A pornografia da dor
Ao contrário do que se diz, o Kama Sutra não é um tratado
sobre sexo, mas uma dissertação sobre o amor e a sua prática como forma de
alcançar o Dharma, a vida virtuosa, um dos objetivos últimos do hinduísmo. No
Ocidente, o Kama Sutra, particularmente nas suas versões ilustradas, foi
transformado num catálogo de sugestões sexuais, quase um manual visual de
posições de um yoga tântrico e orgiástico. Esse olhar redutor e primário, tão
típico da nova visão ocidental, despiu o texto das suas dimensões morais,
pedagógicas, culturais, sociológicas e espirituais. Kama Sutra passou a ser
sinónimo de sexo e não de amor ou, sequer, de erotismo.
Octavio Paz, o grande poeta e ensaísta mexicano, dizia que o
“erotismo é a sexualidade transfigurada”. Uma representação artística e
metafórica do gesto carnal, tantas vezes instintivo e animal. O erotismo, ao
contrário da pornografia, contém, sugere, invoca o implícito. Vive daquilo que
oculta mais do que daquilo que revela. Já a pornografia explicita, massifica,
empola e embrutece. Onde o erotismo sublima, a pornografia desvirtua.
No nosso mundo hipermediatizado, na Infocracia de
Byung-Chul Han, a realidade tornou-se, ela própria, pornografia. A linguagem
perdeu a sua capacidade metafórica para se tornar instrumento de literalidade e,
acima de tudo, de brutalidade. E a imagem, saturada, repetitiva, omnipresente e
descartável, desprendeu-se da sensibilidade da luz e da criação de atmosfera.
Tornou-se uma competição permanente pela atenção e, principalmente, pela
excitação do espectador.
No espetáculo mediático, tudo se mede em audiência e a
audiência é poder. Nessa luta constante pela atenção, a surpresa, o choque e o
excesso são o alimento da voracidade. É nesse combate feroz pela curiosidade do
observador que o ciclo noticioso e político se transforma, cada vez mais, em
pornografia.
No meio do caos global, num mundo onde os nossos sentimentos
se tornaram impermeáveis ao genocídio, é a morte súbita e sem sentido de um
jovem atleta que ainda nos comove. Que ainda nos interpela, profundamente, no
nosso sentimento de irrelevância e na percepção da fragilidade da existência. Já
não é a guerra, nem o extermínio, nem o bombardeamento de civis e hospitais, em
ataques à distância perpetrados por drones como em ficções, retransmitidos nos
infinitos ecrãs que nos rodeiam em imagens de videojogo, que nos impressiona.
E a imparável máquina mediática sorve e amplifica esse
drama. Espreme-o em ciclos infindáveis de comentários, diretos, alertas,
análises, numa exposição pornográfica do que é mais privado e pessoal: a morte.
Uma pornografia da dor, numa permanente obsessão pelo conteúdo e o seu consumo,
que se torna vício e compulsão. A dor real, privada, íntima, é convertida em
espetáculo porno. O sofrimento alheio serve o consumo imediato. A comoção é
transformada em produto. E, nessa lógica perversa, os próprios protagonistas da
tragédia, são arrastados para a exposição pública da sua perda. O luto deixa de
ser um processo e torna-se conteúdo comercializável.
Da mesma forma, os políticos procuram o choque que atrai e
agudiza a desconfiança. E a política, por sua vez, alimenta-se do mesmo
mecanismo. Procura o embate. Amplifica o ódio e a desconfiança. Usa a
provocação como afrodisíaco mediático. Usa a baixeza como forma de atração,
alimentando o ciclo mediático com o mesmo apelo pornográfico. A mesma
banalização do mal. A enumeração de nomes de crianças, supostamente estranhas,
ímpias, estrangeiras ao “puro” corpo nacional, serve apenas o excesso, a
barbárie, a comercialização do mal como mercadoria política, numa bolsa de
valores insaciável de obscenidade e, fatidicamente, de prostituição emocional.
Tal como a pornografia transforma o corpo erotizado em
mercadoria sexual, também a política e os media transformam o amor em
pornografia, alimentando-se, numa sofreguidão sem fim, do ódio e da dor para
sustentar a permanente luxúria do bordel mediático.
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