O país dos doutores
A notícia passou mais ou menos despercebida entre o corrupio
mediático nacional, entretido com o cúmulo jurídico dos deputados do Chega e a minimaratona
dos putativos presidenciáveis, mas conta-se facilmente. Na sua mais recente revisão
do contrato coletivo de trabalho, a AHRESP e o Sindicato dos Trabalhadores do
Setor de Serviços acordaram, entre outras coisas, a alteração da velha designação
de “empregado de mesa” para uma mais moderna e fina denominação de “assistente
de sala”. Diz o Expresso que a nova nomenclatura visa valorizar aquela que é
vista como “uma das profissões mais mal amadas no turismo” (sic!). Um
pouco como os cozinheiros que agora são todos chefs.
Esta poderia ser mais uma inconsequente e inócua aventura do
tão em voga processo de cancelamento em curso. Em que as nossas sociedades se
entretêm a rever terminologias, sinaléticas de wc e outros mais ou menos estapafúrdios
detalhes de comportamento e inter-relação cultural e social. Mas, temo que haja
aqui um sinal de algo mais profundo e alarmante com que nos devíamos todos
preocupar: a continua desvalorização social de profissões determinantes.
Portugal sempre foi um país classista. São resquícios de um certo
feudalismo intrínseco, e de uma certa imposição religiosa, que nem uma ascensão
fulgurante de uma burguesia mercantil conseguiu aplacar. Salazar, como bom
corporativista que era, para além de anticomunista primário, como todos os
fascistas, procurou estabelecer um regime ditatorialmente controlador dos
agentes económicos, funcionando como juiz das relações entre patrões e
trabalhadores, oprimindo as liberdades dos últimos, mas também limitando muitas
vezes as licenciosidades dos primeiros. Isto levou a um país de doutores, onde
todos querem ser patrões, todos anseiam ser chefes e ninguém quer ser servente,
muito menos simples trabalhador.
No seu “A ética protestante e o espírito do capitalismo”,
o sociólogo alemão Max Weber estabeleceu as bases da teoria da correlação entre
filiação religiosa e estratificação social, tendo por base as estatísticas
laborais da Alemanha no dealbar do século XX, identificando a propensão do puritanismo
protestante pelo capital e o trabalho, e a maior inclinação humanista do
catolicismo e a sua inerente tradição de culpabilização da riqueza.
O nosso país, eternamente enredado nas suas múltiplas manifestações
do “Fado, Futebol e Fátima”, vive nessa teia de sub-reptícias hierarquias e
vergonhas, onde riqueza e trabalho, estatuto, ou status, social, se
quisermos, e relevância se imiscuem num permanente caldo cultural de
idealização e embaraço. O aristocrata rural deu lugar ao doutor citadino e
ambos dominando a criadagem com leves ares de sobranceria numa mão e caridadezinha
na outra. Os eternos Tomás de Palma Bravo, de “O Delfim”, de Cardoso Pires,
espécie de retrato último desse conservadorismo patriarcal e cínico português, que
se pela por um BMW e a vivenda com piscina e, agora, com a interpretação semiótica
da categoria profissional.
Vivemos num país onde todos querem ser doutores ou engenheiros,
advogados e juristas, médicos, de bata branca e consultório privado, que, como
dizia o Eça, é “chique a valer”. Já ninguém quer ser pedreiro ou
carpinteiro, e até esses já só sonham ser empreiteiro, nem já sequer empregado de
mesa, que isso é coisa para paquistanês fazer. Num país sobrelotado de licenciados,
com canudos inúteis debaixo dos braços, tristes e incompetentes nas suas
funções de técnicos superiores de vão de escada de secretaria governamental o que
realmente faz falta são competências e trabalhadores. Quando terminei a
universidade, nessa coisa dos títulos, autodenominei-me de “poeta, surfista e cultivador
de ananases”. Hoje, depois de tudo o que já vivi, fico-me pela singela
categoria de mero e simples estalajadeiro. Num país de tantos maus doutores, o
que mais falta faz são bons empregados de mesa…
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