerxes na batalha de Salamina. E, Platão, na sua República, advoga uma igualdade plena entre homens e mulheres na organização do estado. Mais tarde, já na nossa era, Hypatia de Alexandria, enorme matemática, astrónoma, filósofa, será assassinada por cristãos fanáticos no ano de 417.

No Oriente, também, a mulher se destaca como elemento proeminente da história e das sociedades. Cadija Alcora, primeira mulher de Maomé, grande comerciante e mulher de destaque na sociedade da altura, apelidada da “mãe dos crentes”.  Ou Aisha, terceira mulher de Maomé, guerreira e libertadora dos Sunitas. E, também, Fátima, filha do profeta, poetisa, a dos nove nomes, “a sincera”, “a abençoada”, “a casta”, “a pura”, “a contente”, “a agradável”, “a falada por anjos”, “a radiante”, o que dá bem conta da sua importância, e esposa de Ali Ibne Abi Talibe, primo de Maomé e primeiro Iman dos Xiitas. Ou, mais a Oriente, Yeshe Tsogyal, a mãe do Budismo tibetano, que viveu entre os anos 757 e 817 e que ficou conhecida como “a imperatriz do Lago do Conhecimento”. E mais para lá, no Oriente do Oriente, na mitologia da criação japonesa, cinco pares de deuses, masculinos e femininos, irmãos e irmãs, maridos e mulheres, que por sua vez convocaram Izanami e Izanagi, Mulher e Homem, que dão origem ao arquipélago do Japão, onde entre os anos 600 e 770 da nossa era o “país do sol nascente” viria a ter uma sucessão de cerca de 7 imperatrizes.

O que pretendo assinalar com estes exemplos de mulheres transcendentes, no sentido em que se superaram a si mesmas e à sua condição de mulheres, numa História dita de homens, e de mitologias predominantemente mistas, que convocam tanto o feminino como o masculino, é que muitas vezes a narrativa mais fácil, ou aquela que nos é acometida, não é a verdadeira, não é a real. Muitas vezes os factos desmentem a própria História. Isto não quer dizer que a História, e as sociedades, não sejam muitas vezes patriarcais, nem que, pelo facto de algumas sociedades terem sido comprovadamente matriarcais, não haja uma tentativa, principalmente da História mais recente, de masculinizar, por assim dizer, o caminho da história humana, talvez por isso mesmo seja tão importante hoje, relembrar e celebrar estes exemplos femininos que se sublimaram imprimindo os seus nomes e exemplos nos cânones e no curso da vida e da história humana, para não cairmos em extremismos básicos, ignorantes e muitas vezes cegos e violentos.

E esses exemplos continuam ao longo do tempo. Lívia Drusila, mulher de Augusto primeiro imperador de Roma. Ou Agripina, mãe de Calígula. Teodora, mulher de Justiniano e Imperatriz do Imperio Bizantino. Leonor de Aquitânia, que viu o seu casamento com Luis VII de França anulado pelo Papa para se casar com Henrique II de Inglaterra, de cujo casamento viria a nascer o grande Ricardo o Coração de Leão. A inesquecível Joana d’Arc padroeira da França, heroína e mártir da Guerra dos Cem Anos. Outra Joana, Johanna Ferrour, líder da revolta dos camponeses da Inglaterra feudal. Ou Isabel a Católica, Rainha de Castela e Leão, obreira da última reconquista aos mouros e madrinha das conquistas dos novos mundos de Cristóvão Colombo. E a lista poderia ser interminável seguindo infinitas cronologias onde sempre, junto, não por detrás, par a par com os grandes reis, com os grandes líderes, se impuseram, igualmente, a força e a influência de grandes, enormes, mulheres. Ou, como bem expressou o comediante americano Jim Carrey – “por detrás de cada grande homem há uma mulher a revirar os olhos”…

E em Portugal? Portugal é desde logo uma nação “mariana”. E já iremos a Maria, mas desde a sua fundação que Afonso Henriques consagrará Portugal à Virgem Maria e ao Culto Mariano. Afonso Henriques que, aliás, faz construir um país em revolta edipiana contra a sua mãe, Dona Teresa, na batalha de São Mamede, que havia sucedido, como viúva, ao seu marido, o Conde D. Henrique no governo do então condado portucalense e que alguns historiadores consideram hoje ser mesmo a primeira Rainha de Portugal. E esta história nacional far-se-á numa sucessão de grandes mulheres, muitas vezes injustamente esquecidas ou subvalorizadas. A rainha Santa Isabel, mulher de D Dinis, a do milagre das rosas. Dona Inês de Castro, rainha do coração de D. Pedro. Brites de Almeida a Padeira de Aljubarrota. Dona Filipa de Lencastre a mãe da ínclita geração. A nossa Brianda Pereira, heroína da Batalha da Salga. D Maria I, que embora viesse a ficar conhecida como a Louca, foi efetivamente a primeira rainha portuguesa e ficou na História como arqui-inimiga do absolutista Marquês de Pombal, tendo esse sido mesmo um dos seus primeiros atos no seu reinado, a destituição do Marquês, por causa do processo dos Távoras. E Dona Maria II, filha de D Pedro IV, líder dos Liberais, padroeira do teatro nacional e, entre outros dignos feitos, mãe de 11 filhos em 16 anos.

Não querendo ser acusado de ligeireza, ou de excessivo desembaraço na corrida contra o tempo da história, deixando de fora tantas outras notáveis mulheres, como a Marquesa de Alorna e D Carlota Joaquina, Beatriz Angelo ou Florbela Espanca, Ana de Castro Osório e Maria Melena Vieira da Silva, ou Sophia e Agustina, seria impossível referir todas, permitam que destaque, por fim, nestes 50 anos do 25 de Abril, 4 mulheres, ou talvez 5, sem as quais a revolução, se não impossível, certamente seria outra. A primeira é, a nossa, Natália Correia, incansável lutadora pela liberdade que, com a coragem que a caracterizava, apadrinhou a edição de um livro, escrito a três mãos, por três mulheres, igualmente corajosas, chamado as “Novas Cartas Portuguesas” e que seria alvo de um mediático processo judicial que consolidaria o desgaste e a erosão do regime, fruto da vil censura a que foi sujeito. Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno são as 3 Marias que completam com Natália este quase matriarcado da revolução portuguesa, revolução essa que também não seria possível sem a participação de uma quinta mulher, ou uma supra-mulher, o sagrado feminino se quisermos, representado pelas mães, as irmãs e as mulheres dos quase 800 mil soldados portugueses mobilizados no ultramar, entre 1961 e 1974, e cuja relevância na constituição do quadro mental que levaria à sublevação militar dos Capitães de Abril não está ainda devidamente estudada e valorizada.

Ou seja, o que é que podemos inferir destes destaques que vos apresento? Essencialmente que o progresso da Humanidade, e tenhamos em conta que Humanidade é um substantivo feminino, seria impossível sem a ação de homens e de mulheres e que é do seu acontecer conjunto que essa mesma evolução se constrói. Homem e Mulher, masculino e feminino, estão no centro da roda e do movimento do devir humano e são inseparáveis desse mesmo movimento, desse conhecimento. Dai que a questão da igualdade, que não é necessariamente igualitarismo, entre homens e mulheres, ou da sua emancipação, seja tanto uma construção como uma constrição moderna e essencialmente materialista, ou até mesmo uma castração, alicerçada numa visão utilitária da história, feita na conquista de direitos, na posse, por oposição à visão humanista, feita de aspirações, ambições e capacidades. A Humanidade é, no fundo, o conjunto, o equilíbrio se quisermos, das forças, das energias, das oposições e das interligações, entre o masculino e o feminino. E os grandes desafios, como o individualismo, a vertigem da quantificação e da informação, a ditadura do instante e do presente, ou a chamada erosão do género, que se colocam hoje à Humanidade, colocam-se em igual medida a homens e mulheres e só poderão ser superados pela inclusão, integração e o equilibro entre essas duas forças, sendo que, em alguns casos, as mulheres, enquanto portadoras gestacionais da própria vida, enquanto protetoras, cuidadoras da vida, estarão até talvez mais bem preparadas para os ajudar a superar. Se bem que, ao mesmo tempo, outros haverá em que a deturpação contemporânea do feminino, tido já não como proteção, mas como posse, a linha ténue entre proteção e possessividade na maternidade, por exemplo, é um problema largamente identificado na psicologia, poderá levar a um agudizar desses mesmo desafios e dessas crises.

Aqui gostaria de regressar, por breves instantes, a dois ícones fundamentais da caracterização da feminilidade e que comportam dentro de si e nas suas nuances muita da essência do Arquétipo Feminino e daquilo que é hoje esta luta pela sua representação – Maria e Maria Madalena. E que, como já referi, explicam também, na medida em que foram sendo manipuladas politicamente pela religião, o ponto em que estamos hoje na dita “guerra dos sexos”.

Maria carrega desde logo dois princípios fundamentais do feminino; a pureza, na ausência de pecado, a castidade, e o da maternidade, na forma da dedicação ao filho. Maria, a Virgem Maria, imaculada pelo conhecimento carnal, é a escolhida por Deus para ser a mãe do Filho de Deus na Terra e para ser a sua educadora e cuidadora e Maria, a Maria cristã, é assim o símbolo da separação entre o Homem e Deus e, principalmente, entre Homem e Mulher. Maria não precisa de “conhecer” o Homem para gerar o descendente de Deus. Uma luta infinita que ocupara a Igreja durante quase dois mil anos até o dogma da imaculada conceição ser solenemente consagrado pela bula Ineffabilis Deus pelo papa Pio IX em 1854. Curiosamente, mais ou menos ao mesmo tempo em que o socialista libertário, e humanista, francês François Fourier andará a inventar a própria palavra “feminismo” nas suas críticas diretas ao cristianismo e ao dogma do pecado original. Fourrier escreverá que: “O progresso social e as mudanças do período histórico ocorrem em proporção ao avanço das mulheres em direção à liberdade, e o declínio social ocorre como resultado da diminuição da liberdade das mulheres.”

Intrinsecamente ligada a Maria e à História do feminino está outra mulher relacionada com Cristo, mas substancialmente menosprezada ou mesmo censurada, que é Maria Madalena. Se Maria é pureza e castidade, Madalena será pecado e, acima de tudo, sexualidade. E é como pecado, na sequência de Lilith, que será tida pela hierarquia da Igreja ao longo dos séculos, ao ponto do seu Evangelho ser considerado apócrifo. Ironicamente, ou talvez não, aquela que é tida, pela própria Bíblia, como a mais devota e significativa discípula de Jesus é-lhe retirada a condição de apóstolo, e do seu Evangelho, onde se lê, a palavra de Jesus destruindo um dos dogmas fundamentais da doutrina cristã, a inexistência de pecado, a Igreja tudo fará para que não seja lido e, palavra iniciática, conhecido. Porque o pecado é a origem da culpa e se a lei é uma forma de organização a culpa é uma forma de controlo. E importa lembrar que o pecado original é precisamente o fruto do conhecimento do bem e do mal, que o Salvador, Jesus, diz-nos Maria Madalena no seu Evangelho, quanto questionado por Pedro: “Uma vez que nos explicaste tudo, diz-nos ainda mais isto: o que é o pecado do mundo?” O Salvador responde: “Não existe pecado. Mas sois vós que cometeis o pecado quando fazeis o que é semelhante à natureza do adultério, que se chama «pecado».

É assim, muito por via do dogma religioso que a opressão política do feminino se vai instituir no pensamento e na sociedade patriarcal como forma de controlo da propriedade. Tornando-se, com a Revolução Industrial e com a introdução da mulher nas forças produtivas, num instrumento também de opressão do proletariado pelo poder do capital. E, chegamos assim aos dias de hoje, onde se questiona qual o papel da mulher, qual a sua representatividade nos lugares de poder e se criam quotas e exceções para assegurar descriminações positivas no acesso da mulher e do género, já entendido como para lá do feminino, numa endoutrinação woke, nos diversos setores da sociedade.

Uma questão fundamental aqui a ter em conta é a questão da interdependência, ou da “alteridade”, de certa forma, em que homem e mulher são vistos como sendo já totalmente independentes um do outro e não como interdependentes entre si. Ou seja, nas sociedades contemporâneas o lugar do homem e da mulher, o lugar do feminino e do masculino, não se interrelacionam entre si e afirmam-se quase por oposição um ao outro e já não cuidando um do outro, um aspeto fundamental, que o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, felizmente um jovem e asiático, embora homem, caracteriza como “a sociedade do cansaço” onde a constante procura do sucesso individual nos priva do encontro necessário e imprescindível com o outro, “A pessoa sente-se livre nas relações de amor e amizade. Não é a ausência de laços, mas os próprios laços que nos libertam. Liberdade é uma palavra que diz respeito às relações por excelência. Sem apego não há liberdade.” Apego esse que, diria eu, é não mais do que o encontro com o outro, cuja forma primeira é a do conhecimento entre o masculino e o feminino, de homem e de mulher. Atenção que com isto não estou a fazer qualquer juízo de valor sobre outras formas de alteridade, nem de censura da projeção de outras formas de relacionamento, para lá do binómio homem e mulher, estou apenas a salientar que a recusa ou a imposição do género sobre a existência, da condição sexual sobre a individual, levará em última instância, na minha opinião, à própria destruição do género, à destruição da essencialidade do feminino e, por maioria de razão, também, do masculino e com isso talvez até da própria condição do Ser Humano.

Do ponto de vista da política e da questão da representatividade das mulheres na política a ideia de que, por um lado elas estão sub-representadas ou, por outro lado de que elas estariam melhor capacitadas para a atividade política encerra, na minha perspetiva, um problema essencial que é a perda da liberdade. A limitação da escolha individual, sendo que numa sociedade totalmente livre homens e mulheres devem estar onde desejarem e puderem estar. Ao procurar libertar a mulher a sociedade estará a, de certa forma, oprimi-la para ocupar um lugar que lhe é imposto e não escolhido por si. E a liberdade é a aspiração última do humano.

Como procurei demonstrar atrás, a participação das mulheres na História não se fez com predeterminações, mas com desígnios individuais. O papel das mulheres na política foi feito das suas próprias escolhas pessoais. Eleanor Roosevelt, Rosa Parks, Indira Ghandi, Golda Meir, Benazir Butho ou Maria de Lurdes Pintasilgo são mulheres que se afirmaram politicamente e na política sem quotas ou ações afirmativas, apenas pela sua vontade e força pessoal e individual. Da mesma forma, outros exemplos haveria para se contestar a ideia ilusória de que por se ser mulher se estaria mais apto para exercer cargos de decisão ou governação, como creio que os exemplos recentes de frieza e de autoritarismo de mulheres como Jacinta Arden, primeira-ministra da Nova Zelândia durante a pandemia, ou Christine Lagarde à frente dos destinos financeiros do Mundo e da Europa, ou a Sra. Von Der Leyen, que recentemente fez aprovar a “economia de guerra europeia” e a diretiva europeia de serviços digitais e os seus limites à liberdade de expressão, de certa forma demonstram sobejamente. Homens e mulheres carregam dentro de si qualidades e defeitos. São igualmente marcados pelo conhecimento do bem e do mal e, como todos sabemos, por exemplo, não é a condição de mãe que faz automaticamente uma boa mãe, mas antes a prática do bem que nos faz bons pais ou boas mães. E, que nos faz, essencialmente, humanos.

De certa forma o feminismo hoje, tal como outras formas de reivindicação de género, de raça, ou de afirmação de escolhas ou visões sociais, tornaram-se uma forma contraditória de constrangimento individual, de aprisionamento de liberdades e das potencialidades e das escolhas de cada um, quase como se uma infinita e cega busca da liberdade se fechasse afinal num ciclo de clausura e de fanatismo em que a cegueira do dogma volta enfim a restringir e censurar aquilo que buscava libertar.

Talvez o maior desafio do nosso tempo seja a reconquista dessa primordialidade do feminino e do masculino, entendidos como equilíbrio entre si mesmos, e expressões puras da liberdade individual. Da identidade do Humano. Uma sociedade que não procure a erosão dos sentidos ou dos géneros, mas a afirmação da diferença como aceitação da individualidade e, nela, da humanidade. Uma sociedade não de conceitos pré-estabelecidos, ou preconceitos instituídos, mas de indivíduos livres, que se conhecem na e pela sua diferença. Uma sociedade enfim do amor, da paixão, do prazer, da ligação entre pessoas, entre homens e mulheres, de todos os géneros. Uma sociedade de pessoas. Porque não há nada mais importante, ou poético, na vida do que a liberdade de Ser. E, como nos disse Antero nas suas “Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX”: “O Universo aspira (…) à liberdade, mas só no espírito humano a realiza. É por isso que a história é especialmente o teatro da liberdade”.

A História da Humanidade é, então, uma história de aspiração pela liberdade, uma liberdade tanto individual como, por vezes, uma liberdade coletiva, mas uma liberdade que é essencialmente alicerçada na relação entre Mulher e Homem. Nas suas conquistas e nos seus sacrifícios, na sua disputa como no seu amor, no seu devir conjunto e eterno. A libertação da mulher, tal como a do homem, no sentido uno do Humano, far-se-á da sua interligação, da sua comunhão, liberta de quaisquer amarras e constrangimentos, mesmo aqueles que se afirmam como libertadores, na tentativa de alcançar o conhecimento e uma ideia de Humanidade Plena.

Termino com este belo e seminal poema de Maria Teresa Horta:

Sou feita de muitos

nós

desobediência e meio-dia

Sou aquela que negou

aquilo

que os outros queriam

Disse não à minha sina

de destino preparado

recusei as ordens escusas

preferi a liberdade

e vivo deste meu lado”.

 

Muito obrigado.

Vila Franca do Campo, março de 2024.

         texto da participação na III Cimeira Feminina

         Teatro Micaelense, 8 de março de 2024


domingo, 12 de novembro de 2023

Carta a um Amigo

                Meu Muito Querido Amigo,

                Apanha-me este teu amável e honroso convite, para que contribua com um texto para o próximo número da GROTTA, num momento particularmente complexo da minha vida. O meu tempo parece que se esvai em turbilhão rápido e intempestivo, dividido entre as solicitações inadiáveis do trabalho propriamente dito, há que agarrar os turistas enquanto eles ainda cá estão e, acima de tudo, enquanto cá continuarem a querer vir, passado que parece estar o Inverno covídico, e este novo projeto, que um pouco inadvertida e surpreendentemente abracei, de tentar fixar em livro e documentário uma História do Surf nos Açores, que muito gozo e labor me tem dado, mas que me deixam com a sensação de que corro atrás de um futuro que não se materializa, na vã tentativa de corporalizar o intangível, de eternizar a própria espuma das ondas, como se estendesse encarecidamente a mão a um nevoeiro intocável e inalcançável, sem nunca ter tempo para efetivamente nada e sem que nunca nada se chegue ao alcance dessa mão.

                Acresce a isto tudo o caso arrepiante dos últimos dois anos, que foram profundamente angustiantes, como sabes, e, acima de tudo, enormemente dececionantes para mim. Toda a histeria pandémica, a distopia sanitária em que a humanidade se mergulhou, o ter que assistir desesperado ao mundo descendo voluntariamente ao calabouço da mais vil opressão e tirania. O pânico vendido às massas como guião oficial da narrativa do Estado. O soçobrar da razão, da civilização, às mãos do cientismo barato e da demagogia populista da política contemporânea rendida à manipulação vil do ser humano pela insanidade covidiota. Tudo isto destruiu-me por dentro, e creio que talvez nos tenha verdadeiramente destruído a todos, enquanto comunidade, enquanto entidade social, emocional e animicamente. Ao que se acrescenta, ainda, o verdadeiro assassinato a sangue-frio perpetrado pelo Estado ao meu modo de vida. Os inconcebíveis e irracionais confinamentos, que destruíram uma indústria feita de amabilidade, a indústria da hospitalidade, como acertadamente lhe chamam no mundo anglo-saxónico. Como poder exercer uma profissão de pessoas quando os governos as impediram de existir, de sair à rua, de se relacionarem entre si e de conviverem umas com as outras? A loucura pandémica matou, por dois longos anos, a fraternidade entre os humanos e fez colapsar aquela que é, talvez, a mais importante atividade de interpelação e concórdia entre as pessoas – o Turismo.

                Agora, corremos todos atrás de uma mirífica recuperação, ofegantemente ansiando por um regresso a um passado que nunca regressará, tentado salvar a pele e a vida, dos nossos negócios, das nossas famílias, não entendendo que o mundo nunca mais será o mesmo. Não, não andará tudo bem, o mundo não voltará para trás, num qualquer novo normal feito das mesmas soluções gastas, intolerantes e segregadoras. Que dividem em vez de juntar, que rotulam e separam, em lugar de congregar. O livre transito dos detentores do passaporte vacinal e os negacionistas, espécie de novos párias contemporâneos portadores de uma peste libertária. Recusamos compreender que nunca nada volta para trás e que o futuro será sempre feito de outros desejos, outras e novas formas de estar na vida e no mundo.

E nós, aqui nos Açores, em São Miguel, particularmente, parecemos correr sempre atrás do prejuízo, nunca antevendo e precavendo os sismos do futuro, nunca criando, mas copiando sempre os métodos e os sistemas dos outros. Assim na pandemia, como agora na euforia pós-pandémica da estagflação planetária.  

                Por estes dias muito tenho pensado sobre o passado e, principalmente, sobre as aspirações dos nossos avós. Os sonhos que acalentaram, os esforços que fizeram para criar uma região mais moderna, mais aberta e, acima de tudo, mais próspera e solidária. O que diriam eles, hoje, de nós? Na pesquisa que estou em mãos de fazer consultei o outro dia, na Biblioteca da Universidade dos Açores, um extraordinário edifício, de uma enorme beleza arquitetónica invulgar, diga-se aliás, o famoso número da revista “Insula”, de 1932, comemorativo do Quinto Centenário do Descobrimento dos Açores e onde Nemésio escreveu um famoso artigo sobre essa coisa de se ser açoriano. O tal que é tantas vezes glosado, tanto por políticos como intelectuais, e mal, diria eu, pela poética, se bem que incorreta, imagem das sereias na escama dos açorianos e da sua dupla natureza, de carne e de pedra, e esses “ossos que mergulham no mar” sem nunca lá verdadeiramente terem metido os pés, que os açorianos nunca foram gente de mar, e onde Nemésio cunha, pela primeira vez, o famoso termo da “Açorianidade”, essa circunstância incandescente da alma que ninguém ainda conseguiu convenientemente definir.

                Por uma luminosa coincidência do destino, deparei-me, nesse número da revista, com um curtíssimo texto do meu bisavô, Augusto Arruda. De entre todas essas altas personalidades da nação, da política e da cultura, Sua Excelência o Presidente da República, Óscar Carmona, a escritora Alice Moderno, o meu outro bisavô, pelo lado paterno, o genealogista Rodrigo Rodrigues, o Almirante Gago Coutinho, o Marquês de Jácome Correia, Aristides da Mota, o poeta Oliveira San-Bento, Brito Camacho, Urbano Mendonça Dias, Hernâni Cidade, o próprio Nemésio, ali estava o meu bisavô materno, com quarenta e poucos anos, sensivelmente a idade que eu próprio tenho agora, despejando em uma dúzia de curtos parágrafos a sua elegia açoriana, o seu lamento por um arquipélago. E, foi isso exatamente que me surpreendeu, a sua profunda melancolia, o seu quase enfado com o devir açoriano e a sua, dir-se-ia, permanente intangibilidade. Este era um homem que sofregamente perseguiu o ensejo de uns Açores encastrados no centro de uma modernidade entre dois continentes e que ali, na celebração do cinquentenário do seu achamento, se vê na circunstância de apontar a incongruência de um arquipélago bafejado pela fortuna da riqueza natural e geográfica, mas que é incapaz de fazer cumprir esse destino e acabando o seu texto com esta reflexão toda ela cheia de tristeza e pesar e, como ele próprio classifica o seu estado de espírito, de mágoa:

                «Razão há pois para que, relanceando os olhos para o estado em que esses cinco séculos nos deixaram, uma mágoa, uma enorme mágoa nos invada a alma, onde teimosamente nos fica a impressão do que poderíamos ser…»

                É esta consciência de um enorme potencial incumprido que julgo que mais profundamente define os Açores e que, em boa verdade, define também o açoriano. É esta consciência do possível que falhou que mais caracteriza o seu histórico ao longo dos séculos e que, extraordinariamente ainda hoje se faz sentir e se reflete na nossa essência de nove rochedos perdidos no meio do grande mar Atlântico como se estivéssemos predestinados a uma grandeza que nunca conseguiremos realmente atingir.

Homem de inquebrantável vontade e inexcedível e incomparável visão, o meu bisavô multiplicou-se em atividades, desde a política, aos negócios, visando sempre o desenvolvimento e a prosperidade dos Açores. Depositou toda a sua esperança no Turismo, como motor primeiro do desenvolvimento e do crescimento económico da região e em especial da sua ilha, São Miguel, acreditando e trabalhando arduamente para que as Furnas, a maior e mais singular hidrópole da Europa e do Mundo, pudesse, de facto, ser o centro e a alma do Turismo dos Açores. Ele e uns poucos outros como ele construíram hotéis e casinos, fizeram brochuras e promoveram feiras, chamaram jornalistas e viajaram pelos centros sociais e económicos da América e da Europa divulgando as maravilhas da sua ilha. Foram tão longe como fundar uma companhia aérea para que os turistas não os sobrevoassem em moderníssimos jatos de ambição transatlântica e para que estas ilhas não se perdessem nesses traços de fumo branco pintados no ar sobre céu que nos envolve.  A SATA, contrariamente ao que hoje querem fazer crer, não foi feita para unir os açorianos, mas para unir os açorianos ao mundo, dando-lhes finalmente centralidade e modernidade e quebrando esses cinco pesados séculos de isolamento. Hoje, quase cem anos passados, os intelectuais do funcionalismo público, confortavelmente instalados no seu salário certo, e os oportunistas da esquerda mais retrograda e nacionalista, fazem petições contra o turismo de massas, desconhecendo, na verdade o que isso seja, o Turismo e as massas, e desconhecendo ainda que nem almoçar condignamente, numa tarde de Verão no Nordeste, se consegue. Numa região que não produz riqueza querem, por medos atávicos de fantasmas que não existem, matar um dos seus poucos sectores exportadores. Os Açores são e serão sempre esta fulgurância adiada, este provir irrealizável e intangível. O “que poderíamos ser…

                E, a questão, parece-me a mim, é exatamente essa. O que somos, verdadeiramente, se não tivermos um desígnio, um projeto, uma ambição comum e conjunta, que nos mobilize e identifique como povo que o quer ser? Como reconhecer essa açorianidade difusa sem mais matéria do que a bruma e o nevoeiro e os cinzentos de chuva e lassidão? Os americanos têm o sonho. Os franceses o orgulho, os ingleses o império da língua. Os italianos o culto da beleza. E os espanhóis, bem ou mal, têm a España que, contra ventos e marés, os agrega como nação compósita de várias nações e onde, se calhar, lá deveria estar, também, a nossa o que, infelizmente, por inépcia dos Filipes e pela audácia conjurada de uns quantos barões lisboetas, amedrontados pela magnificência madrilena, a defenestraram de arremesso para o chão térreo do Terreiro do Paço impossibilitando definitivamente essa grande Ibéria de romantismo anteriano. Portugal terá o quê? O Fado? O Cristiano Ronaldo? A Nossa Senhora de Fátima e os seus infantis pastorinhos? A Saudade, talvez possivelmente a língua? E, nessa ordem de razão, os Açores, então, o que terão? Geografia? Gente? Mar? Talvez, ou talvez não…

                O naturalista Arruda Furtado, que era um darwininano e que não consta fosse da família, uma das grandes figuras portuguesas do Oitocentos, entre a antropologia e a etnografia do açoriano, com tabelas de medição encefálica e tudo, que hoje fariam corar de vergonha os mais reputados cientistas sociais, arvorou uma pureza pátria insular, fruto de séculos de isolamento dos industriosos movimentos da modernidade continental, que dariam ao açoriano a duvidosa notabilidade de ser um português mais puro, mais verdadeiro se bem que mais tacanho e atrasado. Já no século XX, Luís da Silva Ribeiro tentará uma visão mais sebastiânica do tipo insular, classificando esse mesmo isolamento como uma proteção do açoriano, uma barreira conducente a um apuramento genético, se quisermos, dos princípios e ideais do português de Quinhentos. Resta saber se essa herança de uma “Ínclita Geração” mítica e camoniana não se desfez na própria epopeia que a gerou e se, nos Açores, o que ficou não foi a ferida aberta e traumática desse naufrágio pátrio de um Império que nunca verdadeiramente se materializou? No fundo, dos dois, o que fica é essa nota comum da distância, do supremo e imperioso isolamento e apartamento insular. O açoriano é no fundo um exilado do mundo e da história, preso na sua prisão de ilha, rodeado de mar por todos os lados, como uma trincheira intransponível e condenado pela eternidade às tempestades, e aos piratas, e outras calamidades náuticas de impossível superação. Provavelmente, só verdadeiramente realizável na diáspora, contrariando a sarcástica máxima do nosso amigo Daniel de Sá, da pior maneira de ficar na ilha ser sair dela…

                Depois há aquela questão, de que ninguém gosta de falar, que é a do povo e das elites, se é que isso existe por estes calhaus basálticos erguidos vulcanicamente por sobre o mar. O próprio Nemésio, quando se propõe a identificar os tipos diferentes de açorianos, dos quais distingue marcadamente três – o picaroto, o terceirense e o micaelense – remete principalmente para uma caracterização do tipo popular, das gentes da terra, de cabo de enxada, amanhando ao tubérculo, podando o pomar, pronto para saltar à canoa à saga da baleia. Intelectual só mesmo Antero, mas até esse superiormente inatingível, lá alto no Olimpo das Ideias. As grandes elites açorianas, terratenentes e alcandoradas na liteira dourada do morgadio, que tiveram o seu zénite na efervescência liberal e nos movimentos autonomistas, desvaneceram-se como espuma na praia do protetorado metropolitano. Sempre reivindicando, sempre de mão estendida, pedindo, incapazes de conquistar a sua própria alforria e autonomia. Não deixa, também, de ser despiciendo que os grandes nomes da riqueza insular sejam Hicklings e Dabneys e Bensaúdes e outros estrangeirados expatriados e não Camaras, Botelhos ou Cortês-Reais, de local e digníssima nobreza, mas incapazes de multiplicar riqueza…

                Hoje, então, nem se fala, que as elites já nem as há. Estamos entregues ao bulício enxameado do politico-partidarismo, com tudo o que ele traz de apoucamento da razão e da inteligência. O primado do mínimo denominador comum. A exaltação do oportunismo. Em quase cinquenta anos de autonomia a região pouco mais avançou do que meia dúzia de infraestruturas. A democracia do betão-armado, da engenharia civil em detrimento da evolução social e cultural. A monocultura da boçalidade e do servilismo de Estado. Acabámos com os distritos, mas fomos incapazes de gerar uma verdadeira identidade arquipelágica. Só agudizamos ainda mais um bairrismo bacoco, cheirando a mofo e a bafio, cheio de invejazinhas e birras de crianças reivindicando hospitais em cada ilha, escolas secundárias em cada concelho, portos oceânicos e aeroportos e um avião por dia em cada cidade e capelas funerárias em cada freguesia que o defunto da Covoada não pode ir velar para os Arrifes. Quase cinquenta anos de democracia e de Autonomia Administrativa, com Estatuto e Finanças, e a única coisa que conseguimos foi gerar nove açorianos diferentes, de costas voltadas uns para os outros. Mesmo lá fora, nesses outros Açores de abundância, de Lisboa ao Havai, do Brasil às outras Américas, todos são faialenses e terceirenses e ribeira-grandenses e mesmo portugueses antes de serem verdadeiramente, todos, açorianos. E a classe política, nem vale a pena…

                A questão é, voltando atrás, que me perco, onde está o nosso desígnio? Que projeto para a região, que não seja sorver, babando-se, da malga dessas novas especiarias dos euros bruxelenses? Que podem estes Açores ser que não seja só ser pobres e indigentes e coitadinhos com uma pitada, aqui e ali, de chico-espertismo charlatão sacando uns euritos ao erário publico em prol da vivenda assoalhada com piscina e o novo BMW elétrico que é chique ser verde, mas viajar só de avião, com cunha na SATA para ir de rabo numa executiva que não existe. Tudo à custa do ouro não já do Brasil, mas do próximo Quadro Comunitário de Apoio. Até ao dia em que lá, nos cubículos da Rue Joseph II número 30, algum jovem amanuense se proponha olhar com olhos de ver para a conta do deve e do haver da nossa mercearia insular.

                Para mim, e tenho-o muito claro, o caminho do futuro destas ilhas é o Turismo e o Mar. O Turismo como fonte económica de exportação, alicerçado na mais pura idiossincrasia insular que é a comunhão entre o homem e a natureza. E, deixem-se, por amor de Deus, dessas lamechices inúteis e irreais da natureza pura, ou viva, ou intocada e sustentavelsinha. A nossa natureza é uma de harmonia com a mão humana, a nossa natureza são seiscentos anos de virada das terras e de povoamento e de explosão de infestantes, da cana-roca e do novelão, e da criptoméria que viajou do Japão. A única coisa que ainda é verdadeiramente endémica é a carestia e precisamos de nos livrar dela e isso só será possível fazer com a porta aberta ao mundo, fazendo-nos respeitar, mas acolhendo com simpatia e esmero e orgulho na nossa condição de centro deste grande lago Atlântico que o futuro se encarregará de recolocar no centro do grande concerto das Nações. Os arautos da desgraça que veem no Turismo um cataclismo, esquecem que somos nós que mais destruímos, que conspurcamos e negligenciamos. Clamam por uma paisagem pristina quando nem sabem distinguir entre uma azorina e uma conteira. Falam de sustentabilidade quando fomos nós que deixamos ilhas inteiras serem comidas por infestantes. Ao final do dia, são os turistas os que mais se revoltam com a nossa barbárie endémica.

                Já o Mar será o petróleo do futuro. Dele virá energia e alimento e fonte de riqueza, de ciência e de cultura, e nós temos tanto mar que não o conseguimos ver como deve ser, ofuscados na sua imensidão de luz e agitação. Durante séculos os açorianos viveram de costas voltadas para o mar, amanhando a terra, temendo as desgraças e os desmandos do Oceano. O tempo virou, como se de um vento se tratasse, e falta virarmo-nos também para o oceano que nos rodeia, mas sem fitar sempre o horizonte, olhando mais devagar a orla costeira, as praias, as baias e as enseadas, percebendo os contornos, o desenho e a letra da maresia, a partitura cinzelada do mar. E abraçá-lo como uma amante no leito da praia…

                De todas as coisas que a nossa geração poderá deixar para os que vierem a seguir, talvez a mais importante seja essa visão de que não somos o centro do mundo para que ele nos venha salvar, mas que estamos no centro de um mundo, um mundo feito de água salgada e ondas e vida marinha, onde a própria humanidade anseia por mergulhar. O nosso legado deverá ser esse, de uns Açores transatlânticos, multioceanicos, argonáuticos e universais. Desconheço se o cumpriremos, mas todo o horizonte é um imaginário de sonho.

                Aquele forte e sentido abraço,

                Vila Franca do Campo, Agosto de 2022

                Pedro Arruda

Texto para a edição número seis da revista Grotta.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Clube de Leitura


Sessão na BPARPDL, a 12 de Dezembro, para uma leitura de “O Silêncio dos Livros seguido de Esse Vício Ainda Impune” de George Steiner e Michel Crépu, edição Gradiva, 2005

 O que é a civilização? Que traços a caracterizam e onde e quando é que ela começou é uma pergunta que tem ocupado historiadores, arqueólogos e antropólogos desde há, pelo menos, algumas centenas de anos.

Um episódio muito glosado, em especial nos memes da internet, é o da conhecida antropóloga americana Margaret Mead. Reza a lenda que quando questionada sobre qual o primeiro sinal encontrado de civilização esta terá respondido que seria um fémur cicatrizado com cerca de 15 000 anos descoberto numa escavação arqueológica. Este artefacto constituiria o primeiro sinal de uma sociedade civilizada pelo que testemunhava, desde logo, de cuidado e abnegação entre seres humanos. Uma fratura do fémur, o maior osso do corpo humano, levará, no mínimo, 2 meses, sendo que geralmente o tempo de cicatrização será de cerca de 4 a 6 meses, para uma recuperação completa. Nesse período é necessário repouso e imobilização o que coloca o paciente na completa dependência de terceiros para garantir a sua sobrevivência. Para Margaret Mead seria esta ideia de entreajuda e de cuidado, representada naquele osso humano cicatrizado, que, para além de indicar a transição de uma sociedade nomádica de caçadores recolectores para uma sociedade gregaria e organizada, que permitia, ela mesma, a realização desse mesmo cuidado, que separaria os hominídeos, ainda demasiado próximos do mundo animal, de uma humanidade civilizada. Embora não seja possível comprovar que, de facto, a famosa antropóloga americana, discípula de Franz Boas, um dos pais da antropologia moderna, e que ficou conhecida pelas suas teorias avançadas sobre a liberalidade sexual, que vieram a marcar os anos sessenta do século vinte, tenha realmente sugerido esta teoria a ideia em si não deixa de ter uma certa beleza poética que a torna extremamente cativante.

Na historiografia clássica o “berço da civilização” é colocado nas civilizações mesopotâmicas do crescente fértil sensivelmente 3 a 4 000 anos antes de Cristo, tendo como características fundamentais a já referida sedentarização, a agricultura e, principalmente, a escrita, como fatores distintivos essenciais. A escrita em pequenas tábuas de argila de carateres cuneiformes seria um dos elementos primordiais à existência da própria civilização, o que, não sem alguma ironia, fazem do grande “Épico de Gilgamesh” e da cobrança de impostos os primeiros sinais concretos de um mundo civilizado. No entanto, outros historiadores, em particular no âmbito da História da Arte, como H. W. Janson, por exemplo, têm sugerido, ao longo dos tempos, que se deve recuar bastante mais atrás para detetar provas de civilização, tão atrás como 25 a 30 000 anos, que é a data provável dos mais antigos artefactos artísticos feitos pelo Homem, no longínquo Paleolítico, encontrados até hoje. Em 1908, na região de Willendorf, na Áustria, a equipa do arqueólogo Josef Szombathy desenterrou, de um sítio do paleolítico superior uma pequena escultura antropomórfica representando uma mulher de seios fartos e ventre saliente, com cerca de 11 centímetros e esculpida em calcário, que ficou conhecida como a “Vénus de Willendorf”, por se supor que fosse um objeto de culto de alguma forma ligado à fertilidade e aos seus rituais. Esta pequena escultura representa, desde logo, a capacidade do Homem de passar da criação de utensílios próprios para a execução de tarefas básicas de sobrevivência como caçar, quebrar e lascar pedras e ossos ou apanhar frutas das árvores, por exemplo, para uma utilização ritual, baseada numa abstração imaginativa, já não meramente utilitária, mas ritualística o que lhe confere uma qualidade mais próxima do pensamento e da imaginação do que meramente da função e da luta pela sobrevivência.

Conforme nos explica Fernand Braudel na sua “Gramática das Civilizações” o termo civilização afirma-se em oposição à barbárie: «de um lado, os povos civilizados, do outro os povos selvagens, primitivos ou bárbaros.» Neste sentido, e é também o próprio Braudel quem o diz, civilização e cultura são, de certa forma, alegres companheiros na viagem da História, percorrendo lado a lado, como D. Quixote e Sancho Pança, a viagem temporal, o itinerário específico, que nos transporta desde os tempos primitivos das cavernas do paleolítico até aos grandes salões intelectuais da Europa moderna e contemporânea. Para Braudel as civilizações são um conjunto de manifestações culturais, societais, económicas, psíquicas, em interação umas com as outras e com o meio, físico, onde se inserem e que as rodeia, sendo que a religião, ou a mentalidade, é o “cerne das civilizações”. Como explica Braudel «em todas as épocas, há uma certa representação do mundo e das coisas, uma mentalidade colectiva dominante, que anima, penetra toda a massa da sociedade. (…) Quase sempre as civilizações são invadidas, submergidas pelo religioso, pelo sobrenatural, pelo mágico; sempre viveram aí, sempre aí foram buscar as mais poderosas motivações do seu psiquismo próprio.» A civilização é, assim, a capacidade de formulação de uma determinada ideia e conceção do mundo, uma projeção, talvez mesmo uma narrativa, do contexto e do lugar do Homem no Tempo e no Espaço, podendo, por isso, ser definida por um elemento singular e particular, diríamos que a partícula inicial, o bosão de Higgins de toda a civilização, que é – a Linguagem.

Se é difícil determinar a origem da civilização, é ainda mais ou, pelo menos, igualmente difícil, estudar e apontar a origem da linguagem, tanto que o problema foi apodado como o “mais difícil problema da ciência”, desde logo por ser impossível comprová-la com evidências, o pensamento e a sua formulação, em linguagem, são do domínio do etéreo, do transcendente, fora da materialidade concreta da evidência científica e da prova física. O Verbo, em boa verdade, não é fossilizável. De qualquer forma, mesmo perante este aparentemente intransponível obstáculo as teorias modernas mais consensuais apontam para que a linguagem tenha surgido em ligação estreita com o surgimento dos chamados traços da “modernidade comportamental”, um conjunto de formulações e características que distinguem o Homo sapiens atual dos restantes hominídeos, nomeadamente: a capacidade para o pensamento abstrato, a profundidade e complexidade do planejamento, o comportamento simbólico expresso pela arte, a ornamentação, a musica e a dança, e a tecnologia representada pelo fabrico de lâminas e outros tipos de utensílios para a caça e outras atividades, algo que, de acordo com a Teoria da Origem Recente Africana, terá acontecido no Paleolítico Médio, há sensivelmente 200 000 anos, no sul do continente africano. Muitos milhares de anos antes da escrita cuneiforme, dos primeiros papiros, de Homero, Ovídio, São Paulo e Santo Agostinho, Dante, Guttenberg, Camões, Cervantes, Shakespeare, Milton, Whitman, Proust ou Pessoa.

Perdoar-me-ão este relativamente longo introito, mas a ideia de um Clube de Leitura, congregado nos claustros monásticos de uma Biblioteca Pública, antigo convento jesuítico, e o simpático convite que me foi endereçado pela Dra. Iva Matos para que viesse animar uma das suas sessões, remeteu-me imediatamente, como um redemoinho do pensamento, para a importância dos livros e o seu valor e papel na História das Ideias e, por sinédoque, na História dos Homens ou, para usar a expressão de Braudel, na própria “Gramática das Civilizações”. Refletindo sobre a matéria veio-me imediatamente à mente o portentoso livro de Irene Vallejo, “O Infinito num Junco”, uma brilhante elegia pela leitura, pela literatura e, em particular, pelo objeto físico do livro e a forma como transporta em si, através do tempo e do espaço, dos rolos de papiro aos codex medievais e aos milhares de paperbacks vendidos hoje nas lojas dos aeroportos, a luz da Linguagem. Não querendo sobrecarregar os membros deste Clube com uma tarefa tão árdua e dramática como a de ter de consumir as suas mais de 400 páginas em poucos dias, veio-me à memoria um outro livro, um pequeno opusculo de George Steiner, que li há já quase vinte anos, intitulado “O Silencio dos Livros” que é, então o, tomo que vos sugiro aqui.

Escrito originalmente em 2005, como um artigo para a conceituada revista francesa “Esprit”, com o título “O Ódio ao Livro”, este curto ensaio, cujo tema principal é a inata fragilidade do livro e da leitura, não só pela sua vulnerabilidade ao tempo e aos seus desmandos, como, também, pela permanente ameaça que o próprio Homem impõe sobre as ideias, das quais os livros são os principais portadores, “O Silêncio dos Livros” acaba também por ser, e é esta a ideia que gostaria de partilhar e discutir convosco, uma ode ao mais profundo e ancestral património da Humanidade e da Civilização, de todas as civilizações, que são o pensamento e a linguagem e a sua expressão mais pura, que é – a Oralidade. Como nos diz Steiner, numa imagem, julgo eu, particularmente feliz «a escrita constitui um arquipélago na imensidade oceânica da oralidade humana.» De certa forma, esta mesma reunião, de um Clube de Leitura, onde um grupo de pessoas se sentam em círculo, em redor de uma mesa ou, imaginemos nós, em torno de uma fogueira, para falar sobre um livro, está mais íntima e ancestralmente ligada aos primórdios da civilização humana do que com o surgimento desse objeto a que chamamos livro. Uma espécie de regresso fictício ao mais profundo mistério das cavernas primordiais onde a chama do imaginário ilumina as sombras do pensamento. Ainda citando Steiner «(…) os mais antigos fragmentos datados da Bíblia dos Hebreus são tardios, muito mais próximos do ‘Ulisses’ de James Joyce do que das suas próprias origens, que se relacionam com o canto arcaico e a narrativa oral.» Ou seja, embora a principal preocupação de Steiner ao escrever o seu ensaio fosse as ameaças contemporâneas, cuja genealogia histórica nos aponta ao longo do texto, ao livro e à leitura, “O Silêncio dos Livros” acaba, também, por ser um cântico de esperança pela sobrevivência da literatura, seja ela ficcional ou ensaística, pela via da sempre presente, e eterna na eternidade do Homem, oralidade que se sustenta no pensamento. «A escrita – e não vale a pena determo-nos nos diferentes formatos que o livro foi assumindo», isso fará, e de forma brilhante, Irene Vallejo em “O Infinito num Junco”, «configura um caso à parte, uma técnica específica de entre um todo semiótico maioritariamente oral. Milhares de anos antes do processo de desenvolvimento de formas escritas já se contavam histórias, já se transmitiam por via oral ensinamentos de caracter religioso e mágico, já se compunham e se transmitiam formulas encantatórias de amor, ou então anátemas.» Embalados pelo ritmo pulsante do coração humano, ou pelo passo cadenciado da migração, do pé ante pé da caminhada humana, os primeiros homens compuseram cânticos e criaram poemas e partilharam em canções e histórias «sentimentos e significações.» Como nos diz Steiner: «A maior parte das pessoas não lê livros. Porem canta e dança.» Ou, de forma ainda mais contundente e, quiçá, irónica: «a nossa herança intelectual e ética, (…) vêm-nos de Sócrates e de Jesus de Nazaré. Nenhum deles, contudo, fez questão de ser autor e muito menos de ser publicado

Não pretendo ser mal interpretado ou tido como deselegante nesta apologia da oralidade num lugar de silêncios, uma Biblioteca. Tal como Steiner, também eu, nutro um amor puro, como certamente todos os membros deste Clube, pela leitura e pela sua mais direta forma de consumação, que é o livro. Mas, talvez o mais importante a reter, neste tempo de rápida e asfixiante digitalização e de cada vez maior domínio das linguagens imagéticas em detrimento da escrita e da leitura, é que na antecâmara da literatura e na génese da escrita está a capacidade inata do ser humano de criar e formular ideias e palavras e que essa será sempre a base de toda a civilização. Tão, ou mais importante, do que o instrumento da comunicação, seja um livro, um texto, ou uma imagem e um som, é a comunicação em si, a troca e a partilha de ideias, sensações e emoções, que são a essência do Humano. E, que se consubstanciam em reuniões e lugares como este.

Como pai sou confrontado constantemente com o alheamento das minha filhas face à leitura, os livros são para elas um objeto entediante, quase arcaico, incapaz de lhes conquistar a atenção face à atratividade e enleamento das imagens, seja nos telemóveis, nas redes sociais, ou na TV, os filmes, ou as séries da Netflix. Recentemente até a Escola aboliu para a minha filha mais velha, com apenas 13 anos, os manuais escolares, que eram ainda a única e solitária forma das crianças lidarem, no seu dia-a-dia, com o papel e as folhas e as páginas impressas, acentuando-se assim, ainda mais, o distanciamento dos jovens com o texto, a escrita e, essencialmente, o tempo e o esforço da leitura. Aquela relação íntima e simbiótica entre o leitor e o texto e deste com o escritor que Steiner descreve como «o texto implica, entre o autor e o respectivo leitor, a promessa de um sentido.» A aproximação à Verdade, que se esvai assim no desenrolar hipnotizante das imagens nos ecrãs luminescentes que nos rodeiam ofegantemente.  

Porém, como nos explica Steiner e Irene Vallejo, também, as ameaças ao livro sempre existiram, caminharam, aliás, lado a lado com a criação de grandes Bibliotecas, com os seus exércitos de escribas, ou copistas e tradutores. Do outro lado da mesma moeda os incêndios, as cheias e a loucura ou a raiva dos homens acentuaram sempre a fragilidade e perecibilidade dos suportes escritos das palavras. Desde os conquistadores muçulmanos de Alexandria, aos militares sérvios que bombardearam a biblioteca de Sarajevo, passando pelos censores, o Index Librorum Prohibitorum da Inquisição, ou passando ainda pelos extremistas ideológicos do nazismo ou do estalinismo, ou até mesmo das fatwas estéticas e filosóficas que ditaram, de uma forma ou de outra, ao longo da História moderna, o fim do diferente e a destruição do inimigo, fosse ele um escritor ou um livro. Como diz Steiner: «ao longo da História, os livros foram sendo sempre lançados para a fogueira.» E, com eles, alguns escritores também.

A este propósito permitam-me que resgate da memória, “a mãe de todas as musas”, outra obra fundamental. «Queimar era um prazer», é com estas palavras que Ray Bradbury começa o seu sensacional e talvez presciente romance “Farenheit 451” – «a temperatura a que um livro se inflama e consume…» Embora muito marcado pelo ambiente político do seu tempo, publicado em 1953, o subtexto do romance é uma critica à censura ideológica e política do Macarthismo, o romance é, também, um hino à literatura e ao papel fundamental dos livros na perpetuação de uma certa ideia de Humanidade. Montag, a personagem principal do livro, é um bombeiro, numa inversão metafórica do próprio sentido, cuja missão é queimar livros. Numa sociedade distópica em que os livros são considerados inimigos da felicidade e onde os resistentes, os excluídos, os ostracizados, se tornam eles próprios livros-humanos guardando na sua memória os textos mais adorados.  Alguém é “A Republica” de Platão, outro “As Viagens de Gulliver”, Montag poderá tornar-se “O Livro de Eclesiastes”, tal como outros serão Aristófanes, Ghandi, Confúcio, Marx, Thomas Jefferson, ou Mateus, Marcos, Lucas e João. «Somos igualmente incendiários de livros. Lemos os livros e queimamo-los, com medo que alguém os descubra. (…) O melhor será guardar tudo na memória, onde ninguém irá procurá-los. Somos todos constituídos por pedaços, extractos de história, de literatura, de direito internacional, Byron, Tom Paine, Maquiavel, Engels, Cristo, tudo está registado.» Há algo de profundamente maravilhoso e poético nesta ideia de cada pessoa ser um livro, de cada um de nós poder, não só, guardar dentro de si a memória de um livro, como, também, de ser pela sua vida e através da oralidade um outro livro a partilhar com os demais. Será essa, no fundo, a verdadeira eternidade da literatura, muito para lá da morte física do livro enquanto matéria, a sua eternidade na memória, seja ela individual ou coletiva e na forma como a literatura se imiscui na própria intertextualidade do tempo, no “ar do tempo”, e no “inconsciente colectivo” para usar a formulação de Carl Jung, em que todos vivemos.

Regressando ao “Silêncio dos Livros”, no outro ensaio que acompanha Steiner, o ensaísta francês Michel Crépu remete-nos para Proust e o seu gargantuano “Em Busca do Tempo Perdido” e indica-nos que «existe um caminho que leva do jardim de Combray ao triunfo da Arte sobre a morte.» Em “Esse Vício Ainda Impune”, Crépu, resgata a obra, com o mesmo título, do escritor modernista francês Valery Larbaud e a sua teoria de como a literatura é, tal como para o narrador de Proust, que ambiciona tornar-se escritor, uma porta para a eternidade, uma via de superação sobre a própria morte. O gigantesco romance de Proust tornou-se num dos mais significativos livros do nosso tempo encerrando nas suas mais de 3 200 páginas divididas em 7 volumes os múltiplos significados e singularidades da vida humana. Uma grande pintura, um fresco, daquilo que é “A Condição Humana” como lhe chamaria Hannah Arendt numa fixação autoral e autorizada que só os grandes criadores são capazes de fazer.

Harold Bloom, um dos mais importantes críticos literários do nosso tempo, criou a teoria da “Angústia da Influência”, que sugere que em cada momento, cada grande escritor, se encontra em luta com os seus predecessores e sucessores numa luta interior pela primazia no cânone literário. Para Bloom é Shakespeare o vértice superior desta pirâmide de criação literária sendo ele o mais inventivo e completo escritor da história, Bloom irá mesmo ao ponto de considerar Shakespeare o “inventor do humano”. Ora, nesta batalha da angústia da influência os escritores debatem-se não só com as suas próprias leituras, mas também com a literatura como um todo, como um imenso corpo sobrenatural, um monstro ou uma estrela de luz eterna, conforme a perspetiva de cada um, mesmo a que há-de vir, que ainda se esconde nas sombras do futuro, pressupondo quase uma leitura subconsciente, numa visão jungiana, que está presente na matéria impalpável da imaginação, num reino para lá da matéria e acessível apenas pela pena do pensamento e, possivelmente, do canto doce da oralidade ou da escrita. É também isso que, de certa forma, nos sugere Crépu na omnipresença cultural de um romance tão vasto e assoberbante como o “Em busca…”, que poucos hoje terão a disponibilidade e, ironicamente, o próprio tempo para ler, mas que faz parte, assim mesmo, da nossa herança cultural coletiva. Hoje essa ambição transcendente do escritor de abarcar a totalidade da vida é representada pela obra do escritor norueguês Karl Ove Knausgard, um enorme épico de 6 volumes e, também, mais de 3 000 páginas intitulado “A Minha Luta”, onde Knausgard conta, ficcionada ou não, a história da sua vida partindo do momento em que a escreve, aos 40 e poucos anos, entre os anos de 2009 e 2011.

No fundo, o amor pelos livros é tão só um instrumento para a árdua tarefa da Vida, uma enxada para lavrar o solo fértil do pensamento onde germinam e crescem as flores da imaginação e da poesia e que invade, como um odor que se espalha por um campo florido levado pela brisa primaveril, o espírito e a mente de leitores e não-leitores e todos os tipos de escritores. O que nos sugerem Steiner e Crépu, o que Vallejo descreve com inigualável mestria, o que liga como uma argamassa de éter o cânone de Bloom, é essa magia que se transporta e que nos transporta entre a Vida e a Arte, entre o real e a ficção, e que tem nos livros a sua barca, as suas velas, o seu navio velejando no oceano não já só da oralidade, mas da linguagem e do pensamento.

Em 1994, aos 71 anos, Jorge Semprún, então já um aclamado romancista, guionista e intelectual franco-espanhol publica, nas prestigiadas edições Gallimard, e como são importantes as editoras e os editores, os bons editores, um livro intitulado “L’Ecriture ou la Vie”, uma espécie de objecto híbrido entre a memória autobiográfica, o romance ficcional e o ensaio histórico, escrito na primeira pessoa, sobre a passagem de um homem, ele próprio, pelo mais profundo campo do horror e da morte – o campo concentracional nazi de Buchenwald. Filho de um diplomata, vivendo em Paris, membro do partido comunista e da resistência francesa, em 1943 Semprún é denunciado e preso pela Gestapo sendo transferido para o campo de concentração de Buchenwald, no centro oeste da Alemanha a poucos quilómetros da bela Weimar de Goethe e aonde ficará detido até 1945 quando as tropas de Patton libertarão os prisioneiros sobreviventes do campo. “A Escrita ou a Vida” é um relato da batalha de um escritor com a morte, não apenas a morte concreta e omnipresente do campo de concentração, mas a morte metafísica da escrita num lugar sem livros, sem leitores, onde a escrita é apenas mental e a leitura memória e oralidade e desejo, ou sonho, se é que é possível sonhar na escuridão das «sombras impassíveis e mudas» dos que já não vivem. Em todo o livro, por onde de certa maneira, passam também todos os outros escritores com que Semprún se debate na sua angústia blooomiana, de André Gide, a Cesar Vallejo, de Bakunine a Goethe, de Proust, sempre Proust, que Semprún também confessa que não leu, que nunca precisou de o ler porque o conhece intimamente, como se de um familiar se tratasse, há uma teia de pensamento e de memória, um encadear sucessivo da matéria da história que liga Semprún, que nos liga a todos, desde a origem da própria História, da Itaka de Ulisses aos pedintes de Brecht ou aos clássicos de Italo Calvino, num ensejo de superar a própria morte.

Steiner, tal como Semprún e Harold Bloom, são representantes últimos de uma espécie em vias de extinção, a do grande intelectual europeu e ocidental. Homens de uma craveira e erudição acima da média, com vidas inteiras dedicadas à academia, à vida pública e, principalmente, à leitura, baseando a sua participação cívica numa profunda humanidade construída nas fundações da tradição cultural e civilizacional judaico-cristã. Curiosamente, os três nasceram na década de vinte do século passado e viveram as agruras dessa Era que o historiador inglês, Eric Hobsbawm, chamou “dos Extremos”. George Steiner, nascido em paris em 1929, filho de uma família de judeus austríacos, com o alvor do nazismo, Steiner emigra, com a sua família, para os Estados Unidos da América, onde viria a fazer a sua carreira como ensaísta, critico, filósofo e professor de línguas e literaturas nas mais prestigiadas universidades americanas e europeias. De entre a sua vasta obra destacam-se volumes como: “No Castelo do Barba Azul”; “Gramáticas da Criação” e “Lições dos Mestres”. George Steiner faleceu em 2020 aos 91 anos. Harold Bloom, também ele de origem judaica, nasce em Brooklyn, Nova York em 1930 e viria a falecer, com 89 anos, em Outubro de 2019, escassos cinco meses antes de Steiner. Considerado o mais importante e proeminente critico literário do seu tempo Bloom dedicou toda uma vida ao estudo e divulgação do cânone literário ocidental, um grande corpo literário, que para Bloom, constituía a base da nossa cultura e civilização. Tal como Steiner, Bloom foi um dos mais fervorosos contestatários do politicamente correto e daquilo a que chamou “as escolas do ressentimento”, assinalando com particular acutilância a ameaça que essa ditadura das ideologias minoritárias apresenta para a cultura liberal ocidental baseada nos pilares da liberdade individual e da tolerância.  Jorge Semprún o mais velho dos três, nasceu em Madrid, em 1923, no seio de uma família abastada de políticos e diplomatas espanhóis. Com uma vida dedicada à política, à literatura e ao cinema, foi membro ativo desde 1942 do partido comunista espanhol, desafiou o franquismo e o nazismo, viria a ser Ministro da Cultura de Espanha, entre 1988 e 1991, no segundo Governo de Felipe Gonzalez. No cinema colaborou como argumentista em mais de uma dezena de filmes com realizadores como Alain Resnais, Costa Gravas e Joseph Losey. “A Grande Viagem” foi o seu primeiro romance e o mais aclamado, escreveria mais cerca de vinte livros dos quais “O Regresso de Netchaiev”; “Autobiografia de Federico Sanchez” e “O Adeus de Federico Sanchez”, o seu nome na clandestinidade, e “A Escrita ou a Vida”, são os mais significativos. Semprún morre em Paris, em 2011, com 88 anos. Jorge Semprún foi me apresentado pela minha avó materna, Leonor Arruda, que era, ela própria, uma leitora avida e insistente, apreciadora de vários géneros, da prosa à poesia, e, por força do coração, fora casada com um espanhol, uma devota apaixonada pela literatura de España.

Os livros, como toda a Arte, são pequenas perolas de pensamento no oceano da vida, frágeis e humanas tentativas de superar a eternidade da morte. Mas, tal como para Proust, ou Semprún, tal como para Steiner, ou para cada um de nós, tal como para mim que agora aqui escrevo estas palavras, ou para as minhas filhas que no futuro encontrarão outras forma de leitura, o que fica, o que é verdadeiramente importante, e que nos separa da barbárie que se esconde nos calabouços selvagens da alma, são as ideias, a luz e a estrela do pensamento e da linguagem, é esse o fio de Ariadne que nos guia no labirinto da civilização, desde há milhares e milhares de anos, até um futuro que outros ousarão imaginar e conhecer. Porque se “a memória é a mãe das musas” é a imaginação que dá à luz o Verbo. E, nós, leitores e escritores, livros e amantes dos livros somos os guardiões, os bibliotecários, dessa infinita Luz que deu e dá origem a tudo…

Pedro Arruda

Vila Franca do Campo, Dezembro de 2022

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Para uma História do Surf (e do Bodyboard) nos Açores

Apontamentos e Memórias 

Quem, há vinte ou trinta anos atrás, poderia imaginar que, um dia, seria possível? Para os mais antigos, como eu, aquele é e será sempre o “Pico da Ganza”. Aquele cantinho, aquele morro, aquelas ondas, eram uma espécie de refúgio escondido aonde acedíamos sob risco da própria pele, perseguidos por cães de fila, os pneus dos carros furados e rendeiros furiosos perseguindo-nos como se fossemos invasores. Só chegar ao “Pico da Ganza” já era uma realização plena da rebeldia e da inquietação punk do surf nos anos 80 e 90. O risco, o estar fora da lei, não olhar a meios, ou a ameaças, para cumprir o chamamento das ondas, das boas ondas. Uma quase libertinagem aquática e oceânica movida pelo prazer dos tubos e de deslizar naquelas ondas isoladas e desconhecidas.

Naquele tempo os Açores eram uma entidade inexistente no universo mundial do Surf. Não havia fotógrafos. As revistas chegavam com meses de atraso. As fotografias eram todas do Havai, da Califórnia, do Brasil ou de França. Os destinos eram todos distantes e exóticos, a Austrália, a Indonésia, nem sequer as Fiji, ou o Taiti, eram ainda conhecidas. Agora, o distante e exótico somos nós. E, o nosso velho “Pico da Ganza” é cartaz promocional de uma marca de pranchas de Bodyboard, com distribuição planetária. Aquilo com que nós sonhávamos, há tantos anos atrás, olhando as fotografias de outros mares e outras ondas, em oceanos diferentes do nosso, hoje, algum miúdo igual ao que fomos então, sonha ser surfista, ali, dentro de um tubo, no “Pico da Ganza”. Quem, então, haveria de dizer…

Por isso, a pergunta, então, que fica por fazer é esta: como foi possível esta evolução de 180 graus, num curto espaço de 20 anos? Como, numa região historicamente virada de costas para o mar, os desportos de ondas, Surf e Bodyboard, conseguiram esta projeção e esta relevância no seio da sociedade açoriana, influenciando decisões políticas e fazendo parte do dia-a-dia de tantas famílias e da própria sociedade açoriana e captando o interesse e a atenção do mundo do Surf um pouco por todo o globo?

Dizem-nos, os compêndios e os manuais de historiografia, que o tempo das gerações é medido em décadas. 25 anos, sensivelmente, é a duração e a mudança entre cada geração. Porém, nesta história que aqui me interessa contar o tempo mede-se em verões e as gerações mudam em dias de praia, de sol e de ondas. Em períodos de swell, ritmos de ondulação, manobras, histórias e experiências. Tudo aquilo que compõe uma vida, no fundo, que é feita de instantes e singularidades, como o primeiro take-off, o primeiro drop, o primeiro tubo, a primeira vez naquela onda inóspita e nunca antes surfada.

Não existem registos escritos sobre os primórdios longínquos do surf nos Açores. Não tivemos um Capitão Cook, nem havia aqui um outro tipo de polinésios, que escrevesse nas crónicas a agitação das ondas nas praias, baías e enseadas destas ilhas atlânticas nos idos de quinhentos. O Surf, aqui, é um fenómeno moderno e é, essencialmente, um filho da baleação. Embora ainda não esteja comprovado, por um estudo aprofundado, de fontes coevas, é seguro dizer-se que o Surf, ou essa ideia e gesto de correr vagas com auxílio de um objeto de madeira, terá, possivelmente, aportado aos Açores, Madeira e Cabo Verde, pela mão dos baleeiros do séc. XIX.

Começando a partir dos anos 30 do séc. XIX, e ao longo de toda a época de ouro da baleação americana, os grandes navios baleeiros partiam da costa este dos EUA, nomeadamente dos portos de Nantucket e New Bedford, em grandes viagens anuais de circum-navegação, que os levavam a cruzar o Atlântico e o Pacífico, em busca de caçar os grandes cetáceos e na procura de óleo, gordura e espermacete. Nessas viagens, era frequente a recolha de marinheiros originários das ilhas tendo, assim, muitos açorianos, madeirenses e cabo-verdianos chegado ao Havai levados nessas longas rotas da baleação. De igual forma, muitos americanos se fixaram nos Açores como agentes de navegação, dos quais o exemplo maior e mais significativo é, sem dúvida, a família Dabney, que se sediou na Horta.

No final do século dezanove, entre 1878 e 1887, dá-se uma grande leva de emigração açoriana e madeirense para o Havai. Famílias inteiras são contratadas pela Hawaiian Sugar Planters Association para trabalharem nos campos de cana-de-açúcar, muitos deles levando mulheres e filhos e fixando-se permanentemente nesse arquipélago do pacífico. Estima-se que neste período cerca de 10 500 portugueses se fixaram nas ilhas havaianas, até cerca de 11% da população do Havai, pelo ano de 1910, ser de ascendência portuguesa. Os portugueses, apelidados de “Pukiki” pelos nativos havaianos, levaram consigo várias tradições que, ainda hoje, se mantêm e fazem parte da cultura popular do Havai, como as “malassadas” ou o culto do “Espírito Santo”, ainda hoje celebrado, no início de maio, em vários pontos dessas ilhas do Pacífico.

O nosso cavaquinho, um instrumento originário do Minho e historicamente muito popular entre os marinheiros, por ser maneirinho e fácil de transportar, é o pai do famoso Ukelele havaiano e é seguro dizer-se que terá chegado ao Havai, precisamente, pela mão dos marinheiros portugueses das escunas baleeiras de novecentos. É, aliás, esta correlação de causas e efeitos que nos permite dizer que esses mesmos marinheiros terão tido contacto com a prática do surf no Havai, nesse tempo, e que poderão, talvez, ter trazido a mesma para as ilhas atlânticas.

Nos anos 80 do século passado era costume ver miúdos a apanhar ondas, carreiras, em pranchas improvisadas de esferovite ou em pequenas canoas, quase caixas, feitas de madeira ou de lata, no centro da baía de Rabo de Peixe. Ao que tudo indica, e pelo que era relatado pelos próprios, essa era uma prática passada entre gerações, anterior mesmo aos primeiros surfistas das ilhas. Esses relatos permitem pressupor que entre os homens do mar haveria esse conhecimento e essa tradição do divertimento nas ondas com recurso a algum tipo de “pranchas”, um conhecimento passado ao longo dos tempos, de geração em geração. Não é, portanto, inverosímil pressupor que este estreito contacto entre os povos dos dois arquipélagos, dos dois maiores oceanos, tenha levado a trocas culturais e que algum emigrante açoriano possa ter trazido, de volta, essa tradição havaiana de correr vagas de mar com o auxílio de uma prancha.

Também é possível especular que as duas grandes guerras mundiais terão trazido surfistas aos Açores. O Surf moderno tem a sua primeira expansão após os jogos olímpicos de 1912, com as tournées mundiais do campeão olímpico de natação, o havaiano Duke Kahanamoku, que popularizou o desporto, por vários países, fazendo demonstrações documentadas de surf na Califórnia, na Austrália e no norte da Europa. Durante a 1ª guerra mundial, a marinha dos EUA teve uma importante base militar na cidade de Ponta Delgada, entre 1917 e 1919, Naval Base 13 – Mid-Atlantic Naval Base Ponta Delgada, com o seu comando naval na antiga residência do Cônsul Hickling, também ele um americano radicado nos Açores, na freguesia de São Pedro, comandada pelo Almirante Herbert Owar Dunn.    

Natural de Rhode Island, Dunn era amante dos desportos náuticos, nomeadamente da vela, e podemos imaginar os marinheiros americanos a disfrutarem, nos seus momentos de lazer, das praias e das ondas das Milícias e do Pópulo, em pranchas de madeira improvisadas.

O mesmo poderá ter ocorrido durante a segunda guerra mundial, nas ilhas de Santa Maria, entre 1941 e 1945, período em que o Governo Português assinou um acordo de cedência militar, com o Governo americano, visando a cedência do aeroporto para missões de defesa do esforço de guerra dos aliados, e Terceira, na Base das Lajes, a partir de 1943, com varias centenas de militares e aviadores americanos ai estacionados, muitos deles originários da Califórnia, onde, por essa altura, o Surf era já um desporto popular e em franco crescimento.

Nos quarenta anos que mediaram entre a segunda guerra mundial e os anos oitenta o Surf nas ilhas terá sido uma atividade maioritariamente de turistas e de alguns, muito poucos, entusiastas. Velejadores e marinheiros terão certamente trazido pranchas e experimentado as ondas açorianas. Rusty Miller, o famoso e reputado surfista californiano, cruzou o Atlântico nos anos 50, num navio-escola, e passou nos Açores, embora, de acordo com o seu próprio relato, não tenha aqui surfado, mas outros como ele poderão tê-lo feito. Pedro Martins de Lima o “primeiro” surfista português, viajava regularmente aos Açores na mesma altura, para velejar, fazer caça submarina e, quem sabe, apanhar ondas com o seu amigo Leo Weitzenbaur. E, claro, temos a história épica do Carlos “Garoupa” Medeiros que, no final dos anos 40, construiu, ele próprio, uma prancha de madeira de criptoméria, inspirado pelos filmes de Hollywood do Cine-teatro Vilafranquense e surfando, solitário, as inchas no baixio sob o olhar atento e imponente do Ilhéu de Vila Franca do Campo.

Ao contrário do que se poderia pensar o conceito de lazer é extraordinariamente recente na história da humanidade. A ideia de tempo livre só entrou no léxico civilizacional há sensivelmente cento e cinquenta anos com o advento da revolução industrial e a libertação da força de trabalho. Até lá as atividades humanas, para além de comer e dormir, eram ocupadas em funções ditas reprodutivas como caçar, cultivar, transformar, comerciar, aprender, entre outras ocupações estritamente funcionais e utilitárias. Não fazer nenhum é uma conquista moderna, aliás, inscrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu Artigo 24, em 1948, se bem que, e infelizmente, tenha muito pouco de realmente universal.

Da mesma forma, o ato de desfrutar da orla marítima, de gozar a praia, o oceano e as ondas, também só entrou nos hábitos sociais do mundo ocidental no virar do século dezanove para o século vinte. “As Praias de Portugal, guia do banhista e viajante”, de Ramalho Ortigão, teve a sua primeira edição em 1876 e seguia a então moderníssima tendência de incentivar a descoberta e usufruto da vida à beira-mar como fonte de saúde, de bem-estar e de saudável ocupação do tempo livre. Ir a banhos, como então se dizia, era para Ramalho Ortigão algo tão chique e moderno como é para nos hoje comer sushi por encomenda entregue pelo estafeta da Glovo.

Tirando o Havai e outras ilhas do Pacífico, a ideia de tirar prazer de uma atividade no mar era absolutamente estranha para todo o Ocidente. O mar era local de faina, de gesta e de labor, ou aventura. O oceano era mais um local de perigo do que de conforto, ou de alegria. O Adamastor em oposição à Ilha dos Amores que era, como o próprio nome indica, uma ilha. Terra firme e segura e luxuriante. Só no século XX o ocidente descobriu o encanto e o chamamento das ondas e a arte de ser levado por elas, ou de se levar com elas.

A minha primeira onda foi na praia do CDS, na Costa da Caparica, algures pela primavera/verão de 82 ou 83, numa prancha Suntalon do Rodrigo Carmona. Lembro-me dessa carreirinha como se fosse hoje, em linha reta desde o outside até arrojar, como um cetáceo, na areia. A paixão, que logo se transformou em vício, foi instantânea e levou a que numa Nauticampo, poucos meses depois, os meus pais me comprassem uma Atunas, azul com quilhas aparafusadas e gráficos coloridos no deck.

Comparativamente, a Atunas era um míssil ao lado da Suntalon. Com os seus rails curvos, crescent tail e nose curto, ao lado do formato charuto das Suntalon, a minha Atunas fazia-me acreditar ser um exímio corredor de vagas. No entanto, ambas eram iguais na tortura cutânea. Os decks picotados e as horas infindáveis que passávamos na água provocavam chagas profundas e dolorosas nos nossos peitos imberbes e infantis. Aqueles primeiros verões, imersos em felicidade e água salgada, foram o meu ato iniciático na religião das ondas. Para alguém, como eu, que não acredita em Deus o mar tornou-se, desde então, na minha única fé.

Um ou dois anos depois uma apendicite aguda levou-me ao bloco operatório do Hospital Santa Maria, o resultado foi a remoção do apêndice e, a minha mãe, pesarosa, ofereceu-me, em jeito de recompensa, uma Morey Boogie Mach 7-7 e um fato O’Neill, um short-john, denominado O’No, que era lindo de morrer, azul-marinho e verde-água, mas perfeitamente inútil nas águas geladas das praias do litoral de Lisboa, não que isso me preocupasse, que a vontade e a excitação de estar na água era tanta que o frio era uma coisa que não se me assistia. Para além do Rodrigo, também fazia parte desse grupo das primeiras surfadas o atual Ministro da Cultura, o Pedro Adão e Silva, os dois bodyboarders arrependidos que cedo, como São Pedro fez a Jesus, renegaram as suas pranchas, o Pedro tinha uma BZ stinger, se não me engano, e abraçaram o Surf, que era uma forma mais exigente, mais endinheirada e mais amiga das miúdas, de apanhar ondas. Eu, provavelmente por ser mais remediado, ou mais preguiçoso, deixei-me ficar pela arte dos el rolos e dos 360…

E depois, metem-se as férias, nos Açores, nos fluorescentes anos 80…

De todas as coisas que o 25 de Abril de 74 deu a Portugal, e foram muitas, e foram importantes, talvez a menos óbvia seja dizer que lhe deu a primeira verdadeira geração de surfistas nacionais. Se bem que, se tivermos em conta aquilo que o Surf representa de liberdade e afirmação pessoal, então, até fará sentido a ligação à Revolução dos Cravos. Até à revolução a evolução do Surf em território continental fez-se muito à imagem do que foi a sua evolução nas ilhas, ou se calhar até em menor escala e a um ritmo mais lento do que nas ilhas, vivendo da influência de viajantes, turistas e outros nómadas, hippies dos anos 60 e 70, na sua maioria americanos e australianos, com o ocasional francês, que corriam a costa portuguesa em busca de um sentido para a vida e no entretanto, enquanto o destino não aparecia, iam apanhando umas ondas. Eram esses viajantes que iam deixando, aqui e ali, umas pranchas, alguns ensinamentos e muitos sonhos nas cabeças dos poucos jovens surfistas portugueses.

Com o 25 de Abril, e acima de tudo com a partida para o Brasil de um número significativo de crianças e jovens, fugidos com as famílias às incógnitas do PREC, e ainda mais com o regresso desses jovens a Portugal cheios do sal, do samba e do espírito de Ipanema, é que nasceu, em pleno, o Surf em Portugal. De igual modo, nas ilhas, é esse contacto com o exterior, com a América, também com o Brasil e principalmente com o continente, Lisboa nomeadamente, que se dá a génese do Surf no arquipélago. São miúdos cujas famílias tinham contacto direto com o exterior que vão trazer não só os materiais, pranchas, fatos e outro tipo de equipamento, mas a cultura e o espírito do Surf para os Açores.

Partindo do início dos anos 80, quando eu comecei a surfar, aqui em São Miguel já havia uma meia dúzia de surfistas. O Carlos Gouveia, mais conhecido como “Perna”, um terceirense naturalizado micaelense, que surfava todos os tipos de mar com a mesma bonomia e que conseguia a coisa espantosa de ter uma namorada, mais tarde sua mulher, que aguentava horas e horas, sentada no carro, a ler, à espera dele enquanto ele surfava Rabo de Peixe clássico. Para quem conheça ou consiga imaginar o largo em frente à igreja de Rabo de Peixe em meados dos anos oitenta percebe que este é em si mesmo um feito digno de registo. O “Perna” tinha um irmão que por brincadeira apelidamos de “Braço”. O Marco Sousa e o Armindo, dois homens da vela que por isso, julgo eu, se aproximaram do Surf. O Marco depois foi também parapentista e sempre que me via, fosse onde fosse, perguntava “o que é que fazes aqui”, como se ficasse sempre espantado de me ver. Foi com o Marco e o Armindo que surfamos, pela primeira vez, nos areais de Santa Bárbara, que na altura era uma praia sem areia fruto da apanha ilegal de areia para a construção civil. Estes eram os mais velhos, por terem sensivelmente mais 10 anos do que nós.

Fazem ainda parte desta primeira geração, se assim lhes podemos chamar, o Henrique Areias. Os irmãos "Violante" Pedro e o Manuel Medeiros. O Paulo “Sagão” Ramos. O Francisco Cabral de Melo. O Paulinho “Picuruta” Santos. O Rigoberto Oliveira. O Miguel Read. Bruno Brum. Guy Costa. O Rui Horta Santos. E, o João Carlos Fraga, no Faial e o João Monjardino, na Terceira.

Depois, havia os da nossa idade. O Zé Albergaria, os irmãos Valdemar, Pedro e “Valdinho” Bettencourt d'Oliveira. O Pedro Neves. Luis Paiva. O Joao Brilhante e o Miguel “Fru”. O Paulo “Gadelha” e os “Romis”. O Zé e o Valdinho eram dois talentos natos, com uma habilidade e uma queda natural para apanhar e deslizar nas ondas e um estilo, no Surf o estilo é tudo, sem precedentes e é preciso ter em conta que nessa altura não havia filmes, nem spots na TV ou vídeos do YouTube. Não havia comparação nem orientação. Aprendíamos observando as revistas, imaginando o antes e o depois dos movimentos fixados no milésimo de segundo da fotografia. No final dos anos 80 os “valdinhos” foram, inclusive, ao Havai e trouxeram consigo de volta pranchas do Eric Arakawa, se não me engano, uma espécie de Fórmula 1 das ondas, naquele tempo.

No Bodyboard formou-se naquela altura um pequeno grupo, quase um gang, de miúdos apaixonados e havidos por apanhar ondas, onde eu me incluía quando aterrava, “o português”, na ilha, nas férias, e do qual faziam parte o André Almeida e Sousa, o Diogo Cymbron e o Bernardo Rodrigues. O Bernardo era, ainda é, aquele tipo de pessoa que é bom em tudo o que faz. Surfava melhor que nós todos, tocava guitarra, tinha boas notas e um sucesso absolutamente invejável com as raparigas, tudo coisas que nos deixava a todos a querer ser como o Bernardo. O André ficou conhecido como o “Selvagem”, o Diogo era o “Punk Rural” e a mim foi-me dada, pelo Zé “Minhoca”, a sensacional alcunha do “Pavarotti”, ou parvaroti como a minha avó Leonor gostava, ironicamente, de dizer. Paralelamente, havia o Pedro Machado, o Alvarinho e os irmãos Moniz, Joao e o seu irmão mais novo o Vasquinho, que era, também, um enorme talento natural, com um estilo de dropknee que, provavelmente, na altura, em Portugal, seria apenas comparável ao do malogrado Ricardo Horta. Uns anos mais tarde, surgiu também, o grupo dos Sousa Lima, que carregavam consigo, em doses iguais, o entusiasmo e os materiais topo de gama.

Esta é a primeira geração de surfistas a sério em São Miguel e foram estes que tornaram a imagem dos corredores de vagas algo habitual nas praias da costa sul, desde a Ribeira Quente aos Mosteiros e desbravaram, com coragem, inconsciência e muita ousadia os principais spots da costa norte - Rabo de Peixe, Areais, Monte Verde e Sta. Iria, que eram, naquele tempo, ao que se cingia o North Shore micaelense.

Este foi um tempo e uma história feita de criatividade, adolescência, bravura, asneiras, pranchas, fatos, carros inesquecíveis, viagens marcantes, escaldões, boiões de Nívea, escapadas às escondidas dos pais e dos avós, copos, festas, finos na Cascata, socos no Cheers, amassos no Pópulos e não, ninguém metia wax no cabelo, os cabelos louros e descolorados eram só dos dias inteiros passados na praia debaixo do sol….

A história da evolução do Surf moderno está intimamente ligada à evolução das tecnologias e da própria globalização. Em “The World in The Curl: An Unconventional History of Surfing”, Peter Westwick e Peter Neushul explicam bem como a invenção e o desenvolvimento de novos materiais compósitos e o acesso e liberalização de meios de deslocação no planeta, com o advento dos aviões a jato, tiveram um papel fundamental na disseminação do Surf pelo globo.

O desenvolvimento das espumas de poliuretano, fruto do esforço científico da segunda guerra, é um elemento fulcral na expansão da indústria do Surf. As espumas de poliuretano, inventadas por Otto Bayer, tiveram um papel fundamental na indústria aeronáutica do tempo da guerra, sendo que muitos dos principais centros de desenvolvimento da força aérea americana ficavam precisamente na Califórnia. Após a guerra, muitos destes engenheiros enveredaram por outros voos associando o seu conhecimento científico e de engenharia ao uso desses mesmos materiais na construção e multiplicação de pranchas.

É esta relativa facilidade na produção de equipamentos para a prática de Surf que vai permitir a sua democratização, embora este nunca tenha sido um desporto barato. Em 1971, Tom Morey, engendrou, na sua garagem no Havai, o primeiro protótipo da prancha de bodyboard a que chamou de Boogie Board, em homenagem ao Boogie Woogie, um estilo de blues do qual Tom era particularmente fã. Daí nasceu a sua marca Morey Boogie que, em 1977, vendeu à gigante fabricante de brinquedos Mattel, tornando-se o bodyboard tão ou mais popular que a Barbie e o Ken.

O acesso a materiais é fundamental para o desenvolvimento do Surf. Sem pranchas e fatos não há Surf ou Bodyboard, só bodysurf. As surf shops, nos anos oitenta, eram inexistentes nos Açores e raras em Portugal. Em Ponta Delgada a MAP uma loja de material náutico e de pesca, do Honorato, era onde, lá de quando em vez, se conseguia comprar um fato ou uns pés de pato, depois a Jamé passou a ter também algum material técnico para além do habitual surf wear, mas a maioria do material vinha de fora, principalmente dos EUA, ou do continente, dada a facilidade de muitos jovens açorianos contactarem familiares emigrados na América e pedir para enviarem, fatos e pranchas. Em Lisboa, o cenário não era muito melhor com meia dúzia de lojas espalhadas pela Costa da Caparica e no eixo linha Cascais. Esta escassez de material fazia com que as pranchas durassem anos e fossem sendo remendadas e reparadas consoante o uso e a necessidade. O mesmo com os fatos, feitos daquilo que à luz da tecnologia moderna era não polietileno fino e maleável, como o que temos hoje, mas um quase couro, duro e ressequido. Uma técnica comum para ajudar a vestir os fatos era o uso de sacos de plástico, ou meias, para melhor fazer deslizar os membros do corpo para dentro daquelas autênticas armaduras de borracha. E pazadas de creme Nívea, no pescoço e outras zonas da anatomia onde o neopreno ressequido tinha tendência a queimar a pele, como alcatrão seco, depois de horas e horas de fato vestido.

No campo das pranchas de bodyboard para além da 7-7 e da BZ Stinger, dois clássicos absolutos da altura, havia outras pranchas que despertavam a cobiça da miudagem. Turbo e Wave Rebel eram duas outras marcas que dominavam o mercado e também a Génesis, do visionário brasileiro Marcus Kal Kung. Por cá o Bernardo surfava com uma Mach 20, o modelo mais futurista da Morey, com as suas quilhas retrateis e o deck em vinil, com gráficos ao melhor estilo cyber disco dos anos 80, uma espécie de hit do Giorgio Moroder em formato prancha de bodyboard. Olhando para a prancha hoje parece um tanque de guerra, mas como ela andava e como ele a fazia andar…

O meu único encosto relativo com o mundo da “prozada”, patrocínios, marcas e campeonatos foi quando o meu tio João Augusto, ligado ao negócio da importação de alimentos para pássaros, recebeu uma proposta para representar em Portugal uma marca sul africana de waveskis, a Wave Warrior, que por sinal, na altura, estava a lançar uma gama de pranchas de bodyboard com slicks em fibra. Uma novidade absoluta no mercado, mas um flop tanto técnico como comercial. Sendo o único “surfista” da família, fui chamado para ser consultor e atleta da marca, uma aventura que foi tão rápida e curta, como fracassada.

Que eu tenha conhecimento só houve dois shapers, dignos desse nome, na ilha de São Miguel, o João Brilhante, uma das mais singulares e marcantes personagens do Surf açoriano e o Dário Correia. Claro que havia alguns curiosos e inspirados e corajosos aspirantes a shapers como os irmãos Mário e Jorge e as suas Crystal Voyagers, que, ao que sei, se auto exilaram na paradisíaca Caldeira da Fajã do Santo Cristo, e consta que o Francisco Cabral de Melo também se terá aventurado no fabrico de pranchas. Mas, nada sequer comparável aos sucessos comerciais de marcas como a Semente ou a Pólen, os dois grandes gigantes do Surf nacional nos anos 80 e 90.

Ser surfista, naquele tempo, era tratar bem do material, saber estimar e cuidar e ser vintage antes do tempo…

Rastejantes, sapos, pensos higiénicos, lombas, boogies, moreyboogies, etc., etc., eram muitos os epítetos que marcavam a “má” relação entre surfistas e bodyboarders ao longo dos loucos anos 80 e 90. O estigma era tão grande que, na verdade, a grande maioria da malta da minha geração, que começou a apanhar ondas de Bodyboard, mais tarde ou mais cedo, a certa altura da vida, passaram a fazer Surf e alguns deles hoje fazem paddle que é a versão gondoleira dos desportos de ondas, algo que só comprova que nem todas as evoluções são no sentido positivo, mas adiante.

O ponto central aqui é que o Bodyboard era tanto do ponto de vista financeiro como desportivo mais acessível do que o Surf. Por metade do preço era possível comprar uma prancha de Bodyboard e, com metade da chatice, era possível começar a curtir, verdadeiramente desfrutar, umas ondas. Como costumávamos dizer o Bodyboard era mais fácil de aprender, mas mais difícil de evoluir, enquanto no Surf a curva evolutiva era ao contrário, era mais difícil de pôr em pé, mas ir em frente, todos iam…

Ao contrário do que acontecia no continente onde a clivagem entre surfistas e “rastejantes” era mais profunda, com atritos e inimizades constantes, em muito potenciadas pelo crowd, que era já muito em praias como as da Costa ou da Linha, nos Açores, o número reduzido de gente no mar e o facto de sermos todos basicamente primos uns dos outros levava a uma mais saudável convivência entre os subgrupos de surfistas. Aliás, a única separação, a haver alguma, era entre betos e alternativos e os mistos, mais conhecidos como betos-alternativos. Embora, uma amiga minha do liceu D Pedro V tivesse a teoria que todos os surfistas eram betos e gostavam de INXS… mas já estou a fugir do tema.

Como já referi, o primeiro grupo de bodyboarders, a sério, de São Miguel era composto pelo Bernardo, o Diogo, o André, eu, quando vinha nas férias, e a inolvidável Guilhermina. A Guilhermina era o Volvo GL do pai do Bernardo que nos levava pelas estradas, ruas e canadas da ilha, as vezes em contramão, em busca de ondas, cervejas, miúdas e juventude. Os carros, aliás, são uma parte importante desta história. Para além da GL do Bernardo, havia a Renault 4L dos Albergarias, um dos, se não o mais marcante surf vehicle da ilha, durante aqueles anos, e que, para além de literalmente voar, tinha uma aparelhagem que valia mais do que o carro todo e com um bom gosto musical de fazer inveja a qualquer rádio alternativa britânica. Havia, também, um Opel Corsa, dos pais do Diogo, que eu espatifei uma vez à saída de um bar porque me apetecia pão quente às tantas da noite, mas também já estou a fugir do tema…

Antes dos carros, havia os sapatos e as boleias. Antes de alguém ter a carta, fazíamos todos cerca de um a quatro anos de diferença de idades, mas não se notava, andávamos a pé ou à boleia. Da Fajã de Baixo até ao Pópulo ainda eram um par de quilómetros que de manhã, à ida, ainda se faziam facilmente, ao fim do dia era telefonar a pedir boleia aos pais, mães e avós. Depois havia as boleias, às escondidas, para a Ribeira Grande, em carrinhas de caixa aberta de lavradores ou camiões das obras na estrada da Ribeira Grande antiga.

Nesta altura o Bernardo e o Vasquinho eram os melhores talentos na água. Logo depois surgiu uma nova geração, uns cinco anos mais novos do que nós e a quem passamos a ser nós a dar boleia, onde se destacavam o Serginho, o Ricardo “Caveira”, o Miguili, o Ivo Batista, que era tão bom na água como na grande área, e um miúdo franzino e sempre sorridente chamado Ricardo Moura. Estes putos entraram na água e no mundo do bodyboard açoriano lançando aéreos e el rolos e dando-nos calças a nós todos. E, o Moura, não fora o azar de um tímpano, poderia ter muito bem sido um dos melhores bodyboarders nacionais, quem ficou a ganhar com isso foram os rallies. O único defeito dos miúdos era gostarem de Offspring…

Logo a seguir vem uma outra leva, cheia de talento e, gosto eu de pensar, com a enorme vantagem de terem malta na água para observar, coisa que nós não tínhamos tido, a nossa foi uma aprendizagem de instinto, cassetes VHS mil vezes rebobinadas, com uns clips do Eurosport que misturavam windsurf, com Bodyboard, com Surf, e as revistas emprestadas, recortadas e mil vezes folheadas, fujo outra vez… esta segunda leva tinha o Bruno “animal”, o Corvelo, o Rijo e o Pedrim Correia, que hoje é patrocinado pela Pride, que acabou de lançar uma prancha, que só por ter uma foto do “Pico da Ganza” no slick devia, também, ter o nome dele estampado no deck.

Apesar de tudo, nos Açores, Surf e Bodyboard sempre conviveram e sempre se incentivaram um ao outro, a união faz a força e ainda bem que assim foi…

Costumo dizer que só é local quem nunca viajou. Viajar é uma parte fundamental da vivência do Surf. A ideia e a prática da viagem está, até, na génese do Surf moderno, com essa autêntica viagem de peregrinação de Duke Kahanamoku, em redor do mundo, ofertando a dádiva da arte de correr ondas aos pagãos e aos não iniciados.

Procurar ondas, na praia ao lado, naquela baía do outro lado da falésia, percorrer a costa, ou sonhar com costas distantes, em outros continentes e ilhas paradisíacas, é, também, ser surfista. Desde o filme “Endless Summer” do John Severson, estreado em 1966, que essa mística do “search”, da procura, está impressa no mais íntimo de cada surfista, de cada um de nós, aqueles que se deixaram tomar pela ânsia de conquistar a magia das ondas.

Também aqui, nestas ilhas atlânticas, a História do Surf é feita de viagens, desde os baleeiros, aos velejadores, passando por militares estacionados ou peregrinos desterrados, ou aqueles a quem eu chamo os expatriados. Até as viagens entre as ilhas ou dentro das ilhas experimentando e mapeando novos spots, novas ondas e emoções, são também uma forma de se ser verdadeiramente surfista.

O conceito dos expatriados é fundamental para compreender a evolução do Surf nos Açores. Estou a falar dos continentais que nos anos 80 e 90, por razões relacionadas com o Surf, ou não, escolhem os Açores para viver, trazendo consigo desde logo as pranchas e o hábito não sazonal de surfar. Assim de repente recordo dois nomes: o Pires dos Santos e o José Maria Pyrrait.

O João Luis Pires dos Santos era um verdadeiro profeta das ondas, alguém que dedicou a sua vida, de uma forma radical e quase monástica, a uma certa ideia e conceção das ondas e do Surf, não como um desporto, ou uma atividade de lazer, mas como uma religião. Uma quase maçonaria das vagas, com rituais de iniciação, cerimoniais secretos e conhecimentos ocultos. A paixão que tinha pelo mar e a sua visão do Surf deixou não só uma marca profunda como um legado, principalmente na ilha Terceira, mas não só, que vai para além da célebre COCOVAMA, a Confraria dos Corredores de Vagas de Mar, e que perdurará no tempo. Embora num plano muito diferente do meu, tivemos até algumas polémicas, o João Luís foi alguém que me marcou pessoalmente, pela sua cultura e desenvoltura, e que merecia uma mais justa homenagem e celebração por tudo aquilo que fez pelo Surf nos Açores.

Mas, não deixa de ser irónico como muitas vezes são estes mesmos expatriados os mais acérrimos defensores do localismo como se quisessem defender a sua pátria adotiva dos erros cometidos nas suas pátrias de origem…

O Pyrrait era outro estilo, grande, sonoro, aberto e aventureiro. O Pyrrait tornou-se açoriano pela razão mais sincera de todas, o amor. Amor as ondas, à liberdade de as viver, e amor a uma açoriana. Anos mais tarde o Pyrrait recebia-nos, a mim e ao André, em Ribeira D’Ilhas, sempre com a sua alegria e cervejas Budweiser estupidamente geladas. O Pyrrait foi também, se não estou em erro, o fotógrafo da primeira e famosa surf trip da SurfPortugal ao Açores, que se tornou lendária pela forma como alicerçou, ainda mais, na mente dos açorianos, essa ideia de que os surfistas eram uma espécie James Deans das ondas, jovens rebeldes sem causa e salvação…

A lista dos expatriados é longa e diversa, uns vieram e partiram, outros ficaram, alguns regressam, de tempos a tempos. O Hugo Valente é um de muitos professores que começaram carreira e assentaram nos Açores. A Joana Cadete e o João Silvestre. O Duarte Filipe, pai do Jácome Correia. O Marco Costa, pai da Azores Atlantic Surfers. O Zé Seabra, que, para além de ter dado início à primeira verdadeira escola de Surf de São Miguel, fora de outros projetos mais de âmbito social, como o do Luís Melo no Clube K e Clube Naval de Rabo de Peixe, ou do João Brilhante com os miúdos de São Roque, o Seabra, dizia eu, foi um desbravador de picos e alguém que nos fez a todos olhar com outros olhos para o potencial de lugares que eram, até a sua coragem e experiência o mostrar possível, vistos como insurfáveis. Uma das minhas primeiras incursões na Fajã do Araújo, algures no início dos anos 2000, foi com o Zé e o Valente, numa surfada da qual nunca na minha vida me esquecerei.

São muitos, e não é possível, nesta lista de memórias pessoais falar de todos. Hoje, talvez, dois dos mais relevantes, por razões opostas, obviamente, mas igualmente importantes, pela natureza do seu trabalho e da sua marca no panorama do Surf açoriano, são o Rodrigo Heredia, campeão europeu, profissional do Surf e das competições, que alavancou o desenvolvimento do Surf como produto turístico. E, o João Rei, artista, designer e profissional do amor pela pureza e pela alma do Surf, que importa todos os dias a candura e o espírito sulista de Sagres para estas nossas ilhas de bruma.

Eu próprio, sou de certa maneira um expatriado. Açoriano em Lisboa e Português nos Açores. Nascido de famílias micaelenses, que vinha cá nas férias, e que acertei residência permanente na ilha em 1998.

Estes são só alguns exemplos da importância destes expatriados e das viagens na construção de um universo de Surf nas ilhas, tal como as muitas viagens pontuais de surfistas estrangeiros e de revistas, como a viagem dos irmãos Greg e Rusty Long às Flores, na perseguição de um swell gigante no atlântico. E tantas outras, de revistas como a Surfing, a Surf Session e, claro, as muitas que a SurfPortugal fez ao longo dos anos.

Ainda no âmbito das viagens duas em particular. Em 1990 ou 91 um grupo gigantesco de micaelenses embarcou na fragata em Ponta Delgada rumo à Maré de Agosto. Entre eles iam um grupo substancial de surfistas e bodyboarders que, por especial alinhamento dos astros, ou sorte se quiserem, apanhou algumas das melhores e maiores inchas das últimas décadas. Instalados em tendas no forte da Praia Formosa passamos uma semana de surf, música e enamoramento só possível quando se tem 15 ou 16 anos. O swell estava tão bom que até as esquerdas, do lado este da praia, funcionaram e alguns de nós optaram por essa onda para fugir ao crowd e lançar o olho atrevido às miúdas que iam para aí fazer topless. Surfamos até não conseguir mais, comemos cachorros-quentes e latas de atum, bebemos cervejas com os Repórter Estrábico, engatamos miúdas ao som dos Trovante, e fugimos a correr com rolos de papel higiénico na mão dos donos das casas que tinham o azar de ter os portões a dar para a ribeira onde por alguma razão alguém achou que era o melhor substituto de uma casa de banho. Um grupo ficou numa tenda gigante do Diogo Cymbrn que se tornou uma espécie de quartel-general e centro de convívio todas as noites. E ficaram célebres os gemidos do Diogo, a sofrer de dores nos pés das feridas dos pés de pato, enquanto dormia com o Bernardo ao lado. Eu, o André e o João Henrique ficamos numa outra tenda, mínima, que não dava para os três, mas não fazia mal porque o João Henrique praticamente nunca dormiu lá que tinha sempre outra companhia. O João não surfava e acabou, infelizmente, como tantos outros, por se perder nesse universo infernal do consumo de drogas. Nessa viagem iam também um grupo de surfistas do continente, com o João Antas, o Miguel Fortes e, julgo eu, se a memória não me atraiçoa, os irmãos Villas-Boas. Numa onda o João Antas abriu a cabeça nas pedras, ou com a prancha, e foi ao centro de saúde suturar o escalpe para uma horas depois estar de novo na água.

Pela mesma altura, eu o Bernardo e o Diogo fomos, na pior surf trip de sempre, de expedição à ilha Terceira na esperança mal prevista de apanhar ondas em Santa Catarina não sabendo que era Verão e o Surf, como todos sabemos, é um desporto de Inverno. Dessa viagem ficam as memórias da Twins, das noites dormidas no quartel dos bombeiros e uma senhora no parque de campismo de Porto Martins ao ver-me limpar o doce de amora cujo frasco se tinha partido dentro da mochila com os dedos e a língua gritar em sobressalto e sotaque fundo da ilha: “wuei pá nã mames nos dedos que te podes cortjá…

Em 1998, quando acabei o curso, numa espécie de contrato de compra e venda com os meus pais, fui 6 meses de pranchas e mochilas as costas para os EUA e o México, na procura de viver em pleno esse sonho do Endless Summer e foi onde acabei por decidir vir viver para os Açores e onde, ainda hoje, de certa maneira, procuro ainda viver esse sonho…

O que penso que fica deste caminho é a noção de que, ao contrário de locais como a Califórnia, a Austrália, de certa forma o Brasil e o Norte de França, que desde os anos 40 viam o Surf a crescer exponencialmente, nos Açores, e até mesmo em Portugal continental, a primeira grande geração de surfistas surge no final dos anos 70, início de 80. E isso leva-me a um outro conceito importante, que é o de retorno. É no final dos anos 90, no virar do milénio, quando esta geração (a geração conhecida como do Portugal Radical) tinha acabado os cursos e regressa aos Açores, para continuar a sua vida, trabalhar, constituir família, essas coisas sérias e adultas, que se dá o primeiro grande boom, a verdadeira ignição, daquilo a que podemos chamar uma cultura de Surf na região. E, é quando podemos, com segurança, afirmar que o Surf se assume como um motor de desenvolvimento económico e social no seio da sociedade açoriana.

Ainda esta manhã, o António Benjamim, um dos sócios da surf shop Espaço Azul, me dizia que a loja fará no próximo ano 20 anos. Esta longevidade, ou como se diz em História Económica, esta sustentabilidade do mercado, só é possível porque existe desde então para cá uma comunidade, um grupo coeso e sustentado, de clientes que permite a manutenção do negócio. Não que alguma vez eles irão ficar ricos à conta disso, mas, e isto é importante, poderão certamente deixar o negócio à próxima geração.

A melhor figura para ilustrar aquilo que foram os últimos vinte e tal anos do Surf nos Açores é, inquestionavelmente, o Luis Melo. O Luís representa esse crescimento, essa evolução segura e constante que o Surf tem tido nas ilhas. Eu e o Luís coincidimos temporalmente no regresso aos Açores, ali no final dos anos 90. Nesse tempo ainda éramos meia dúzia os que surfavam regularmente e, no Inverno, não eram poucas as vezes que chegávamos aos Areais, Monte Verde ou Rabo de Peixe, dois metrões clássico off-shore e ficávamos no carro sentados à espera meia hora, uma hora, a ver se chegava mais alguém para não surfarmos sozinhos. Uma noite, no Forno, fui ter com o Luís e trocamos números de telemóvel, sim já havia telemóveis, e combinamos avisar sempre que fôssemos ao mar, foi assim, isso e o facto de eu ter ficado sem carta de condução durante um ano por o medidor de alcoolemia estar avariado…, que nos tornamos companheiros de ondas e de projetos ligados às ondas durante mais de uma década. Para além de ser uma excelente pessoa, com uma retidão e uma honestidade absolutas, que muitos confundem com altivez ou antipatia, o Luís tem uma extraordinária qualidade, a disciplina. É essa forma de estar na vida que faz do Luís não só um ótimo parceiro na água, algumas das melhores e maiores ondas que já surfei foram com ele, como um ótimo organizador e colaborador em tantos projetos como provas, campeonatos, associações e um sem número de programas. O Luís é não só o homem dos mil desportos, como o homem das múltiplas atividades. Para além de ter promovido duas escolinhas de Surf, vários campeonatos amadores e o primeiro programa de TV regional dedicado aos desportos radicais, o Alta Pressão, com a Joana Cadete e realizado pelo Bruno Correia e o Alexandre Jesus, o Luís, fruto também de ser um professor de educação física considerado por todos, trouxe para o Surf uma imagem de respeitabilidade que até então pura e simplesmente não existia.

Nos anos 2000 o associativismo ligado ao Surf era inexistente ou, na melhor das hipóteses, comatoso, nos Açores. Quando em 2008 o Rodrigo Heredia imagina trazer os campeonatos nacionais e mundiais para São Miguel, a única associação local era a recentemente ressuscitada ASSM, Associação de Surf de São Miguel, que era presidida pelo João Brilhante. Nesse momento gerou-se uma discussão, que passados todos estes anos pode parecer obtusa e disparatada, entre duas fações, ou duas ideias antagónicas do caminho que o Surf devia seguir em São Miguel e nos Açores. Por um lado, uma conceção mais conservadora e protecionista, se quisermos, que entendia que as ondas açorianas deviam ser resguardadas da massificação mediática e turística, restringindo os eventos e os campeonatos e privilegiando os locais, representada pelo João Brilhante. Do outro lado, uma ideia de que era preciso apanhar rapidamente o comboio do progresso e orientá-lo no sentido dos melhores interesses dos locais, mas não só, se não a coisa ia rebentar, como rebentou, e a malta ia ficar a ver passar o comboio, basicamente vinham os de fora fazer a festa e lançar os foguetes, para os políticos aplaudirem, e nós ficávamos a apanhar as canas. Eu, o Luís, o Vasco Medeiros e um grupo de outros malucos estávamos desse lado da barricada e foi assim que nasceu a USBA, União de Surfista e Bodyboarders dos Açores. A única agremiação de desportos de ondas que juntou surfistas e bodyboarders e não teve medo de o colocar no nome até hoje em todo o país e, creio eu, no mundo. A USBA consumiu 8 anos das nossas vidas e apesar de todos os erros e disparates, pessoalmente perdi muito dinheiro com a USBA, fomos responsáveis, junto com o Rodrigo, é certo, que era ele o detentor da licença da ASP para realizar os campeonatos e os governos só queriam era patrocinar campeonatos mundiais, mas fomos responsáveis por uma série de iniciativas que, estou certo, permitiram não só solidificar as bases da nossa comunidade de amantes dos desportos de ondas, como projetar os Açores como destino de Surf no mundo todo, mas mais importante de tudo, julgo eu, sedimentou na sociedade açoriana uma imagem do Surf e dos surfistas, nos antípodas dos hippies junkies de antigamente, mas de pessoas normais que apenas sofriam com uma paixão maluca por essa coisa louca de apanhar ondas.

Para mim, pessoalmente, ter trazido aos Açores os campeonatos nacionais e mundiais de Surf e Bodyboard, o Mundial da IBA em Santa Catarina, feito em parceria com a AST, Associação de Surf da Terceira, com o Carlos Leal à frente, uma das melhores pessoas com que tive o privilégio de me cruzar na vida, e o Paulinho Costa, uma lenda do Bodyboard nacional, ter podido trazer o Mike Stewart aos Açores e apertar a mão ao Tom Curren, entre tantas outras iniciativas maiores e mais pequenas, cursos de juízes, palestras, conferências, é algo que trarei para sempre comigo, no meu íntimo, com a certeza que é fruto, também, desse trabalho que muito do que existe hoje continua, e continuará no futuro, para outras gerações, e que os desportos de ondas e os locais onde os mesmos são praticados nunca mais serão tratados como, por exemplo, os Areais foram no passado.

E, é essa caminhada, desde ser estaleiro de construção civil para ser hoje cartaz de candidatura a Reserva Mundial de Surf, que os Areais representam, que, para mim, marca uma história absolutamente singular de como no espaço de uma geração, com uma conjugação de vontades, se consegue mudar um local, uma comunidade e apontar para um futuro melhor para todos nós…

Há pouco mais de 20 anos atrás, a praia dos Areais de Sta. Bárbara era, literalmente, um estaleiro de construção civil. Abandonada, negligenciada, deixada pelas autoridades públicas à mercê da rapina e da selvajaria de empreiteiros, rendeiros e proprietários, toda aquela linha de costa, desde Santana à Ribeira Seca, ou mesmo até ao Palheiro e às Piscinas da Ribeira Grande, abarcando o Monte Verde, era uma zona de ninguém. Ou, de quase ninguém.

Um dado histórico e sociológico que temos que compreender é que a sociedade e a cultura açoriana foram sempre pouco atreitas ao mar, receosa e temente do oceano. A construção da história açoriana fez-se ao longo dos seus quinhentos anos de ligação e de exploração da terra. Até as igrejas, na sua maioria, estão viradas de costas para o mar. O mar era de onde vinham os piratas, as tempestades e outro tipo de ameaças. Era da terra que vinha a riqueza e o mar era mais porta de saída do que de entrada dessas riquezas. Mesmo as pequenas comunidades piscatórias eram frágeis e ostracizadas, vivendo numa economia mais de subsistência do que de exportação. Os homens da baleia estavam na verdade em terra, trabalhando as vinhas e os campos quando ao longe se avistavam os bufos das baleias e se lançavam roqueiras e correrias até aos botes. E, a descoberta do mar e da orla marítima como lugar de lazer é uma conquista contemporânea, é um fenómeno recente e já nosso, dos nossos pais e não muito mais longe do que isso.

Este, para mim, é que é um dos aspetos fundamentais desta história. Este verdadeiro conto de Cinderella que leva a que um lugar sujo e abandonado seja hoje uma praia limpa, a maior parte das vezes, vigiada, protegida, com restaurantes, balneários, estacionamento, hotéis, resorts, vídeos no YouTube, cartaz de promoção turística, cenário publicitário, ex-libris de uma cidade e com surfistas na água o ano inteiro.

Apesar dos Açores terem tido contacto com o Surf desde meados do século XIX e serem certamente dos primeiros lugares do país a contar com esporádicos surfistas desde o dealbar do século XX, é só após a revolução que a orla marítima vai ganhar relevância no contexto da sociedade portuguesa e açoriana e é só com a geração do Portugal Radical que os desportos de ondas vão, lenta mas afirmativamente, ganhar peso e lastro como interlocutores respeitados no xadrez social e político.

Não estou com isto a dizer que foram os surfistas que salvaram os Areais, não foram, tanto não que o mesmo, por exemplo, não foi possível fazer com Rabo de Peixe, foram as regras de Bruxelas e as oscilações económicas que moldaram a economia no sentido de ser cada vez menos rentável extrair areia daquele local. Mas, foram certamente, também, os surfistas que dignificaram aquele local e contribuíram para que o mesmo fosse visto pelos políticos de outra maneira. E nós estávamos lá e lembro-me bem das primeiras conversas com o Ricardo Silva, na altura Presidente da Câmara Municipal, e com o Fernando Monteiro, arquiteto responsável pelo projeto, sobre a construção de um estacionamento e de um apoio de praia nos Areais e isso passou-se há pouco mais de 20 anos.

Costuma-se dizer que a única voz que os políticos realmente ouvem, e não é por vontade, é por obrigação, é a das urnas. Quando um político olha para um grupo de pessoas não vê indivíduos, nem cidadãos, vê votos. E isso, neste caso concreto, nesta história, é o elemento mais importante. A coisa mais importante na História do Surf nos Açores não foram as ondas, que as há e muitas e de qualidade, felizmente, não foram as pranchas, os fatos e os materiais mais ou menos baratos e acessíveis, não foram os dirigentes e as associações, ou os eventos com mais ou menos projeção mediática. A coisa mais importante foram os surfistas, fomos nós. Médicos, advogados, engenheiros, professores, empresários, carpinteiros, músicos, artistas, surfistas a tempo inteiro, fomos nós, foi haver gente na água o ano todo tornando natural e apetecível aos olhos dos outros, dos que nos olham de terra, a existência daqueles locais, daqueles pedaços de costa esquecidos e negligenciados durante tantos anos, décadas, e levando a um lento, mas progressivo e já não reversível virar das mentalidades açorianas de frente para o mar.

O André “Galinha”, o Sérgio Aparício, o “Xolim”, o Serginho e todos os miúdos e graúdos e turistas que nestes anos tem experimentado o batismo das ondas. O Pedro e o Almeida. Todos os putos que entraram num campeonato, o Jácome e o Nicolau, o Xico Benjamim e o Peter Helión, o Pedrim e o Rijo, o Miguel Reis, o Luís, o Afri, o Hélder, o “Tricky”. As miúdas, todas as raparigas e mulheres que se redescobriram no mar e na liberdade das ondas, uma espécie de nova emancipação no oceano. O João e o Gui e mais todos os pais e filhos e netos que vão juntos ao mar, seja de semana ou no fim-de-semana, seja na Maia ou no Baixio da Vila, nos Areais ou na Fajã do Araújo, seja em merrecas, espumas, meio-metrinho ou dois metrões, do flat ao gigante e os vagalhões do Marco Medeiros em Santana ou na Viola. A História do Surf e do Bodyboard nos Açores é feita dos seus surfistas e bodyboarders, tantos e ao mesmo tempo tão poucos, que ao longo destas últimas duas décadas conquistaram para si e deram a ganhar aos açorianos essa dádiva pura da natureza que são esses pedaços de magia em que a terra se enamora do mar em ondas…

Para quem, como eu, assistiu a essa viagem e percorreu esse caminho não deixa de ser fabuloso perceber aonde chegámos. Ainda há muito para andar, tanto para fazer. A luta pela preservação do oceano e pela defesa da orla marítima não se faz com fotos bonitas e estátuas de bronze ou slogans e prémios de belo efeito, mas de medidas concretas, obras, mesmo aquelas que ficam debaixo do chão e não dão votos, organização, planeamento e priorização de investimentos. Mas, quantos mais surfistas houver e mais empenhados eles forem, de fim-de-semana ou do ano todo, pros ou paparucos, de verão ou de inverno, maior e melhor será o futuro do Surf nos Açores. Aloha…

Vila Franca do Campo, Maio de 2022