Reconquistar a Democracia
A comunicação social, toda ela, na sua permanente excitação
editorial, têm estado efervescente com as efabulações das próximas eleições
presidenciais. Mesmo que as mesmas só venham a acontecer lá para os idos de
2026. Ricardo Costa, jornalista feito comentador tornado administrador de grupo
económico em situação difícil, num exercício de pitonisa política, na última
edição da revista do Expresso, escrevia mesmo que a “campanha presidencial
cruzará muitos meses de 2025 e provavelmente abafará as autárquicas”. Ora
esta espécie de ejaculação precoce comunicativa, que tanto exalta os comentadores,
elabora num erro dramático para a saúde da nossa democracia – a inversão do
ónus, subvertendo a importância da própria pirâmide do poder, sobrevalorizando
o resultado e subalternizando o decisor, que somos todos nós.
Cinquenta anos depois de Abril, cujas celebrações incompreensível
e lamentavelmente passaram mais ou menos despercebidas e envergonhadas um pouco
por todo o país, a democracia portuguesa parece ter esquecido a sua principal razão
de ser – a procura do bem comum, expressa na vontade popular da maioria dos seus
cidadãos. Ao revés, os espaços de ação democráticos foram capturados por
interesses privados, com partidos políticos reféns de financiamentos e da sua própria
perpetuação no poder, numa ditadura do cifrão que se estende hoje de forma cancerígena
ao chamado “quarto poder” que deveria ser independente, escrutinando de forma isenta,
e por vezes mesmo impiedosa, os vários níveis do exercício do poder.
A verdade é que, salvo alguma surpresa judicial ou
orçamental, o mais importante ato político do ano que agora começa serão as
eleições autárquicas, tido como o nível mais baixo do nosso ordenamento
político, mas que é verdadeiramente a essência e o chão comum da nossa vida democrática.
O poder local representa o elo mais próximo do cidadão com o executivo, seja na
freguesia, na autarquia, ou, em certa medida, mesmo na autonomia que
mal-amanhadamente se vai praticando nestas ilhas. É no poder local que reside a
forma mais pura de exercício político, que não é mais do que a prática do
governo da polis, ou seja de todos nós, cidadãos unidos numa comunidade
territorial e humana.
De todos os desafios com que nos vemos confrontados hoje,
económicos, demográficos, culturais, sociais e políticos, naquilo que se
vulgarizou chamar de “grande crise da civilização ocidental”, talvez seja na
reconquista do primeiro patamar do poder político, restituindo-lhe a sua
primazia na hierarquia dos poderes democráticos, que pode residir o primeiro
passo para a reconquista dos valores democráticos e da própria salvação da Democracia.
Independentemente das propostas ou das escolhas é na valorização do poder
local, enquanto forma mais pura de exercício do governo que pode estar a
esperança para os modelos democráticos do futuro, em que seja de novo o cidadão
o centro da ação política e não o interesse do amigo ou do partido, o lucro
mais ou menos anónimo dos interesses económicos ou as estratégias dos múltiplos
maquiavelismos que cegam os diretórios partidários.
A um ano de completarmos o cinquentenário das primeiras
eleições autárquicas em liberdade, o futuro da nossa democracia não está na eleição
de um qualquer proto autoritário capitão de submarino com passaporte vacinal para
a presidência da república. Está na reconquista, freguesia a freguesia, autarquia
a autarquia, do poder pelo povo, com projetos políticos coerentes e
estruturados, que sejam altruístas e verdadeiros, sejam eles de partidos, por
mais enquistados que estes estejam, ou de listas de cidadãos, naquele que até é
um dos poucos patamares da democracia em que tal é possível, restituindo de
novo à Democracia a sua mais límpida natureza – o exercício do bem comum, em
vez do interesse de cada um.
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