quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 21

Batendo aos portões de Santana

Ponta Delgada, que foge ao PS desde 1989, tem sido uma pedra no sapato político das sucessivas direções socialistas. Por um lado, é alvo apetecido, a principal autarquia do arquipélago e feudo social-democrata de longa data, por outro representa uma ameaça tácita ao status quo diretivo do partido. Ser presidente da câmara de Ponta Delgada representa uma espécie de pole position para a conquista do Palácio de Santana, como se os portões de Santana se abrissem ali junto às Portas da Cidade, pela importância e visibilidade que o cargo confere. Por isso, as direções do PS sempre olharam com desconfiança para essa disputa eleitoral. Não podem deixar de concorrer, apresentando candidatos suficientemente relevantes para não serem acusados de falta de comparência, mas sempre secretamente conspiraram para que o partido não saísse vencedor dessa particular eleição. Nos últimos anos, os líderes do PS optaram sempre por não se empenhar totalmente nessa corrida, percebendo que qualquer presidente da câmara de Ponta Delgada se tornaria instantaneamente na segunda figura do partido e opositor interno inevitável. Na lógica do controlo do poder convêm que as sucessões, ou as putativas ameaças à liderança, sejam geridas pelos próprios e sem radicais livres a correr por fora nas suas próprias pistas.

Este ano, a corrida a Ponta Delgada reveste-se de um interessante conjunto de pormenores aliciantes. Desde logo, são as primeiras eleições autárquicas desta direção do PS, e com a condicionante de este estar na oposição a nível regional, o que torna o resultado conjunto destas eleições autárquicas determinante para o seu futuro político. Por outro lado, há um notório e palpável desgaste do atual executivo camarário, corporizado na altivez e autoritarismo do seu presidente, que criaram enormes anticorpos junto de diversos sectores da sociedade civil, das empresas e do eleitorado em geral. Já para não falar no surgimento de uma candidatura independente, saída precisamente das fileiras do PS e largamente criada pela inabilidade das direções do partido, concelhia e regional, em dialogar com os seus críticos e gerar consensos dentro do próprio partido.

No passado fim-de-semana os órgãos dirigentes do PS aprovaram, finalmente, os seus cabeças de lista às próximas eleições autárquicas. De entre uma mais ou menos anódina e pouco surpreendente lista de nomes o destaque maior recaiu, obviamente, sobre o nome anunciado à câmara de Ponta Delgada que, ao fim de um longo e conturbado processo, que ao que consta até sondagens envolveu, naquilo que o líder do partido classificou, eufemisticamente, de “rapidez possível”, calhou a Isabel Almeida Rodrigues, alguém com um inegável currículo político e capacidades, mas que se encontra ausente da política local há vários anos. Na atual conjuntura, as primeiras ações da candidata agora anunciada serão determinantes para se perceber se esta é uma candidatura ganhadora ou se, mais uma vez, o PS apenas pretende não perder por muitos, iniciando desde já o spin dos resultados para as análises de contexto e outras desculpabilizações.

Caberia objetivamente ao PS afirmar-se como líder de uma grande coligação de oposição ao trabalho do atual executivo camarário, chamando a si, não só os dissidentes, começando pela própria candidata independente, figuras da sociedade civil e até outros partidos para, tal como em 1989, consubstanciar uma candidatura que fosse agregadora, abrangente e plural, concretizando-se em propostas concretas e inovadoras aos problemas que o concelho, nas suas múltiplas assimetrias, enfrenta e merece ver solucionados. Caberá à candidata do PS dizer ao que vem, embora sabendo que já vem tarde. Quanto ao resto, o resultado dirá se os dirigentes do PS queriam de facto ganhar Ponta Delgada ou se, afinal, e como tem sido habitual, esta foi apenas e só uma candidatura para cumprir calendário.

 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 20

Natureza intacta e outros mitos

Por estes dias, a pacata ilha das Flores tem sido abalada por uma inusitada intempérie. Desta feita, a razão de tal rara fama são já não as intermitências meteorológicas, mas as adversidades paisagísticas e territoriais. Este furacão tem várias incidências, algumas do foro sociológico, outras jurídico, mas duas dessas questões, em particular no que concerne ao âmago da uma certa ideia de Açores, são suficientemente significativas para permitirem uma análise mais teórica, ou mesmo filosófica, se quisermos, e uma atenção que se devia expandir e generalizar às restantes ilhas.

Pelo que foi tornado público, um casal estrangeiro radicado na ilha terá vindo a adquirir uma série de terrenos privados nas imediações e acessos ao famoso Poço da Ribeira do Ferreiro. Recentemente, esses novos proprietários do local terão vindo a desenvolver uma série de trabalhos de desmatamento e limpeza do coberto vegetal, tentando restituir a paisagem ao seu uso passado. Das diferentes reações que se têm feito ouvir, primeiro nas redes sociais e depois na pantalha televisiva, as principais preocupações da população, para além de um receio de privatização do acesso ao espaço, prendem-se com a adulteração do cenário natural e a índole jurídica da posse de um cartaz turístico regional, numa dicotomia público-privada aparentemente de difícil resolução num arquipélago onde praticamente tudo é, ou já foi, privado.

A ideia da natureza pura, ou intacta, com que os Açores se têm promovido ao longo dos tempos radica num infeliz desconhecimento da história e num logro comercial baseado no mito da virgindade da nossa paisagem. Os Açores são, na verdade, um caso de estudo de uma paisagem toda ela humanizada por seiscentos anos de trabalho da mão do homem. A chegada dos primeiros povoadores é marcada, desde logo, por aquilo que ficou conhecido como a “virada das terras”, um infinitamente laborioso processo de remoção dos mantos vegetais de floresta Laurissilva autóctone e da lava, por forma a se obterem extensões de terra arável e passível ao cultivo. Este rendilhado de muros de pedra seca e terra de cultivo, do cereal à vinha, ou a atual pastagem, aqui e ali pontilhada de hortênsias e conteiras ou matas de criptomérias, espécies todas elas importadas, construído com suor ao longo dos tempos, são aquilo que hoje marca e distingue a paisagem açoriana e não podiam estar mais distantes dessa ideia romântica de natureza intacta.

O que este episódio nos devia levar a debater é precisamente que paisagem somos ou queremos ter e que território queremos promover para o estrangeiro, seja por via do turismo, seja por via do repovoamento das ilhas com populações, vegetais ou humanas, forasteiras, algo que, também, sempre caracterizou as nossas ilhas. Veja-se, por exemplo, o caso paradigmático de Thomas Hickling e o seu deslumbrante e icónico Jardim Terra-Nostra.

Por outro lado, a colaboração, ou a falta dela, entre público e privado, na gestão do território, na utilização da paisagem e na promoção de modelos de desenvolvimento para as ilhas também nos devia inquietar. A verdade é que os poderes públicos, sejam autárquicos ou autonómicos, têm-se pautado por um impressionante desleixo face ao ambiente e à paisagem, na grande maioria dos casos, do qual o mais latente talvez seja a tentativa e inexplicável abandono da reflorestação e arranjo paisagístico da bacia hidrográfica das Furnas. Se há coisa que os sucessivos governos nunca souberam fazer é preservar e desenvolver o património seja ele natural, construído ou a mistura dos dois. Basta ver o exemplo da paupérrima e cronicamente suborçamentada rede regional de museus, ou um mirabolante projeto de miradouro para a cumeeira da Lagoa do Fogo, para perceber como o Estado é mau gestor da coisa pública. Se esta interessantíssima polémica nos trouxesse reflexão contextualizada, extensível às nove ilhas do arquipélago, sobre uma ideia de futuro para os Açores, já não seria mal empregue…

 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 19

O país dos doutores

A notícia passou mais ou menos despercebida entre o corrupio mediático nacional, entretido com o cúmulo jurídico dos deputados do Chega e a minimaratona dos putativos presidenciáveis, mas conta-se facilmente. Na sua mais recente revisão do contrato coletivo de trabalho, a AHRESP e o Sindicato dos Trabalhadores do Setor de Serviços acordaram, entre outras coisas, a alteração da velha designação de “empregado de mesa” para uma mais moderna e fina denominação de “assistente de sala”. Diz o Expresso que a nova nomenclatura visa valorizar aquela que é vista como “uma das profissões mais mal amadas no turismo” (sic!). Um pouco como os cozinheiros que agora são todos chefs.

Esta poderia ser mais uma inconsequente e inócua aventura do tão em voga processo de cancelamento em curso. Em que as nossas sociedades se entretêm a rever terminologias, sinaléticas de wc e outros mais ou menos estapafúrdios detalhes de comportamento e inter-relação cultural e social. Mas, temo que haja aqui um sinal de algo mais profundo e alarmante com que nos devíamos todos preocupar: a continua desvalorização social de profissões determinantes.

Portugal sempre foi um país classista. São resquícios de um certo feudalismo intrínseco, e de uma certa imposição religiosa, que nem uma ascensão fulgurante de uma burguesia mercantil conseguiu aplacar. Salazar, como bom corporativista que era, para além de anticomunista primário, como todos os fascistas, procurou estabelecer um regime ditatorialmente controlador dos agentes económicos, funcionando como juiz das relações entre patrões e trabalhadores, oprimindo as liberdades dos últimos, mas também limitando muitas vezes as licenciosidades dos primeiros. Isto levou a um país de doutores, onde todos querem ser patrões, todos anseiam ser chefes e ninguém quer ser servente, muito menos simples trabalhador.

No seu “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, o sociólogo alemão Max Weber estabeleceu as bases da teoria da correlação entre filiação religiosa e estratificação social, tendo por base as estatísticas laborais da Alemanha no dealbar do século XX, identificando a propensão do puritanismo protestante pelo capital e o trabalho, e a maior inclinação humanista do catolicismo e a sua inerente tradição de culpabilização da riqueza.

O nosso país, eternamente enredado nas suas múltiplas manifestações do “Fado, Futebol e Fátima”, vive nessa teia de sub-reptícias hierarquias e vergonhas, onde riqueza e trabalho, estatuto, ou status, social, se quisermos, e relevância se imiscuem num permanente caldo cultural de idealização e embaraço. O aristocrata rural deu lugar ao doutor citadino e ambos dominando a criadagem com leves ares de sobranceria numa mão e caridadezinha na outra. Os eternos Tomás de Palma Bravo, de “O Delfim”, de Cardoso Pires, espécie de retrato último desse conservadorismo patriarcal e cínico português, que se pela por um BMW e a vivenda com piscina e, agora, com a interpretação semiótica da categoria profissional.

Vivemos num país onde todos querem ser doutores ou engenheiros, advogados e juristas, médicos, de bata branca e consultório privado, que, como dizia o Eça, é “chique a valer”. Já ninguém quer ser pedreiro ou carpinteiro, e até esses já só sonham ser empreiteiro, nem já sequer empregado de mesa, que isso é coisa para paquistanês fazer. Num país sobrelotado de licenciados, com canudos inúteis debaixo dos braços, tristes e incompetentes nas suas funções de técnicos superiores de vão de escada de secretaria governamental o que realmente faz falta são competências e trabalhadores. Quando terminei a universidade, nessa coisa dos títulos, autodenominei-me de “poeta, surfista e cultivador de ananases”. Hoje, depois de tudo o que já vivi, fico-me pela singela categoria de mero e simples estalajadeiro. Num país de tantos maus doutores, o que mais falta faz são bons empregados de mesa…

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 18

Balas e brioches

Diz-se que ao se aperceber dos gritos da turba que marchava às portas de Versailles, Marie Antoinette, terá perguntado porque gritava a multidão? À resposta - porque têm fome, a mulher de Louis XVI terá respondido - dêem-lhes brioches. Verdade ou não, a frase tornou-se símbolo do desfasamento, da distância, ou detachment, na sua formulação inglesa, se quisermos, que talvez seja a mais adequada, entre governantes e governados. Impregnada pelos mais puros ideias - Liberdade, Igualdade e Fraternidade - a Revolução Francesa, que em breve fará 250 anos, foi uma sublevação das massas desfavorecidas contra a elite, cada vez mais distante e abjeta, presa nos seus faustosos castelos e pompa extravagante. À época, o maior grito da moda masculina eram os calções de seda que os aristocratas usavam e a grande multidão popular para sempre ficaria conhecida como os sans-culottes. Por mais bela e justa que fosse a origem desse grande movimento popular, que ainda hoje marca a geografia política mundial, a revolução terminou num enorme banho de sangue e na vertigem ditatorial napoleónica.

Nos últimos dois dias, numa das primeiras iniciativas de António Costa, os líderes europeus reuniram-se no Palácio d’Egmont para uma reunião informal dedicada aos temas da defesa onde marcaram presença dois convidados especiais, Mark Rutte, secretário-geral da NATO, e Kier Starmer, o primeiro-ministro inglês. Rutte, que é bom não esquecer era o primeiro-ministro holandês quando o seu execrável ministro das finanças, Dijsselbloem, lançou sobre os países latinos o anátema dos copos e das mulheres, já tinha estado em Lisboa, na última semana, avisando-nos para a ameaça russa, cujos navios e mísseis se aproximam das costas portuguesas, como as potentes ondas do canhão da Nazaré. Tal como esse outro paladino do povo tornado empedernido falcão, Mário Draghi, que marcou presença numa reunião do conselho de estado para enfatizar a urgente necessidade de uma deriva militarista, aconselhando avultados investimentos em armamento como o novo rumo estratégico da economia europeia.

Depois de se terem colocado nas mãos da indústria farmacêutica, de formas pouco transparentes, em que biliões dos nossos impostos foram injetados em grandes multinacionais por causa de um medo indizível e não identificado, os líderes europeus preparam-se para ir para a cama com o complexo industrial militar, desta vez sob a égide do fantasma de Putin. A Europa, em tempos um bastião da paz e da concórdia, parece agora querer arrastar-se para uma militarização abominável e sem sentido, numa amnésia coletiva dos seus mais altos representantes sobre o que foram as duas grandes tragédias do século XX.

Numa das suas últimas declarações públicas, Antony Blinken, secretário de estado de Joe Biden, apelava cinicamente a que os ucranianos baixassem a idade do recrutamento militar, como forma de alimentar a máquina de extermínio de uma guerra suja, numa Ucrânia onde Zelensky já veio admitir que apenas recebeu metade dos mais de 175 biliões de dólares em ajudas financeiras dos EUA, para uma guerra  determinada pelos interesses financeiros dos grandes conglomerados financeiros, a quem praticamente todos os políticos se submetem, como a Black Rock, por exemplo, um fundo que é detentor de parte da Pfizer e um dos maiores investidores mundiais na indústria de defesa.

Desde 2008 que o mundo se debate com sucessivas ignomínias, em que os mais pobres são alimento fácil para a voracidade dos falcões, banca, alta finança, farmacêuticas e indústria militar. Talvez quando os nossos filhos forem chamados a perder a vida nas fronteiras do Leste, ou aqui, nas águas do Atlântico, a grande massa dos descamisados do mundo, os eternos sans-culottes, possa acordar da sua letargia e marchar novamente sobre os palácios do poder, onde ao som do Hino da Alegria um qualquer António Costa se comova com um banal - sirvam-lhes brioches...