Da Democracia na América
À hora em que o leitor olhar este jornal provavelmente já
saberá quem foi o vencedor das eleições americanas, ou então, talvez não. À
hora em que escrevo, mais de 240 milhões de eleitores registados para votar já
terão feito ouvir a sua escolha na maior democracia do mundo. Se o resultado
pode parecer problemático e imprevisível, há já uma certeza que podemos tirar deste
processo eleitoral: a América está irreconciliavelmente dividida. E estas
eleições apenas ajudaram a cavar ainda mais esse fosso de apartamento entre essas
duas américas.
No entanto, já em 1835, um jovem aristocrata francês
alertava para os perigos que ameaçavam a jovem democracia americana. “O
despotismo de uma fação não deve ser menos temido do que o despotismo de um indivíduo”
escreveu Alexis de Tocqueville no seu “Da Democracia na América”,
alertando-nos para o que considerava ser a perigosa tendência para a “tirania
da maioria”. Como assistimos agora, nestas eleições em que o insulto e as
bandeiras do medo, agitadas à exaustão por ambas as partes, com acusações
estridentes como “lixo” e “Hitler”, são o denominador comum dos slogans
políticos. Muito pouco, na verdade, se quisermos ser isentos e independentes,
distingue atualmente a praxis eleitoral de Republicanos e Democratas.
No final dos anos 90, dois políticos de esquerda, Tony Blair
e Bill Clinton, nos dois lados do grande lago Atlântico, deram forma a uma
teoria política a que se designou chamar de “Terceira Via”. O “centrismo
radical”, como lhe chamou Anthony Giddens. Vindos da ressaca de Thatcher e
Reagan, os dois líderes da grande social-democracia ocidental procuraram fazer
a síntese entre o estado social e a economia de mercado como forma de, para
além de conquistarem o poder, o poderem manter. Quase trinta anos passados, o
que a Terceira Via fez ao centro-esquerda mundial foi desmembrá-lo e descaracterizá-lo,
despindo-o das suas mais profundas ideologias e princípios, em prol de uma frenética
obsessão com o politicamente correto e, em última instância, da fixação
permanente das máquinas partidárias na mera vitória eleitoral.
Ao longo do tempo, a cedência ao capitalismo mais selvagem,
levou a um afastamento dos eleitores do centro, que deixaram de ver as suas aspirações
acarinhadas pelos partidos de centro-esquerda, e foi isso, também, que levou ao
surgimento de agendas cada vez mais radicais e extremistas, com os
nacionalismos xenófobos, de um lado, e os wokismos de género, do outro. Se
associarmos a isto as consequências devastadoras de duas crises dramáticas no espaço
de uma geração – financeira em 2008 e pandémica em 2020 – temos o caldo
perfeito para o mundo bipolar em que vivemos hoje.
Independentemente das nossas opiniões sobre Trump e Kamala,
eles próprios já não representando bem a natureza de Republicanos ou Democratas,
um episódio em particular torna-se paradigmático para a compreensão destas
eleições e da crise que atravessa a América. Robert Kennedy Jr, sobrinho de
John e filho de Bobby, foi candidato democrata às primarias do seu partido e,
depois de escorraçado pela máquina partidária democrata, candidato independente,
até, finalmente, e em desespero de causa, declarar o seu apoio a Trump. O
movimento criado por Kennedy apresenta-se hoje com uma plataforma designada
Make America Healthy Again, apostado em combater os lobbys financeiros das
grandes companhias farmacêuticas começando, precisamente, no ponto nevrálgico
da questão: a saúde. Tornar a América saudável outra vez. Nada podia ser mais
de esquerda do que isto, mas é Trump, o proto-tirano, quem parece querer
abraçar este movimento. Enquanto Kamala, e os democratas, tirando a questão do
aborto, que defende, e bem, propõe políticas monetaristas que, ao final do dia,
apenas perpetuam as desigualdades de um sistema baseado na gestão, não da saúde,
mas, do negócio da doença. Como bem alertou Tocqueville, triste América que se divide
entre duas formas de tirania.