quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Speakers' Corner 5

Da Democracia na América

À hora em que o leitor olhar este jornal provavelmente já saberá quem foi o vencedor das eleições americanas, ou então, talvez não. À hora em que escrevo, mais de 240 milhões de eleitores registados para votar já terão feito ouvir a sua escolha na maior democracia do mundo. Se o resultado pode parecer problemático e imprevisível, há já uma certeza que podemos tirar deste processo eleitoral: a América está irreconciliavelmente dividida. E estas eleições apenas ajudaram a cavar ainda mais esse fosso de apartamento entre essas duas américas.

No entanto, já em 1835, um jovem aristocrata francês alertava para os perigos que ameaçavam a jovem democracia americana. “O despotismo de uma fação não deve ser menos temido do que o despotismo de um indivíduo” escreveu Alexis de Tocqueville no seu “Da Democracia na América”, alertando-nos para o que considerava ser a perigosa tendência para a “tirania da maioria”. Como assistimos agora, nestas eleições em que o insulto e as bandeiras do medo, agitadas à exaustão por ambas as partes, com acusações estridentes como “lixo” e “Hitler”, são o denominador comum dos slogans políticos. Muito pouco, na verdade, se quisermos ser isentos e independentes, distingue atualmente a praxis eleitoral de Republicanos e Democratas.

No final dos anos 90, dois políticos de esquerda, Tony Blair e Bill Clinton, nos dois lados do grande lago Atlântico, deram forma a uma teoria política a que se designou chamar de “Terceira Via”. O “centrismo radical”, como lhe chamou Anthony Giddens. Vindos da ressaca de Thatcher e Reagan, os dois líderes da grande social-democracia ocidental procuraram fazer a síntese entre o estado social e a economia de mercado como forma de, para além de conquistarem o poder, o poderem manter. Quase trinta anos passados, o que a Terceira Via fez ao centro-esquerda mundial foi desmembrá-lo e descaracterizá-lo, despindo-o das suas mais profundas ideologias e princípios, em prol de uma frenética obsessão com o politicamente correto e, em última instância, da fixação permanente das máquinas partidárias na mera vitória eleitoral.

Ao longo do tempo, a cedência ao capitalismo mais selvagem, levou a um afastamento dos eleitores do centro, que deixaram de ver as suas aspirações acarinhadas pelos partidos de centro-esquerda, e foi isso, também, que levou ao surgimento de agendas cada vez mais radicais e extremistas, com os nacionalismos xenófobos, de um lado, e os wokismos de género, do outro. Se associarmos a isto as consequências devastadoras de duas crises dramáticas no espaço de uma geração – financeira em 2008 e pandémica em 2020 – temos o caldo perfeito para o mundo bipolar em que vivemos hoje.

Independentemente das nossas opiniões sobre Trump e Kamala, eles próprios já não representando bem a natureza de Republicanos ou Democratas, um episódio em particular torna-se paradigmático para a compreensão destas eleições e da crise que atravessa a América. Robert Kennedy Jr, sobrinho de John e filho de Bobby, foi candidato democrata às primarias do seu partido e, depois de escorraçado pela máquina partidária democrata, candidato independente, até, finalmente, e em desespero de causa, declarar o seu apoio a Trump. O movimento criado por Kennedy apresenta-se hoje com uma plataforma designada Make America Healthy Again, apostado em combater os lobbys financeiros das grandes companhias farmacêuticas começando, precisamente, no ponto nevrálgico da questão: a saúde. Tornar a América saudável outra vez. Nada podia ser mais de esquerda do que isto, mas é Trump, o proto-tirano, quem parece querer abraçar este movimento. Enquanto Kamala, e os democratas, tirando a questão do aborto, que defende, e bem, propõe políticas monetaristas que, ao final do dia, apenas perpetuam as desigualdades de um sistema baseado na gestão, não da saúde, mas, do negócio da doença. Como bem alertou Tocqueville, triste América que se divide entre duas formas de tirania.