A frustração de uma petição
Nestes tempos conturbados que vamos vivendo, é frequente ouvirmos
os políticos nas televisões falarem da erosão dos valores, da falência da
democracia, da ascensão dos populismos e do fantasma de novos totalitarismos
que pairam negros e ameaçadores sobre nós, como nuvens de mau agoiro.
A verdade é que esta luta da democracia pela sua autopreservação
é já antiga. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial que as democracias
ocidentais têm procurado manter o Estado Social e defender o seu contrato com
os cidadãos. Não poucas vezes, essa defesa passou pelo apelo à participação
cívica e pela criação de instrumentos de democracia direta, como é o caso dos
referendos ou, mais concretamente, das petições. Com estes instrumentos,
pretendia-se incentivar os cidadãos a fazerem parte do governo democrático,
indo mais além do que a mera prática do dever cívico do voto nos atos
eleitorais.
No enquadramento constitucional português, o direito de
petição está consagrado desde 1976, tendo sido reforçado com a revisão
constitucional de 1989 e regulamentado pela Lei n.º 43/90, de 10 de agosto, que
estabelece as condições do seu exercício por cidadãos e entidades coletivas.
Este direito permite a qualquer cidadão (português ou estrangeiro residente)
recorrer aos órgãos de soberania para defender direitos ou propor medidas de
interesse geral.
Ao nível da União Europeia, qualquer cidadão dispõe do
direito de petição ao Parlamento Europeu, consagrado no artigo 227.º do Tratado
sobre o Funcionamento da UE e no artigo 44.º da Carta dos Direitos
Fundamentais. As petições europeias constituem um canal direto entre cidadãos e
instituições da UE, reforçando a democracia participativa. Destacam-se
particularmente em temas como o ambiente, a saúde pública ou a proteção de
direitos fundamentais.
Em ambos os níveis, nacional e europeu, as petições são
instrumentos centrais de participação democrática, permitindo aos cidadãos contribuir
ativamente para os processos políticos e legislativos, com procedimentos
claros, simples e, felizmente, cada vez mais acessíveis graças à digitalização.
O problema é que, infelizmente, e com particular gravidade
ao nível regional, as petições têm sido sucessivamente tratadas com uma espécie
de sobranceria altiva por parte de deputados, comissões e parlamento. O
instrumento peticionário é encarado, nomeadamente pelo parlamento regional,
como mais uma maçada regimental que é necessário cumprir com enfado.
Recorrentemente, as petições são admitidas, organizam-se audições por parte das
comissões competentes, elaboram-se relatórios vazios, em que os partidos que
suportam os governos se limitam a fazer eco daquilo que os diferentes
departamentos governamentais lhes impingem e, tanto em sede de relatório como
de debate, abstêm-se de emitir parecer, fazer recomendações ao governo ou, e
aqui os restantes grupos parlamentares são igualmente responsáveis, apresentar
qualquer tipo de proposta legislativa ou de resolução que acolha as
preocupações dos cidadãos e procure efetivamente resolver os problemas que
estas petições sinalizam.
O caso mais recente é o da petição SOS Monte Verde, em que,
após inúmeras audições e, até, visitas ao local, tanto a comissão como o
plenário foram incapazes de olhar com intenção para as propostas feitas pelos
cidadãos com vista a uma solução equilibrada para o problema de contaminação
das águas da praia do Monte Verde e das ribeiras que aí desaguam. Pelo
contrário, expuseram-se ao ridículo de apenas corroborar as ações que as secretarias
envolvidas alegam estar a implementar e que, como ficou claro em julho último,
com uma nova interdição a banhos no local, comprovadamente não servem nem
resolvem o problema.
Quando tanto se fala em defender a democracia, talvez se
devesse começar por aqui: pela proteção e pelo respeito por um dos poucos
gestos de democracia participativa que os cidadãos ainda têm ao seu dispor.
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