A celebração de uma identidade
Por um curioso alinhamento de datas, o país e a região vivem
por estes anos uma inusitada sequência de efemérides e celebrações. Dos 50 anos
do 25 de Abril, aos 600 anos do descobrimento dos Açores, passando pelos 50 anos
da Autonomia Regional, e mesmo a coincidência de Ponta Delgada Capital da
Cultura que acontece no próximo ano, entre 2024 e 2027, o país e a região vivem
um momento ímpar de celebração da consciência coletiva que nos devia mobilizar
a todos como sociedade.
Infelizmente, hoje a ideia de celebração identitária tornou-se
numa espécie de anátema social. A minha geração, em particular, foi educada, em
grande medida, para desconfiar da ideia de pátria. O Estado Novo apropriou-se
de tal forma do nacionalismo que, depois da Revolução, o país pareceu precisar
de se purgar daquela sombra do patriotismo que pairava sobre a nação como um
xaile negro e opressivo. O orgulho nacional, a simples evocação da glória
pátria, tornou-se suspeito, uma relíquia ideológica de um tempo de hinos,
fardas, União Nacional e censura. O amor à pátria passou a soar a fascismo e a
própria palavra “Portugal” foi, por muito tempo, pronunciada com embaraço,
quase com constrangimento, numa surdina envergonhada só levemente aceite nas
vitórias da Seleção Nacional e nos golos do Ronaldo.
A história dos últimos cinquenta anos é também a história
dessa tensão entre um Portugal ensimesmado e fechado sobre si mesmo e outro,
cosmopolita, aberto ao mundo e à Europa. A democracia procurou libertar-se do
velho país salazarento, rural e beato, que erguia estátuas ao sacrifício e à
obediência, louvando a pobreza e a grandeza do Império, trazendo para o centro
da vida coletiva a ideia de um país global. Foi a Europália de 1991, a Lisboa
Capital da Cultura em 1994, a Expo 98, o Euro 2004, toda uma galeria de grandes
eventos internacionais que pretendiam projetar o país para o exterior,
modernizando-o. Mas, ao fazê-lo, o país acabou também por perder algo de
essencial e de interior, o sentido de comunidade, o sentimento de pertença, a
capacidade de celebrar em conjunto os feitos e a história sem medo de parecer
antiquado ou, pior ainda, conservador.
As grandes datas nacionais foram-se tornando quase
incómodas. O 5 de Outubro, como vimos nestes dias, tornou-se tóxico. O 10 de
Junho transformou-se num ritual sem alma, deslocado das populações, onde nem já
Camões se destaca como poeta agregador das massas. Os desfiles do 25 de Abril
dividem mais do que unem, com a descida da Avenida seccionada em trupes de cada
identidade sectária, com os liberais a fecharem o cortejo ao estilo
carro-vassoura das diferenças políticas. As comemorações oficiais tendem a ser
tratadas como obrigações protocolares, com tanto de bocejo como de pompa, ou,
então, meras oportunidades para ajustes de contas ideológicas com o passado. A
esquerda teme parecer nacionalista; a direita fá-lo muitas vezes de forma
caricatural e nostálgica, incapaz de se renovar. O resultado é que o país
perdeu a capacidade de se rever ao espelho e de se aceitar em si mesmo, com as
suas glórias e os seus erros, inteiro, em vez de compartimentado e
envergonhado, numa paralisação autodesvalorizante que o faz fugir de si
próprio.
Talvez seja por isso que as comemorações dos cinquenta anos
do 25 de Abril, que poderiam e deveriam ter sido uma afirmação serena da nossa
maturidade democrática, acabaram reduzidas a um eco dos traumas do passado.
Entre o revisionismo e a saudade, entre a retórica da “liberdade conquistada” e
o ressentimento do “25 de Novembro”, o país parece reviver a infância das suas
divisões, incapaz de transformar a memória em projeto. Incapaz de sarar as
feridas passadas, unindo-se num ideal comum de liberdade e democracia. Em vez
disso, caímos no fosso do revanchismo revisionista, agitando ainda as velhas
bandeiras da revolução contra a reação. Como se ser de Abril não fosse, afinal,
ser de Portugal e vice-versa.
Até porque celebrar o passado não tem de ser um processo
regressivo, feito de traumas e restituições. Pelo contrário. Celebrar é um
gesto profundamente afirmativo. É reconhecer que há uma história comum, um
percurso que nos precede e uma continuidade que nos sustenta. Não se trata de
glorificar o passado, mas de o compreender como parte viva de quem somos e que
nos transporta, com segurança, para o futuro. Celebrar é afirmar uma identidade
que não precisa de ser nacionalista para ser cultural, cívica ou simplesmente nossa,
individual e humana.
Há um equívoco de fundo na ideia de que o passado é um
túmulo amaldiçoado de que é preciso fugir ou esquecer. O nacionalismo é uma
ideologia; o sentimento de pertença, não. Um povo sem laços é apenas uma soma
de indivíduos. E uma comunidade que não celebra as suas datas é uma comunidade
que esquece o seu próprio caminho. A memória coletiva precisa de rituais, de
símbolos e de encontros. São esses momentos, por mais cerimoniosos ou até
artificiais que pareçam, que alimentam a consciência de que pertencemos a algo
maior do que nós próprios.
Em 2027, os Açores celebrarão 600 anos do seu descobrimento.
É uma data que poderia (e deveria) ser mais do que uma efeméride histórica: é uma
oportunidade para pensar o arquipélago como um projeto comum. Porque, na
verdade, a ideia de arquipélago nunca esteve totalmente consolidada. Ainda
hoje, como não me canso de escrever, persiste uma visão fragmentada, quase
insular, da própria autonomia, uma soma de ilhas, mais do que uma consciência coletiva
de Açores.
Celebrar os 600 anos não seria apenas recordar a chegada dos
primeiros navegadores; seria pensar o que significa hoje viver num território
atlântico e europeu. Seria um exercício de imaginação cívica, uma oportunidade
de revisitar a história para projetar o futuro. Um futuro que, para os Açores,
tem tudo a ganhar em reforçar a sua ideia de conjunto e de verdadeira
comunidade arquipelágica na sua circunstância de ponte entre dois mundos.
Essas celebrações poderiam ser um momento de reencontro:
entre a história e o presente, entre o local e o universal. Através da cultura,
da arte, da ciência, da reflexão crítica e não apenas de discursos ou
cerimónias protocolares, com mais ou menos concertos e sopas do Espírito Santo,
poder-se-ia afirmar uma nova forma de pertença. Uma pertença aberta, moderna,
consciente da sua complexidade e das suas tensões e que abarcasse todas as
ilhas desde o Corvo a Santa Maria numa verdadeira Açorianidade.
Os Açores são, afinal, um microcosmo perfeito do dilema
português: entre o orgulho de existir e o receio de o declarar. Tal como o país
continental, o arquipélago vive entre a vontade de se afirmar e o medo de
parecer retrógrado; entre a necessidade de celebrar e o pudor de o fazer. Mas
não há nada de reacionário em querer celebrar o que somos. Reacionário é
desistir de nos pensarmos, é omitir essa permanente tensão de existir.
Talvez o maior legado dos cinquenta anos do 25 de Abril
pudesse ser precisamente este: libertar o amor à pátria da sombra do Estado
Novo e devolvê-lo à cidadania democrática. Reconciliar-nos com a ideia de que
um país pode orgulhar-se de si sem se fechar, que uma ilha pode celebrar a sua
história sem se isolar, que um povo pode ter símbolos sem ser escravo deles.
No próximo ano celebraremos também os 50 anos da Autonomia.
Ao que se sabe, pouco ou nada está ainda pensado para esse momento fundacional
da nossa contemporaneidade insular. Talvez, nos gabinetes bafientos, algum
técnico superior esteja incumbido de organizar o protocolo da celebração, dos
discursos, das precedências e das comendas. A nós chega-nos pouco ou quase nada
do que deveria ser a celebração do nosso aniversário coletivo enquanto entidade
arquipelágica, autonómica, insular, europeia e atlântica. Talvez ainda vamos a
tempo.
Talvez ainda vamos também a tempo de celebrar
convenientemente esse estatuto de Capital da Cultura, mesmo que os
financiamentos se percam nas gavetas das insolvências governativas, que os
protagonismos políticos e artísticos tentem cooptar esses gestos simbólicos,
retirando-lhes a essência popular e criativa que um momento como este deveria
ter. Tal como, aliás, estava previsto na sua génese: um evento agregador da
pluralidade insular, fazendo de Ponta Delgada não a capital, no sentido mais
retrógrado do termo, mas o epicentro, motor e centralizador da multiplicidade e
diversidade insular. Uma cidade feita desses nove bairros, na feliz formulação
do Nuno Costa Santos, que se revisitam e se dão a conhecer em conjunto.
Celebrar, celebrarmo-nos, não tem de ser um frete ou um
embaraço. Celebrarmo-nos, a nós, como povo, arquipélago e identidade, é antes
uma afirmação viva dessa Açorianidade literária que Nemésio cunhou fará
agora cem anos e que hoje não vale mais do que um envergonhado prémio literário
de dois mil e quinhentos euros.
Perdemo-nos tanto na espuma do presente que nos esquecemos de
celebrar o passado e de ambicionar o futuro.
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