quarta-feira, 9 de julho de 2025

Speakers' Corner 40

A pornografia da dor

Ao contrário do que se diz, o Kama Sutra não é um tratado sobre sexo, mas uma dissertação sobre o amor e a sua prática como forma de alcançar o Dharma, a vida virtuosa, um dos objetivos últimos do hinduísmo. No Ocidente, o Kama Sutra, particularmente nas suas versões ilustradas, foi transformado num catálogo de sugestões sexuais, quase um manual visual de posições de um yoga tântrico e orgiástico. Esse olhar redutor e primário, tão típico da nova visão ocidental, despiu o texto das suas dimensões morais, pedagógicas, culturais, sociológicas e espirituais. Kama Sutra passou a ser sinónimo de sexo e não de amor ou, sequer, de erotismo.

Octavio Paz, o grande poeta e ensaísta mexicano, dizia que o “erotismo é a sexualidade transfigurada”. Uma representação artística e metafórica do gesto carnal, tantas vezes instintivo e animal. O erotismo, ao contrário da pornografia, contém, sugere, invoca o implícito. Vive daquilo que oculta mais do que daquilo que revela. Já a pornografia explicita, massifica, empola e embrutece. Onde o erotismo sublima, a pornografia desvirtua.

No nosso mundo hipermediatizado, na Infocracia de Byung-Chul Han, a realidade tornou-se, ela própria, pornografia. A linguagem perdeu a sua capacidade metafórica para se tornar instrumento de literalidade e, acima de tudo, de brutalidade. E a imagem, saturada, repetitiva, omnipresente e descartável, desprendeu-se da sensibilidade da luz e da criação de atmosfera. Tornou-se uma competição permanente pela atenção e, principalmente, pela excitação do espectador.

No espetáculo mediático, tudo se mede em audiência e a audiência é poder. Nessa luta constante pela atenção, a surpresa, o choque e o excesso são o alimento da voracidade. É nesse combate feroz pela curiosidade do observador que o ciclo noticioso e político se transforma, cada vez mais, em pornografia.

No meio do caos global, num mundo onde os nossos sentimentos se tornaram impermeáveis ao genocídio, é a morte súbita e sem sentido de um jovem atleta que ainda nos comove. Que ainda nos interpela, profundamente, no nosso sentimento de irrelevância e na percepção da fragilidade da existência. Já não é a guerra, nem o extermínio, nem o bombardeamento de civis e hospitais, em ataques à distância perpetrados por drones como em ficções, retransmitidos nos infinitos ecrãs que nos rodeiam em imagens de videojogo, que nos impressiona.

E a imparável máquina mediática sorve e amplifica esse drama. Espreme-o em ciclos infindáveis de comentários, diretos, alertas, análises, numa exposição pornográfica do que é mais privado e pessoal: a morte. Uma pornografia da dor, numa permanente obsessão pelo conteúdo e o seu consumo, que se torna vício e compulsão. A dor real, privada, íntima, é convertida em espetáculo porno. O sofrimento alheio serve o consumo imediato. A comoção é transformada em produto. E, nessa lógica perversa, os próprios protagonistas da tragédia, são arrastados para a exposição pública da sua perda. O luto deixa de ser um processo e torna-se conteúdo comercializável.

Da mesma forma, os políticos procuram o choque que atrai e agudiza a desconfiança. E a política, por sua vez, alimenta-se do mesmo mecanismo. Procura o embate. Amplifica o ódio e a desconfiança. Usa a provocação como afrodisíaco mediático. Usa a baixeza como forma de atração, alimentando o ciclo mediático com o mesmo apelo pornográfico. A mesma banalização do mal. A enumeração de nomes de crianças, supostamente estranhas, ímpias, estrangeiras ao “puro” corpo nacional, serve apenas o excesso, a barbárie, a comercialização do mal como mercadoria política, numa bolsa de valores insaciável de obscenidade e, fatidicamente, de prostituição emocional.

Tal como a pornografia transforma o corpo erotizado em mercadoria sexual, também a política e os media transformam o amor em pornografia, alimentando-se, numa sofreguidão sem fim, do ódio e da dor para sustentar a permanente luxúria do bordel mediático.

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