quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 20

Natureza intacta e outros mitos

Por estes dias, a pacata ilha das Flores tem sido abalada por uma inusitada intempérie. Desta feita, a razão de tal rara fama são já não as intermitências meteorológicas, mas as adversidades paisagísticas e territoriais. Este furacão tem várias incidências, algumas do foro sociológico, outras jurídico, mas duas dessas questões, em particular no que concerne ao âmago da uma certa ideia de Açores, são suficientemente significativas para permitirem uma análise mais teórica, ou mesmo filosófica, se quisermos, e uma atenção que se devia expandir e generalizar às restantes ilhas.

Pelo que foi tornado público, um casal estrangeiro radicado na ilha terá vindo a adquirir uma série de terrenos privados nas imediações e acessos ao famoso Poço da Ribeira do Ferreiro. Recentemente, esses novos proprietários do local terão vindo a desenvolver uma série de trabalhos de desmatamento e limpeza do coberto vegetal, tentando restituir a paisagem ao seu uso passado. Das diferentes reações que se têm feito ouvir, primeiro nas redes sociais e depois na pantalha televisiva, as principais preocupações da população, para além de um receio de privatização do acesso ao espaço, prendem-se com a adulteração do cenário natural e a índole jurídica da posse de um cartaz turístico regional, numa dicotomia público-privada aparentemente de difícil resolução num arquipélago onde praticamente tudo é, ou já foi, privado.

A ideia da natureza pura, ou intacta, com que os Açores se têm promovido ao longo dos tempos radica num infeliz desconhecimento da história e num logro comercial baseado no mito da virgindade da nossa paisagem. Os Açores são, na verdade, um caso de estudo de uma paisagem toda ela humanizada por seiscentos anos de trabalho da mão do homem. A chegada dos primeiros povoadores é marcada, desde logo, por aquilo que ficou conhecido como a “virada das terras”, um infinitamente laborioso processo de remoção dos mantos vegetais de floresta Laurissilva autóctone e da lava, por forma a se obterem extensões de terra arável e passível ao cultivo. Este rendilhado de muros de pedra seca e terra de cultivo, do cereal à vinha, ou a atual pastagem, aqui e ali pontilhada de hortênsias e conteiras ou matas de criptomérias, espécies todas elas importadas, construído com suor ao longo dos tempos, são aquilo que hoje marca e distingue a paisagem açoriana e não podiam estar mais distantes dessa ideia romântica de natureza intacta.

O que este episódio nos devia levar a debater é precisamente que paisagem somos ou queremos ter e que território queremos promover para o estrangeiro, seja por via do turismo, seja por via do repovoamento das ilhas com populações, vegetais ou humanas, forasteiras, algo que, também, sempre caracterizou as nossas ilhas. Veja-se, por exemplo, o caso paradigmático de Thomas Hickling e o seu deslumbrante e icónico Jardim Terra-Nostra.

Por outro lado, a colaboração, ou a falta dela, entre público e privado, na gestão do território, na utilização da paisagem e na promoção de modelos de desenvolvimento para as ilhas também nos devia inquietar. A verdade é que os poderes públicos, sejam autárquicos ou autonómicos, têm-se pautado por um impressionante desleixo face ao ambiente e à paisagem, na grande maioria dos casos, do qual o mais latente talvez seja a tentativa e inexplicável abandono da reflorestação e arranjo paisagístico da bacia hidrográfica das Furnas. Se há coisa que os sucessivos governos nunca souberam fazer é preservar e desenvolver o património seja ele natural, construído ou a mistura dos dois. Basta ver o exemplo da paupérrima e cronicamente suborçamentada rede regional de museus, ou um mirabolante projeto de miradouro para a cumeeira da Lagoa do Fogo, para perceber como o Estado é mau gestor da coisa pública. Se esta interessantíssima polémica nos trouxesse reflexão contextualizada, extensível às nove ilhas do arquipélago, sobre uma ideia de futuro para os Açores, já não seria mal empregue…

 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 19

O país dos doutores

A notícia passou mais ou menos despercebida entre o corrupio mediático nacional, entretido com o cúmulo jurídico dos deputados do Chega e a minimaratona dos putativos presidenciáveis, mas conta-se facilmente. Na sua mais recente revisão do contrato coletivo de trabalho, a AHRESP e o Sindicato dos Trabalhadores do Setor de Serviços acordaram, entre outras coisas, a alteração da velha designação de “empregado de mesa” para uma mais moderna e fina denominação de “assistente de sala”. Diz o Expresso que a nova nomenclatura visa valorizar aquela que é vista como “uma das profissões mais mal amadas no turismo” (sic!). Um pouco como os cozinheiros que agora são todos chefs.

Esta poderia ser mais uma inconsequente e inócua aventura do tão em voga processo de cancelamento em curso. Em que as nossas sociedades se entretêm a rever terminologias, sinaléticas de wc e outros mais ou menos estapafúrdios detalhes de comportamento e inter-relação cultural e social. Mas, temo que haja aqui um sinal de algo mais profundo e alarmante com que nos devíamos todos preocupar: a continua desvalorização social de profissões determinantes.

Portugal sempre foi um país classista. São resquícios de um certo feudalismo intrínseco, e de uma certa imposição religiosa, que nem uma ascensão fulgurante de uma burguesia mercantil conseguiu aplacar. Salazar, como bom corporativista que era, para além de anticomunista primário, como todos os fascistas, procurou estabelecer um regime ditatorialmente controlador dos agentes económicos, funcionando como juiz das relações entre patrões e trabalhadores, oprimindo as liberdades dos últimos, mas também limitando muitas vezes as licenciosidades dos primeiros. Isto levou a um país de doutores, onde todos querem ser patrões, todos anseiam ser chefes e ninguém quer ser servente, muito menos simples trabalhador.

No seu “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, o sociólogo alemão Max Weber estabeleceu as bases da teoria da correlação entre filiação religiosa e estratificação social, tendo por base as estatísticas laborais da Alemanha no dealbar do século XX, identificando a propensão do puritanismo protestante pelo capital e o trabalho, e a maior inclinação humanista do catolicismo e a sua inerente tradição de culpabilização da riqueza.

O nosso país, eternamente enredado nas suas múltiplas manifestações do “Fado, Futebol e Fátima”, vive nessa teia de sub-reptícias hierarquias e vergonhas, onde riqueza e trabalho, estatuto, ou status, social, se quisermos, e relevância se imiscuem num permanente caldo cultural de idealização e embaraço. O aristocrata rural deu lugar ao doutor citadino e ambos dominando a criadagem com leves ares de sobranceria numa mão e caridadezinha na outra. Os eternos Tomás de Palma Bravo, de “O Delfim”, de Cardoso Pires, espécie de retrato último desse conservadorismo patriarcal e cínico português, que se pela por um BMW e a vivenda com piscina e, agora, com a interpretação semiótica da categoria profissional.

Vivemos num país onde todos querem ser doutores ou engenheiros, advogados e juristas, médicos, de bata branca e consultório privado, que, como dizia o Eça, é “chique a valer”. Já ninguém quer ser pedreiro ou carpinteiro, e até esses já só sonham ser empreiteiro, nem já sequer empregado de mesa, que isso é coisa para paquistanês fazer. Num país sobrelotado de licenciados, com canudos inúteis debaixo dos braços, tristes e incompetentes nas suas funções de técnicos superiores de vão de escada de secretaria governamental o que realmente faz falta são competências e trabalhadores. Quando terminei a universidade, nessa coisa dos títulos, autodenominei-me de “poeta, surfista e cultivador de ananases”. Hoje, depois de tudo o que já vivi, fico-me pela singela categoria de mero e simples estalajadeiro. Num país de tantos maus doutores, o que mais falta faz são bons empregados de mesa…

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 18

Balas e brioches

Diz-se que ao se aperceber dos gritos da turba que marchava às portas de Versailles, Marie Antoinette, terá perguntado porque gritava a multidão? À resposta - porque têm fome, a mulher de Louis XVI terá respondido - dêem-lhes brioches. Verdade ou não, a frase tornou-se símbolo do desfasamento, da distância, ou detachment, na sua formulação inglesa, se quisermos, que talvez seja a mais adequada, entre governantes e governados. Impregnada pelos mais puros ideias - Liberdade, Igualdade e Fraternidade - a Revolução Francesa, que em breve fará 250 anos, foi uma sublevação das massas desfavorecidas contra a elite, cada vez mais distante e abjeta, presa nos seus faustosos castelos e pompa extravagante. À época, o maior grito da moda masculina eram os calções de seda que os aristocratas usavam e a grande multidão popular para sempre ficaria conhecida como os sans-culottes. Por mais bela e justa que fosse a origem desse grande movimento popular, que ainda hoje marca a geografia política mundial, a revolução terminou num enorme banho de sangue e na vertigem ditatorial napoleónica.

Nos últimos dois dias, numa das primeiras iniciativas de António Costa, os líderes europeus reuniram-se no Palácio d’Egmont para uma reunião informal dedicada aos temas da defesa onde marcaram presença dois convidados especiais, Mark Rutte, secretário-geral da NATO, e Kier Starmer, o primeiro-ministro inglês. Rutte, que é bom não esquecer era o primeiro-ministro holandês quando o seu execrável ministro das finanças, Dijsselbloem, lançou sobre os países latinos o anátema dos copos e das mulheres, já tinha estado em Lisboa, na última semana, avisando-nos para a ameaça russa, cujos navios e mísseis se aproximam das costas portuguesas, como as potentes ondas do canhão da Nazaré. Tal como esse outro paladino do povo tornado empedernido falcão, Mário Draghi, que marcou presença numa reunião do conselho de estado para enfatizar a urgente necessidade de uma deriva militarista, aconselhando avultados investimentos em armamento como o novo rumo estratégico da economia europeia.

Depois de se terem colocado nas mãos da indústria farmacêutica, de formas pouco transparentes, em que biliões dos nossos impostos foram injetados em grandes multinacionais por causa de um medo indizível e não identificado, os líderes europeus preparam-se para ir para a cama com o complexo industrial militar, desta vez sob a égide do fantasma de Putin. A Europa, em tempos um bastião da paz e da concórdia, parece agora querer arrastar-se para uma militarização abominável e sem sentido, numa amnésia coletiva dos seus mais altos representantes sobre o que foram as duas grandes tragédias do século XX.

Numa das suas últimas declarações públicas, Antony Blinken, secretário de estado de Joe Biden, apelava cinicamente a que os ucranianos baixassem a idade do recrutamento militar, como forma de alimentar a máquina de extermínio de uma guerra suja, numa Ucrânia onde Zelensky já veio admitir que apenas recebeu metade dos mais de 175 biliões de dólares em ajudas financeiras dos EUA, para uma guerra  determinada pelos interesses financeiros dos grandes conglomerados financeiros, a quem praticamente todos os políticos se submetem, como a Black Rock, por exemplo, um fundo que é detentor de parte da Pfizer e um dos maiores investidores mundiais na indústria de defesa.

Desde 2008 que o mundo se debate com sucessivas ignomínias, em que os mais pobres são alimento fácil para a voracidade dos falcões, banca, alta finança, farmacêuticas e indústria militar. Talvez quando os nossos filhos forem chamados a perder a vida nas fronteiras do Leste, ou aqui, nas águas do Atlântico, a grande massa dos descamisados do mundo, os eternos sans-culottes, possa acordar da sua letargia e marchar novamente sobre os palácios do poder, onde ao som do Hino da Alegria um qualquer António Costa se comova com um banal - sirvam-lhes brioches...

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 17

O Arruda Arrenegado

Reza a história que Mateus Pedro d’Arruda, o Arrenegado, terá nascido nesta cidade de Ponta Delgada, nas últimas décadas do século dezassete, sendo o primeiro dos “Arrenegados da Rua do Lameiro”, assim descritos nos livros de contas do mosteiro de Santo André, a quem pagavam foro fixo anual de 480 réis por uso de vinhas e outras terras que faziam parte da doação de dito convento e que estes trabalhavam. Estes Arrudas foram família burguesa abastada deste burgo pontadelgadense, sendo seu neto José Joaquim d’Arruda detentor do primeiro estabelecimento de carruagens desta cidade, sito à rua João de Deus, onde hoje fica a rua António Joaquim Nunes da Silva, traseira ao Teatro Micaelense.

Consta que o desditoso cognome vinha de um tal António Álvarez, avô paterno de Mateus Pedro, dito escravo branco ao serviço do licenciado António Pereira Botelho, que por ser mouro cativo, capturado, ao que se diz, de uma das muitas incursões que os piratas magrebinos usavam fazer às ilhas deste arquipélago e que, por ter renegado a sua fé e se convertido, ganhou o famigerado epíteto de “o Arrenegado”, pelo qual os seus descendentes seriam reconhecidos até bem dentro do século passado.

Na última semana, ganhou fama o deputado Arruda, do Chega!, que não consta seja da família, espécie de personagem picaresca de um qualquer pantera cor de rosa dos tapetes rolantes da Groundforce, por grotesca razão do furto de bagagem alheia na sempre entediante sala de recolha do aeroporto Humberto Delgado. E, ato continuo, por ter sido ele mesmo arrenegado pelo seu próprio partido, numa impressionante demonstração de mortal encarpado à retaguarda de hipocrisia política.

Pouco mais haverá a dizer, de tal forma o absurdo do episódio já foi escalpelizado pelos tribunais mediáticos e pelo júri das redes sociais, sobre esta súbita notoriedade do deputado Arruda. Mas talvez seja bom refletirmos um pouco sobre a questão da representação política e a forma desabrida como tanto jornalistas, como comentadores e até, pasme-se, outros seus colegas deputados, se aproveitaram das malas abafadas do deputado Arruda para afrontar a fraca qualidade dos nossos eleitos, fazendo por passar a ideia de que se trata de fenómeno tão recente quanto preocupante. E, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tentando afastar-se do deputado Arruda, ostracizando-o.

Basta regressar a Calisto Elói, austero e conservador fidalgo transmontano, corrompido pela luxúria da capital lisboeta, figura central do pouco celebrado e muito esquecido “A Queda de um Anjo”, grande romance de Camilo Castelo Branco, para perceber como já nos idos de oitocentos tanto o Parlamento, como Lisboa no seu todo, eram chão fértil para a corrupção e a caricatura. Não que eu queira fazer do deputado Arruda um anjo, longe disso.

O que a história ensina é que os parlamentos são espelhos das sociedades de onde emergem e enfermam dos mesmos vícios e virtudes daqueles que se dizem representar. E talvez seja exatamente aí, na origem e caráter dos nossos eleitos que nos devamos concentrar. Na nossa democracia já tivemos um pouco de tudo, desde gravadores surripiados, a autarcas condenados e reeleitos, até primeiros-ministros indiciados. A arte do furto é uma espécie de disciplina obrigatória do nosso curriculum parlamentar. Ao que parece, ao deputado Arruda só lhe falhou o engenho de não se deixar apanhar na arte de larapiar. A realidade é que entre os dramas do deputado Arruda, com a sua insana bagagem, e os múltiplos Calistos Elóis que pululam pela política nacional, cujo talento principal é escapulirem-se melhor aos registos videográficos da ladroagem pública, pouca diferença haverá. E é precisamente isso que urge contrariar, essa ideia cristalizada de que na política são todos iguais ao mais recente Arruda, o Arrenegado. É caso para dizer, merecíamos políticos melhores, na origem, no caráter, na postura e na linguagem e, principalmente, no tipo de bagagem que transportam consigo. Porque, em boa verdade, a política somos todos nós…  

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 16

O sonho americano

Washington chamou-lhe “os emaranhamentos europeus”. Monroe, na sua famosa doutrina, aprofundou a tese da “américa para os americanos” e defendeu o distanciamento face aos permanentes conflitos entre as nações do velho continente. Mais tarde, no vórtex da Primeira Grande Guerra, Woodrow Wilson, um Democrata, cunhou a entoações de discursos radiodifundidos o slogan populista de “America First”, evitando a todo o custo a intervenção da grande potência da liberdade e da prosperidade numa Europa hostil e caótica.

A História, na verdade, ensina-nos que o sonho americano foi construído por antítese à Europa. As várias nações das Américas, sendo naturalmente os EUA o seu principal protagonista, foram construídas por homens e mulheres evadidos ao caos europeu de injustiça social, perseguição religiosa e pequenas nações permanentemente em conflito. Ao longo dos séculos, as Américas, e os Estados Unidos da América, foram o porto de abrigo de sucessivas gerações de desfavorecidos das várias nações europeias aportando ao novo continente em busca de Liberdade e Prosperidade e em fuga, muitas vezes enraivecida, ao desastre europeu.

Há uma certa húbris neste sentimento de que a América deve, por alguma razão superior, quase metafísica, acompanhar a Europa nas suas  dores e dificuldades, como se de um filho se tratasse, que deve cuidar do seu progenitor idoso nos seus anos finais de vida. Depois de ter sido salva duas vezes no século passado da autodestruição, a Europa observa em pânico o regresso dos EUA à sua verdadeira natureza de nação iminentemente isolacionista, agora na retórica alaranjadamente simplista de um  Trump messiânico e demagógico. Também nisso a História nos mostra que não há grande originalidade. Para desgosto dos muitos editorialistas e especialistas dos órgãos de comunicação social ditos mainstream, os EUA sempre foram pródigos em políticos grandiloquentes, populistas e, eminentemente, antieuropeus.

Talvez, mais importante do que censurar a narrativa trumpiana, a Europa devesse olhar para si e perceber os seus próprios falhanços e debilidades, reconstruindo-se como farol da tolerância e da igualdade. O que a tomada de posse de Trump revela é a própria incapacidade europeia de se afirmar como protagonista relevante, alicerçado na confirmação social, cultural e económica dos seus valores fundacionais. Ao revés, a Europa vê definhar as bases do Estado Social, da livre circulação e da prosperidade definida no projeto europeu, mesmo da própria paz no continente, soçobrando sob a opressão das suas próprias forças internas que, como Mark Rutte, que hoje se regozija com a perspetiva de uma Europa militarizada e “turbo-carregada” de despesas em armamento e defesa, se comprazem com a perspetiva de uma nova vertigem bélica no continente. A grande ameaça à Europa não é Trump, muito menos uma América orgulhosamente só, mas a implosão do sonho europeu de paz e desenvolvimento num continente de nações finalmente reconciliadas entre si.

Bruxelas capitulou aos pés dos mercados e da alta finança. Estrasburgo soçobrou sob o peso da sua própria burocracia e irrelevância prática. Paris e Berlim perderam-se no caleidoscópio da histeria pós-ideológica. E a velha Albion refugiou-se de novo na sua insularidade pragmática. Não admira que em Roma, Georgia Melloni reclame em excitação mussoliniana a refundação de um novo Império Romano com a cidade do rio Tibre como nova capital europeia.

Enquanto Trump se apresentava como o novo escolhido de Deus e o arauto de uma nova “era dourada”, e Biden perdoava, na vigésima quinta hora, o inefável Fauci e mais uns quantos membros da sua família, a Europa enfunava-se para mais um encontro global de interesses não escrutináveis em Davos, Portugal debatia o futuro de Vitor Bruno e o calvário portista e, nos Açores, entre sismos e depressões (meteorológicas e mentais…), Tony Carreira era apresentado como figura de proa da nova programação do Coliseu Micaelense. Cada um têm o que merece.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 15

Os Carteiristas

“O Carteirista” é um filme, de 1959, realizado pelo renomado cineasta francês Robert Bresson, e reconhecidamente considerado como um dos mais importantes filmes da história do cinema. Michel, é um carteirista insensível, apaixonado por uma bela e sentimental Jeanne, que  corre as ruas de Paris roubando carteiras e bens de insuspeitos transeuntes. Tal como o excecional Raskolnikov de Dostoiesvky, no célebre “Crime e Castigo”, aliás inspiração para o próprio filme, Michel vive à margem da lei e da moral, vendo-se a si próprio num espelho de superioridade face ao mundo que o rodeia. O roubo, na particular formulação mental de Michel, é um direito e imperativo da sua condição superior.

Entrou recentemente em vigor, em alguns concelhos da ilha de São Miguel, apesar de uma suposta unanimidade na sua decisão e aplicação, a tão propalada Taxa Turística Municipal que, acoberto de uma hipotética pegada turística nos municípios, com sobrecustos a nível de resíduos, limpeza, infraestruturas e espaços públicos, ou de interesse turístico, estes decidem ir ao bolso de quem nos visita, utilizando para isso a mão trémula das unidades de alojamento. O Turismo, como aliás se tem visto um pouco pelo país, e apesar de ser reconhecidamente o motor atual da nossa recuperação e resiliência económica, é solo fértil para todo o tipo de populismos. É, também, razão e exemplo dos mais básicos instintos humanos, como a inveja, a avareza ou a irracionalidade que nos acometem quando percecionamos, palavra tão na moda, nos outros um bem, uma abundância, que nos parece legitima ou ilegitimamente nossa. Há a perceção de que o Turismo é uma espécie de nova galinha dos ovos de ouro e todos querem um pedaço desse bolo.

Existem diversos aspetos nesta medida que vão contra a mais elementar razoabilidade. Como aliás se viu na reversão da Taxa Regional, que o PAN pretendeu instituir mas que a ALRAA logo, e bem, compreendeu cancelar. Desde logo há aqui uma incompreensão sobre a indústria e o negócio que 1) não explicita os supostos impactos e 2) não entende a natureza e a dimensão da atividade. Veja-se a entrada em vigor de uma medida quando em alguns casos quase 50% da ocupação já estava vendida previamente. O mito da “massificação” turística é outra dessas questões, mas isso dava para todo um outro artigo. Depois, há uma questão de publicidade enganosa, ou de greenwashing se quisermos, em que os municípios se dizem responsáveis por algo que na sua quase totalidade não são. E prometem coisas que sabemos que não farão. Já para não falar numa ideia de limitação de uma taxa a 3 noites, que foi vendida como sendo o limite a cobrar a cada visitante na ilha, mas que na verdade é um limite por estabelecimento, podendo na realidade um visitante que disfrute de suponhamos 8 dias na ilha, que pagar taxa de cada vez, como amiúde sucede, que mudar de alojamento, seja dentro de Ponta Delgada, ou da Vila Franca para as Furnas.

Se juntarmos a isto tudo o facto de que os principais pontos turísticos da ilha serem na realidade responsabilidade privada ou do Governo Regional, veja-se o exemplo do chá, ou dos ananases, das lagoas, ou do ilhéu da Vila, os trilhos que, na sua grandíssima maioria, são pagos pelo governo, os nadadores-salvadores que a maioria das câmaras se recusam a pagar, ou de estas já receberem, por via do aumento da fatura da água, avultadas quantias nos seus orçamentos por via do incremento da atividade turística. Já para não falar nas óbvias dúvidas processuais e constitucionais, ao nível de proteção de dados, ou da reserva da vida privada, para dar apenas dois exemplos, que muitos dos regulamentos já publicados colocam. A verdade é que os municípios de São Miguel se comportam como carteiristas, indo ao engano, ludibriando e furtando, agindo na sombra, a título de uma autoridade moral que na verdade não têm. E assim se esfola a galinha dos ovos de ouro.

 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 14

Nacional iliteracia

Mandada erigir em 1568 pela Infanta Dona Maria, oitava filha do Rei D. Manuel I, a Igreja de Santa Engrácia, ali ao alto do campo de Santa Clara, em Lisboa, foi destruída por um grande temporal em 1681. No ano seguinte, por obra dos irmãos da Irmandade dos Escravos do Santíssimo Sacramento, a primeira pedra do novo templo foi lançada pelo Infante D. Pedro, quinto filho de D. João IV, que viria a ser coroado rei em 1683 e cognominado “o Pacífico”. Ao que reza a lenda, o templo estaria amaldiçoado pelo fantasma de Simão Pires Solis, jovem cristão-novo, vítima injustiçada dos horrores da Inquisição, preso, acusado e julgado, sem prova, de profanação do santuário, quando por ai rondava enamorado de uma fidalga noviça do Convento de Santa Clara. Ditou a sentença que ao réu fossem decepadas as mãos e incendiadas à sua vista e, colocado num poste alto, fosse então queimado vivo e, feito o fogo em pó, as suas cinzas deitadas ao mar para que de todo se extinguisse a sua memória. Vítima de tal injustiça Simão Solis amaldiçoaria a reconstrução do templo, que levaria quase 300 anos a ver concluída a sua obra, cujo termino só aconteceria em 1966 por ordem de António de Oliveira Salazar, jornada que daria origem à popular expressão “obras de Santa Engrácia”, naquele que é o detalhe mais caricato de um monumento que é hoje conhecido como Panteão Nacional.

A ideia de um Panteão Nacional data de 1836 e deve a sua instituição ao então Ministro Passos Manuel com o intuito de homenagear os heróis da “revolução vintista”, também conhecida como Revolução do Porto, momento fundamental do Liberalismo português. Já em plena República, em 1916, à Igreja de Santa Engrácia, cujo desenho do arquiteto João Antunes é justamente considerado um dos expoentes do barroco português, é acometida a função de Panteão Nacional mas cuja efetivação plena só teria lugar cinquenta anos depois por ordem de Salazar, como forma de afirmação do regime contra não só a desconfiança política num regime ainda abalado pelas ondas de choque das presidenciais de 1958 e do assassinato de Humberto Delgado, bem como da superstição popular que via no eternamente inacabado monumento um símbolo da fatalidade nacional. Ao historiador Damião Peres é incumbida a tarefa de liderar a comissão que definiria as honras de panteão que, em cenotáfios ou tumulares, homenageia e guarda personalidades tão dispares como D. Nuno Álvares Pereira, Afonso de Albuquerque, Teófilo Braga, Óscar Carmona, Garrett e Guerra Junqueiro. Já mais recentemente e não sem certa polémica, as honras de panteão foram concedidas a Amália, Eusébio e Sophia. Hoje, ao fim de uma longa batalha judicial com os herdeiros, os restos mortais de Eça de Queiroz recebem também essa distinção, numa cerimónia solene, trasladado o féretro do grande romancista do cemitério de Santa Cruz do Douro, em Baião, para uma das salas tumulares da antiga Igreja de Santa Engrácia, num processo político iniciado pelo deputado socialista José Luís Carneiro, em resposta a um repto do bisneto do escritor, o também romancista, Afonso Reis Cabral.

A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se.” Escreveu Eça em 1867, com intemporal sabedoria. Possam estas vãs prebendas que hoje lhe são apostas reverter em leitores da sua obra e incrementos nacionais na sua parca e sempre tão equivoca literacia.