sexta-feira, 30 de março de 2018

Café Royal LXV

6’17’’

A imagem é brutal e ficará como uma das imagens do nosso tempo. Uma jovem rapariga, cabelo rapado, em silêncio, em lágrimas, depois de citar os nomes das vitimas um a um, ousando impelir toda uma multidão a pensar o significado de 17 vidas perdidas em seis minutos e dezassete segundos. Perante tal imagem, podemos optar por olhar para a tragédia de Parkland, como apenas mais um lamentável episódio, na já longa série de tiroteios em massa a que os E.U.A. já nos acostumaram. Podemos achar que não nos toca. Alyssa Alhadeff, 14. Scott Beigel, 35. Martin Duque, 14. Peter Wang, 15… estas são apenas 4 das 17 mortes desse massacre. Mas, se olharmos para as mais de 100 pessoas que morreram só em 2017 em consequência dos fogos florestais em Portugal e lhes imaginarmos os nomes e as idades: Pedro, 35. Ana, 4. Maria, 70. Zé, 40; talvez a morte não seja tão distante. Talvez a tragédia seja mais nossa. Nos E.U.A., este triste acontecimento levou à mobilização de uma geração inteira em torno de uma causa civilizacional que, certamente, não deixará a América igual daqui para a frente. Em Portugal, na nossa tragédia, discutimos relatórios mais ou menos técnicos e reduzimos a responsabilidade política a acções de marketing, com políticos de enxada na mão a fingirem que limpam matas…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 22 de março de 2018

Café Royal LXIV

Sobre escolhas

A História está atulhada de casos em que ditadores são eleitos por via democrática. Talvez o mais famoso de todos seja o da eleição livre que fez do Partido Nazi o mais votado do Reichtag alemão em 1933 e a subsequente nomeação de Hitler como Chanceler. Este é, aliás, um caso de estudo sobre como por via do discurso e do contexto as “massas” são manipuladas pelos políticos, condicionando-lhes as escolhas. A chave para este problema está na capacidade de cada cidadão compreender e interpretar o discurso político de forma a fazer escolhas educadas. Quanto mais cultas e conscientes forem as pessoas, melhores serão as democracias. Após a eleição de Trump tem sido amplamente debatida a influência da chamada “manipulação Russa” e o papel das redes sociais no condicionamento emocional dos eleitores. O mais recente episódio é a revelação de que uma empresa de análise de dados recolheu e tratou abusivamente os perfis de 50 milhões de subscritores da rede social Facebook para influenciar o resultado das eleições. O mais surpreendente neste caso não é a manipulação em si, mas o facto de o ónus estar a ser colocado no próprio Facebook. Culpar a rede social é o mesmo que culpar a impressora ou o papel pelo conteúdo do Mein Kampf!
 

quinta-feira, 15 de março de 2018

Café Royal LXIII

O Mistério

Talvez o maior mistério de todos, mais até do que o da própria Vida, seja o Mistério da Fé. Essa concepção de algo que transcende a razão, que está para lá de nós, e se consubstancia em Deus podendo apenas por Ele ser revelado. A Fé, ao contrário da Vida, não é mensurável, não tem leis cientificas que a possam provar. A Fé é o dom de Deus, diz-nos a doutrina cristã. Mas é, também, e não paradoxalmente, Palavra, ensinamento. É interpretação, conhecimento e partilha da Palavra. A origem do cristianismo está no exemplo sacrifical de Jesus e construiu-se, ao longo de dois milénios, na sucessiva interpretação e partilha da sua Palavra. Na sua essência, todas as religiões, mas particularmente as religiões, ditas, do Livro, são suportadas por estes dois princípios fundamentais – Crença e Doutrina; Fé e Palavra. E é nas e pelas palavras que se torna palpável, por assim dizer, o Mistério de Deus. Para alguém que, como eu, vive em dialéctica entre um ateísmo moderado e um agnosticismo militante é exactamente nas e pelas palavras que se materializa a imanência do Dom, a revelação do Mistério. Seja nas palavras do Papa Francisco, que nos insta a olhar as pessoas ou nas de Stephen Hawking, que nos obrigou a nunca deixar de olhar as estrelas, porque, em boa verdade, “o que está em cima é como o que está em baixo” …

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 8 de março de 2018

Café Royal LXII

O Retrocesso

O discurso político é demasiadas vezes contaminado por índices, métricas, estatísticas e outro tipo de indicadores mais ou menos incompreensíveis. Esta infecção pelos números leva a que os políticos se esqueçam das ideias e, pior, das pessoas. Nos últimos tempos, os políticos açorianos, ocupados na discussão dos índices económicos, dos indicadores de pobreza ou na excitação das taxas de crescimento turístico, parecem ter esquecido o fundamental – as próprias ilhas. Se há questão imprescindível hoje para o desenvolvimento social e económico dos Açores é a afirmação de um ideário arquipelágico. Uma concepção das ilhas que as promova como um todo. Mas não como uma soma de 9 partes iguais, antes como um conjunto de 9 realidades distintas que, na sua coesão, geram um todo maior e mais completo. Um deputado em greve de fome por causa de uma cantina ou o forró de municípios na BTL são apenas alguns dos sinais desse grande retrocesso na política açoriana que é o fomentar de bairrismos, divisões e todo o tipo de sectarismos e reivindicações individuais, que por estes tempos crescem, como cogumelos, pelas ilhas. Urge reencontrar uma ideia de arquipélago, em que Angra é a cidade mais bonita, o Poço da Alagoinha ou a Lagoa do Fogo as imagens mais marcantes e a visão do Pico desde a baía da Horta a sua mais profunda experiência…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 1 de março de 2018

Café Royal LXI

Do eufemismo

O eufemismo é uma figura de estilo utilizada para mascarar uma determinada ideia com outra mais suave. “Ir para o céu” é, obviamente, um eufemismo para dissimular o facto de morrermos e sermos enterrados. Na política, o eufemismo é uma forma de arte. Em conferência de imprensa, o Presidente e Vice-presidente do governo anunciaram uma reforma do sector público empresarial da região sob a forma de alienação, extinção e desvinculação. Reforma é, claramente, um eufemismo. Mas, o que é importante questionar é porque razão é o Partido Socialista que privatiza e extingue, sem critérios claros, uma parte das empresas públicas da região, para, por um lado engordar a mão do estado e, por outro, ofertar os anéis aos mercados? E, ainda por cima, sem aviso prévio ou mandato, porque a verdade é que em nenhuma página do seu programa eleitoral e de governo surgem as palavras alienar; internalizar ou desvincular. Aliás, as palavras vender e extinguir apenas surgem na pág. 51 – “vender” melhor o peixe – e pág. 1 – “extinguir” o Ministro da República. Mais, na pág. 16, o que o governo se propõe fazer é: “valorizar o exercício da função de acionista/proprietário da Região através da melhoria dos mecanismos de controlo[…]”.