quarta-feira, 26 de março de 2025

Speakers' Corner 25

“Rouba, mas faz”

A análise de resultados eleitorais é uma ciência obscura, dada a um sem número de teses e teorias, umas mais matemáticas, outras mais sociológicas, outras, ainda, politico-filosóficas, mas todas com um elevado grau de adivinhação, como uma espécie de oráculos da coisa pública perscrutando, entre académicos, comentadores, analistas e políticos, as entranhas sacrificiais das sondagens e das urnas, boletim a boletim, rua a rua, freguesia a freguesia.

Uma das magias benignas da democracia é essa imprevisibilidade do voto. A incapacidade intrínseca de prever o comportamento individual de cada eleitor e, com isso, o agregado do resultado eleitoral. Por mais elucubrações ou estratégias que se façam, nas democracias maduras, ou pelo menos naquelas em que o voto não seja adulterado, o povo é sempre soberano e cada cabeça é um voto e ganha quem tiver mais votos. Em teoria, a alternância democrática é uma das suas virtudes, a mudança de partidos na governação é uma espécie de sistema imunitário do exercício do poder, pelo que é sempre surpreendente os fenómenos de longevidade em democracia, algo que nos parece mais próximo da ditadura do que da liberdade.

São difíceis as análises sobre os resultados eleitorais na Madeira, onde o PPD/PSD, com Miguel Albuquerque, conseguiu este domingo a sua 14ª vitória eleitoral consecutiva, desde 1976, desta feita a 3ª em 3 anos e a escassos 300 votos de uma nova maioria absoluta. Um feito, a meu ver, com tanto de notável como de inexplicável. Podemos aviltar o caciquismo e as redes de dependência criadas ao longo de décadas numa sociedade pequena e insular. Podemos eventualmente remeter para um conservadorismo intrínseco dos madeirenses, atreitos à mudança ou a perigosos progressismos, inclusive causticados pelas experiências tantas vezes traumáticas de séculos de abundante emigração. Podemos ainda elaborar sobre o otimismo de uma região economicamente desenvolvida e com índices positivos, onde o turismo desempenha um papel fundamental na evolução do arquipélago, desde muito antes da própria democracia. O facto é que, mesmo com suspeições de corrupção, compadrio e laivos indesmentíveis de autoritarismo, o PSD de Albuquerque está de saúde e recomenda-se, isto até o Ministério Público aterrar de novo na ilha com a força e o peso de uns quantos C-130.

Mas estas eleições levantam duas questões importantes sobre a saúde geral das nossas democracias. Por um lado, a ideia de estabilidade, tão glosada nos últimos dias, principalmente por protagonistas como Bolieiro ou Montenegro, agitando a bandeira das virtudes de uma suposta estabilidade governativa, consubstanciada nestes resultados, e como se a estabilidade, só por si, fosse algo benéfico para um sistema que se quer dinâmico, evolutivo e, principalmente, rotativo. No que é uma óbvia confusão entre estabilidade e estagnação, que parece ser o caso do pântano democrático em que a Madeira se encontra, aprisionada entre o lodo e a falta de alternativa potável. Por outro lado, a velha questão do: “rouba, mas faz”, esse mantra que se instalou neste país de pequenos e grandes caciques e que convive bem com personagens como Valentim Loureiro ou Isaltino Morais. Agora com a agravante sistémica de um fenómeno que se supunha reduzido ao nível autárquico se querer alastrar, como um pútrido cancro metastizado, aos níveis mais altos do poder, onde políticos sem ética procuram transformar os atos eleitorais numa espécie de referendos à sua idoneidade pessoal e plebiscitos à sua conduta moral, transformando as eleições em salvo condutos para os seus desmandos individuais. É que, ao contrário do que nos querem fazer crer, Albuquerque e Montenegro, na sua demagogia populista e contrária ao Estado de Direito, o julgamento democrático não é o mesmo que o trânsito em julgado. E as eleições servem para avaliar projetos políticos e não para inocentar potenciais ilícitos criminais.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Speakers' Corner 24

A morte de uma árvore

Morreu a araucária. Viveu mais de cem anos, mas os ventos de domingo derrubaram-na. Velha, cansada, doente, tombou como uma imponente coluna jónica de um templo antigo, levantada pela raiz apodrecida, sobre os plátanos e os fetos que a rodeavam. O tronco vasto e inabraçável fez-se suportar sobre o caminho que sobe para o mirante, os seus galhos cravados no solo como lanças de uma batalha perdida contra o desenrolar inexorável do tempo, e ali jaz, como um cadáver, ainda de olhos abertos perscrutando o vazio no meio da tristeza calada que nos invadiu a todos.

Quando éramos miúdos trepávamos as arvores à procura de sonhos e outros frutos doces. Colecionávamos jambos, araçaís, nêsperas carnudas e suculentas, que saboreávamos em faustosos repastos de adocicado festim. Lançávamo-nos por entre os galhos como marinheiros suspensos nos velames. Pequenos Peter Pans de excitação e riso, saltitando, de ramo em ramo, como hábeis ginastas desprovidos de medo ou de receio, e a araucária era o castelo mais alto e intransponível de todos, o nosso Evereste infantil das subidas às árvores. Mais tarde, já adolescentes, eu e o André, fazíamos subidas anuais, todos os verões, aos galhos mais altos da araucária, ao topo dos seus vinte, trinta, cinquenta metros, tão alto como o horizonte que só dali se alcançava, contorcendo o corpo por entre a esquadria dos seus ramos retos, como antigos primatas, como velhos piratas, buscando ouros e tesouros. Em busca, talvez, de um mapa para o interior de nós.

A minha avó contava que a araucária tinha sido uma árvore de Natal da família, ainda antes dela ter nascido, nos primeiros anos do século passado, que o meu bisavô havia depois mandado plantar naquele lugar amplo ao fundo do jardim para que crescesse sem impedimentos, apontando ao céu com a sua forma cónica quase perfeita, como um símbolo do caminho que todos aspiramos até à eternidade. Cinco gerações depois essa eternidade passada pereceu, caiu, tombada pelo peso da sua própria ancestralidade e história. Pela inevitabilidade da própria vida que se desfaz em morte e renascimento, sucessivamente, em busca, tal como nós, de sonhos, de ínfimos relances do firmamento, como só as árvores, na sua firme sabedoria, nos sabem dar.

Ao longo do tempo, a minha avó e as irmãs, a minha mãe e os meu tios, eu, a minha irmã e os meus primos e amigos, todos corremos pelo jardim à sua sombra, rodeamos as suas raízes em brincadeiras simples, os primeiros e atabalhoados pés nos pedais das bicicletas, as cabanas construídas com folhagens dispersas, os passeios ao entardecer com possíveis e desejadas namoradas. Algumas vezes levei as minhas filhas a visitar a velha araucária como se fosse alguém da família e levo no coração a tristeza de que elas já não verão a sua sombra altiva sobre o jardim e a luz do sol poente nas tardes de outono aquecendo o seus ramos, os milhafres aterrissando nos seus ramos cimeiros, o som da brisa passando pelos estiletes das suas folhas lanceoladas cujas pontas, quando éramos miúdos, fingíamos serem adultos charutos que fumávamos crescidamente como cavalheiros de barbas e casaca nos salões de antigamente.

Morreu a araucária, mas, como em todas as mortes, sobrevivem em nós as memórias que guardaremos até ao nosso próprio fim. Ficam-nos os pedaços do tempo que guardamos na alma, na essência mais límpida do ser. O coração não, o coração bate incessante inconsciente ao seu próprio bater. A mente perde-se nos seus labirintos, infinitos corredores entre a razão e o mito, entre consciência e ilusão. A alma guarda-nos, sustem-nos nessa permanente viagem do devir e da intermitência das coisas. Morreu a velha araucária, mas a sua presença viverá para sempre dentro de nós, porque na densidade contida da floresta uma árvore só nunca morre. Tal como nas memórias e nos sonhos que vivem para sempre no interior silencioso e ensombrado da alma de cada um de nós, quem sabe se mesmo até depois da nossa própria morte…

quarta-feira, 12 de março de 2025

Speakers' Corner 23

Restauração Democrática

No próximo ano comemorar-se-á o centésimo aniversário do 28 de Maio de 1926, o funesto golpe de estado que pôs fim à Primeira República e abriu a porta para os 48 anos de ditadura do Estado Novo. A história da Primeira República foi marcada por uma permanente e agitada convulsão política e social. Do fervor republicano ao sidonismo, passando pelas tentativas de reinstituição da monarquia, do anticlericalismo ao esforço de recuperação económica, passando pelos enormes abalos globais da Grande Guerra e da Gripe Espanhola, o sonho republicano, que atravessou o país como uma honrosa utopia progressista, cedo se tornou numa enorme balburdia que gerou nada mais do que 49 governos, 40 chefes de governo e 29 tentativas de golpe de estado, duas delas em 1925, a primeira das quais, a 18 de Abril, liderada por um hoje desconhecido Filomeno da Câmara de Melo Cabral, oficial da Armada, natural deste bucólico concelho de Ponta Delgada e cujo nome herdara de seu pai, famoso médico e hidrologista, pioneiro do termalismo nas Furnas.

A ideia, elaborada por Hegel, de que a história se repete sempre duas vezes e glosada depois por Marx, de que esta se repetia primeiro como tragédia e depois como farsa, e a que Mark Twain responderia mais tarde com a sua máxima de que a história não se repetiria, mas que rimava, tem perpassado pela filosofia ao longo dos tempos e surge hoje, no atual estado do mundo e do país, com particular acuidade e pertinência. Quem siga, mesmo que distraidamente, o rumo do mundo e da nação não pode deixar de ler estranhas e impressionantes semelhanças entre 2025 e 1925, ao ponto de se poder, justificada e apropriadamente, citar o refrão desse dançante tema da banda inglesa Propellerheads, na voz da cintilante Shirley Bassey, “it's all just a little bit of history repeating”.

Se a presente crise da democracia portuguesa se repetirá, ou não, numa nova deriva totalitária é ainda cedo para dizer, mas que há algo neste desvario político moderno que rima com a ebulição republicana, isso é inegável. Não vale a pena elaborar mais nos desmandos de Luís Montenegro, entre a empresa familiar e os buracos de golfe com grandes empresários do Norte que, alegadamente, o manteriam no rol das avenças à renda de 9 a 15 mil euros mensais. Mas esta promiscuidade entre política e negócios, e a consequente fuga para a frente do primeiro-ministro, que coloca o país perante uma instabilidade política preocupante, 3 eleições em pouco mais de 3 anos, é em tudo semelhante às tumultuosas primeiras décadas do século vinte português.

Também não é fácil antever o que sairá destas novas eleições. Como irá o cansado eleitorado reagir a mais esta estultícia da política nacional? Será Montenegro penalizado ou irá o eleitor fazer vistas largas à ampla e largamente flexível espinha ética do líder da AD? Conseguirá Pedro Nuno Santos fazer esquecer as improbidades do costismo ou o arrivismo juvenil do líder do PS continuará a afastar de si os eleitores do centrão? Não vale a pena arriscar em previsões, nestas eleições inesperadas e em grande medida indesejáveis, mas não é preciso ser vidente para pressentir que o caldo está propício é para os Venturas, com ou sem criancinhas nas malas, e para os Almirantes, com as suas sebastiânicas e retrógradas alocuções à grandeza pátria, tão assustadoramente próximas de 1926.

A única redenção para este pântano em que o país está novamente mergulhado é a sublevação dos moderados, a revolta dos democratas e a afirmação firme daqueles que ainda acreditam que é na ética republicana e na moral pública que reside a essência da democracia representativa. Este Maio que aí vem, terá forçosamente de marcar o ponto de partida para essa verdadeira Restauração Democrática que o país tão urgentemente precisa, sob o risco de, ao revés, nos projetarmos outra vez num longo, árduo e imprevisível inverno democrático…

quarta-feira, 5 de março de 2025

Speakers' Corner 22

Tragédias do desgoverno nacional

No início de Novembro de 2023, depois de quase um ano de uma surpreendente convulsão política, às mãos de um governo de maioria absoluta mergulhado num caos sucessivo de escândalos, intrigas, investigações e suspeitas, o país foi surpreendido por uma ação policial em São Bento, que levaria à demissão de António Costa, no meio de um parágrafo da Procuradoria-Geral do Ministério Público e uns quantos maços avulsos de notas escondidos nas estantes do seu chefe-de-gabinete.

Uns poucos dias depois, Marcelo Rebelo de Sousa comunicava ao país a sua decisão de convocar eleições, alicerçado na presunção, aliás criada por si, de que a maioria eleitoral existente era de Costa e não do PS e, nas suas palavras, na impossibilidade de manter em funções um governo fraco e que seria visto, assim, como um governo de iniciativa presidencial. Ao mesmo tempo, o líder do PSD, Luís Montenegro, alinhava pelo mesmo diapasão da urgente ida às urnas alegando que “a degradação do governo impõe a devolução da palavra ao povo” (sic). De facto, o pouco mais de um ano e meio do segundo governo de Costa parecia uma inexplicável via sacra de casos, casinhos e casões, entre ministros e secretários de estado, envolvidos nos mais rocambolescos e degradantes episódios de corrupção e desgoverno até, por fim, subir ao cargo do próprio Primeiro-ministro.

Fast forward para os dias de hoje e temos um governo de minoria parlamentar frágil e acossado, mergulhado em incompetências e incompatibilidades, cujo fumo da suspeição chegou, também finalmente, ao próprio Luís Montenegro. Depois do caos na Saúde, do escândalo do INEM, da incompreensível Lei dos Solos, noticiam os jornais que o Primeiro-ministro de Portugal, o tal da degradação do anterior governo, está desde a sua tomada de posse a receber chorudas avenças de empresas privadas, entre elas a Solverde dos casinos, através de uma empresa familiar, cuja participação terá vendido, em ato nulo, à sua mulher, com quem é casado em comunhão de adquiridos. De um passo, ficamos a saber que Montenegro é, não só, um péssimo advogado, como, ainda por cima, um igual hipócrita aos que tanto criticava antes de si. E que, numa surreal declaração ao país, em horário nobre televisivo, ensaiou uma fuga para a frente em dois atos, delegando a empresa aos seus filhos, de 19 e 23 anos, admitindo dessa forma a prevaricação anterior, e ameaçando, no jogo político-partidário, a roleta-russa das moções de censura e de confiança. Quando o único caminho digno que se lhe apresentava era demissão pronta e segura e a consequente convocação de eleições.

Mas, tão mau ou pior do que a hipocrisia e o cinismo político de Luís Montenegro, ou o cúmplice e inusitado silêncio de Marcelo, é o contorcionismo acobardado do principal líder da oposição, Pedro Nuno Santos, que é incapaz de se confrontar, preso que está no seu próprio labirinto partidário, com a exigência moral de fazer cair este governo, seja apresentando ele próprio uma moção de censura, seja votando favoravelmente outra de um qualquer outro partido, como a já anunciada pelo PCP.

Nos últimos anos muito se tem debatido as razões para a ascensão dos populismos, da demagogia e da polarização política, que tem minado as democracias e levado à escolha pelo eleitorado de políticos e partidos iliberais e de tendência totalitária. Políticos e comentadores repetem-se na condenação do discurso dos Andrés Venturas desta vida e espantam-se com a fulgurante aparição de todo o tipo de Almirantes. A realidade é que a crise das democracias está no seu próprio âmago e nos degradantes comportamentos dos que se dizem defensores da moral e do bem-comum, quando na verdade apenas se preocupam com o seu próprio bem pessoal e com os joguinhos políticos da dança das cadeiras do poder.

Olhamos as notícias e as ações e os discursos dos políticos atuais e enche-nos uma sensação enjoada de que isto já não é um país, mas um pântano sem fundo…

 

 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 21

Batendo aos portões de Santana

Ponta Delgada, que foge ao PS desde 1989, tem sido uma pedra no sapato político das sucessivas direções socialistas. Por um lado, é alvo apetecido, a principal autarquia do arquipélago e feudo social-democrata de longa data, por outro representa uma ameaça tácita ao status quo diretivo do partido. Ser presidente da câmara de Ponta Delgada representa uma espécie de pole position para a conquista do Palácio de Santana, como se os portões de Santana se abrissem ali junto às Portas da Cidade, pela importância e visibilidade que o cargo confere. Por isso, as direções do PS sempre olharam com desconfiança para essa disputa eleitoral. Não podem deixar de concorrer, apresentando candidatos suficientemente relevantes para não serem acusados de falta de comparência, mas sempre secretamente conspiraram para que o partido não saísse vencedor dessa particular eleição. Nos últimos anos, os líderes do PS optaram sempre por não se empenhar totalmente nessa corrida, percebendo que qualquer presidente da câmara de Ponta Delgada se tornaria instantaneamente na segunda figura do partido e opositor interno inevitável. Na lógica do controlo do poder convêm que as sucessões, ou as putativas ameaças à liderança, sejam geridas pelos próprios e sem radicais livres a correr por fora nas suas próprias pistas.

Este ano, a corrida a Ponta Delgada reveste-se de um interessante conjunto de pormenores aliciantes. Desde logo, são as primeiras eleições autárquicas desta direção do PS, e com a condicionante de este estar na oposição a nível regional, o que torna o resultado conjunto destas eleições autárquicas determinante para o seu futuro político. Por outro lado, há um notório e palpável desgaste do atual executivo camarário, corporizado na altivez e autoritarismo do seu presidente, que criaram enormes anticorpos junto de diversos sectores da sociedade civil, das empresas e do eleitorado em geral. Já para não falar no surgimento de uma candidatura independente, saída precisamente das fileiras do PS e largamente criada pela inabilidade das direções do partido, concelhia e regional, em dialogar com os seus críticos e gerar consensos dentro do próprio partido.

No passado fim-de-semana os órgãos dirigentes do PS aprovaram, finalmente, os seus cabeças de lista às próximas eleições autárquicas. De entre uma mais ou menos anódina e pouco surpreendente lista de nomes o destaque maior recaiu, obviamente, sobre o nome anunciado à câmara de Ponta Delgada que, ao fim de um longo e conturbado processo, que ao que consta até sondagens envolveu, naquilo que o líder do partido classificou, eufemisticamente, de “rapidez possível”, calhou a Isabel Almeida Rodrigues, alguém com um inegável currículo político e capacidades, mas que se encontra ausente da política local há vários anos. Na atual conjuntura, as primeiras ações da candidata agora anunciada serão determinantes para se perceber se esta é uma candidatura ganhadora ou se, mais uma vez, o PS apenas pretende não perder por muitos, iniciando desde já o spin dos resultados para as análises de contexto e outras desculpabilizações.

Caberia objetivamente ao PS afirmar-se como líder de uma grande coligação de oposição ao trabalho do atual executivo camarário, chamando a si, não só os dissidentes, começando pela própria candidata independente, figuras da sociedade civil e até outros partidos para, tal como em 1989, consubstanciar uma candidatura que fosse agregadora, abrangente e plural, concretizando-se em propostas concretas e inovadoras aos problemas que o concelho, nas suas múltiplas assimetrias, enfrenta e merece ver solucionados. Caberá à candidata do PS dizer ao que vem, embora sabendo que já vem tarde. Quanto ao resto, o resultado dirá se os dirigentes do PS queriam de facto ganhar Ponta Delgada ou se, afinal, e como tem sido habitual, esta foi apenas e só uma candidatura para cumprir calendário.

 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 20

Natureza intacta e outros mitos

Por estes dias, a pacata ilha das Flores tem sido abalada por uma inusitada intempérie. Desta feita, a razão de tal rara fama são já não as intermitências meteorológicas, mas as adversidades paisagísticas e territoriais. Este furacão tem várias incidências, algumas do foro sociológico, outras jurídico, mas duas dessas questões, em particular no que concerne ao âmago da uma certa ideia de Açores, são suficientemente significativas para permitirem uma análise mais teórica, ou mesmo filosófica, se quisermos, e uma atenção que se devia expandir e generalizar às restantes ilhas.

Pelo que foi tornado público, um casal estrangeiro radicado na ilha terá vindo a adquirir uma série de terrenos privados nas imediações e acessos ao famoso Poço da Ribeira do Ferreiro. Recentemente, esses novos proprietários do local terão vindo a desenvolver uma série de trabalhos de desmatamento e limpeza do coberto vegetal, tentando restituir a paisagem ao seu uso passado. Das diferentes reações que se têm feito ouvir, primeiro nas redes sociais e depois na pantalha televisiva, as principais preocupações da população, para além de um receio de privatização do acesso ao espaço, prendem-se com a adulteração do cenário natural e a índole jurídica da posse de um cartaz turístico regional, numa dicotomia público-privada aparentemente de difícil resolução num arquipélago onde praticamente tudo é, ou já foi, privado.

A ideia da natureza pura, ou intacta, com que os Açores se têm promovido ao longo dos tempos radica num infeliz desconhecimento da história e num logro comercial baseado no mito da virgindade da nossa paisagem. Os Açores são, na verdade, um caso de estudo de uma paisagem toda ela humanizada por seiscentos anos de trabalho da mão do homem. A chegada dos primeiros povoadores é marcada, desde logo, por aquilo que ficou conhecido como a “virada das terras”, um infinitamente laborioso processo de remoção dos mantos vegetais de floresta Laurissilva autóctone e da lava, por forma a se obterem extensões de terra arável e passível ao cultivo. Este rendilhado de muros de pedra seca e terra de cultivo, do cereal à vinha, ou a atual pastagem, aqui e ali pontilhada de hortênsias e conteiras ou matas de criptomérias, espécies todas elas importadas, construído com suor ao longo dos tempos, são aquilo que hoje marca e distingue a paisagem açoriana e não podiam estar mais distantes dessa ideia romântica de natureza intacta.

O que este episódio nos devia levar a debater é precisamente que paisagem somos ou queremos ter e que território queremos promover para o estrangeiro, seja por via do turismo, seja por via do repovoamento das ilhas com populações, vegetais ou humanas, forasteiras, algo que, também, sempre caracterizou as nossas ilhas. Veja-se, por exemplo, o caso paradigmático de Thomas Hickling e o seu deslumbrante e icónico Jardim Terra-Nostra.

Por outro lado, a colaboração, ou a falta dela, entre público e privado, na gestão do território, na utilização da paisagem e na promoção de modelos de desenvolvimento para as ilhas também nos devia inquietar. A verdade é que os poderes públicos, sejam autárquicos ou autonómicos, têm-se pautado por um impressionante desleixo face ao ambiente e à paisagem, na grande maioria dos casos, do qual o mais latente talvez seja a tentativa e inexplicável abandono da reflorestação e arranjo paisagístico da bacia hidrográfica das Furnas. Se há coisa que os sucessivos governos nunca souberam fazer é preservar e desenvolver o património seja ele natural, construído ou a mistura dos dois. Basta ver o exemplo da paupérrima e cronicamente suborçamentada rede regional de museus, ou um mirabolante projeto de miradouro para a cumeeira da Lagoa do Fogo, para perceber como o Estado é mau gestor da coisa pública. Se esta interessantíssima polémica nos trouxesse reflexão contextualizada, extensível às nove ilhas do arquipélago, sobre uma ideia de futuro para os Açores, já não seria mal empregue…

 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 19

O país dos doutores

A notícia passou mais ou menos despercebida entre o corrupio mediático nacional, entretido com o cúmulo jurídico dos deputados do Chega e a minimaratona dos putativos presidenciáveis, mas conta-se facilmente. Na sua mais recente revisão do contrato coletivo de trabalho, a AHRESP e o Sindicato dos Trabalhadores do Setor de Serviços acordaram, entre outras coisas, a alteração da velha designação de “empregado de mesa” para uma mais moderna e fina denominação de “assistente de sala”. Diz o Expresso que a nova nomenclatura visa valorizar aquela que é vista como “uma das profissões mais mal amadas no turismo” (sic!). Um pouco como os cozinheiros que agora são todos chefs.

Esta poderia ser mais uma inconsequente e inócua aventura do tão em voga processo de cancelamento em curso. Em que as nossas sociedades se entretêm a rever terminologias, sinaléticas de wc e outros mais ou menos estapafúrdios detalhes de comportamento e inter-relação cultural e social. Mas, temo que haja aqui um sinal de algo mais profundo e alarmante com que nos devíamos todos preocupar: a continua desvalorização social de profissões determinantes.

Portugal sempre foi um país classista. São resquícios de um certo feudalismo intrínseco, e de uma certa imposição religiosa, que nem uma ascensão fulgurante de uma burguesia mercantil conseguiu aplacar. Salazar, como bom corporativista que era, para além de anticomunista primário, como todos os fascistas, procurou estabelecer um regime ditatorialmente controlador dos agentes económicos, funcionando como juiz das relações entre patrões e trabalhadores, oprimindo as liberdades dos últimos, mas também limitando muitas vezes as licenciosidades dos primeiros. Isto levou a um país de doutores, onde todos querem ser patrões, todos anseiam ser chefes e ninguém quer ser servente, muito menos simples trabalhador.

No seu “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, o sociólogo alemão Max Weber estabeleceu as bases da teoria da correlação entre filiação religiosa e estratificação social, tendo por base as estatísticas laborais da Alemanha no dealbar do século XX, identificando a propensão do puritanismo protestante pelo capital e o trabalho, e a maior inclinação humanista do catolicismo e a sua inerente tradição de culpabilização da riqueza.

O nosso país, eternamente enredado nas suas múltiplas manifestações do “Fado, Futebol e Fátima”, vive nessa teia de sub-reptícias hierarquias e vergonhas, onde riqueza e trabalho, estatuto, ou status, social, se quisermos, e relevância se imiscuem num permanente caldo cultural de idealização e embaraço. O aristocrata rural deu lugar ao doutor citadino e ambos dominando a criadagem com leves ares de sobranceria numa mão e caridadezinha na outra. Os eternos Tomás de Palma Bravo, de “O Delfim”, de Cardoso Pires, espécie de retrato último desse conservadorismo patriarcal e cínico português, que se pela por um BMW e a vivenda com piscina e, agora, com a interpretação semiótica da categoria profissional.

Vivemos num país onde todos querem ser doutores ou engenheiros, advogados e juristas, médicos, de bata branca e consultório privado, que, como dizia o Eça, é “chique a valer”. Já ninguém quer ser pedreiro ou carpinteiro, e até esses já só sonham ser empreiteiro, nem já sequer empregado de mesa, que isso é coisa para paquistanês fazer. Num país sobrelotado de licenciados, com canudos inúteis debaixo dos braços, tristes e incompetentes nas suas funções de técnicos superiores de vão de escada de secretaria governamental o que realmente faz falta são competências e trabalhadores. Quando terminei a universidade, nessa coisa dos títulos, autodenominei-me de “poeta, surfista e cultivador de ananases”. Hoje, depois de tudo o que já vivi, fico-me pela singela categoria de mero e simples estalajadeiro. Num país de tantos maus doutores, o que mais falta faz são bons empregados de mesa…