quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Café Royal CCVII

Do Futuro

Diz-me que isto é o futuro, / não acreditarei em ti.”, escreveu Louise Glück. Tal como o tempo o futuro morre em cada segundo que passa. Shakespeare, o inventor do humano, na formulação luminosa de Bloom, explicou que “o futuro não se encontra nas estrelas, mas em nós próprios”. É no presente que o futuro se fabrica, dia após dia, ininterruptamente. E, “o futuro é tão incerto como o presente” cantou Whitman, enquanto cofiava vagarosamente a espessa barba e olhava cintilante o Universo em cada folha de relva. Já Kierkegaard, jovem rapaz existencialista, ensinou-nos que “a vida só pode ser compreendida se olharmos para trás, mas deve ser vivida seguindo em frente”. Ao que Pessoa, depois de um desassossegado bagaço, retorquiu, “Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já não o tenho.” Mas, o que é o presente se não uma fugaz memória do que passou e anseio esperançoso e angustiado do que virá? Que futuro encontraremos amanhã que não seja, já hoje, uma levíssima cinza do passado, flutuando, suspensa, na brisa languida do presente? Só o sonho, ou o amor, sobrevivem às horas e às estações e ao Universo que se expande, negro, infinito e absoluto. Só no sonho e no amor o futuro existe, verdadeiramente…  

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Café Royal CCVI

O lugar do amor

Neste opressivo e desesperadamente longo deslaçamento que nos foi dado viver. Esta despótica ditadura do microscópico, do invisível e horrendo medo. Neste “novo normal” de distanciamento, impedimento, higienização e desafeto. Nesta absoluta desumanização que tomou o Mundo, ergamos as nossas taças num brinde à Vida! Celebremos os afetos, os abraços, os beijos quentes e o toque doce e infinitamente frágil dos avós, a alegria límpida das crianças. Celebremos a ligação dos corpos, os laços, celebremos as pessoas e o que nos faz singularmente humanos. Soltemos, do interior da alma, um grito, do mais íntimo do ser um brado, pelas amizades que se afastaram e os lutos que se esconderam. Rejeitemos, nem que por um dia, a solidão perentória dos decretos e dos isolamentos e a tirania das autoridades genéricas e sanitárias e a nova inquisição dos dogmas científicos. Todos os gestos que ficaram por trocar troquemo-los agora. Recuperemos a existência. Reconquistemos, hoje, a convivência, o toque, o carinho e a ternura do contacto físico, a essência da vida e tudo o que é indelevelmente humano. Reconquistemo-nos, enfim, a nós e ao lugar primeiro e puro do amor.   

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Café Royal CCV

Do fingimento

A verticalidade é um atributo inútil em política. Citando George Orwell, o mais actual dos escritores mortos: “a linguagem política destina-se a fazer com que a mentira soe como verdade” e nunca um político foi reconhecido, ou desprezado, pela coerência do seu discurso. No culminar da sua elocução de encerramento do debate do Programa de Governo, José Manuel Bolieiro, tropeçando desastradamente por entre as muitas incongruências do documento, asseverou o compromisso de recorrer a dívida da região para apoiar a economia devastada pelos ventos da pandemia. Esta semana, os meritíssimos juízes do Tribunal de Contas vieram condenar a insidiosa promessa do político com o rotundo não do limite da lei. O que importa a integridade, ou a retidão das palavras, ou, sequer, as promessas inflamadas do teatro eleitoral? Tudo é farsa e fingimento, no inabalável púlpito governamental. Salvar a SATA, mas queimá-la em público. Condenar a Incineração, mas assoprá-la, talvez, no recato do gabinete. Clamar por menos “tachos” e menos gastos, mas aceitar, desventuradamente, o maior Governo da história da autonomia. Voltando a Orwell, “num tempo de engano, dizer a verdade é um acto revolucionário” …

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Café Royal CCIV

Espelhos

Por estes dias, na Assembleia Regional, à sombra do grande vulcão, decorre o debate do Programa do Governo. Mais do que uma amálgama das múltiplas reivindicações da quíntupla coligação que o sustém, este Programa é um espelho do próprio José Manuel Bolieiro. Um documento onírico, cheio de frases gordas, repletas de efeito estilístico, ambições vulgares e retórica de pacotilha. Bem ao estilo de um político que de ação apenas tem no currículo um processo em tribunal por alienação indevida de uma empresa municipal e, soubemos agora, um outro pela suma inépcia de não fazer aprovar um regulamento no seu prazo legal…  Do lado de lá da barricada, Vasco Cordeiro assume-se como o Golias da réplica parlamentar, agarrando-se, qual lapa, a um espúrio estatuto de líder, no que é bem o espelho, também, do autismo com que pauta a sua ação política, mascarando as suas debilidades e inações com uma ficcional impressão de autoridade. No fundo, são dois políticos que se imitam, como reflexos de um espelho. De um lado alguém que ilude a realidade, do outro, alguém que se deixa iludir por ela. A diferença é que um vai ser destruído pela coligação em que se sustenta, o outro vai destruir o partido que o sustenta a ele.  

in Açoriano Oriental 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Café Royal CCIII

Ser-se ilhéu

Portugal é uma nação cronicamente esparsa em pensamento. Ao invés, e como bem sentencia o adágio popular, é um país de poetas. Talvez por isso, Eduardo Lourenço, que fez da poesia o centro e a urdidura do seu vasto edifício intelectual, tenha sido considerado o maior pensador português do século. Para nós, ilhéus, filhos dessa “coexistência natural de solitudes” que é o arquipélago, como lapidarmente ajuizou o próprio Lourenço, talvez o mais importante, neste momento da sua morte, por entre os inúmeros elogios, obituários e outros tantos panegíricos que proliferarão por aí, seja lembrar que Lourenço era, primordialmente, um Anteriano. Antero de Quental, o poeta-filósofo, é um dos vértices, a par de Camões e Pessoa, desse triangulo virtuoso através do qual Lourenço imaginou os caminhos do seu vasto Labirinto. Para os Açores, “ilhas que estão sempre a descobrir-se e a ser descobertas”, na indicação límpida de Eduardo Lourenço, a evocação da sua morte é, também, a exegese desse outro génio, “que era um Santo”, sem cuja centelha o brilho da obra deste seria certamente outro, em tudo o que nesta transparece de identificação mítica com o sentido verdadeiramente poético de se ser português ou, efetivamente, ilhéu.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Café Royal CCII

Opções iniciais

Numa opção legítima, embora não totalmente incensurável, o novo Governo Regional decidiu orientar o grosso das suas decisões iniciais para a gestão da pandemia. Em poucos dias, Bolieiro anunciou uma série de medidas de administração sanitária, incluindo, ao melhor estilo do mercado de transferências futebolístico, como quem anuncia um novo avançado, a contratação de um médico de saúde pública para capitanear a equipa da Autoridade de Saúde, reclamando, ainda, a sua total independência do poder político. Ora, o que me preocupa, nestas demonstrações iniciáticas de vigor governativo, é a manutenção, ao jeito do velho Governo, da táctica de cingir a pandemia a um problema exclusivamente de saúde pública. O que falta neste combate, e tem faltado desde o seu início, é, justamente, mais decisões políticas, mais visão histórica, mais conhecimento de sociologia e, sobretudo, mais economia. Dito de forma simples, têm faltado Estadistas. Para os clínicos, nós todos não passamos de hospedeiros de um vírus que é preciso travar a todo o custo. O que realmente precisamos é de Políticos, que entendam que uma pandemia não se combate apenas salvando vidas, mas salvando pessoas e, fundamentalmente, preservando modos de vida.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Café Royal CCI

Pensar os dados

Em Itália, um estudo científico, do Instituto Nacional do Cancro, concluiu que o novo coronavírus já circulava no país em Setembro de 2019. Por cá, a média diária de positivos, nos quinze dias anteriores às eleições, foi de 2,8. Nos quinze dias depois do dia 25, foi de 6,8. Quase se diria que o vírus tirou férias no Douro, em Outubro, e que esperou pelo Domingo das eleições para apanhar um avião para os Açores, onde aterrou diretamente na Casa das Bonecas e, daí, num rodopio do varão, saltitou para restaurantes, escolas e liceus. O que estes dados nos demonstram é que nem tudo nesta pandemia é clínico e matemático, aliás, como bem resumiu o médico alemão Rudolf Virchow, no longínquo séc. XIX, “uma epidemia é um fenómeno social que tem alguns aspectos médicos.” A informação agora descoberta em Itália revela duas questões essenciais: 1º que tão ou até mais perigoso que o SARS-CoV-2 é o contágio do pânico disseminado, ad nauseam, pela comunicação social; 2º, e mais importante, que o vírus não é, afinal, nem tão letal, nem contagioso como nos querem fazer acreditar. Por cá, o que os números e as reações despóticas das autoridades nos dizem é que continuamos a tratar esta epidemia como se ela não fosse, de facto, um fenómeno social.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Café Royal CC

Fim de um ciclo

Esta, que é a ducentésima crónica deste Café Royal é, também, o fim de um ciclo. Todas as semanas, ao longo de quatro anos, desde janeiro de 2017, procurei sempre cultivar, em cafés curtos e fortes, a liberdade de pensamento, a crítica franca e aberta, a exigência ética, moral e a transparência nas políticas públicas e, de uma forma geral, na cidadania. Para muitos, esta manifestação pública de uma certa bravura ou, se calhar, de desencanto foi vista como um gesto ressentido, uma espécie de oposição velada ao governo socialista. Para mim, pelo contrário, foi sempre um acto de reafirmação intrépida dos ideários humanistas que estão na génese do socialismo e que urgem, permanentemente, assinalar e cuidar. Hoje, ao assistir ao desnudar da crise do capitalismo, à legitimação, por supostos democratas, dos maiores ataques às liberdades individuais, ao desmoronar dos valores solidários do Estado Social e, aqui nestas nove encantadas ilhas, ao agrupamento oportunista das direitas conservadoras, reacionárias, totalitárias, neoliberais e fascistas para um assalto selvagem ao poder, reforça-se-me o sentimento da imperiosa necessidade de continuar a lutar, cada dia mais, pelos valores mais altos da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Café Royal CXCIX

Novas eleições

Num sensacional gesto de contorcionismo político as velhas direitas insulares apresentaram o seu esquiço de acordo com vista à formação de governo. Este golpe de marketing, com zero de conteúdo, pela sua encenação vazia e patética de intrujonas juras de fidelidade legislativa, demonstrou apenas que a única cola que une este casamento por conveniência pós-eleitoral é um visceral ódio ao PS. Algo que, só por si, não constitui grande projecto para o futuro da região. Acresce, e por mais que tentem lixiviar o pormaior, que esta envergonhante AD insular só poderá tomar posse estribada no extremismo antidemocrático do CHEGA, e mais 1. Porém, do outro lado do arco-íris parlamentar está um PS que se viu reduzido a uma vitória por poucochinho e com, apesar da caridade do BE, parcas hipóteses de ser governo, como demonstra, aliás, o prolongado e ensurdecedor silêncio dos seus dirigentes. Resta-nos então, cumpridos os formalismos da pompa parlamentar, seguir para novas eleições, que esclareçam, matematicamente, qual o verdadeiro sentimento do povo: uma maioria de esquerda ou uma maioria de direitas empoleirada no discurso larvar dos neofascistas do CHEGA.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Café Royal CXCVIII

Dos resultados

Ao “p’rá frente é que é caminho!”, do PS, os eleitores responderam com “pare, escute e olhe”. Infelizmente, Vasco Cordeiro, ainda em choque, surgiu na noite eleitoral com a arrogância autista de quem se recusa a compreender que, com menos 5 deputados do que em 2016 e menos 12 mil votos do que em 2012, o PS não podia reclamar vitória nem arrogar-se ares do habitual “quero, posso e mando”. O que foi dito pelos cidadãos não foi uma maioria de direita, ao contrário de alguma euforia imediatista dalguns jovens vampiros sedentos de sangue socialista, mas uma votação massiva no Bloco Central. O que Cordeiro deveria ter dito no domingo, recusando fantasmas na sua retaguarda, era que tinha ouvido as pessoas. E, com humildade, ligar a Bolieiro, propondo um pacto de regime autonómico, que permitisse aos Açores navegar, com estabilidade parlamentar, o furacão económico e social que aí vêm. O resto são uma minoria de esquerda a 27 mais o PAN, que ninguém sabe o que é, ou outra minoria de direitas com 28 deputados, mas onde um dos pés desse periclitante andaime é o extremismo nacional-populista do Dr. Ventura. No meio, onde se senta a virtude, a IL, que pode e deve liderar a oposição, seja qual for o governo que vier a tomar posse.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Café Royal CXCVII

Das eleições

Ao contrário do que nos diz o vulgar jargão partidário, a escolha a que somos chamados domingo não é por um presidente de governo, nem mesmo, na pura exactidão do voto, pelos 57 homens e mulheres que irão compor o próximo parlamento. Estas eleições deviam ser uma escolha pelo que queremos que os Açores sejam no futuro. Pela afirmação de uma ideia de arquipélago, da sua unidade, a sua identidade e, também, da sua posição no todo do país, da Europa e do Mundo. Uma escolha pelo sonho que cada um de nós possa ambicionar para si e para os seus e para estes nove pedaços de terra que nascem isolados do centro do grande lago atlântico. 44 anos depois das primeiras eleições em autonomia aquilo que somos chamados a sufragar, com o poder do voto, devia ser a nossa própria condição de açorianos. Homens e mulheres livres, capazes, unidos num desígnio de prosperidade, de equidade, de luta fraterna por uma sociedade mais justa, menos corrupta e desigual, desenvolvida e civilizada, que se afirme como um bastião de defesa do bem-estar social e ambiental e que, acima de tudo, se erga, sem receio, sobre a mancha sombria do medo, da pobreza e da indiferença. A escolha devia ser pela Utopia, que é, na verdade, a melhor expressão da condição insular.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Café Royal CXCVI

Da abstenção

Nas últimas eleições regionais a taxa de abstenção foi de uns obscenos 59.2%. A cada eleição, os políticos choram lágrimas de crocodilo sobre o flagelo e juram medidas para o combater. O Presidente do Governo chegou a sugerir, depois de a taxa de abstenção para as europeias ter atingido o valor estratosférico de 81,3%, benefícios fiscais para os eleitores. No entanto, apesar das flagelações públicas, os políticos nada fazem para limpar os cadernos eleitorais e incentivar o voto. Esta semana, os contribuintes da região receberam um email da AT com informação sobre o voto em mobilidade. Em face da celeuma de tão inusitada missiva o Vice veio a terreiro defender o gesto como sendo de combate à abstenção. É como aquele aluno cábula, que passou o ano na borga e que só estuda para o exame na noite anterior, e depois se queixa de ter chumbado. A abstenção combate-se com coisas simples como, por exemplo, incutir na sociedade a ideia de que não há eleitos e eleitores, um nós e um eles, o povo e os políticos, mas que em democracia somos todos cidadãos. Segundo o último Eurobarómetro apenas 22% dos portugueses confiam nos partidos e 94% acham que a corrupção está disseminada na sociedade. Talvez devessem começar por aí…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Café Royal CXCV

Honestidade.

Sobre essa interessantíssima polémica dos dramas da Contratação Pública, e pondo de lado o despedimento sem justa causa do presidente do Tribunal de Contas, há uma ideia simples que gostaria de partilhar. Quem quer que já tenha trabalhado de perto com a gestão da coisa pública sabe perfeitamente que, em matéria de dinheiros, o problema em Portugal, ao contrário do que nos querem impingir Marcelo e Costa, não é a burocracia. As verdadeiras hérnias do sistema, ainda para mais num país pequeno e pobre como o nosso, são a falta de firmeza moral de quem decide, conjugada à elasticidade ética dos advogados que aconselham e que são, como ensina Ambrose Bierce, no seu delicioso Dicionário do Diabo, indivíduos especializados em contornar a lei, somadas, por fim e lapidarmente, a uma Justiça que ou não atua ou atua tarde. E, se há coisa que o CCP tentava fazer era pôr ordem nesta trapalhada toda. Num sistema limpo, para não dizer num país civilizado, o CCP nem sequer seria preciso. Bastava honestidade no serviço público e celeridade na punição judicial. Mas em Portugal, como sabemos, tanto a justiça como o erário público são farta mercadoria e a honestidade, infelizmente, matéria escassa…

in Açoriano Oriental

sábado, 3 de outubro de 2020

lamento por uma solidão incompleta

 


O surf nunca foi uma actividade intelectual e não consta que os surfistas sejam gente de grandes leituras. A fama de vagabundos de praia é, aliás, inteiramente merecida. No seu todo, os surfistas são um grupo de alienígenas, que vivem num mundo próprio e relativamente isolado do resto da sociedade, auscultando as cartas meteorológicas e desligando-se de terrenos sólidos para deslizar sobre a superfície do mar, levados pela energia das ondas. O máximo de conhecimento necessário a um surfista é saber ler o mar, o que, em boa verdade, não é de somenos, mas citar Sophia ou Ruy Belo, ou Whitman e Twain, não é propriamente uma qualidade que faça falta para passar uma rebentação ou para sair de um tubo num closeout em Carcavelos. As próprias revistas de Surf foram sempre mais um caleidoscópio de imagens do que um repositório de saber e não creio que ninguém, alguma vez, tenha comprado uma revista de Surf exclusivamente pela relevância dos seus textos. No entanto, qualquer cultura, e o Surf tem permanentemente essa ambição de se considerar uma cultura, uma filosofia de vida até, dirão alguns, qualquer cultura, dizia eu, para poder ser tida como tal tem que necessariamente ser fixada, primeiro em hábitos, depois em tradições e, finalmente, num corpo sólido de artefactos, textos, que possam ser preservados e transmitidos através das gerações. Aqui os surfistas dir-me-ão que a essência da cultura do Surf reside no acto de apanhar ondas e que esse gesto é puramente pessoal e intransmissível. Provavelmente a imensa dificuldade do Surf em se relacionar com a sociedade provirá, também, dessa sua natureza intrinsecamente solitária. Mas, tal como explicou o grande Harold Bloom, que não era surfista, “saber ler é um dos grandes prazeres que a solidão nos pode dar” e o Surf também. E essa solidão específica do Surf é também uma das razões pelas quais se tornou sempre tão difícil traduzir em palavras, pelo menos em palavras que possam ser entendidas pelo outro, os sentimentos e as emoções características daquelas frações de segundo em que, como que sem peso, ausentes de gravidade, deslizamos, sem espaço nem tempo, como que numa realidade alternativa, sobre as ondas. Contam-se pelos dedos da mão os textos e os autores que fixaram essas emoções, que as traduziram em palavras, em linguagens perceptíveis por outros, fora do universo dos surfistas. Mas, ao longo destes 100 anos de história moderna do Surf o mais próximo que a nossa cultura chegou de ter uma Bíblia foi a Surfer. A revista criada em 1960 por John Severson, como panfleto promocional de um dos seus filmes, granjeou, ao longo de décadas, a fama e o proveito de ser o órgão de comunicação oficial da cultura do Surf. Para além de pelas suas páginas terem passado alguns, se não todos, os melhores fotógrafos, nela surgiram muitos dos principais autores daquilo a que podemos chamar uma escrita de Surf. Nomes como Drew Kampion, Derek Hynd, Dave Parmenter, Steve Hawk, entre outros são os pilares daquilo a que podemos chamar o cânone do Surf. Pode-se argumentar que tal coisa não existe ou até que, existindo, é perfeitamente inútil para quem queira apenas ler a linha entre um bottom-turn e um off-the-lip. Mas, a sobrevivência do Surf, como parte da cultura moderna e a sua sobrevivência futura, para lá da subida do nível do mar, da acidificação dos oceanos e da queda das sociedades ocidentais numa distopia urbana e internauta passará, inevitavelmente, por esses textos. Existem outras revistas, a Surfers Journal por exemplo, ou outros autores, que nunca escreveram na Surfer, como é o caso do hoje célebre William Finnegan. Mas, a relevância da Surfer para a consolidação do que é o Surf e a sua Cultura é inigualável. Pelo que dizem as notícias a Surfer terá acabado hoje, com o despedimento de todo o seu staff. Não é só o fim de uma era é, também, o fim de uma certa ideia de Surf. E, pelo menos para mim, que fui assinante durante os últimos 20 anos é o fim de uma outra solidão, a do prolongamento em terra, em infindáveis horas de leitura, da flutuação etérea das ondas no mar em movimento…

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Café Royal CXCIV

Sobre pandemias

A nossa sociedade está sob ataque de um vírus invisível. Uma pandemia global, que em Portugal mata em média 17 pessoas por dia. No mundo, cerca de 1.4 milhões de mortes são anualmente atribuídas a doenças provocadas por este vírus, a sétima causa de morte a nível mundial. E, os Açores são a região da Europa onde este vírus mais mata, 74 pessoas por cada 100 mil.  A média europeia é 22. Este “vírus” chama-se diabetes e juntamente com a obesidade é responsável por 3.2 milhões de mortes, todos os anos, no mundo todo. Nos Açores mais de 20 mil pessoas estão diagnosticadas com diabetes, perto de 10% da população, e 70%, repito 70%, da população açoriana tem excesso de peso. Os governos tem uma responsabilidade directa no combate a este gravíssimo problema de saúde pública, seja na promoção de alimentação e hábitos de vida saudáveis, seja em normas de rotulagem dos alimentos, ou na taxação, multa e até mesmo, à semelhança do que está a ser feito com a Covid, no encerramento forçado das indústrias produtoras e importadoras de alimentos contaminados com essa droga que são os açucares. Porém, pouco ou nada é feito para combater este flagelo. Porque a Covid é que faz ganhar eleições…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Café Royal CXCIII

Governar Bem

Andamos a ser inundados pelo costumeiro afã político pré-eleitoral da “obra feita”. Ao ritmo de 12 notas do GACS por dia, o Governo Regional tem-se desmultiplicado em anúncios e outros tantos memes de redes sociais, com vista a inculcar nos eleitores as benfeitorias da sua governação e, em particular, do apoio, dizem eles, aos sectores da economia mais afectados pela gestão da pandemia, como é o caso do Turismo. Assim de chofre, lembro-me de um apoio aos custos fixos das empresas; a Ryanair na Terceira; a renovação da imagem dos Postos de Informação Turística; uma ferramenta web para agilizar a entrada e novas infraestruturas de recepção aos passageiros no aeroporto de Ponta Delgada; apoios à formação dos trabalhadores. E, há dias, em homilia em Santana, o Presidente do Governo anunciou ainda a prorrogação da campanha de turismo interno, com a extensão à própria ilha, e um incentivo financeiro à realização de testes previamente ao embarque para a região. Tudo muito lindo e algumas destas medidas só pecam por tardias. Mas, o que realmente impressiona é a incapacidade dos governantes em perceber que em lugar destas verdadeiras diarreias sazonais de anúncios ocos a melhor e mais eficaz acção de campanha é, pura e simplesmente, governar bem.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Café Royal CXCII

Talibanização

Esta semana, depois de seis meses de clausura, crianças, jovens, professores, auxiliares e todos os outros intervenientes do universo escolar, regressaram ao ensino presencial. Este deveria ser um momento de regozijo e de reconquista de direitos fundamentais, como o direito à educação. Porém, a ditadura do medo, que teima em não nos abandonar, não permite tal alegria. Quem olhe, mesmo que de relance, para as circulares normativas, os planos de contingência e todos os outros documentos orientadores do regresso às aulas não pode deixar de lançar um suspiro de lamento pela imensa vaga de restrições, imposições e proibições que estão a ser forçadas à comunidade escolar. O regresso às aulas era, só por si, fundamental para minorar as profundas desigualdades expostas pelo ensino virtual dos últimos meses, mas é assustador perceber o rol de distanciamentos, de setas no chão, filas indianas, máscaras, mais toda a enorme panóplia de orientações, dignas de um manual da Mocidade Portuguesa, que tornam este início de ano escolar numa espécie de talibanização das escolas. A Escola deixou de ser um lugar de partilha, de convivência e de crescimento, para ser uma espécie de poço higienizado, regido sob a inclemente Sharia das autoridades sanitárias.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Café Royal CXCI

Ana Gomes

Estes 46 anos de evolução do nosso regime democrático trouxeram-nos a uma espécie de encruzilhada política. A democracia, que, na sua génese, é a governação pelo povo, foi capturada pelos partidos, transformando o país numa partidocracia e, em alguns casos extremos, como o nosso, numa oligarquia político-partidária com laivos antirrepublicanos e quási monárquicos. Esta captura do regime pelos directórios partidários, grande parte deles já de si capturados por uma miríade de interesses económicos, empresariais e outros aventais, permitiu a disseminação de vastas redes de compadrio e de corrupção, que contaminaram o sistema desde o mais pequeno Presidente de Junta ao mais popular Presidente da República. A hora é de que o mais alto magistrado da Nação seja alguém para quem a política não é um modo de vida, nem uma forma de ganhar a vida. Nem uma profecia de infância do tempo do outro marcelismo, de má memória. Nem, tão pouco, um jogo fétido de populismo basal protofascista ou de uma sucessão de cinismos, como o que leva a direcção do PS, num gesto desprezível, a declarar loas ao mais invertebrado Presidente que este país já viu. A hora é de quem veja a política com ética e valores. A hora é de apoiar Ana Gomes.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Café Royal CXC

Pandemia do medo

Em Setembro completamos seis meses desde que o mundo, tal como o conhecíamos, se desmoronou. Em Março mergulhamos no pântano pandémico. Atolados nesse lodo de fechamento, distanciamento, isolamento, máscaras irrespiráveis e de todos os outros tentáculos desse afogamento colectivo com que a Covid-19 destruiu as nossas vidas. Nos Açores tivemos 224 casos confirmados. Uma taxa de infecção de 0,09%, se tivermos em conta apenas a população residente, mas se incluirmos os passageiros chegados à região essa taxa será ainda significativamente menor. De acordo com os próprios comunicados da Autoridade de Saúde, de 1 de Agosto a 1 de Setembro foram feitos 41837 testes na região, 48 deram positivo (0,1%). Desses apenas 30 estão na região e nenhum, repito, nenhum está internado a necessitar de cuidados médicos. Em jeito de comparação, todos os anos são internadas cerca de 300 pessoas com AVC, só no HDES. Que em Março houvesse desconhecimento, impreparação e medo era natural e compreensível. Que em Setembro ainda se esteja a manipular esse medo e a clamar insistentemente por legislação para impor o fascismo sanitário é não só absurdo como intolerável. Pior, é utilizar esse medo como instrumento de campanha eleitoral e isso, então, é imperdoável…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Café Royal CLXXXIX

O Liberalismo

Celebrou-se por estes dias o duo centenário do pronunciamento liberal do Porto. A Revolução Liberal de 1820 marca o dealbar da afirmação das liberdades e dos direitos fundamentais na governação do país e, principalmente, na libertação dos cidadãos perante o Estado. A primeira Constituição Liberal é mais do que um mero documento legislativo, é um marco fundamental na asserção dos ideais progressistas – liberdade, igualdade e fraternidade – no Portugal de oitocentos e está, também, na génese de todos os ideários republicanos e socialistas, não marxistas, que se lhe seguiram. Nas cerca de duas décadas posteriores, o país viveria mergulhado em conflitos e na disputa fratricida entre absolutistas e liberais. Durante este período as ilhas permaneceriam um indomitável bastião liberal e foram palco de algumas das suas principais batalhas. E é, também, das mais profundas convicções liberais que nasceram as mais antigas aspirações autonomistas, não podendo estas últimas ser compreendidas sem a luz das primeiras. Para os Açores esta não é uma efeméride qualquer. Evocar o Liberalismo é celebrar os seus valores – a Liberdade e a Constituição. Talvez por isso os poderes políticos de hoje se tenham tão oportunisticamente abstido de os assinalar…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Café Royal CLXXXVIII

A Tourada

Já ninguém aguenta o Covid, mas com a tourada em que se transformou a pandemia nos Açores, a piada é demasiado fácil para deixar passar. Tiago Lopes, que era um mero peão de brega, chegou a novilheiro e foi subindo na hierarquia a ponto de querer ser matador, cortando aqui e ali a eito, ao ritmo de passodobles e com verónicas de capote e passes de muleta. O problema é que ninguém lhe compreende a arte muito menos a justeza da estocada. Já o cavaleiro Vasco Cordeiro vai dando voltas ao touro, desacertando as bandarilhas ora de frente ora em violino e evitando a esquerda, mas sem música ou sorte na lide e correndo mesmo o risco de, no futuro, se ver ele próprio na pele do touro tal é a desgraça que se aproxima. Já nós, trabalhadores e empresários, somos os forcados amadores que damos o peito à besta na pega da catástrofe económica. Sendo que o mais certo é que a pega acabe de cernelha que pelo agigantar da braveza do animal não há quem se lhe agarre aos cornos. E, o mais provável é que no final não haja volta à arena e, todos, Matador, Cavaleiro e Forcados, manquejando e esfarrapados, sairão de cena sem glória nem aplauso ao som de uma triste e amargurada marcha fúnebre monumental.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Café Royal CLXXXVII

Da saúde pública

Há vários meses que São Miguel está a braços com uma gravíssima e continuada crise de saúde pública. Uma crise não só extremamente penalizadora para a saúde e o bem-estar das populações como, também, para a economia, o turismo e a imagem exterior da região no seu todo. Não me refiro à já omnipresente e insuportável Covid, mas aos elevadíssimos níveis de Escherichia coli e Enterococos intestinais que, desde Junho, têm sido detectados numa grande variedade de zonas balneares da ilha com particular, e atrevo-me a dizer vergonhosa, incidência nas do concelho com melhores praias da ilha, Vila Franca do Campo. Ao ponto do Ilhéu, esse ícone maior da nossa proximidade entre a terra e o mar, estar desde 22 de Junho com, intermitentemente, a água imprópria para banhos. Diga-se, que o nível considerado óptimo de e-coli é de menos de 15 e o Ilhéu chegou a ter níveis acima de 7000! A tudo isto, os responsáveis, em lugar de assegurarem os equipamentos imprescindíveis à garantia da saúde pública, respondem ora com um ominoso silêncio ora com cocó de gaivota. E, enquanto isso, a magnânima Autoridade de Saúde entretém-se a analisar troços de rally e o Presidente do Governo a fazer de constitucionalista e de director de colégio interno…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Café Royal CLXXXVI

A Retaguarda

Desde o início da pandemia que ouvimos os governantes a usar enfaticamente a metáfora da guerra para descrever esta crise e, principalmente, para justificar a maioria dos seus actos. O maléfico vírus é o inimigo. Profissões como varredores, empregados de supermercado, forças de segurança, enfermeiros e médicos, tantas vezes esquecidas, formam a linha da frente. Reuniões à porta-fechada como conselhos de guerra. E, as nossas vidas, como carne para canhão, à mercê das ordens de Autoridades Sanitárias. Sartre escreveu que “quando os ricos fazem a guerra são os pobres que morrem”. Esta semana vários dados estatísticos vieram dar razão ao filósofo existencialista francês. O precipício do PIB e a sua queda de 16% no semestre. A alta mortalidade do mês de Julho da qual apenas 1.5% foi por causa do Covid. Ou a hecatombe do turismo com variações negativas acima dos 90%. Ofuscados pela vã glória dessa luta que julgam travar, os decisores políticos lançaram-se cegamente nesse combate invisível deixando, à revelia da mais básica estratégia, totalmente desprotegida, a retaguarda onde as principais batalhas, contra um vírus com uma taxa de mortalidade de 5%, estão definitiva e desesperadamente a ser perdidas.

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 30 de julho de 2020

Café Royal CLXXXV

A Enfermaria

Tirando os benefícios de lavar ou desinfectar as mãos com frequência, pouco há, sobre esta malfadada pandemia, que gere consenso na comunidade científica. Por esse mundo fora, médicos e epidemiologistas debatem-se com mais dúvidas do que certezas. Mas, nos Açores a Autoridade de Saúde acha-se detentora da mais alta sabedoria e das melhores e comprovadas “boas práticas”, alardeando-se mesmo o epiteto de salvadora das ilhas do infecto bicho. Mesmo que o seu único remédio para a contenção da pandemia seja recusar-lhe o visto de entrada. Porém, incapaz de mandar suster a vida, a Autoridade de Saúde Regional entretém-se a ordenar a detenção de todos os desafortunados cidadãos que, por azar, se sentam no lugar errado do avião. E ainda se lamenta, com inaudita arrogância, da interferência abusiva dessa coisa maçadora chamada Estado de Direito na sua cruzada abnegada em prol da saúde-pública. Desde os idos de Março que nos Açores vivemos, por resolução do governo, sob a égide do fascismo sanitário e nas mãos de quem vê no confinamento e no “isolamento profiláctico” as grandes armas de combate à doença e que acha que o mundo todo não é mais do que uma imensa enfermaria.

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 23 de julho de 2020

Café Royal CLXXXIV

O longo Inverno  

O italiano Antonio Gramsci, um dos pais do socialismo moderno, dizia ser “um pessimista pela inteligência e um optimista pela vontade”. Ao ver os parcos resultados da atribulada reunião do Conselho Europeu, recordei essa inspirada máxima, de um dos seus escritos da prisão, à qual foi condenado pela ditadura fascista e onde viria a passar os derradeiros anos da sua vida. Ao contrário do que nos querem fazer acreditar os líderes europeus, com os seus discursos laudatórios, o resultado dessa longa maratona negocial, não foi um êxito, muito menos um passo em frente na construção europeia. O que se exigia de uma União Europeia, neste momento pivô das nossa vidas, era alcançar um simples consenso e o que ficou demonstrado foi que a UE é incapaz de atingir tal desiderato. Até os muitos milhões de € anunciados em tom triunfante são, pela sua origem, pela forma como serão distribuídos, como pelos critérios da sua aplicação, tudo menos uma resposta solidária a esta crise devastadora que se vai estendendo sobre nós como o manto de um longo inverno nuclear. Dentro de cada um de nós há uma vontade de optimismo, mas a inteligência obriga-nos a perceber que o pior ainda está para vir…

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Café Royal CLXXXIII

Toda a diferença

A minha geração será a última que poderá afirmar, sem receio de erro, que viveu efectivamente a sua juventude. Nos últimos cinquenta anos, só duas gerações, a dos meus pais, nos frios e libertinos anos 50/60, e a minha, nos glamorosos e eletrificados anos 80/90, viveram plenamente essa idade que Proust classificou como “a única em que sempre se aprende alguma coisa”. Dai para cá, neste dealbar caótico do séc. XXI, aos jovens foi-lhes roubada a liberdade e a angústia da verdadeira adolescência. E se, nas primeiras décadas do século, esse furto foi imposto por razões económicas, hoje, na Era do Covid, é por imposição administrativa do crime de sociabilização que toda uma geração se vê privada dos seus anos mais ricos. De todas as devastadoras consequências desta crise talvez essa seja a mais amargurada e aquela que, na longa maratona da vida, venha a ter consequências mais profundas. Para quem já cruzou o meridiano da existência, um Verão é nada, mas para os jovens, que vivem exultantes entre o céu e o inferno, um dia de praia, uma noite de luar, um olhar ou um toque de mão na pele bronzeada, toda essa agridoce efervescência do Verão, é tudo! E perder isso, nem que seja só um ano, fará sempre toda a diferença.

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 9 de julho de 2020

Café Royal CLXXXII

O abismo

Ao fim de um tempo há uma espécie de torpor que se instala no corpo, uma imobilidade física e emocional, que bloqueia os movimentos e a esperança. Ao fim de um certo tempo nada nos comove, já escutamos as notícias como num leve zumbido, uma surdina a que os ouvidos se acostumaram e que está lá, latente, como um espectro nas costas da cabeça. Os olhos fitam o horizonte e há como que um peso nos músculos, uma dormência que nos prende, uma anestesiada insensibilidade aos acontecimentos, à retórica vazia e repetitiva dos políticos, à apatia dos dirigentes que vão maquinalmente digitando ordens nos seus teclados, aos números, sempre maiores, às estimativas, cada vez piores, ao agigantar inexorável da enorme crise, a maior de todas, aos zeros infinitos e sem dimensão dos milhões, e biliões, e triliões, e um número tão universal e infindável que não tem plural. A partir de um certo momento é como se desligássemos, como se já não quiséssemos saber. Como se tudo fosse negro e sem luz. Como se toda a sociedade se lançasse num enorme e oceânico suicídio colectivo. Uma precipitação voluntária no abismo. A catástrofe já está aí e cresce a cada dia, metastisando-se como um cancro, e quando Outubro chegar já será tarde demais.

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Café Royal CLXXXI

Despautérios

Do céu ao inferno vai um sopro de distância. E, do milagre português, que pautou o nosso confinamento, com políticos de peito-feito a atirarem-se à pandemia como quem se automedica com uma mão cheia de antibióticos, bastou o fim da primavera para acordarmos, como se de um pesadelo, nos desvarios do luso-desconfinamento. Veja-se a TAP, cujo destino parece ser o de um novo Novo Banco, onde a bravata política e ideológica do nosso ministro das infraestruturas embateu de frente com o pragmatismo de uma velha raposa da aviação. Basta ter em conta que o pouco de bom que aconteceu à TAP nos últimos anos, nomeadamente nas duas Américas, se deveu, exclusivamente, aos conhecimentos do Sr. Neeleman, para ficarmos em sobressalto com a sua saída da companhia. E, olhando o despautério da TAP, é com temor aterrorizante que imaginamos o que por aí virá para a nossa agonizante SATA. Nestas ilhas em que testes de 12 horas se prolongam em 48, não é de admirar que o que nos aguarda seja um longo e penoso purgatório. Em jeito de aviso, já alguém pensou se noutros países, por exemplo na Suíça, é possível fazer os testes antes de apanhar o avião?

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 25 de junho de 2020

Café Royal CLXXX

Sua Eminência

Numa cândida entrevista ao Diário Insular Tiago Lopes confessa que, ao longo destes penosos meses de pandemia, o seu principal pânico e o primordial foco das draconianas medidas por si tomadas era, não mais do que, impedir o colapso do Serviço Regional de Saúde. O alfa e o ómega das cercas, dos confinamentos, do descontinuar da actividade médica normal e do grande fechamento das ilhas era escapar ao desmoronar de um já de si periclitante SRS. Em nenhum momento é feita qualquer referência, é expressa qualquer emoção, às profundas e catastróficas consequências da pandemia, e das suas opções enquanto responsável, no tecido económico e social da região. É como se a plenitude da Vida dos açorianos, que comporta o dia-a-dia, as empresas e as escolas, as crianças, os trabalhadores e os idosos, se pudesse reduzir ao mero número dessa estatística vã dos casos activos e das cadeias de transmissão. Sua Eminência Reverendíssima da Autoridade de Saúde Regional chega a dizer que “já estamos fora da crise”. Ora, desde os idos de Março, o que realmente assusta, é essa incapacidade em perceber a exacta extensão do que está a acontecer e em compreender que a crise, a verdadeira, aterradora e obliteradora crise, está apenas a começar…

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Café Royal CLXXIX

Estar à altura

As previsões são unânimes e os números, na queda do PIB e no aumento vertiginoso do desemprego, avassaladores. Esta crise, sufocante e sem prazo, que se está a abater sobre nós, como um nevoeiro denso e escuro que se cerra até ao chão, será a pior dos últimos 100 anos e obriga-nos, a todos, a estar à altura da situação. Turismo e Aviação, dois sectores irmanados e instrumentais numa região insular e improdutiva, vivem hoje um verdadeiro estado de desgraça. Perante esta calamidade, não é tolerável que não se vislumbre já qual a estratégia do Governo para o futuro da SATA. Não é, igualmente, aceitável que não se veja já uma acção assertiva e concertada na defesa intransigente da oferta turística da região. O momento exige a criação de um Gabinete de Crise, com dotação orçamental robusta e que ilha a ilha, empresa a empresa, atente à sobrevivência daquilo que é hoje um variado, dinâmico e relativamente qualificado sector turístico. Caso contrário, quando e como a retoma se der, na região só subsistirão ruínas. E não é, certamente, com cheques pequeninos, de €150 por ilhéu viajante, que se vão salvar da extinção as muitas empresas, pequenas e grandes, que são o coração vivo do Destino Turístico Açores…

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 11 de junho de 2020

Café Royal CLXXVIII

As ondas

Qualquer surfista sabe que as ondas vêm em conjuntos. E, a maior parte do tempo que passamos na água não é a surfar as ondas, mas à espera delas. Infelizmente, os políticos não entendem a linguagem dos mares e, passada a primeira vaga, achatada a curva e limpa a folha estatística, lançaram-se, com mais ou menos fé, em peregrinações mediáticas pelos círculos eleitorais. No passado domingo, Marcelo, o Presidente Emplastro, aterrou no Nordeste, devidamente testado, mascarado, mediatizado e selfiezado para fazer… exactamente nada! O efeito prático dessa viagem, no bem-estar e melhoria das nossas vidas devastadas, foi absolutamente zero. Também por cá, já tinha, entretanto, começado o périplo de Vasco Cordeiro pelas nove ilhas. De semblante pesado, vulto negro, batendo cotovelos e alvíssaras, o Presidente do Governo vai saltitando, tanto quanto o peso da consciência lhe permite, de ilha em ilha, de junta em junta, numa romaria de promessas que o levará, eleitoralissimamente, até Outubro. Porém, o que se espreme de sumo, desses rendez-vous mascarados, que facilmente o Zoom resolveria, para o ressuscitar da nossa moribunda economia é, igualmente, menos que zero. Entretanto, no horizonte, já se vislumbra, imparável, a próxima onda, não de vírus, mas de pobreza.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Café Royal CLXXVII

O mexilhão

Com a mesma febre com que confinaram, as autoridades correm agora a desconfinar. Só que, o desfechamento vem envolto na mesma indecisão e arbitrariedade do fechamento anterior. E, no meio dessa correria, entre o cerra e o descerra, quem se entala, como Martim Moniz na porta do castelo, somos nós, os cidadãos eleitores e contribuintes. O, proverbial, Zé Povinho. O desempregado, o trabalhador em layoff, o pequeno empresário, o precário do recibo verde, o preto, imigrante, repositor do centro de logística da Azambuja, morador no Bairro da Jamaica, a quem lhe fecham a tasca mas ao patrão não mandam fechar a fábrica e, o trabalhador por conta própria, que descobriu agora na pele, o significado exacto da “conta própria”. Mas, em nenhum momento, nem na monástica clausura do distanciamento, nem agora, no arraial mascarado do desconfinamento, a que chamam, sem sarcasmo, de “novo normal”, ninguém, nem político, nem enfermeiro, nos explicou, com exactidão e certeza, a necessidade ou a eficácia de cada decisão. Nem, tão pouco, nos oferecem uma justificação, ou, por caridade, um mea culpa. Como sempre, a culpa, morre solteira e quem se lixa é o mexilhão e o mexilhão, mais uma vez, somos todos nós…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Café Royal CLXXVI


O novo mesmo

Debelada a febre sanitária, a política começa a acordar para a gangrena económica. Por todo o lado, o que se vê e ouve é: recessão, depressão e crise. Acossados pelo troar dos cascos dos novos cavaleiros do Apocalipse – falências, desemprego, pobreza e fome – os políticos apressam-se, em afã mediático, a fazer passar a ideia de que estão empenhadíssimos na construção do “novo normal”. Vemo-los em reuniões e visitas e escutamos-lhes as declarações pesadas. Contudo, chegados cerca dos microfones, vemo-los a tirar as máscaras cirúrgicas, mas não deixam cair as outras, as máscaras do cinismo e da hipocrisia. Por detrás da falsa inquietação, continua o mesmo “business as usual”, os mesmos compadrios, os mesmos jogos de bastidores, os mesmos Novos Bancos, o mesmo e escabroso calculismo eleitoral que leva um Primeiro-ministro socialista a apoiar o mais demagógico e reaccionário Presidente da República da nossa democracia ou, o próprio Carlos Cesar a insultar publicamente Ana Gomes, uma das mais integras e competentes figuras do partido e candidata natural do PS às presidenciais. As nossas vidas mudaram, mas as deles continuam na mesma, preocupados apenas com ganhar eleições.


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Café Royal CLXXV


O Isolamento

Não! A insularidade não é uma vantagem. Nem o total isolamento dos Açores é possível quando a região até cebolas importa. É arrogância pensar-se que, mais tarde ou mais cedo, o vírus não conseguiria um portador para o desembarcar nas ilhas. Um marinheiro, um piloto, um médico especialista, um pelotão do exército ou, quem sabe, se ele por cá já não andava, contagiando assintomaticamente, trazido pelos representantes da Marca Açores que se exibiram em Lisboa em Fevereiro. Ou, pelos abonados funcionários que foram comprar prendas à Primark em Dezembro? Também, não serão as citações de Ciprião de Figueiredo ou as bandeiras da autonomia que vão inventar uma vacina, nem a Federação Agrícola vai produzir Hidroxicloroquina, ou outro fármaco qualquer que mate o bicho. A soberba de imaginar uma região asséptica e impenetrável aos ares do mundo é absurdo, desastroso e um retrocesso gigante para a Região. Cada uma das nove ilhas é Açores, os Açores são Portugal que é uma das 27 partes de uma Europa que será fundamental para sairmos desta crise, a maior das nossas vidas, e da qual ninguém sairá sozinho. O isolamento, seja ele constitucional ou não, só nos trará morte.


quinta-feira, 14 de maio de 2020

Café Royal CLXXIV


Levantemo-nos!

Não existe um ‘nós’ e os ‘outros’, só existe o ‘nós’. A Solidariedade é, e tem de ser, indivisível.” A frase é de Olof Palme e vale a pena lembrá-la quando é o Socialismo que é vítima da peste. Se aos cientistas não se lhes exigia sensatez, aos políticos era imperativo, ético e moral, que contrariassem todo o tipo de autoritarismo na resposta ao vírus. O isolamento, de um indivíduo, ou de uma região, é a antítese do Socialismo, que é solidário e Internacional por natureza. Nos Açores, desde a laranja, ao boom do Turismo, o progresso económico e social aconteceu sempre nos momentos de maior abertura. É especialmente triste ver agora o PS-A a defender o fecho de aeroportos e quarentenas segregacionista, rejeitando a memória de todos os que, durante os governos do PPD, lutaram por abrir os Açores ao Mundo. Fosse na economia, com o Turismo, fosse na cultura, com a crítica à censura do genérico de uma simples telenovela. O “orgulhosamente sós” e a ausência de verdadeiras políticas sociais são uma dupla condenação à morte, pior do que o próprio vírus. Proudhon, um dos pais intelectuais de Antero, escreveu: “Os grandes só são grandes porque nós estamos de joelhos. Levantemo-nos. 


quinta-feira, 7 de maio de 2020

Café Royal CLXXIII

Os Vírus

Nesta pandemia surgiram vários vírus, alguns deles mais perigosos que o Covid-19. Primeiro, e o mais grave, o da desumanização. Vivemos subjugados por números, gráficos, dados e o nosso cotidiano passou a estar suspenso pelo R0 (alguém sabe o dos Açores?). Deixámos de ser pessoas, com vidas e sentimentos, reduziram-nos a meras estatísticas e a circunstâncias epidemiológicas. Cada ser humano não é mais do que um Uber da contaminação. Depois a transparência, que os Governos tanto reclamam. Mas, informação fundamental, tanto sobre a doença como sobre a calamidade social e económica, é ocultada, manipulada e, por vezes, até abertamente equivoca. Por fim, o unanimismo. Impelem-nos, à força e sem contraditório, para uma espécie de conformidade amordaçada onde imperam incontestáveis os valores da saúde pública. Como se o único conhecimento válido fosse o das ciências da vida. Obrigam-nos a descartar todo o tipo de outros saberes – filósofos, historiadores, geógrafos, economistas, sociólogos, psicólogos, até politólogos – e as nossas vidas são entregues, atropelando a Constituição e o mais básico bom-senso, à ditadura aleatória da Autoridade de Saúde.


quinta-feira, 30 de abril de 2020

Café Royal CLXXII


O novo normal

Depois de ter aprisionado a generalidade dos cidadãos e destruído as bases da nossa economia, quem sabe se permanentemente, o Estado prepara-se para seguir caminho neste maravilhoso novo mundo da pandemia global, só que agora com um bocadinho mais de desigualdade. Acoberto do manto da ciência e da opinião dos “especialistas”, em regime de cerca policial e sob o atento olhar electrónico do interior de cada telemóvel, o Governo vai designar, arbitrariamente, é claro, o onde e o como, o quem pode e o quem não pode, do mais básico das nossas vidas. Novos e velhos, doentes e saudáveis, rurais e urbanos, ricos e pobres, poderosos e descamisados, os confinados e os de livre trânsito, cada um para o seu lado desde que todos devidamente mascarados. E a isto, que afinal não passa de ditadura da higienização e de fascismo sanitário, chamam eles o “novo normal”. O que o país precisa não é de mais isolamento, mas de mais solidariedade, não é de confinamento, mas de cuidado. O que precisamos é de proximidade, de afecto, é de humanismo, não é de autoritarismo. O país não precisa de uma sociedade sanitária, mas de uma sociedade sã!


quinta-feira, 23 de abril de 2020

Café Royal CLXXI


O míssil

Já podemos falar de economia? Mais de 75 mil empresas aderiram ao lay-off, um palavrão bonitinho de economês que significa brutal baixa de salário. Um milhão de trabalhadores estão agora neste regime de labuta. Outros 40 mil estão já no fundo do poço, ou seja, o desemprego. São números verdadeiramente aterradores. Mas, o que estes dados não mostram é a realidade escondida e, muitas vezes, silenciosa e envergonhada, da grande multidão de pessoas que segue nesta crise sem salva-vidas. Do milhão e duzentas mil empresas que existem no país, mais de 800 mil são pequenas empresas ou empresários em nome individual. Estes números significam que só 6% das empresas portuguesas conseguiram, quiseram, ou puderam navegar a monstruosa burocracia deste apoio do Estado. As outras foram abandonadas à sua sorte e aos negativos das contas bancárias. Obcecado em achatar a curva do Covid-19, o Governo grita em coro: “Os apoios de hoje são os impostos de amanhã”. Como se não nos recordássemos dos 200 mil milhões que andaram a dar de bandeja à Banca nos últimos anos. E, entretanto, a curva da Crise Económica e Social, sem máscara, ventilador, ou vacina que a cure, disparou, como um míssil balístico, rumo à estratosfera.


quinta-feira, 16 de abril de 2020

Café Royal CLXX


Náufragos

Completa-se hoje um mês de um estado de emergência que se vai prolongar por tempo ainda indeterminado. Na Região, 35 dias de confinamento. Pelos ecrãs assistimos, estupefactos, ao desenrolar caótico da pandemia, a escassez de meios, os cercos sanitários, a tragédia dos lares de idosos, as mortes, o apagar aflitivo de milhares de empresas, milhões de desempregados e o dealbar da maior crise económica e social das nossas vidas. O governo vai tentando gerir o pânico, numa roda viva de especialistas e curvas e promessas vazias. Por cá, a Autoridade de Saúde, curvada sobre o seu pullover fúcsia, vai debitando diariamente números, estatísticas, ordens vãs e a certeza de que ninguém sabe realmente o que fazer. Entretanto, no meio do golpe de marketing político de um avião da SATA ir à China em busca de equipamentos de protecção, esse mesmo governo recusou prestar socorro a um navio com 700 seres humanos a bordo, negou friamente, àqueles náufragos, um porto de abrigo e a mais básica ajuda humanitária, sem hesitação, sem dó, sem compaixão. Sem que se ouvisse sequer um sobressalto cívico, tão ocupados andamos a discutir o uso de máscaras. É nisto que nos estamos a tornar, e isto só agora começou…


quinta-feira, 9 de abril de 2020

Café Royal CLXIX


O fim do sonho

Dentro desta tempestade não é fácil imaginar a bonança. No meio da absoluta perplexidade em que vivemos, da ensurdecedora cacofonia dos palpites, os memes, os “especialistas” e todos os outros gurus de internet e os seus definitivos vaticínios, não é fácil adivinhar o futuro. Não há enciclopédia de história que ilumine o “fundo do túnel”, que explique, mesmo que só de rascunho, como será o dia de amanhã, o dia depois do vírus. No entanto, mesmo no centro do caos, algumas coisas são já certas. A busca cega de uma cura para a pandemia vai dizimar a economia tal como a conhecemos. A UE vai-se desintegrar e os países vão-se isolar ainda mais dentro dos seus egoísmos e ganâncias individuais. As estruturas políticas vão desmoronar e a própria Democracia vai ser posta em causa. O Mundo irá tombar do precipício em que se encontra e mergulhar numa profunda, e nunca antes vista, convulsão social. Quando sairmos de casa, o grosso das estatísticas não será das vítimas inocentes do Covid-19, será dos que irão tombar às mãos dessa pestilência maior que dá pelo nome de autoritarismo e isolacionismo, as vítimas da implosão desse sonho antigo chamado solidariedade entre os povos.


in Açoriano Oriental

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Café Royal CLXVIII


Guerra

É a expressão mais utilizada para descrever esta crise. A metáfora é má, mas é simplista o suficiente para uso político. Importa, então, saber que guerra é esta? Quem é o inimigo? Que generais temos, que armas e estratégias usam? E, mais importante de tudo, por que razão lutamos e para defender o quê? Ao Governo, tudo parece claro e a resposta fácil: o inimigo é o vírus, põe-se a vida normal em pausa e a economia em coma (esperando que um milagre as possa reanimar) e assim salvam-se vidas. No entanto, o vírus tem, felizmente, uma taxa de letalidade a rondar o 1% e rapidamente percebemos que a verdadeira batalha é pela sobrevivência do SNS perante um inimigo que há muito havia sido anunciado e, o pior, que os nossos sucessivos governantes escolheram precisamente deixar falir o Estado Social para salvar a Banca e o Capital, tal como estão a fazer agora. As guerras travam-se não apenas para salvar vidas, mas para defender ideais e para lutar por formas e estilos de vida. Ora, foi exactamente o nosso “estilo de vida” o primeiro a morrer nesta guerra. O que vai nascer dos escombros é uma incógnita. A única certeza é que só dependerá de nós e das escolhas, solidárias, que fizermos.


quinta-feira, 26 de março de 2020

Café Royal CLXVII


O Futuro

Sem sobressalto, sem sequer inquietação, abraçámos a quarentena como se fosse um familiar perdido. Isolamento, distanciamento social, estado de emergência, a perda de pequenas liberdades, agora mínimas, mas que um dia serão fundamentais, o próprio confinamento, a tudo anuímos com a naturalidade do medo. O Governo, com o pretexto de combater a morte, matou rapidamente a economia. Milhares de pequenos negócios e empreendedores foram lançados à máquina incineradora do crédito bancário e da prorrogação de prazos. Dizem que estão a salvar vidas, mas omitem que a nossa vida já morreu. As crianças não vão à escola, os adultos não se dirigem ao trabalho, deixamos os cafés, inutilizamos os restaurantes, cancelamos as viagens, as amizades foram encarceradas nos grupos de WhatsApp. Quando tudo isto acabar, na próxima semana ou daqui a um ano (Quem sabe?), nada voltará a ser como antes. Não há regresso. O futuro encarregar-se-á de garantir isso. A nós, a cada um de nós, resta-nos decidir se queremos construir esse futuro, ou se o queremos apenas aceitar, tácita e passivamente, como seguimos fazendo agora com este contagiado presente.


quinta-feira, 19 de março de 2020

Café Royal CLXVI


Depois do vírus

Em silêncio, de forma capciosa, sibilina e quase imperceptível, o vírus foi-se espalhando calmamente, contaminando o mundo com a sua imparável e definitiva virulência. À iminência da morte seguiu-se o pânico e o caos. Vivemos agora debaixo da influência do medo, da ascendência do pavor. Não são só os corpos o que o vírus contamina, é a própria tessitura da sociedade. É a argamassa da comunidade que é corroída e se esboroa, de dia para dia. Estamos em guerra contra um inimigo invisível, dizem-nos solenemente os estadistas do momento e decretam medidas, isolamentos, quarentenas. Fechem as fronteiras, parem o mundo, grita o coro das redes sociais. Tanto ou mais do que uma crise de saúde pública, esta é uma crise de representação política e de modelo económico, é uma crise civilizacional. É todo o mundo que construímos, desde a revolução industrial, que está a desabar sob os múltiplos efeitos da contaminação. O mundo, tal como o conhecíamos, perdeu o sentido. Não há normalidade possível porque a normalidade é, ela própria, uma parte do vírus. A pergunta a que todos teremos de responder é que mundo queremos que nasça desta morte? Que futuro queremos para amanhã, depois do vírus?


quinta-feira, 12 de março de 2020

Café Royal CLXV


Corona

Para lá das questões imediatas – contenção, tratamento, cura – a crise do Covid-19 levanta outras interrogações, com as quais nos devíamos, também, inquietar. A mais dramática, é a constatação de que não há reação para o imponderável. Perante o desconhecido não há resposta, não há protocolo pré-estabelecido. Ansiamos por controlo e a verdade é que ele não existe. Perante o disseminar do vírus, cujas consequências vão muito para lá da emergência médica, o mundo vai atabalhoando-se entre o isolacionismo totalitário chinês, a arrogância ignorante americana, o latino-laxismo italiano e o pânico mediático global. Por cá, vamos pendulando entre a hipocondria histérica do Prof. Marcelo e a desorientação de um governo que não sabe o que fazer. Num mundo interligado exigem-se respostas globais e, principalmente, solidárias. Perante a brutalidade da pandemia, mais importante do que fechar fronteiras, ou abrir linhas de crédito, seria uma consciência mundial de que só com confiança e entreajuda é que se pode conter e tratar os vários contágios do vírus. Talvez então, Corona volte a ser, apenas, nome de uma boa cerveja mexicana.


quinta-feira, 5 de março de 2020

Café Royal CLXIV


Peixes voadores

O Surrealismo é um movimento artístico que nasceu em Paris nos anos 20. Os surrealistas, liderados por André Breton e inspirados nas teorias psicanalíticas de Freud, defenderam enfaticamente uma Arte alicerçada no inconsciente, em detrimento da lógica do racionalismo. Para os surrealistas, a Arte deveria rejeitar os valores tradicionais e abraçar o sonho e a imaginação com o intuito de libertar o Homem de uma existência meramente utilitária. De acordo com Breton: “aquele que não conseguir visualizar um cavalo a cavalgar um tomate é um idiota.”! Esta semana, o Açoriano Oriental deu eco à insatisfação de alguns comerciantes de peixe com a reduzida capacidade de carga dos novos A321LR neo da SATA que impossibilita a exportação atempada para os mercados continental e norte-americano. Pressupor que a SATA, que está na situação em que está, deveria ter como foco o transporte de pescado, é algo que só pode ser descrito como surrealista. “Novos aviões dificultam transporte de peixe”, dizia a parangona (em executiva, acrescento eu). É o chamado Surrealismo Açórico! Nem Breton faria melhor…


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Café Royal CLXIII



Era o fim da primeira grande guerra. Um pouco por toda a França, milhares de jovens soldados, debilitados, malnutridos e intoxicados, encavalitavam-se, uns sobre os outros, nas trincheiras e nos hospitais. Em Étaples-sur-mer, norte de França, o exército expedicionário inglês montou o seu principal hospital de campanha. Mais de 100 mil soldados fazem trânsito em Étaples diariamente. Para prover à alimentação, foi improvisada uma suinicultura e milhares de galinhas são trazidas dos campos e vilas mais próximas. No Inverno de 1917, os médicos relatam os primeiros casos de uma misteriosa e incurável doença respiratória que se dissemina rapidamente. Em cada espirro ou convulsão de tosse, meio milhão de partículas virais são espalhadas pelo ar. Durante os cerca de dois anos e meio seguintes, perto de 30 Milhões (!) de pessoas, em todo o mundo, perderam a vida, naquela que foi a maior pandemia da história contemporânea. Curiosamente, a região do globo menos afetada foi a China. Até ontem, 77931 pessoas, em todo o mundo, estavam infetadas com coronavírus. Até ontem, 2618 mortes e destas apenas 23 fora da China, mas, quem veja as notícias parece que estamos a viver uma nova Gripe Espanhola.



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Café Royal CLXII


Polarização

Os sinais estavam todos lá, mas, fiéis aos nossos proverbiais brandos costumes, achámos que estávamos imunes às pandemias do momento. Populismo, extremismo, xenofobia, autoritarismo e toda uma outra panóplia de vírus, que se expandiram pelo mundo, nas últimas décadas, em proporção maior que a do Coronavirus, aos quais nós, uns à beira-mar plantados, outros no meio do mar alçados, julgámos, placidamente, estar a salvo de qualquer risco de contaminação. Eis que um dia, uma sondagem dá 6% ao partido da extrema-direita, um jogador de futebol é expulso do campo pela selvajaria xenófoba de uma turba de energúmenos e o país político e social entrincheira-se na discussão maniqueísta e estéril da “dignidade” da morte. E, de repente o país deixou de ter um centro para ter dois polos: o branco e o preto, os bons e os maus, os que defendem a vida até ao último suspiro e os que querem exterminar todos os velhinhos. A democracia é o sistema político que nos impele à concertação, ao diálogo e, acima de tudo, ao aceitar do outro. A verdadeira Democracia não é a hegemonia das maiorias, mas a protecção que dá às minorias que vivem dentro de si. Perder isso é perdermo-nos a nós próprios.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Café Royal CLXI


Ah, o Amor!

Precisará o amor de um dia? Ou de um Santo? Precisará o amor de uma celebração anual, revestida de montras repletas de peluches, chocolates e lingeries de melhor ou pior gosto? Se o amor for só comércio, o coração não será mais do que uma caixa registadora. Amor é dádiva, não é penhor. Amor não é cambio, nem valor. Não, o amor não se vende, não se materializa num qualquer cartão colorido, nem num ramo de flores, mesmo que sejam rosas. O amor é transe, não é transacção. O amor é um olhar, um ensejo, é a doce ternura de um beijo, um leve toque de mão. O amor é uma borboleta no estômago e um sorriso. Uma vergonha tímida e uma coragem gigante. O amor é um arrebatamento súbito e uma promessa para a vida. O amor é desapego. O amor não tem horário, nem dia no calendário. O amor não tem um dia, amor que é amor é-o a cada dia. O amor não se celebra uma vez por ano como se fosse um feriado, ou uma pausa, ou o “meter um Artigo”. O amor é um instante de luz que cega e espanta. O amor é uma chama que nunca se apaga. E, é preciso cuidar do amor em cada momento, dia-a-dia e sempre, todos os dias do ano, até ao último sopro da vida.


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Café Royal CLX


Steiner

Desde o início desta crónica, Janeiro de 2017, que George Steiner é, e continuará sempre a ser, uma figura tutelar deste “café”. Nesse primeiro texto socorri-me da bela imagem de Steiner de que a “ideia de Europa” está alicerçada no hábito europeu de frequentar cafés e, principalmente, de, nesses cafés discutir e debater ideias livremente e no choque benigno entre diferentes correntes literárias, visões científicas ou opiniões políticas. Uma Europa contruída por dois pilares fundamentais – liberdade de pensamento e respeito pelo outro. A Europa das Ideias. Só possível, aliás, pela existência dessa persona, que o próprio Steiner representava e da qual era um dos últimos verdadeiros exemplares, o Intelectual. Steiner dedicou a sua vida a duas atividades em vias de extinção: a leitura e o pensamento. Mas sempre com um profundo respeito pelas ideias, mesmo que estas fossem antagónicas entre si. Num tempo em que a excessiva especialização, a abstração rápida e o entrincheiramento ideológico se tornam sinónimos de cultura, a noção de que é preciso perder tempo a pensar é um dos grandes legados de George Steiner, e um saudável exercício que continuaremos a cultivar aqui, no Café Royal.


quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Café Royal CLIX


O Bunker

Por alguma razão insondável surgiu a ideia de que São Miguel está sob uma enorme pressão turística, ao ponto de 100 pessoas, em simultâneo, numa lagoa, ser um gravíssimo crime ambiental. Esta noção é falsa. A Madeira tem mais de 1 Milhão de turistas por ano, São Miguel metade disso e a Gran Canária, medo, mais de 4 Milhões! Nas organizações, os dados são a base de uma decisão ajuizada. Infelizmente, na política, as decisões são tomadas, apenas, com base em milhões e eleições. Recentemente, criou-se, também, a ideia de que a Lagoa do Fogo precisa de ser protegida. Para o Governo Regional, essa “protecção” significa a construção de um bunker de betão na cumeeira da lagoa. O surreal disto tudo é o facto, admitido pelo próprio Governo, de que os únicos dados de que dispõe sobre a visitação à lagoa, serem as contas feitas por dois vigilantes, em horário das 9 às 5, nos meses de verão. É assim, sem qualquer estudo fidedigno, sem uma estratégia consertada de preservação ambiental e turística, sem respeito, até, pelas pessoas, que se pretende esventrar e descaracterizar uma das últimas paisagens ainda relativamente intocada da ilha.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Café Royal CLVIII


Metáforas

Há uma clara metáfora no facto do congresso do PSD-Açores se ter realizado na ilha montanha. É como se a mágica ilha do Pico representasse, afinal, o árduo caminho que Bolieiro terá de fazer até ao ambicionado cume do Shangri-la de Santana. Escolha consciente, ou não, a verdade é que as montanhas são símbolos, presentes nas mais variadas culturas e tradições e, em particular, na nossa. O Olimpo, morada de Zeus. O monte Ararat onde a arca de Noé se suspendeu após o esvair do dilúvio. Sinai, onde Moisés recebeu os mandamentos. Ou, os Sermões da Montanha, seguramente tão próximos de Bolieiro, que não na forma, pelo menos no tom. E, essa mítica montanha de Maomé, que não sabemos se veio, ou se foi. A montanha do Pico ficará, assim, marcada na jornada política de Bolieiro. Ao mesmo tempo, na Lagoa, as cúpulas do PS-Açores reuniram-se em jornadas autárquicas, de costas voltadas para a força do mar, que irá, a breve trecho, obliterar mais uma inútil betonização de um património que devia ser de todos nós. Autêntica metáfora essa para o poder, que é de nós todos, de não permitir a entronização dessa putativa dinastia que aparenta querer tomar conta do partido e dos Açores.


quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Café Royal CLVII


Da sacanagem

O povo brasileiro, que é uma espécie de português, mas melhorado, tem um ditado delicioso que reza assim: “rico saca, pobre saqueia e político sacaneia…”. Indo na mesmo toada e vendo o pagode regional, dá vontade de dizer que estas ilhas são um vendaval de sacanagem. Um dos mais recentes exemplos é a selvageria imperdoável que a Câmara Municipal da Lagoa está a fazer no calhau da Atalhada. Toda a gente sabe que dinheiro e Caterpillars nas mãos de políticos são piores que álcool na boca de um bêbado. Mas, nunca deixa de nos impressionar, de cada vez que vemos políticos, supostamente responsáveis, a malbaratar os dinheiros públicos e, pior, a mentir aos cidadãos. Passando por cima da já de si questionável mais-valia do projecto, uma ciclovia na orla marítima da Atalhada, o que sucedeu foi que uma retroescavadora esfrangalhou literalmente umas dezenas de metros de barrocas de mar, incluindo alguns belos exemplares de escoadas lávicas com milhares de anos. Em face da barbárie, a Câmara tentou justificar-se com meia dúzia de anormalidades. O grande Nelson Mandela disse uma vez: “ao contrário de outros políticos, eu sei admitir um erro.” Faltam-nos Nelsons como Mandela…


in Açoriano Oriental

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Café Royal CLVI


O oportunismo…

Após um interregno provocado por coincidências de calendário, regresso ao Café, repondo uma regularidade que se manteve, ininterruptamente, durante três anos. Perdoar-me-á, no entanto, o leitor que regresse com temas políticos, mas tendo em conta que 2020 será um ano de eleições regionais e olhando o estado do país e do mundo, a política torna-se, infelizmente, fundamental. Amanhã saberemos se o primeiro orçamento da nova legislatura teve, ou não, aprovação parlamentar. Este orçamento transformou-se num verdadeiro epifenómeno, dele dependendo, não só a sobrevivência do governo, mas, e principalmente, os futuros equilíbrios políticos nacionais. “A política é a arte do compromisso”, é uma citação erradamente atribuída a Otton von Bismarck, que o que disse realmente foi que “a política é a arte do possível, do alcançável – a arte do melhor possível.” Ora, o que perpassa, quando nos detemos a reflectir sobre o fim da geringonça; a formação do governo em Espanha, refém da questão catalã; ou, essa coligação contranatura, de conservadores com verdes, na Áustria, é que a política hoje tornou-se numa verdadeira “arte do oportunismo”. O que falta saber é, para onde isso nos leva…


in Açoriano Oriental 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Inquérito DA 01.01.2020


> 1 - Do que vivemos em 2019, sente que 2020 vai ser muito diferente nos Açores, no plano geral, em termos económicos e políticos?

Certamente que sim. Desde logo, e começando pela parte política, porque 2020 será um ano de eleições regionais, ao que acresce o facto de o PSD-Açores arrancar o ano com uma nova liderança e um congresso regional. Estes dois factores farão com que o ano político seja marcado, essencialmente, pelo esforço do PS-Açores em manter a sua maioria absoluta no parlamento e pela tentativa, por seu lado, do PSD-A de roubar essa maioria. Este confronto vai, certamente, mudar o cenário de quase estagnação a que assistimos, não só em 2019, mas nesta última legislatura. 
Quanto ao resto, sinceramente, não me parece que possam surgir grandes mudanças ou surpresas, tirando os casos em investigação judicial, mas já lá vamos. As grandes questões políticas, económicas e sociais dos Açores são crónicas e não creio que no quadro do actual modelo político da autonomia regional se consigam resolver: a ausência de um modelo de desenvolvimento económico sustentável, essa palavra tão na moda, mas tão vilipendiada pelos próprios políticos; as profundas desigualdades sociais; os índices de pobreza; os desequilíbrios e os ódios, principalmente os ódios, pequeninos e mesquinhos, entre as ilhas; o peso excessivo da administração pública no emprego, associado à ausência de alternância democrática. Tudo isto são problemas crónicos, que já vêm de décadas, que continuaram em 2019 e que se vão perpetuar em 2020. 
Agora, indo às questões mais concretas, há, obviamente, assuntos que forçosamente terão que ter alguma evolução em 2020. À cabeça, o dossier SATA. O governo não pode correr o risco de viver um ano eleitoral sem que o problema da SATA esteja resolvido ou, pelo menos, contido. Veremos se isso será possível e se sim com que consequências, para a empresa e para os Açores e os açorianos. No plano económico há também grandes incertezas quanto ao comportamento do sector do turismo, por exemplo, uma área altamente sensível e que neste governo tem sido confrangedoramente maltratado. O Turismo tem sido a alavanca da nossa economia e é um sector fortemente dependente de dois vectores: a qualificação da oferta do Destino, onde pouco ou nada foi feito, e a promoção externa do Destino. Ora, o actual governo entregou totalmente na mão dos privados o importantíssimo dossier da promoção, ao que acresce o facto de essa alteração ter demorado cerca de três anos e veremos se não vamos começar a sentir já os efeitos perniciosos desses três anos de total ausência de uma estratégia efectiva e eficiente de promoção turística. 
Quanto aos casos de justiça, esperamos que 2020 traga finalmente alguma conclusão aos incontáveis casos que assolaram a política regional nos últimos anos. O caso Gaudêncio, a operação Asclépio, a ATA, a SPRHI, e outros que possam ainda surgir, podem vir a ter um impacto imprevisível na política regional. Embora, o estado depauperado em que se encontra o Ministério Público na região nos leve a crer que dificilmente se poderão esperar grandes desenvolvimentos. Este é, aliás, um gravíssimo problema, que deveria provocar um profundo sobressalto social nos cidadãos e nos políticos em particular, são eles os maiores prejudicados com o eternizar de suspeitas e a indefinição destas acusações. Este é um problema que corrói a nossa democracia, que envenena a confiança dos cidadãos nos governantes e que devia, realmente, merecer a maior atenção de todos. E não é com promessas vãs de delações premiadas que se resolve o problema. É dotando o Ministério Público e as instituições judiciais com meios, técnicos e humanos, que estes casos podem ser resolvidos de forma célere e independente, doa a quem doer.

> 2 - As eleições regionais são acontecimento incontornável neste 2020. Qual a sua percepção em termos de estratégias dos partidos e da mobilização dos eleitores?

No meu entender, as grandes questões que se vão colocar nas eleições regionais de 2020 são a maioria absoluta e a abstenção. O resto são minudencias. 
O principal objectivo do PS-Açores é manter a sua maioria absoluta e para isso vai usar todas as armas ao seu alcance, começando, obviamente, pela máquina governativa e, por essa autêntica fonte da eterna juventude, que é a gestão dos fundos europeus. Derramar o elixir dos euros sobre as ilhas é meio caminho andado para as vitórias eleitorais. Resta saber, se isso será suficiente para fazer esquecer o óbvio desgaste que o partido e a governação sofrem neste momento junto do eleitorado. A imagem política de Vasco Cordeiro, que é visto ainda como um homem-bom, sofre uma clara erosão com a arrogância, a prepotência e, em muitos casos, a incompetência dos quadros superiores e intermédios de que se rodeou no governo e no partido. Aliás, a própria mobilização do partido vai estar marcada pela percepção que for possível fazer, pelos militantes, sobre o pós-Vasco Cordeiro. E, não creio que a ideia que se parece estar a estabelecer de que o putativo sucessor de Vasco Cordeiro possa vir a ser Francisco César augure um grande futuro para o Partido Socialista açoriano. É nesse jogo de percepções que se vai apostar a possibilidade, ou não, de uma maioria absoluta para o PS-A. 
Do lado do PSD, o grande desafio é convencer os eleitores de que é, de facto, possível tirar a maioria ao PS, sem que com isso os Açores caiam em qualquer espécie de caos ou de pântano. O PSD-A tem que convencer um eleitorado tendencialmente conservador e atreito a grandes mudanças, atávico até, diria eu, de que é possível fazer essa mudança de uma forma ponderada e construtiva. É quase como se o verdadeiro adversário do PSD não fosse o Governo e o PS, mas antes esse excessivo conservadorismo do próprio eleitorado açoriano. Se Bolieiro conseguir fazer passar a mensagem de que, ganhando ele ou não, a era do PS já chegou ao fim, pelos próprios erros do PS, aliás, então sim poderemos ter uma surpresa lá para Outubro. Se não, basta ao PS-A agitar a figura imponente de Vasco Cordeiro para garantir uma vitória nas eleições. 
A segunda questão é, de facto, a abstenção. Os Açores, com os níveis repetidos de abstenção que tem tido, caminham, a passos largos, para não serem uma verdadeira democracia. Quando as eleições são ganhas com a manipulação de uns quantos votos, em meia dúzia de freguesias chave, quase ao jeito de sindicatos de votos, então não são realmente democráticas. E não podemos deixar que este cenário cresça ou, sequer, que continue. Na minha opinião, em todas as freguesias em que a taxa de abstenção seja superior a cinquenta porcento, as eleições deviam ser repetidas. Obrigando-se assim os partidos a um maior esforço de clarificação e mobilização dos eleitores e, por seu lado, os eleitores a um maior compromisso com a democracia e a governação. Para além, claro, da abertura da Assembleia Legislativa Regional à candidatura de listas de cidadãos, mas isso, na nossa presente partidocracia parece-me mais ou menos impossível, infelizmente. 
De qualquer modo, pelo menos para os comentadores, 2020 vai ser um ano rico em matéria prima.