quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Speakers' Corner 50

Balas não cantam baladas

“Bella Ciao” é uma antiga balada revolucionária italiana, nascida entre as camponesas dos campos de arroz do norte de Itália, no final do século XIX. Mais tarde foi retomada pelos partisans da Segunda Guerra Mundial, tornando-se hino da resistência antifascista. Nos anos 60 ganhou nova voz nos movimentos estudantis e, já no nosso tempo, regressou à cultura popular através da série da Netflix La Casa de Papel. A canção, que fala de liberdade, sacrifício e esperança, atravessa gerações como símbolo de uma utopia humanista feita de resistência, solidariedade e luta por uma vida melhor.

Na passada quarta-feira, dia 10, no campus da Universidade do Utah, o influenciador da direita radical Charlie Kirk, de 31 anos, foi abatido a tiro por um atirador furtivo que disparou a 183 metros de distância a partir do telhado de um prédio. A bala atingiu-o na carótida. O alegado autor, Tyler Robinson, de 22 anos, terá inscrito nas balas, entre outras mensagens ligadas ao movimento de esquerda radical Antifa, as palavras “Bella Ciao”.

Kirk era conhecido pelas suas posições misóginas e hostis aos direitos das minorias. A sua retórica conservadora e divisionista alimentava confrontos no espaço público, muitas vezes incitando ao ódio e à intolerância. Por cruel ironia acabou vítima do mesmo porte de armas que sempre defendeu.

Pouco se sabe, ainda, sobre as motivações do atirador. Ao que parece, Robinson era próximo da causa LGBTQ+ e, alegadamente, de uma certa esquerda radical antifascista. Mas, o essencial, neste momento, é compreender que vivemos num tempo em que os extremismos, sejam à direita ou à esquerda, já não se limitam a debater ideias. Empunham armas, impõem-se pela violência e destroem, com a sua intolerância, o espaço público, que deveria ser a casa comum das nossas democracias.

Mais chocante do que o atentado em si, um assassinato fútil e frio, cometido a céu aberto, é a polarização que tomou conta do debate mediático. Populismos de ambos os lados trocam acusações e hesitam na condenação clara e necessária do sucedido. Multiplicam-se tentativas de justificar o injustificável, como se alguma morte pudesse ser legitimada por razões ideológicas.

Num regime aberto e liberal, toda a violência deve ser condenada. A liberdade de opinião e de expressão tem de ser preservada, mesmo para quem pretende negá-la aos outros. O facto de Kirk defender o silenciamento de minorias não legitima que fosse condenado à morte por alguém que se via como parte dessas minorias. A bala que o matou não foi justiça. Foi intolerância, e prova da doença que corrói a democracia e destrói a liberdade.

Os Estados Unidos carregam infelizmente uma longa tradição de violência política. De Lincoln a Martin Luther King, dos irmãos Kennedy a Harvey Milk. Mais grave do que acrescentar mais um nome a essa trágica lista de óbitos é perceber como chegámos a um ponto em que radicalismo e intolerância substituem o debate pelo insulto e o diálogo pelas armas. Quando a morte se torna argumento político, é a democracia que deixa de respirar e a liberdade que morre por dentro.

No seu célebre “paradoxo da tolerância”, o filósofo britânico nascido em Viena, Karl Popper, alertava para a necessidade de as democracias liberais limitarem o discurso de ódio e as narrativas extremistas como única forma de se protegerem da intolerância. Mas esta teoria contem, dentro de si, um dilema. Até que ponto a luta contra o discurso de ódio não reproduz os mecanismos autoritários que procura evitar, conduzindo, em última instância, a gestos como o de Tyler Robinson?

A liberdade estará sempre em risco quando as armas da intolerância são empunhadas em seu nome. Não são as balas que garantem a democracia ou nos protegem dos extremismos, sejam de esquerda ou de direita. É precisamente a coragem de dizer não à linguagem das balas.

Porque as balas não cantam “Bella Ciao”. Apenas calam a voz da Liberdade.

 

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Speakers' Corner 49

O fim do Contrato Social

Nos últimos dias, o conceito de responsabilidade política tem estado nas bocas do país, a reboque, perdoem-me a ironia, da tragédia do Elevador da Glória. O próprio Presidente da República, sempre pronto a disparar comentários políticos, veio a terreiro referir-se ao tema, indicando explicitamente o escrutínio popular expresso no voto das próximas eleições autárquicas como forma imediata de assacar responsabilidades políticas ao autarca de Lisboa, Carlos Moedas.

Este, por seu lado, tentou esgrimir os argumentos da fuga ou da coragem política para justificar o injustificável, recorrendo a terminologias abjetas e inqualificáveis para classificar os adversários políticos e usando exemplos indecorosos ao evocar figuras que já não estão entre nós para se defender. Foi o caso de Jorge Coelho e da famosa Ponte Hintze Ribeiro, mais conhecida pela tragédia de Entre-os-Rios.

No meio desta cacofonia, talvez seja importante regressar ao que antecede a responsabilidade política, nomeadamente, o famoso Contrato Social. Só assim se percebe como, nos nossos dias, se confunde ética individual com escrutínio, este com responsabilidade política e, finalmente, com moral pública.

O Contrato Social teve origem no final do século XVIII, com os contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau, que teorizaram sobre a aliança entre governo e população, consubstanciada num pacto entre as partes. Apesar das diferenças entre eles, uma ideia era comum: os indivíduos organizam-se em sociedade estabelecendo regras e acordos para garantir direitos, deveres e um convívio pacífico sob a autoridade de um poder político legítimo. Tratava-se de um pacto em que as pessoas abriam mão de parte da sua liberdade em troca da proteção e segurança oferecidas pelo Estado.

Os direitos e deveres individuais eram definidos a partir desse pacto, que estabelecia regras e limites ao poder do governante. Cada pessoa renunciava parcialmente à sua liberdade natural para garantir a sobrevivência coletiva e direitos civis. A autoridade do Estado emanava desse consentimento dos governados, sendo legítima apenas enquanto respeitasse os termos do pacto. O Contrato Social fundamenta a ideia de responsabilidade política e a obrigação do governante de prestar contas à sociedade, servindo de base teórica à legitimidade do poder político e da organização das sociedades modernas.

Compreender estas raízes é essencial para perceber o princípio do bem comum e o próprio exercício de cargos públicos, em que os governantes devem estar ao serviço dos cidadãos. A tragédia que vivemos hoje, visível nos incêndios, na falência do SNS, numa justiça que não funciona, num sistema de ensino caduco e depauperado, num elevador que cai, ou até mesmo numa SATA em colapso, no Ilhéu que fecha a banhos ou na Praia do Monte Verde, é que os governantes deixaram de garantir o bem comum, a tal proteção e segurança do Estado, e passaram a cuidar apenas do seu interesse pessoal. Os partidos políticos deixaram de ser plataformas ideológicas de alternativa governativa e tornaram-se máquinas de disputar eleições, cujo único objetivo é a sobrevivência dos seus dirigentes.

Mais grave ainda é transformar eleições em plebiscitos sobre a responsabilidade política, ou a ausência dela, dos candidatos. Com isso, legitima-se a sua própria infidelidade ao princípio maior da responsabilidade moral dos governantes: a honra e o cumprimento estrito dos termos do Contrato Social. Bloco a bloco, esse contrato vai-se esboroando a cada tragédia, a cada incêndio, a cada política pública falhada, num acumular de incumprimentos que termina na dissolução da premissa essencial de um Estado de Direito: a confiança dos cidadãos nos governantes e no próprio Estado.

Jorge Coelho não se demitiu por ter lido qualquer relatório, mas porque tinha consciência moral do seu papel enquanto governante. Ao contrário de Carlos Moedas, e outros como ele, que não se demite, exatamente, porque não tem um pingo de moral ou mesmo de consciência.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Speakers' Corner 48

“Bombãs” e outras torturas medievais

Perdoem-me os tradicionalistas e os conservadores, os guardiões dos rituais seculares e das memórias antigas, mas o uso e o abuso de foguetes, roqueiras e “bombãs” nas festas populares das nossas ilhas tornou-se absolutamente insuportável.

O plácido verão açoriano, outrora pautado pela serenidade própria do isolamento insular, transformou-se numa opressiva sucessão de petardos que rebentam a toda a hora, meses a fio e nos momentos mais improváveis, por cima das nossas cabeças, num festival ensurdecedor digno de um cenário de guerra terceiro-mundista. Desde a Páscoa e o Santo Cristo, passando pelas coroações do Espírito Santo, até ao último santo de freguesia, lá nos idos de Setembro, a ilha inteira parece mergulhada num estardalhaço de pólvora e estrondo. Não há manhã, tarde ou noite em que o ar não seja rasgado por sucessivas e ritmadas explosões que nada anunciam, a não ser a paciência a desfazer-se de quem vive nas redondezas do rebentamento. Há casos, como é o meu, em que o lançamento dos ditos é feito sempre do mesmo lugar, paredes meias com o remanso do lar, invadindo-nos o silêncio com a força de um pontapé nos tímpanos.

Se outrora se compreendia a função prática dos foguetes, sinalizar a festa a longas distâncias, anunciar uma procissão ou marcar a saída de um cortejo, hoje, na era das telecomunicações, o ribombar súbito e ensurdecedor destes estampidos não passa de uma forma arcaica e torturante de nos enlouquecer.

Seria bom, se não for pedir muito, que alguém com assento nas Irmandades, nas Comissões Fabriqueiras, na Santa Casa ou na Casa do Povo nos explicasse o porquê de, em pleno século XXI, ainda andarmos a usar este método medieval de comunicação. Há alguma explicação plausível para esse trovão invasivo e arcaico que irrompe repetidamente pelas nossas vidas com a violência de uma bomba, nas horas mais esdrúxulas e inconvenientes? E haverá alguma alma amiga, ligada à pirotecnia, que me esclareça a dúvida sobre a potência da pólvora que, à medida que perco o cabelo, a visão e a audição, parece ser cada vez mais forte e perturbadoramente sonora?

Já para não falar no impacto ambiental. Em nome da tradição, lançam-se indiscriminadamente para o ar cartuchos de plástico com pólvora, sem olhar às consequências, caindo depois aleatoriamente no mar, nos campos ou mesmo nos telhados das casas, sem controlo, vistoria ou sombra de regulamento que nos valha.

Não se trata de acabar com a festa, mas de perceber que a festa não precisa de ser estrondosa para ser genuína. E até há alternativas, com luzes, lasers, música e pirotecnia silenciosa, que já se fazem noutras partes do mundo. Mas, por cá, insiste-se no medievalismo, como se a devoção tivesse de ser medida pelo número de decibéis que emite e pela pólvora que consome.

Depois há a questão das horas. Se antes havia uma lógica que se percebia e uma cadência que estruturava o anúncio da festa, agora reina a anarquia do barulho. Rebenta-se às oito, às oito e meia, às dez, às onze, às quatro da tarde, às seis, às dez da noite, à meia-noite ou até mais tarde. Tudo ao sabor da devoção do mordomo ou do grau de alcoolemia do “tio Joaquim”, que, de beata em riste, se entretém a atiçar os foguetes sem olhar a hora, a vizinhança ou a Lei do Ruído.

Na eterna dicotomia entre progressistas e conservadores, Chesterton lembrava que “a tradição é a democracia dos mortos”. É verdade que o mundo não pode ser feito apenas de inovação, e há tradições que merecem ser preservadas. Mas certas tradições, sobretudo aquelas que perderam o sentido e se mantêm apenas por inércia, não são mais do que um incómodo disfarçado de devoção. As festas são lugares de encontro e de comunidade. Mas este estrépito ensurdecedor dos foguetes e “bombãs” já não une nem informa, apenas mói e cansa.

Talvez esteja na hora de deixarmos os mortos em paz e oferecermos aos vivos um verão menos parecido com uma guerra de trincheira.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Speakers' Corner 47

Perseguidores de tempestades

Nos últimos dias, a comunidade surfista açoriana esteve em estado de alerta em antecipação à chegada da ondulação originada pelo furacão Erin.

Nascido de uma onda tropical que se formou próximo de Cabo Verde, no dia 11 de agosto, quatro dias depois, ao aproximar-se das Antilhas e do mar das Caraíbas, o Erin atingiu a categoria de furacão. O que o torna particularmente extraordinário foi o seu impressionante crescimento à medida que curvava pelo Atlântico em aproximação aos Estados Unidos, tornando-se o furacão que mais rapidamente atingiu a categoria 5 na escala de Saffir-Simpson. Passou da categoria 1, com ventos na ordem dos 120 km/h, para a categoria 5, com ventos superiores a 250 km/h, em apenas um dia.

Felizmente, o Erin desenvolveu-se maioritariamente sobre o mar, afetando ligeiramente as ilhas das Caraíbas e já como tempestade tropical atingiu as Bermudas, provocando chuvas, alguns cortes de energia e dificuldades nas ligações aéreas. Ironia do destino, os principais impactos do Erin foram, afinal, as fortes inundações que causou em Cabo Verde, ainda na sua fase inicial, e, agora, a poderosa ondulação que gerou ao longo de todo o Atlântico Norte.

Os surfistas são seres especiais, buscam a agitação onde outros procuram a calmaria. O surf, afinal, é um jogo de paciência, mais de espera e de busca do que de ação, mais de antecipação do que de agitação. Somos, por assim dizer, vindimadores de tempestades, e a emoção única das ondas talvez só seja igualada pela excitação de imaginar uma ondulação a cruzar vastos oceanos até se materializar, de forma pura e intocada, em ondas no litoral escondido e isolado da ilha.

Ontem, enquanto os banhistas eram surpreendidos por ondas inusitadamente grandes, os surfistas percorriam a costa em busca do pico perfeito, daquela onda única e rara que só quebra circunstancialmente, com as condições certas. E, por toda a internet chegavam relatos dessa ondulação gigantesca, com ondas de 24 metros a atingirem a costa leste dos Estados Unidos e previsões de vagas de quase 20 metros, em pleno agosto, na costa portuguesa.

Felizmente para uns, decepcionante para outros, o Erin passou tranquilamente pelas ilhas açorianas, com ondas a rondar os 2 metros, perfeitamente aceitáveis para os surfistas de fim de semana que infestam as praias da ilha nesta altura do ano.

Mas, o que importa reter são os dados globais destas tempestades e o que elas representam para os Açores. A verdade é que temos assistido a um aumento significativo não só do número de tempestades como também, e mais grave, da sua intensidade. Os dados dizem-nos que, nos últimos 100 anos, os Açores passaram a ter três vezes mais tempestades tropicais e furacões do que no início do século XX, sendo as décadas de 70 e 90 as que registaram maior número. Outro dado significativo é a intensidade: cinco grandes furacões atingiram os Açores nos últimos 20 anos. Desde o Gordon, que cruzou o arquipélago em setembro de 2006, a sul de São Miguel, ainda como furacão de categoria 1, até ao Lorenzo, que assolou as ilhas do Grupo Ocidental nos primeiros dias de outubro de 2019, também ainda como furacão de categoria 1, atingindo as Flores e o Corvo com ventos sustentados de 100 km/h e ondas na ordem dos 15 a 20 metros, causando os estragos que todos conhecemos.

O que isto nos diz é que a natureza não se preocupa com as aflições humanas. Como dizia Pessoa: “A natureza não tem coração; é de uma indiferença que ofende”. Somos nós, os humanos, que temos de aprender a compreendê-la, a aceitar-lhe os humores e a saber viver com ela. Isso significa que não vale a pena contrariar os desígnios do clima, nem querer, arrogantemente, enfrentar as suas forças que, como todos os surfistas sabem, se estão nas tintas para com os desejos ou ambições dos homens.

Se não soubermos moldar-nos ao que a natureza nos oferece, acabaremos inevitavelmente por ser destruídos por ela.


quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Speakers' Corner 46

A Primeira Lei de Newton

Portugal arde.

Com a fatalidade de um destino traçado e a regularidade de um relógio solar, o país consome-se, ou é consumido, pelo fogo no verão. Esta sina triste e aparentemente imutável repete-se ano após ano, com o rigor de uma lei por entre o calendário das procissões e das férias dos veraneantes. Uma verdadeira “Volta a Portugal”, não de bicicletas, mas de labaredas e de fumo.

Pelas notícias, somos inundados (perdoem-me a ironia) pelo suor banhado de espanto, coragem e exaustão dos bombeiros; pela fúria de alguns autarcas; pela aflição das populações; e pelos discursos gastos dos políticos de Lisboa que fogem das perguntas dos jornalistas ou fazem brindes com cervejas na festa do Pontal. Tudo isto em diretos televisivos incessantes, que procuram a emoção crua da catástrofe num guião estudado de desilusão e medo.

E o país arde.

E, como sempre, lamentamos a crónica falta de meios, os aviões que avariam, os eucaliptos que tomaram conta da paisagem como uma praga movida pela avareza e pelo lucro, e a sempre prometida mas nunca cumprida gestão do território, que os especialistas repetem há décadas como sendo o mais profundo e premente problema do país. Desertificámos o interior e, com ele, colocámo-nos a todos em risco.

Vivemos num tempo que se desmaterializou, que se desprendeu do solo, da terra, das culturas, das pastorícias, das estações. Como dizia há dias Henrique Pereira dos Santos, deixámos de comer cabrito para comer salmão e abacate. Os cabritos cresciam nas serras, alimentando-se do mesmo combustível que hoje alimenta os fogos que crescem sem travão, ao sabor do vento e de décadas de desertificação. Os salmões crescem em tanques, à base de ração de soja e antibióticos. Os abacates chegam de produções intensivas, imunes às restrições da sazonalidade e banhados numa enxurrada de rega e fertilizantes.

Esta artificialização dos ritmos e contextos coloca-nos numa condição permanente de alerta em que, ironicamente, somos ao mesmo tempo vítimas e agressores. Todo um mundo que desapareceu e recusamos adaptar-nos ao novo que surgiu.

Paradoxalmente, aqui na ilha, um autarca confrontado com uma óbvia e inacreditável asneira de urinóis e águas residuais de um evento a correrem sem freio para a ribeira e o mar respondeu candidamente: “sempre foi assim”. Perante o absurdo, a reação foi a resignada aceitação da barbárie, como se a estupidez fosse uma fatalidade da natureza, numa espécie de híper-conservadorismo que recusa a mudança, o progresso e até o próprio bom senso.

Estes dois movimentos, aparentemente opostos, um mundo rural desertificado e uma rudeza que se repete, radicam afinal no mesmo princípio: a inércia.

No país que arde e no autarca que se conforma há a mesma incapacidade de perceber que o mundo à volta se transforma, se modifica, que o mundo pula e avança num perpétuo movimento de constante evolução. O “sempre foi assim” traduz exatamente essa incapacidade de reconhecer que o mundo, afinal, já não é assim.

Da mesma forma que em Portugal continental o interior foi abandonado por décadas de migração para as grandes cidades, também nas ilhas o litoral se aburguesou, por assim dizer. Tornou-se finalmente habitado, fonte de prazer e fruição. Onde antes vivia o vazio e a indigência, hoje multiplicam-se turistas, escolas de surf, banhistas de diferentes proveniências e costumes. Sinalizando, numa inescapável fluorescência, que as coisas afinal já não são assim e que temos forçosamente de nos adaptar a elas.

Newton explicou que um objeto, esteja em repouso ou em movimento, não muda o seu estado a menos que seja forçado por uma força exterior. Já que nos recusamos a aceitar Newton, que ao menos nos lembremos de Darwin para perceber que, se não fizermos alguma coisa diferente do que “sempre foi”, se não nos adaptarmos, acabaremos fatalmente por ser os agentes da nossa própria autodestruição, tanto pela (má) ação como pela inércia.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Speakers' Corner 45

O Desafio Arquipelágico

Ao fim de quase trinta anos a viver nos Açores e mais de vinte como filho de açorianos no continente estou convicto de que o maior desafio que estas ilhas enfrentam, ainda hoje, é o desafio arquipelágico.

Não se trata apenas de afirmar a tão glosada e tantas vezes mal interpretada “açorianidade”, mas de construir uma verdadeira identidade arquipelágica. Una, coesa e realmente interdependente entre si. O grande desafio destas ilhas é conquistar a consciência de um arquipélago que se reconheça como tal, feito das suas nove partes, mas unido na certeza de uma realidade comum, partilhada por todos, entre o mar e a terra, e de um povo moldado na dicotomia entre os dois.

Desde os primeiros povoamentos que estas nove ilhas se mantêm de costas voltadas umas para as outras. Hoje, continuam a perder-se em bairrismos fúteis e disputas estéreis. Basta ver como as decisões políticas, seja de que natureza forem, ainda se fazem, tantas vezes, à medida da pressão local e não de uma visão arquipelágica sobre as ilhas.

E mesmo na diáspora, o açoriano só é “açoriano” para fora. Por dentro, mantém a marca indelével da sua ilha e, dentro dela, da sua freguesia. Como dizia, creio que, Daniel de Sá, pode-se tirar o homem da freguesia, mas não se consegue tirar a freguesia de dentro do homem.

Este apego telúrico, íntimo e inexpugnável, é talvez o traço mais pungente do ser açoriano. Talvez até, junto com a religiosidade, seja o mais premente. Mas, mesmo nessa religiosidade, o traço comum fragmenta-se em mil formas. Até no que poderia ser a mais unificadora das tradições, o culto do Espírito Santo, somos uma manta de retalhos. As sopas das Flores não são as mesmas que as de Santa Maria ou as da Terceira.

Ao longo dos séculos, esta fragmentação foi reforçada por divisões administrativas e políticas. No tempo das donatarias, a lógica era de feudo; mais tarde, os distritos acentuaram rivalidades, criando uma geografia mental onde “ilha vizinha” passou a ser “concorrente” e não “parceira”. Já na autonomia, a tripartição entre ilhas e cidades ecoa, de certa forma, as três pessoas do Espírito Santo, distintas, mas que raramente funcionam em verdadeira comunhão.

O grande desafio autonómico de 1976, que em breve comemoraremos (esperemos que de forma séria e não apenas celebratória e politicamente esvaziada), era e continua a ser a construção de uma verdadeira consciência de união arquipelágica. Olhando para o que foi feito nestes quase cinquenta anos, fica a sensação de que falhámos em criar um património identitário conjunto. Continuamos sem uma relação filial entre nove ilhas tão distintas e distantes, mas necessariamente dependentes umas das outras.

Se tivesse de assinalar os verdadeiros motores desse movimento eles seriam, não as formulações políticas, mas a SATA, a Universidade dos Açores e, fundamentalmente, a RTP-Açores. Cada uma, à sua maneira, fizeram mais pela ideia de Açores do que meio século de autonomia. A companhia aérea, ligando as ilhas e estas ao exterior. A universidade, dando-lhes lastro cultural, científico e diplomático, até. E a RTP-Açores, talvez a mais importante de todas, pelo conhecimento real que permitiu entre as ilhas dando-se os açorianos a conhecer entre si através dos ecrãs da televisão.

A identidade constrói-se com esse conhecimento mútuo, com partilha de sensibilidades e afectos, com o acto simples, mas poderoso, de mostrar a um açoriano do Corvo a realidade de outro em Santa Maria. E, nestes cinquenta anos, que agora se celebram, talvez tenha sido a RTP-Açores, mais do que ninguém, a conseguir esse abraço arquipelágico. Num território que vive de costas voltadas, é a televisão quem, com imagens e palavras, aproxima o que a geografia e a história tantas vezes separam.

Resta-nos esperar que talvez um dia essa união não dependa só das ondas hertzianas, mas das ondas reais de cooperação e reconhecimento mútuo e que nos viremos todos, finalmente, de frente uns para os outros.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Speakers' Corner 44

A frustração de uma petição

Nestes tempos conturbados que vamos vivendo, é frequente ouvirmos os políticos nas televisões falarem da erosão dos valores, da falência da democracia, da ascensão dos populismos e do fantasma de novos totalitarismos que pairam negros e ameaçadores sobre nós, como nuvens de mau agoiro.

A verdade é que esta luta da democracia pela sua autopreservação é já antiga. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial que as democracias ocidentais têm procurado manter o Estado Social e defender o seu contrato com os cidadãos. Não poucas vezes, essa defesa passou pelo apelo à participação cívica e pela criação de instrumentos de democracia direta, como é o caso dos referendos ou, mais concretamente, das petições. Com estes instrumentos, pretendia-se incentivar os cidadãos a fazerem parte do governo democrático, indo mais além do que a mera prática do dever cívico do voto nos atos eleitorais.

No enquadramento constitucional português, o direito de petição está consagrado desde 1976, tendo sido reforçado com a revisão constitucional de 1989 e regulamentado pela Lei n.º 43/90, de 10 de agosto, que estabelece as condições do seu exercício por cidadãos e entidades coletivas. Este direito permite a qualquer cidadão (português ou estrangeiro residente) recorrer aos órgãos de soberania para defender direitos ou propor medidas de interesse geral.

Ao nível da União Europeia, qualquer cidadão dispõe do direito de petição ao Parlamento Europeu, consagrado no artigo 227.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE e no artigo 44.º da Carta dos Direitos Fundamentais. As petições europeias constituem um canal direto entre cidadãos e instituições da UE, reforçando a democracia participativa. Destacam-se particularmente em temas como o ambiente, a saúde pública ou a proteção de direitos fundamentais.

Em ambos os níveis, nacional e europeu, as petições são instrumentos centrais de participação democrática, permitindo aos cidadãos contribuir ativamente para os processos políticos e legislativos, com procedimentos claros, simples e, felizmente, cada vez mais acessíveis graças à digitalização.

O problema é que, infelizmente, e com particular gravidade ao nível regional, as petições têm sido sucessivamente tratadas com uma espécie de sobranceria altiva por parte de deputados, comissões e parlamento. O instrumento peticionário é encarado, nomeadamente pelo parlamento regional, como mais uma maçada regimental que é necessário cumprir com enfado. Recorrentemente, as petições são admitidas, organizam-se audições por parte das comissões competentes, elaboram-se relatórios vazios, em que os partidos que suportam os governos se limitam a fazer eco daquilo que os diferentes departamentos governamentais lhes impingem e, tanto em sede de relatório como de debate, abstêm-se de emitir parecer, fazer recomendações ao governo ou, e aqui os restantes grupos parlamentares são igualmente responsáveis, apresentar qualquer tipo de proposta legislativa ou de resolução que acolha as preocupações dos cidadãos e procure efetivamente resolver os problemas que estas petições sinalizam.

O caso mais recente é o da petição SOS Monte Verde, em que, após inúmeras audições e, até, visitas ao local, tanto a comissão como o plenário foram incapazes de olhar com intenção para as propostas feitas pelos cidadãos com vista a uma solução equilibrada para o problema de contaminação das águas da praia do Monte Verde e das ribeiras que aí desaguam. Pelo contrário, expuseram-se ao ridículo de apenas corroborar as ações que as secretarias envolvidas alegam estar a implementar e que, como ficou claro em julho último, com uma nova interdição a banhos no local, comprovadamente não servem nem resolvem o problema.

Quando tanto se fala em defender a democracia, talvez se devesse começar por aqui: pela proteção e pelo respeito por um dos poucos gestos de democracia participativa que os cidadãos ainda têm ao seu dispor.