quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Speakers' Corner 44

A frustração de uma petição

Nestes tempos conturbados que vamos vivendo, é frequente ouvirmos os políticos nas televisões falarem da erosão dos valores, da falência da democracia, da ascensão dos populismos e do fantasma de novos totalitarismos que pairam negros e ameaçadores sobre nós, como nuvens de mau agoiro.

A verdade é que esta luta da democracia pela sua autopreservação é já antiga. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial que as democracias ocidentais têm procurado manter o Estado Social e defender o seu contrato com os cidadãos. Não poucas vezes, essa defesa passou pelo apelo à participação cívica e pela criação de instrumentos de democracia direta, como é o caso dos referendos ou, mais concretamente, das petições. Com estes instrumentos, pretendia-se incentivar os cidadãos a fazerem parte do governo democrático, indo mais além do que a mera prática do dever cívico do voto nos atos eleitorais.

No enquadramento constitucional português, o direito de petição está consagrado desde 1976, tendo sido reforçado com a revisão constitucional de 1989 e regulamentado pela Lei n.º 43/90, de 10 de agosto, que estabelece as condições do seu exercício por cidadãos e entidades coletivas. Este direito permite a qualquer cidadão (português ou estrangeiro residente) recorrer aos órgãos de soberania para defender direitos ou propor medidas de interesse geral.

Ao nível da União Europeia, qualquer cidadão dispõe do direito de petição ao Parlamento Europeu, consagrado no artigo 227.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE e no artigo 44.º da Carta dos Direitos Fundamentais. As petições europeias constituem um canal direto entre cidadãos e instituições da UE, reforçando a democracia participativa. Destacam-se particularmente em temas como o ambiente, a saúde pública ou a proteção de direitos fundamentais.

Em ambos os níveis, nacional e europeu, as petições são instrumentos centrais de participação democrática, permitindo aos cidadãos contribuir ativamente para os processos políticos e legislativos, com procedimentos claros, simples e, felizmente, cada vez mais acessíveis graças à digitalização.

O problema é que, infelizmente, e com particular gravidade ao nível regional, as petições têm sido sucessivamente tratadas com uma espécie de sobranceria altiva por parte de deputados, comissões e parlamento. O instrumento peticionário é encarado, nomeadamente pelo parlamento regional, como mais uma maçada regimental que é necessário cumprir com enfado. Recorrentemente, as petições são admitidas, organizam-se audições por parte das comissões competentes, elaboram-se relatórios vazios, em que os partidos que suportam os governos se limitam a fazer eco daquilo que os diferentes departamentos governamentais lhes impingem e, tanto em sede de relatório como de debate, abstêm-se de emitir parecer, fazer recomendações ao governo ou, e aqui os restantes grupos parlamentares são igualmente responsáveis, apresentar qualquer tipo de proposta legislativa ou de resolução que acolha as preocupações dos cidadãos e procure efetivamente resolver os problemas que estas petições sinalizam.

O caso mais recente é o da petição SOS Monte Verde, em que, após inúmeras audições e, até, visitas ao local, tanto a comissão como o plenário foram incapazes de olhar com intenção para as propostas feitas pelos cidadãos com vista a uma solução equilibrada para o problema de contaminação das águas da praia do Monte Verde e das ribeiras que aí desaguam. Pelo contrário, expuseram-se ao ridículo de apenas corroborar as ações que as secretarias envolvidas alegam estar a implementar e que, como ficou claro em julho último, com uma nova interdição a banhos no local, comprovadamente não servem nem resolvem o problema.

Quando tanto se fala em defender a democracia, talvez se devesse começar por aqui: pela proteção e pelo respeito por um dos poucos gestos de democracia participativa que os cidadãos ainda têm ao seu dispor.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Speakers' Corner 43

A heteronímia do lugar

É comum, na indústria do turismo, ensaiarem-se diversas explanações sobre a identidade dos destinos, procurando identificar com exatidão matemática as características únicas de cada lugar, a cultura, a história, as marcas do território e as idiossincrasias locais, com o objetivo de determinar a sua capacidade de atrair e fidelizar visitantes.

Nas últimas décadas, a massificação tornou-se um dos fatores mais determinantes na evolução dessas teorias. Fenómenos como a gentrificação, a desertificação e, sobretudo, a artificialização infiltram-se na identidade dos lugares, adulterando-a ou, como alguns defendem, destruindo-a. É como se os destinos passassem por uma espécie de crise de identidade, tanto do ponto de vista endógeno, na percepção que os residentes têm do seu território, como exógeno, refletindo as expetativas e fantasias de quem o visita. Uma espécie de bipolaridade beligerante entre a identidade vivida e a identidade experimentada.

No fundo, é como se o turismo se tornasse um fenómeno autofágico, consumindo-se a si próprio na sua voracidade financeira, muitas vezes dando origem à construção de uma ficção, uma heteronímia do lugar.

O lugar que o residente conhece e vive todos os dias já não é bem o mesmo que o turista visita. E o turista, por sua vez, procura algo que talvez nunca tenha existido. Uma fantasia de pureza, um postal ilustrado com cheiro a lava e sabor a mar. O destino passa então a viver uma dupla (ou tripla) personalidade: é ao mesmo tempo o que é, o que o turista deseja que seja e o que as agências de marketing juram que ele será. As dinâmicas entre turistas e residentes e os efeitos dessas relações, tanto imediatos como a médio e longo prazo, provocam uma multiplicidade de identidades que quase se consomem a si próprias. Ao ponto de já ninguém saber, com segurança, o que o lugar efetivamente é.

Esta confusão, estas personalidades sobrepostas, produzem uma nova forma de pressão sobre o território. Uma pressão que precisa de ser pensada, planeada e trabalhada se quisermos alcançar a tão proclamada sustentabilidade que tanto encanta os discursos políticos e as apresentações das agências de comunicação. E não se trata apenas de preservar o ambiente, controlar fluxos ou compilar planos diretores com números de camas e dormidas, ou estratégias de marketing com slogans sensacionais. Nem de estatísticas, tantas vezes cegas, que acumulam visitantes, mas ignoram experiências, alicerçadas numa visão estanque do destino, em vez de numa abordagem integrada, até holística, do que um território turístico e habitado pode e deve ser.

Trata-se, acima de tudo, de reconhecer essa identidade heteronímica do lugar: sendo autêntico e verdadeiro, mas também múltiplo e contraditório. Entre a vivência do residente e a ânsia do visitante, emerge uma realidade híbrida, simultaneamente genuína e desejada, com tanto de real como de ficcional. É nesta tensão que se constroem os destinos turísticos duradouros: os que sabem equilibrar, em simultâneo, a qualidade de vida de quem os habita e a qualidade da experiência de quem os visita.

Esse é o verdadeiro desafio da sustentabilidade turística: reforçar e potenciar esses dois eixos paralelos e indissociáveis. Porque, sem equilíbrio entre quem vive e quem visita, o destino colapsa. Porque, sem identidade, pouco restará para conhecer além da banal artificialização de um lugar perdido entre pragas de infestantes, águas poluídas, acessibilidades deficientes, expetativas frustradas e uma crescente hostilidade dos locais perante os visitantes.

Os Açores ainda vão a tempo de evitar os erros de um desenvolvimento turístico guiado pelo desordenamento e pela cobiça. Mas, para isso, é necessário que todos encarem esta atividade como mais do que uma nova galinha dos ovos de ouro, ou um inimigo a abater. E sim como um verdadeiro pilar de desenvolvimento futuro, capaz não só de gerar riqueza, mas, acima de tudo, de a redistribuir.

 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Speakers' Corner 42

A Insustentável Leveza da Penúria Estival

Perdoem-me os leitores por trazer este pesadíssimo tema à baila num período já quase estival, embora ainda de pouca luz solar e ausente do tão necessitado calor balnear que tanta falta nos faz. Bem sei que discutir finanças públicas em tempo de churrascos pode causar fastio ou azia. Como aquele conhecido que não se cala com a mais recente fofoca da corrida eleitoral local, tema talvez mais em voga, mas igualmente soporífero na morrinha do verão, e que deixamos a falar sozinho à sombra do metrosídero enquanto procuramos o alívio fresco de uma pilsner gelada.

O estado pré-calamitoso das finanças regionais tem levado algumas vozes avisadas a trazer, de novo, para a praça pública o velho tema da revisão da célebre Lei de Finanças Regionais. Vasco Cordeiro, num extensíssimo artigo publicado recentemente neste jornal, e Mota Amaral, ainda ontem, com a gravitas que lhes advém da condição de ex-presidentes do Governo Regional, chamaram ambos a atenção para a suma importância do problema. Alertaram para a sua urgência, os dilemas que envolvem a sua elaboração errática, ou errónea, e, no caso do último, apelaram mesmo a uma espécie de sobressalto cívico regional. Quase um chamamento a uma sublevação de tipo 6 de Junho de 1975, agora em defesa dos interesses pecuniários dos Açores e dos açorianos, se bem entendi da leitura do seu artigo.

O caso é que, de uma forma genérica e muitas vezes generalizada, a ideia subjacente ao direito de autogoverno da Região parece resumir-se a uma espécie de pedinchice insular, como tantas vezes refere o atual Presidente do Governo, por aumento da mesada ao pai centralista, autoritário e castigador, instalado na penumbra faustosa dos salões do Terreiro do Paço. Andamos, como já foi dito, eternamente de mão estendida, agora ainda mais, quando o valor da dívida ameaça fazer colapsar todo o edifício autonómico.

Acumulam-se dívidas a fornecedores, agravam-se os atrasos nos pagamentos, os apoios, mesmo os do COVID, pasme-se, veem-se (ou não se veem) por um canudo escuro e, para cúmulo da desgraça, há já empresas públicas com salários em atraso. E não vale a pena vir dizer que não é bem assim, como ouvi num daqueles debates televisivos, porque até um modesto contabilista saberá que os subsídios de férias são parte integrante e indivisível do vencimento do trabalhador.

Regresso muitas vezes a uma célebre, embora esquecida, frase de Álvaro Monjardino que, confrontado com uma comissão parlamentar para a reforma da autonomia, respondeu com bonomia que o que os Açores precisavam não era de mais ou menos autonomia, mas de um projeto económico para a Região. Cito-a amiúde porque me parece que ali está dito, com clareza, aquilo que continua a ser o verdadeiro problema estrutural dos Açores.

De celeiro real a entreposto atlântico, de pomar de laranjas a abrigo de baleeiros, as ilhas têm-se debatido, ao longo da sua história, com a difícil tarefa de encontrar uma identidade económica que lhes permita criar riqueza e sustentar o seu desenvolvimento. Sem esse modelo, não somos mais do que, parafraseando o meu amigo Nuno Barata, "petchenos" a pedir dinheiro ao pai cada vez que querem apanhar uma bebedeira ou acampar, sem tino nem critério, num desses muitos (talvez até demais) festivais de verão que nos assomam como praga de conteiras.

A ideia de uma suposta solidariedade nacional com esta periferia atlântica, por mais bem-intencionada que seja, padece de uma debilidade fundacional: a incapacidade dos Açores para garantirem a sua própria sustentabilidade económica. Uma Lei de Finanças Regionais deveria ser um mecanismo de compensação solidária pelos custos adicionais da insularidade e pela extensão marinha e geoestratégica que os Açores aportam para a República, e nunca a fonte principal de financiamento de um sistema político regional que há muito se habituou ao desgoverno, a gastar à tripa forra e a nem sequer se dar ao respeito. Ser autónomo exige, também, sabermos ser sérios.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Speakers' Corner 41

SOS Monte Verde (e não só…)

Na semana que passou, a praia do Monte Verde voltou a ser notícia e, de novo, pelas mesmas conspurcadas razões. Análises à qualidade da água obrigaram a Delegação de Saúde a ordenar a interdição a banhos naquela zona balnear. O tema é antigo, está identificado, existem até petições e manifestações sobre o assunto, mas, apesar de todos os alertas, e das sempre rápidas mas incumpridas promessas, o problema continua lá, recorrente e impassível, como uma fatalidade do destino. O tema é, aliás, tão gasto que chega a ser deprimente falar dele.

Já cansa apontar, uma e outra vez, esta atitude negligente com que os Açores e os açorianos olham o mar. A medo e castigo, caixote de lixo avulso e permanente, distante como um vizinho rabugento. Durante décadas, séculos até, ninguém queria saber do mar para mais do que porta de entrada de navios e saída de emigrantes, lugar de trauma ou de morte. A orla marítima era território de pobres e indigentes, deixado ao abandono e à incúria das autoridades. Para o mar escorria, literalmente, o pior de nós mesmos.

A reivindicação do litoral como espaço de vivência, lazer, saúde, fruição e desenvolvimento tem sido um processo estupendamente lento. Com sucessos, como a praia dos Areais de Santa Bárbara ou a onda de Santa Catarina. E com horríveis insucessos, como foi o caso da baía de Rabo de Peixe ou, como agora em evidência, o da praia do Monte Verde, que, qual vítima inocente de violência doméstica, continua a sofrer os abusos do que está a montante dela.

A poluição marinha é um problema humano, que começa na poluição em terra, escorre pelos rios, no caso açoriano, pelas ribeiras, e acaba no mar. A praia do Monte Verde é um exemplo clássico disso. Atualmente, mesmo com milhões gastos em saneamento básico, continuam a existir efluentes domésticos e agroindustriais a escorrer para os leitos das ribeiras e daí para o mar. Estão identificados e sinalizados, e ninguém, por inércia ou eleitoralismo, faz absolutamente nada. Existem mesmo casos de explorações agrícolas que fazem descargas diretas depois das cinco da tarde, ou aos domingos, porque sabem que não há vigilantes da natureza ou GNR para os apanhar em flagrante delito. O pior é que o mar, na sua enorme sapiência, acaba por nos devolver tudo o que nele depositamos, seja lixo ou, como é o caso, matéria fecal.

Coincidentemente, ou não, enquanto os níveis perigosos de E. coli surfavam sozinhos as ondas do Monte Verde, na cidade da Horta os deputados regionais discutiam o relatório da comissão de ambiente sobre a petição SOS Monte Verde e Levada da Condessa, promovida pelo Mário Moura, o Ricardo Cabral e por mim próprio. O aspeto mais triste desse debate inócuo é a forma como os deputados transformam este precioso instrumento de democracia direta, as petições, em simples armas de arremesso eleitoral e político: uns defendendo a situação, outros tentando tirar dividendos eleitorais imediatos de uma suposta oposição.

Neste caso concreto, apesar de um meritório esforço, que concedo e elogio, em ouvir os vários, senão todos, os intervenientes no problema, é incompreensível, e mesmo inaceitável, como a comissão, no seu relatório, se abstém de apresentar qualquer parecer digno desse nome ou proposta de resolução ao governo com vista à efetiva resolução do problema. Tudo não passou, para além de uma manifesta perda de tempo, de mais uma forma de afastar os cidadãos da participação cívica e, com isso, de dar cabo da nossa democracia.

Neste fechar de olhos governativo, justiça seja feita aos candidatos do PS à autarquia, que se disponibilizaram para nos ouvir e, oxalá, para cumprir o desígnio coletivo de salvar o Monte Verde. Até lá, os Enterococos intestinais haverão de continuar a banhar-se livremente um pouco por todas as nossas zonas balneares, seja no Monte Verde, no Porto Pim, na Prainha em Angra ou no Ilhéu da Vila. Resta saber até quando?

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Speakers' Corner 40

A pornografia da dor

Ao contrário do que se diz, o Kama Sutra não é um tratado sobre sexo, mas uma dissertação sobre o amor e a sua prática como forma de alcançar o Dharma, a vida virtuosa, um dos objetivos últimos do hinduísmo. No Ocidente, o Kama Sutra, particularmente nas suas versões ilustradas, foi transformado num catálogo de sugestões sexuais, quase um manual visual de posições de um yoga tântrico e orgiástico. Esse olhar redutor e primário, tão típico da nova visão ocidental, despiu o texto das suas dimensões morais, pedagógicas, culturais, sociológicas e espirituais. Kama Sutra passou a ser sinónimo de sexo e não de amor ou, sequer, de erotismo.

Octavio Paz, o grande poeta e ensaísta mexicano, dizia que o “erotismo é a sexualidade transfigurada”. Uma representação artística e metafórica do gesto carnal, tantas vezes instintivo e animal. O erotismo, ao contrário da pornografia, contém, sugere, invoca o implícito. Vive daquilo que oculta mais do que daquilo que revela. Já a pornografia explicita, massifica, empola e embrutece. Onde o erotismo sublima, a pornografia desvirtua.

No nosso mundo hipermediatizado, na Infocracia de Byung-Chul Han, a realidade tornou-se, ela própria, pornografia. A linguagem perdeu a sua capacidade metafórica para se tornar instrumento de literalidade e, acima de tudo, de brutalidade. E a imagem, saturada, repetitiva, omnipresente e descartável, desprendeu-se da sensibilidade da luz e da criação de atmosfera. Tornou-se uma competição permanente pela atenção e, principalmente, pela excitação do espectador.

No espetáculo mediático, tudo se mede em audiência e a audiência é poder. Nessa luta constante pela atenção, a surpresa, o choque e o excesso são o alimento da voracidade. É nesse combate feroz pela curiosidade do observador que o ciclo noticioso e político se transforma, cada vez mais, em pornografia.

No meio do caos global, num mundo onde os nossos sentimentos se tornaram impermeáveis ao genocídio, é a morte súbita e sem sentido de um jovem atleta que ainda nos comove. Que ainda nos interpela, profundamente, no nosso sentimento de irrelevância e na percepção da fragilidade da existência. Já não é a guerra, nem o extermínio, nem o bombardeamento de civis e hospitais, em ataques à distância perpetrados por drones como em ficções, retransmitidos nos infinitos ecrãs que nos rodeiam em imagens de videojogo, que nos impressiona.

E a imparável máquina mediática sorve e amplifica esse drama. Espreme-o em ciclos infindáveis de comentários, diretos, alertas, análises, numa exposição pornográfica do que é mais privado e pessoal: a morte. Uma pornografia da dor, numa permanente obsessão pelo conteúdo e o seu consumo, que se torna vício e compulsão. A dor real, privada, íntima, é convertida em espetáculo porno. O sofrimento alheio serve o consumo imediato. A comoção é transformada em produto. E, nessa lógica perversa, os próprios protagonistas da tragédia, são arrastados para a exposição pública da sua perda. O luto deixa de ser um processo e torna-se conteúdo comercializável.

Da mesma forma, os políticos procuram o choque que atrai e agudiza a desconfiança. E a política, por sua vez, alimenta-se do mesmo mecanismo. Procura o embate. Amplifica o ódio e a desconfiança. Usa a provocação como afrodisíaco mediático. Usa a baixeza como forma de atração, alimentando o ciclo mediático com o mesmo apelo pornográfico. A mesma banalização do mal. A enumeração de nomes de crianças, supostamente estranhas, ímpias, estrangeiras ao “puro” corpo nacional, serve apenas o excesso, a barbárie, a comercialização do mal como mercadoria política, numa bolsa de valores insaciável de obscenidade e, fatidicamente, de prostituição emocional.

Tal como a pornografia transforma o corpo erotizado em mercadoria sexual, também a política e os media transformam o amor em pornografia, alimentando-se, numa sofreguidão sem fim, do ódio e da dor para sustentar a permanente luxúria do bordel mediático.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Speakers' Corner 39

O partido do povo no mundo dos ricos

Dois acontecimentos distantes e aparentemente desligados entre si tiveram lugar no último fim de semana, um em Lisboa, outro em Veneza. À primeira vista, nada os une, mas, olhando com atenção, talvez revelem duas faces do mesmo dilema: a crise geral do capitalismo democrático.

Em Lisboa, o Partido Socialista ratificou, com mais de 95% de aprovação, a sucessão da sua liderança, entronizando José Luís Carneiro como secretário-geral. Num dos momentos mais difíceis da sua história, o homem de Baião, que muitos veem como um líder de transição, alcança o lugar mais alto do partido e a ambição, legítima, embora remota, de se tornar primeiro-ministro de Portugal.

Depois de oito anos no Governo e de uma estrondosa derrota eleitoral, o PS vê-se confrontado com uma crise quase existencial. Este momento de inflexão em que o partido se encontra tem várias explicações, e pode ser escalpelizado a diferentes níveis. Mas talvez a mais profunda de todas tenha a ver com o descrédito dos cidadãos nas instituições e, bem ou mal, na corporização do PS como símbolo dessa descrença. Ao fim de cinquenta anos de democracia, as pessoas perderam a confiança no Estado. E o PS e o PSD, talvez sobretudo o PS, representam, aos olhos de muitos, essa mesma desconfiança e a sua inefável decadência.

Mas a crise das democracias é também uma crise do capitalismo democrático, que podemos recuar até aos tempos de Tony Blair e a chamada “terceira via”. A forma como os partidos da social-democracia, ou do socialismo democrático, se deixaram capturar pela ditadura do capital e dos interesses e como essa captura degenerou em fenómenos de corrupção e de delapidação do Estado. A história dos últimos 20 anos é feita de crises sucessivas e dramáticas que impactaram profundamente as vidas dos cidadãos e, simultaneamente, o próprio sistema político das democracias ocidentais, reiteradamente assoladas por casos obscenos de corrupção.

O desafio de José Luís Carneiro, e de todo o Partido Socialista, mais do que a Habitação, a Imigração, a Economia ou o seu papel na oposição, é reconquistar a confiança dos eleitores, afastando-se da imagem enquistada de um partido de conluios, esquemas, compadrios e corrupção, refastelado na manjedoura do Estado, em serviço mais de si do que dos cidadãos.

É aqui que se encontra, na minha opinião, o ponto de contacto com esse outro evento marcante destes dias: o casamento do multimilionário Jeff Bezos, em Veneza. O luxo faustoso e o esbanjamento desavergonhado representam exatamente essa desconexão da realidade e o desfasamento do mundo face às enormes desigualdades que o assolam. Não é a riqueza em si, nem a sua ostentação obscena, que choca, não há qualquer novidade nisso. De Nero a tocar a sua lira, a Maria Antonieta e os seus brioches, a história está marcada pela insensibilidade dos ricos face às desigualdades do mundo. O que verdadeiramente impressiona é a forma como a nossa sociedade se tornou subserviente ao capital e à sua ostentação fútil.

A essência de qualquer movimento progressista está ancorada nos valores humanistas de fraternidade, igualdade e solidariedade. O âmago do socialismo democrático é a busca de um mundo de oportunidades iguais, não no sentido de uma igualdade comunista, niveladora, com cidadãos separados entre a casta dos trabalhadores e os dirigentes do politburo, mas sim de uma solidariedade liberal que vise a criação e redistribuição de riqueza rumo a uma vida melhor para todos.

A encruzilhada que o PS enfrenta é a de voltar a ser, verdadeiramente, o partido dos que menos têm, em vez de parecer mais empenhado em não incomodar os que têm tudo. Se quiser recuperar a sua alma, o partido terá de romper com esta amarga complacência e lembrar-se de que nasceu para transformar a realidade e não para se pôr ao serviço dos que, como Jeff Bezos, se julgam donos dela.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Speakers' Corner 38

A via da conciliação

No ano de 327 a.C., na antiga Báctria, hoje parte do Afeganistão, Alexandre, o Grande, desposou a bela Roxana, filha de um nobre persa. O gesto, mais do que político ou romântico, foi a afirmação de uma ideia poderosa: a de conciliação. Alexandre, educado por Aristóteles e considerado o maior estratega militar da história, não se limitou a conquistar territórios e a derrotar exércitos, procurou unir culturas, numa fusão entre múltiplas nações, línguas, etnias e raças, num império de simbiose, não de supremacia.

Dois mil e trezentos anos depois, o mundo parece ter esquecido a lição de Alexandre. A recente escalada de tensão no Médio Oriente, com o surpreendente, embora previsível, ataque aéreo americano ao Irão, utilizando, mais uma vez, as valências de gasolineira no centro do Atlântico da Base das Lajes, revela até que ponto a diplomacia e o diálogo cederam ao estrépito das bombas e à retórica da destruição.

O Ocidente olha para o Irão quase exclusivamente através do véu da teocracia islâmica xiita. Há, no entanto, um erro profundo nessa visão redutora e obscurecida. Ignoramos que o Irão não é apenas um regime, é uma civilização com mais de quatro milénios. Herdeira da antiga Pérsia, berço de avanços intelectuais, artísticos e políticos que moldaram muito do que hoje consideramos pilares da modernidade e da nossa própria civilização, desde a ideia de unidade política territorial à administração pública, da tolerância religiosa à poesia mística.

Reduzir esta complexidade à figura dos aiatolás ou a um inimigo geopolítico é não só injusto e limitado, é profundamente perigoso. Ao ignorarmos o valor histórico e cultural de um povo, abrimos caminho à sua desumanização. E esse é sempre o primeiro passo para a barbárie. Com a agravante de que, numa guerra pela superioridade, aqueles que não temem a morte serão os primeiros a prevalecer.

A atual política externa americana, marcada pelas decisões erráticas e egocêntricas de Trump, alimenta esta lógica maniqueísta e belicista. Desprezando o contexto, confundindo força com liderança, misturando castigo com solução, gerando apenas vazio. E é nesse vazio que se alimentam o ressentimento e o radicalismo, numa avalanche de consequências imprevisíveis.

O que fará a China? Fará cair a sua força militar sobre Taiwan? Putin terá aqui a porta aberta para acelerar ainda mais os seus intentos de domínio territorial sobre a Ucrânia e, quem sabe, sobre o Báltico? E como reagirão a Índia e o Paquistão, ambos potências nucleares? Está a Europa preparada para o recrudescer do horror do terrorismo? E o que fará o Irão, não hoje, mas no futuro?

No TikTok, imagens de rituais xiitas de homens a bater no peito em honra do martírio de Hussein Ibn Ali na batalha de Carbala, em 680 d.C., tornaram-se virais. Para o nosso olhar ocidental, é um espetáculo incompreensível. Mas para milhões de crentes, é a expressão de uma memória coletiva fundada na dor e na resistência, onde o conceito de sacrifício é o elemento fundacional da sua própria visão da vida. Não entender isso é não entender a alma da nação xiita e a identidade do atual Irão, país moldado por essa ideia de martírio. Combater essa visão com mísseis e bombas GBU-57 é como tentar apagar um fogo com gasolina.

O Ocidente, enquanto entidade política e civilizacional, baseada na democracia liberal, no primado da vida humana e nas liberdades individuais, não se deve vergar aos totalitarismos. Mas também não se pode impor ao resto do mundo pela via da destruição. Num tempo em que os líderes mundiais parecem obcecados com o poder e a conquista pela obliteração do outro, talvez valesse a pena lembrar que as civilizações não se constroem com mísseis, mas com ideias. O futuro ergue-se com palavras, não com bombas. Como Alexandre demonstrou ao unir-se a Roxana. E que a via da conciliação é o único caminho que pode evitar que o mundo, mais uma vez, tropece na sua própria arrogância.