quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 17

O Arruda Arrenegado

Reza a história que Mateus Pedro d’Arruda, o Arrenegado, terá nascido nesta cidade de Ponta Delgada, nas últimas décadas do século dezassete, sendo o primeiro dos “Arrenegados da Rua do Lameiro”, assim descritos nos livros de contas do mosteiro de Santo André, a quem pagavam foro fixo anual de 480 réis por uso de vinhas e outras terras que faziam parte da doação de dito convento e que estes trabalhavam. Estes Arrudas foram família burguesa abastada deste burgo pontadelgadense, sendo seu neto José Joaquim d’Arruda detentor do primeiro estabelecimento de carruagens desta cidade, sito à rua João de Deus, onde hoje fica a rua António Joaquim Nunes da Silva, traseira ao Teatro Micaelense.

Consta que o desditoso cognome vinha de um tal António Álvarez, avô paterno de Mateus Pedro, dito escravo branco ao serviço do licenciado António Pereira Botelho, que por ser mouro cativo, capturado, ao que se diz, de uma das muitas incursões que os piratas magrebinos usavam fazer às ilhas deste arquipélago e que, por ter renegado a sua fé e se convertido, ganhou o famigerado epíteto de “o Arrenegado”, pelo qual os seus descendentes seriam reconhecidos até bem dentro do século passado.

Na última semana, ganhou fama o deputado Arruda, do Chega!, que não consta seja da família, espécie de personagem picaresca de um qualquer pantera cor de rosa dos tapetes rolantes da Groundforce, por grotesca razão do furto de bagagem alheia na sempre entediante sala de recolha do aeroporto Humberto Delgado. E, ato continuo, por ter sido ele mesmo arrenegado pelo seu próprio partido, numa impressionante demonstração de mortal encarpado à retaguarda de hipocrisia política.

Pouco mais haverá a dizer, de tal forma o absurdo do episódio já foi escalpelizado pelos tribunais mediáticos e pelo júri das redes sociais, sobre esta súbita notoriedade do deputado Arruda. Mas talvez seja bom refletirmos um pouco sobre a questão da representação política e a forma desabrida como tanto jornalistas, como comentadores e até, pasme-se, outros seus colegas deputados, se aproveitaram das malas abafadas do deputado Arruda para afrontar a fraca qualidade dos nossos eleitos, fazendo por passar a ideia de que se trata de fenómeno tão recente quanto preocupante. E, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tentando afastar-se do deputado Arruda, ostracizando-o.

Basta regressar a Calisto Elói, austero e conservador fidalgo transmontano, corrompido pela luxúria da capital lisboeta, figura central do pouco celebrado e muito esquecido “A Queda de um Anjo”, grande romance de Camilo Castelo Branco, para perceber como já nos idos de oitocentos tanto o Parlamento, como Lisboa no seu todo, eram chão fértil para a corrupção e a caricatura. Não que eu queira fazer do deputado Arruda um anjo, longe disso.

O que a história ensina é que os parlamentos são espelhos das sociedades de onde emergem e enfermam dos mesmos vícios e virtudes daqueles que se dizem representar. E talvez seja exatamente aí, na origem e caráter dos nossos eleitos que nos devamos concentrar. Na nossa democracia já tivemos um pouco de tudo, desde gravadores surripiados, a autarcas condenados e reeleitos, até primeiros-ministros indiciados. A arte do furto é uma espécie de disciplina obrigatória do nosso curriculum parlamentar. Ao que parece, ao deputado Arruda só lhe falhou o engenho de não se deixar apanhar na arte de larapiar. A realidade é que entre os dramas do deputado Arruda, com a sua insana bagagem, e os múltiplos Calistos Elóis que pululam pela política nacional, cujo talento principal é escapulirem-se melhor aos registos videográficos da ladroagem pública, pouca diferença haverá. E é precisamente isso que urge contrariar, essa ideia cristalizada de que na política são todos iguais ao mais recente Arruda, o Arrenegado. É caso para dizer, merecíamos políticos melhores, na origem, no caráter, na postura e na linguagem e, principalmente, no tipo de bagagem que transportam consigo. Porque, em boa verdade, a política somos todos nós…  

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 16

O sonho americano

Washington chamou-lhe “os emaranhamentos europeus”. Monroe, na sua famosa doutrina, aprofundou a tese da “américa para os americanos” e defendeu o distanciamento face aos permanentes conflitos entre as nações do velho continente. Mais tarde, no vórtex da Primeira Grande Guerra, Woodrow Wilson, um Democrata, cunhou a entoações de discursos radiodifundidos o slogan populista de “America First”, evitando a todo o custo a intervenção da grande potência da liberdade e da prosperidade numa Europa hostil e caótica.

A História, na verdade, ensina-nos que o sonho americano foi construído por antítese à Europa. As várias nações das Américas, sendo naturalmente os EUA o seu principal protagonista, foram construídas por homens e mulheres evadidos ao caos europeu de injustiça social, perseguição religiosa e pequenas nações permanentemente em conflito. Ao longo dos séculos, as Américas, e os Estados Unidos da América, foram o porto de abrigo de sucessivas gerações de desfavorecidos das várias nações europeias aportando ao novo continente em busca de Liberdade e Prosperidade e em fuga, muitas vezes enraivecida, ao desastre europeu.

Há uma certa húbris neste sentimento de que a América deve, por alguma razão superior, quase metafísica, acompanhar a Europa nas suas  dores e dificuldades, como se de um filho se tratasse, que deve cuidar do seu progenitor idoso nos seus anos finais de vida. Depois de ter sido salva duas vezes no século passado da autodestruição, a Europa observa em pânico o regresso dos EUA à sua verdadeira natureza de nação iminentemente isolacionista, agora na retórica alaranjadamente simplista de um  Trump messiânico e demagógico. Também nisso a História nos mostra que não há grande originalidade. Para desgosto dos muitos editorialistas e especialistas dos órgãos de comunicação social ditos mainstream, os EUA sempre foram pródigos em políticos grandiloquentes, populistas e, eminentemente, antieuropeus.

Talvez, mais importante do que censurar a narrativa trumpiana, a Europa devesse olhar para si e perceber os seus próprios falhanços e debilidades, reconstruindo-se como farol da tolerância e da igualdade. O que a tomada de posse de Trump revela é a própria incapacidade europeia de se afirmar como protagonista relevante, alicerçado na confirmação social, cultural e económica dos seus valores fundacionais. Ao revés, a Europa vê definhar as bases do Estado Social, da livre circulação e da prosperidade definida no projeto europeu, mesmo da própria paz no continente, soçobrando sob a opressão das suas próprias forças internas que, como Mark Rutte, que hoje se regozija com a perspetiva de uma Europa militarizada e “turbo-carregada” de despesas em armamento e defesa, se comprazem com a perspetiva de uma nova vertigem bélica no continente. A grande ameaça à Europa não é Trump, muito menos uma América orgulhosamente só, mas a implosão do sonho europeu de paz e desenvolvimento num continente de nações finalmente reconciliadas entre si.

Bruxelas capitulou aos pés dos mercados e da alta finança. Estrasburgo soçobrou sob o peso da sua própria burocracia e irrelevância prática. Paris e Berlim perderam-se no caleidoscópio da histeria pós-ideológica. E a velha Albion refugiou-se de novo na sua insularidade pragmática. Não admira que em Roma, Georgia Melloni reclame em excitação mussoliniana a refundação de um novo Império Romano com a cidade do rio Tibre como nova capital europeia.

Enquanto Trump se apresentava como o novo escolhido de Deus e o arauto de uma nova “era dourada”, e Biden perdoava, na vigésima quinta hora, o inefável Fauci e mais uns quantos membros da sua família, a Europa enfunava-se para mais um encontro global de interesses não escrutináveis em Davos, Portugal debatia o futuro de Vitor Bruno e o calvário portista e, nos Açores, entre sismos e depressões (meteorológicas e mentais…), Tony Carreira era apresentado como figura de proa da nova programação do Coliseu Micaelense. Cada um têm o que merece.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 15

Os Carteiristas

“O Carteirista” é um filme, de 1959, realizado pelo renomado cineasta francês Robert Bresson, e reconhecidamente considerado como um dos mais importantes filmes da história do cinema. Michel, é um carteirista insensível, apaixonado por uma bela e sentimental Jeanne, que  corre as ruas de Paris roubando carteiras e bens de insuspeitos transeuntes. Tal como o excecional Raskolnikov de Dostoiesvky, no célebre “Crime e Castigo”, aliás inspiração para o próprio filme, Michel vive à margem da lei e da moral, vendo-se a si próprio num espelho de superioridade face ao mundo que o rodeia. O roubo, na particular formulação mental de Michel, é um direito e imperativo da sua condição superior.

Entrou recentemente em vigor, em alguns concelhos da ilha de São Miguel, apesar de uma suposta unanimidade na sua decisão e aplicação, a tão propalada Taxa Turística Municipal que, acoberto de uma hipotética pegada turística nos municípios, com sobrecustos a nível de resíduos, limpeza, infraestruturas e espaços públicos, ou de interesse turístico, estes decidem ir ao bolso de quem nos visita, utilizando para isso a mão trémula das unidades de alojamento. O Turismo, como aliás se tem visto um pouco pelo país, e apesar de ser reconhecidamente o motor atual da nossa recuperação e resiliência económica, é solo fértil para todo o tipo de populismos. É, também, razão e exemplo dos mais básicos instintos humanos, como a inveja, a avareza ou a irracionalidade que nos acometem quando percecionamos, palavra tão na moda, nos outros um bem, uma abundância, que nos parece legitima ou ilegitimamente nossa. Há a perceção de que o Turismo é uma espécie de nova galinha dos ovos de ouro e todos querem um pedaço desse bolo.

Existem diversos aspetos nesta medida que vão contra a mais elementar razoabilidade. Como aliás se viu na reversão da Taxa Regional, que o PAN pretendeu instituir mas que a ALRAA logo, e bem, compreendeu cancelar. Desde logo há aqui uma incompreensão sobre a indústria e o negócio que 1) não explicita os supostos impactos e 2) não entende a natureza e a dimensão da atividade. Veja-se a entrada em vigor de uma medida quando em alguns casos quase 50% da ocupação já estava vendida previamente. O mito da “massificação” turística é outra dessas questões, mas isso dava para todo um outro artigo. Depois, há uma questão de publicidade enganosa, ou de greenwashing se quisermos, em que os municípios se dizem responsáveis por algo que na sua quase totalidade não são. E prometem coisas que sabemos que não farão. Já para não falar numa ideia de limitação de uma taxa a 3 noites, que foi vendida como sendo o limite a cobrar a cada visitante na ilha, mas que na verdade é um limite por estabelecimento, podendo na realidade um visitante que disfrute de suponhamos 8 dias na ilha, que pagar taxa de cada vez, como amiúde sucede, que mudar de alojamento, seja dentro de Ponta Delgada, ou da Vila Franca para as Furnas.

Se juntarmos a isto tudo o facto de que os principais pontos turísticos da ilha serem na realidade responsabilidade privada ou do Governo Regional, veja-se o exemplo do chá, ou dos ananases, das lagoas, ou do ilhéu da Vila, os trilhos que, na sua grandíssima maioria, são pagos pelo governo, os nadadores-salvadores que a maioria das câmaras se recusam a pagar, ou de estas já receberem, por via do aumento da fatura da água, avultadas quantias nos seus orçamentos por via do incremento da atividade turística. Já para não falar nas óbvias dúvidas processuais e constitucionais, ao nível de proteção de dados, ou da reserva da vida privada, para dar apenas dois exemplos, que muitos dos regulamentos já publicados colocam. A verdade é que os municípios de São Miguel se comportam como carteiristas, indo ao engano, ludibriando e furtando, agindo na sombra, a título de uma autoridade moral que na verdade não têm. E assim se esfola a galinha dos ovos de ouro.

 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 14

Nacional iliteracia

Mandada erigir em 1568 pela Infanta Dona Maria, oitava filha do Rei D. Manuel I, a Igreja de Santa Engrácia, ali ao alto do campo de Santa Clara, em Lisboa, foi destruída por um grande temporal em 1681. No ano seguinte, por obra dos irmãos da Irmandade dos Escravos do Santíssimo Sacramento, a primeira pedra do novo templo foi lançada pelo Infante D. Pedro, quinto filho de D. João IV, que viria a ser coroado rei em 1683 e cognominado “o Pacífico”. Ao que reza a lenda, o templo estaria amaldiçoado pelo fantasma de Simão Pires Solis, jovem cristão-novo, vítima injustiçada dos horrores da Inquisição, preso, acusado e julgado, sem prova, de profanação do santuário, quando por ai rondava enamorado de uma fidalga noviça do Convento de Santa Clara. Ditou a sentença que ao réu fossem decepadas as mãos e incendiadas à sua vista e, colocado num poste alto, fosse então queimado vivo e, feito o fogo em pó, as suas cinzas deitadas ao mar para que de todo se extinguisse a sua memória. Vítima de tal injustiça Simão Solis amaldiçoaria a reconstrução do templo, que levaria quase 300 anos a ver concluída a sua obra, cujo termino só aconteceria em 1966 por ordem de António de Oliveira Salazar, jornada que daria origem à popular expressão “obras de Santa Engrácia”, naquele que é o detalhe mais caricato de um monumento que é hoje conhecido como Panteão Nacional.

A ideia de um Panteão Nacional data de 1836 e deve a sua instituição ao então Ministro Passos Manuel com o intuito de homenagear os heróis da “revolução vintista”, também conhecida como Revolução do Porto, momento fundamental do Liberalismo português. Já em plena República, em 1916, à Igreja de Santa Engrácia, cujo desenho do arquiteto João Antunes é justamente considerado um dos expoentes do barroco português, é acometida a função de Panteão Nacional mas cuja efetivação plena só teria lugar cinquenta anos depois por ordem de Salazar, como forma de afirmação do regime contra não só a desconfiança política num regime ainda abalado pelas ondas de choque das presidenciais de 1958 e do assassinato de Humberto Delgado, bem como da superstição popular que via no eternamente inacabado monumento um símbolo da fatalidade nacional. Ao historiador Damião Peres é incumbida a tarefa de liderar a comissão que definiria as honras de panteão que, em cenotáfios ou tumulares, homenageia e guarda personalidades tão dispares como D. Nuno Álvares Pereira, Afonso de Albuquerque, Teófilo Braga, Óscar Carmona, Garrett e Guerra Junqueiro. Já mais recentemente e não sem certa polémica, as honras de panteão foram concedidas a Amália, Eusébio e Sophia. Hoje, ao fim de uma longa batalha judicial com os herdeiros, os restos mortais de Eça de Queiroz recebem também essa distinção, numa cerimónia solene, trasladado o féretro do grande romancista do cemitério de Santa Cruz do Douro, em Baião, para uma das salas tumulares da antiga Igreja de Santa Engrácia, num processo político iniciado pelo deputado socialista José Luís Carneiro, em resposta a um repto do bisneto do escritor, o também romancista, Afonso Reis Cabral.

A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se.” Escreveu Eça em 1867, com intemporal sabedoria. Possam estas vãs prebendas que hoje lhe são apostas reverter em leitores da sua obra e incrementos nacionais na sua parca e sempre tão equivoca literacia.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 13

Reconquistar a Democracia

A comunicação social, toda ela, na sua permanente excitação editorial, têm estado efervescente com as efabulações das próximas eleições presidenciais. Mesmo que as mesmas só venham a acontecer lá para os idos de 2026. Ricardo Costa, jornalista feito comentador tornado administrador de grupo económico em situação difícil, num exercício de pitonisa política, na última edição da revista do Expresso, escrevia mesmo que a “campanha presidencial cruzará muitos meses de 2025 e  provavelmente abafará as autárquicas”. Ora esta espécie de ejaculação precoce comunicativa, que tanto exalta os comentadores, elabora num erro dramático para a saúde da nossa democracia – a inversão do ónus, subvertendo a importância da própria pirâmide do poder, sobrevalorizando o resultado e subalternizando o decisor, que somos todos nós.

Cinquenta anos depois de Abril, cujas celebrações incompreensível e lamentavelmente passaram mais ou menos despercebidas e envergonhadas um pouco por todo o país, a democracia portuguesa parece ter esquecido a sua principal razão de ser – a procura do bem comum, expressa na vontade popular da maioria dos seus cidadãos. Ao revés, os espaços de ação democráticos foram capturados por interesses privados, com partidos políticos reféns de financiamentos e da sua própria perpetuação no poder, numa ditadura do cifrão que se estende hoje de forma cancerígena ao chamado “quarto poder” que deveria ser independente, escrutinando de forma isenta, e por vezes mesmo impiedosa, os vários níveis do exercício do poder.

A verdade é que, salvo alguma surpresa judicial ou orçamental, o mais importante ato político do ano que agora começa serão as eleições autárquicas, tido como o nível mais baixo do nosso ordenamento político, mas que é verdadeiramente a essência e o chão comum da nossa vida democrática. O poder local representa o elo mais próximo do cidadão com o executivo, seja na freguesia, na autarquia, ou, em certa medida, mesmo na autonomia que mal-amanhadamente se vai praticando nestas ilhas. É no poder local que reside a forma mais pura de exercício político, que não é mais do que a prática do governo da polis, ou seja de todos nós, cidadãos unidos numa comunidade territorial e humana.

De todos os desafios com que nos vemos confrontados hoje, económicos, demográficos, culturais, sociais e políticos, naquilo que se vulgarizou chamar de “grande crise da civilização ocidental”, talvez seja na reconquista do primeiro patamar do poder político, restituindo-lhe a sua primazia na hierarquia dos poderes democráticos, que pode residir o primeiro passo para a reconquista dos valores democráticos e da própria salvação da Democracia. Independentemente das propostas ou das escolhas é na valorização do poder local, enquanto forma mais pura de exercício do governo que pode estar a esperança para os modelos democráticos do futuro, em que seja de novo o cidadão o centro da ação política e não o interesse do amigo ou do partido, o lucro mais ou menos anónimo dos interesses económicos ou as estratégias dos múltiplos maquiavelismos que cegam os diretórios partidários.

A um ano de completarmos o cinquentenário das primeiras eleições autárquicas em liberdade, o futuro da nossa democracia não está na eleição de um qualquer proto autoritário capitão de submarino com passaporte vacinal para a presidência da república. Está na reconquista, freguesia a freguesia, autarquia a autarquia, do poder pelo povo, com projetos políticos coerentes e estruturados, que sejam altruístas e verdadeiros, sejam eles de partidos, por mais enquistados que estes estejam, ou de listas de cidadãos, naquele que até é um dos poucos patamares da democracia em que tal é possível, restituindo de novo à Democracia a sua mais límpida natureza – o exercício do bem comum, em vez do interesse de cada um.