quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 19

O país dos doutores

A notícia passou mais ou menos despercebida entre o corrupio mediático nacional, entretido com o cúmulo jurídico dos deputados do Chega e a minimaratona dos putativos presidenciáveis, mas conta-se facilmente. Na sua mais recente revisão do contrato coletivo de trabalho, a AHRESP e o Sindicato dos Trabalhadores do Setor de Serviços acordaram, entre outras coisas, a alteração da velha designação de “empregado de mesa” para uma mais moderna e fina denominação de “assistente de sala”. Diz o Expresso que a nova nomenclatura visa valorizar aquela que é vista como “uma das profissões mais mal amadas no turismo” (sic!). Um pouco como os cozinheiros que agora são todos chefs.

Esta poderia ser mais uma inconsequente e inócua aventura do tão em voga processo de cancelamento em curso. Em que as nossas sociedades se entretêm a rever terminologias, sinaléticas de wc e outros mais ou menos estapafúrdios detalhes de comportamento e inter-relação cultural e social. Mas, temo que haja aqui um sinal de algo mais profundo e alarmante com que nos devíamos todos preocupar: a continua desvalorização social de profissões determinantes.

Portugal sempre foi um país classista. São resquícios de um certo feudalismo intrínseco, e de uma certa imposição religiosa, que nem uma ascensão fulgurante de uma burguesia mercantil conseguiu aplacar. Salazar, como bom corporativista que era, para além de anticomunista primário, como todos os fascistas, procurou estabelecer um regime ditatorialmente controlador dos agentes económicos, funcionando como juiz das relações entre patrões e trabalhadores, oprimindo as liberdades dos últimos, mas também limitando muitas vezes as licenciosidades dos primeiros. Isto levou a um país de doutores, onde todos querem ser patrões, todos anseiam ser chefes e ninguém quer ser servente, muito menos simples trabalhador.

No seu “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, o sociólogo alemão Max Weber estabeleceu as bases da teoria da correlação entre filiação religiosa e estratificação social, tendo por base as estatísticas laborais da Alemanha no dealbar do século XX, identificando a propensão do puritanismo protestante pelo capital e o trabalho, e a maior inclinação humanista do catolicismo e a sua inerente tradição de culpabilização da riqueza.

O nosso país, eternamente enredado nas suas múltiplas manifestações do “Fado, Futebol e Fátima”, vive nessa teia de sub-reptícias hierarquias e vergonhas, onde riqueza e trabalho, estatuto, ou status, social, se quisermos, e relevância se imiscuem num permanente caldo cultural de idealização e embaraço. O aristocrata rural deu lugar ao doutor citadino e ambos dominando a criadagem com leves ares de sobranceria numa mão e caridadezinha na outra. Os eternos Tomás de Palma Bravo, de “O Delfim”, de Cardoso Pires, espécie de retrato último desse conservadorismo patriarcal e cínico português, que se pela por um BMW e a vivenda com piscina e, agora, com a interpretação semiótica da categoria profissional.

Vivemos num país onde todos querem ser doutores ou engenheiros, advogados e juristas, médicos, de bata branca e consultório privado, que, como dizia o Eça, é “chique a valer”. Já ninguém quer ser pedreiro ou carpinteiro, e até esses já só sonham ser empreiteiro, nem já sequer empregado de mesa, que isso é coisa para paquistanês fazer. Num país sobrelotado de licenciados, com canudos inúteis debaixo dos braços, tristes e incompetentes nas suas funções de técnicos superiores de vão de escada de secretaria governamental o que realmente faz falta são competências e trabalhadores. Quando terminei a universidade, nessa coisa dos títulos, autodenominei-me de “poeta, surfista e cultivador de ananases”. Hoje, depois de tudo o que já vivi, fico-me pela singela categoria de mero e simples estalajadeiro. Num país de tantos maus doutores, o que mais falta faz são bons empregados de mesa…

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