História de um país sem rumo
Quem calcorreia hoje as ruas de Ponta Delgada, descendo da
Machado dos Santos à António José d’Almeida, rumo à Matriz, dificilmente saberá
quem foram esses expoentes do republicanismo que dão nome a duas das mais
importantes artérias do nosso burgo. Machado Santos, vice-almirante, herói do 5
de Outubro, foi um perpétuo revolucionário, tido como o “pai da República”.
António José d’Almeida, médico e opositor da monarquia, ficou conhecido por um
manifesto publicado em Coimbra, na sua juventude, intitulado Bragança, o
Último, que o levou à prisão e ao estatuto de herói republicano. Mais tarde
viria a ser Presidente da República, entre 1919 e 1923. Ambos maçons, como
muitos republicanos da época, simbolizam o espírito de um tempo dividido entre
a agitação contestatária e a aspiração progressista. A Primeira República foi
um imensamente agitado período de transição entre uma monarquia de setecentos
anos e uma ditadura, que duraria quarenta e oito, e que pretendia vir repor uma
certa organização e esteio a um país desgovernado. Nesses curtos 16 anos,
Portugal teve 45 governos e 8 presidentes.
Se um futuro historiador olhar o país daqui a 100 anos,
reconhecerá certamente as mesmas tendências, as mesmas aspirações populares
incumpridas e os desmandos políticos de elites conspiracionistas. Provavelmente
calcorreará ruas com nomes como Costa ou Montenegro, nomes que, como tantos
outros, cairão também no esquecimento. A história, como dizia Mark Twain, não
se repete, mas rima. E há, neste tempo que vivemos, uma impressão forte de fim
de regime. Cinquenta anos após Abril, o país parece soçobrar sob o peso do que
ficou por cumprir.
Dos famosos três D’s que Medeiros Ferreira levou ao
Congresso Democrático de Aveiro, em 1973, e que Melo Antunes transportaria para
o programa do MFA, a descolonização redundou num desastre, a democratização
sucumbiu ao poder do capitalismo partidário, e o desenvolvimento coloca
Portugal entre os países da UE com maior desigualdade na distribuição da
riqueza. Só Bulgária, Roménia, Letónia e Lituânia nos ultrapassam nesse triste
ranking do índice de Gini.
Se há ilação a tirar das últimas eleições, é a de que existe
um descontentamento generalizado no país, um povo descrente e cansado e uma
classe política incapaz de se regenerar e de incutir esperança nos eleitores. O
mesmo historiador futuro, ou uma cartomante de agora, dirá, e com razão, que o
momento é propício a sebastianismos, a líderes salvíficos que, acoberto de um
manto de nada, como um nevoeiro diáfano, se apresentam como portadores da
ordem, do bom-senso e do progresso, mesmo que falso e mentiroso e empacotado em
insultos e alarvidades.
Quando o centro ruir, a democracia ruirá com ele. Muito
provavelmente, o país elegerá um ex-almirante de fama vacinal para o cargo de
mais alto magistrado da Nação. Um primeiro-ministro pouco transparente e de
passado duvidoso cairá em desgraça num escândalo judicial envolvendo empresas e
favores. Montenegro cairá, e o PPD cairá com ele. E, depois disso, um líder
populista e demagogo poderá ascender ao poder, erguido em promessas doces e
inebriantes de autoridade, limpeza e patriotismo. O velho e reconhecido “pôr
ordem nisto”, ou o salazarento “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”.
A direita será toda ela populista, com tudo o que isso traz de reacionarismo e
nacionalismo bacoco. O Almirante, então, dirá que o país precisa de
estabilidade e dará o seu magnânimo aval a uma coligação entre Ventura e um
qualquer Passos Coelho da vida. A esquerda, órfã e desorientada, será remetida
a uma oposição triste e prolongada. E Portugal mergulhará, de novo, numa
bem-comportada e resignada noite autoritária com o Almirante ao leme, de fato
assertoado e barba grisalha, sabe-se lá com que rumo.
Oxalá me engane. Porque se não irei acabar os meus dias na
frente de um qualquer pelotão de fuzilamento por delito de opinião e tráfico de
liberdade de expressão.
Sem comentários:
Enviar um comentário