Natureza intacta e outros mitos
Por estes dias, a pacata ilha das Flores tem sido abalada
por uma inusitada intempérie. Desta feita, a razão de tal rara fama são já não as
intermitências meteorológicas, mas as adversidades paisagísticas e
territoriais. Este furacão tem várias incidências, algumas do foro sociológico,
outras jurídico, mas duas dessas questões, em particular no que concerne ao
âmago da uma certa ideia de Açores, são suficientemente significativas para
permitirem uma análise mais teórica, ou mesmo filosófica, se quisermos, e uma
atenção que se devia expandir e generalizar às restantes ilhas.
Pelo que foi tornado público, um casal estrangeiro radicado
na ilha terá vindo a adquirir uma série de terrenos privados nas imediações e
acessos ao famoso Poço da Ribeira do Ferreiro. Recentemente, esses novos
proprietários do local terão vindo a desenvolver uma série de trabalhos de
desmatamento e limpeza do coberto vegetal, tentando restituir a paisagem ao seu
uso passado. Das diferentes reações que se têm feito ouvir, primeiro nas redes
sociais e depois na pantalha televisiva, as principais preocupações da
população, para além de um receio de privatização do acesso ao espaço, prendem-se
com a adulteração do cenário natural e a índole jurídica da posse de um cartaz turístico
regional, numa dicotomia público-privada aparentemente de difícil resolução num
arquipélago onde praticamente tudo é, ou já foi, privado.
A ideia da natureza pura, ou intacta, com que os Açores se têm
promovido ao longo dos tempos radica num infeliz desconhecimento da história e num
logro comercial baseado no mito da virgindade da nossa paisagem. Os Açores são,
na verdade, um caso de estudo de uma paisagem toda ela humanizada por seiscentos
anos de trabalho da mão do homem. A chegada dos primeiros povoadores é marcada,
desde logo, por aquilo que ficou conhecido como a “virada das terras”,
um infinitamente laborioso processo de remoção dos mantos vegetais de floresta Laurissilva
autóctone e da lava, por forma a se obterem extensões de terra arável e passível
ao cultivo. Este rendilhado de muros de pedra seca e terra de cultivo, do cereal
à vinha, ou a atual pastagem, aqui e ali pontilhada de hortênsias e conteiras
ou matas de criptomérias, espécies todas elas importadas, construído com suor ao
longo dos tempos, são aquilo que hoje marca e distingue a paisagem açoriana e
não podiam estar mais distantes dessa ideia romântica de natureza intacta.
O que este episódio nos devia levar a debater é precisamente
que paisagem somos ou queremos ter e que território queremos promover para o estrangeiro,
seja por via do turismo, seja por via do repovoamento das ilhas com populações,
vegetais ou humanas, forasteiras, algo que, também, sempre caracterizou as nossas
ilhas. Veja-se, por exemplo, o caso paradigmático de Thomas Hickling e o seu
deslumbrante e icónico Jardim Terra-Nostra.
Por outro lado, a colaboração, ou a falta dela, entre público
e privado, na gestão do território, na utilização da paisagem e na promoção de
modelos de desenvolvimento para as ilhas também nos devia inquietar. A verdade
é que os poderes públicos, sejam autárquicos ou autonómicos, têm-se pautado por
um impressionante desleixo face ao ambiente e à paisagem, na grande maioria dos
casos, do qual o mais latente talvez seja a tentativa e inexplicável abandono da
reflorestação e arranjo paisagístico da bacia hidrográfica das Furnas. Se há
coisa que os sucessivos governos nunca souberam fazer é preservar e desenvolver
o património seja ele natural, construído ou a mistura dos dois. Basta ver o
exemplo da paupérrima e cronicamente suborçamentada rede regional de museus,
ou um mirabolante projeto de miradouro para a cumeeira da Lagoa do Fogo, para
perceber como o Estado é mau gestor da coisa pública. Se esta interessantíssima
polémica nos trouxesse reflexão contextualizada, extensível às nove ilhas do
arquipélago, sobre uma ideia de futuro para os Açores, já não seria mal
empregue…