quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Speakers' Corner 2

 “À Espera de Godot”

Samuel Beckett, poeta, romancista e dramaturgo irlandês, um dos mais importantes escritores do Séc. XX, escreveu que “nada é mais real do que o nada”. Em “À Espera de Godot”, a sua peça mais famosa, duas personagens, Vladimir e Estragon, estão parados na beira de uma estrada, ao centro de um cenário nu, onde apenas uma árvore pontua o vazio, o nada. Os dois esperam alguém, ou algo, chamado Godot. Enquanto esperam, Vladimir e Estragon, conversam sobre a vida, a passagem do tempo, a existência, numa espécie de melancolia resignada. São duas personagens num diálogo onde nada acontece e onde, aparentemente, nada se diz. Ao longo da peça apenas mais três personagens surgem no enredo. Pozzo, Lucky e um jovem rapaz que, no final, nos revela que Godot, afinal, não virá. “À Espera de Godot”, na sua despida contenção cénica e narrativa, é considerada pelos críticos um dos momentos altos do chamado “teatro do absurdo

Nas últimas semanas, talvez meses, o país tem estado ansiosamente em suspenso à espera do seu Godot. E, Pedro Nuno Santos e Luis Montenegro, como Vladimir e Estragon, conversam, numa espécie de penoso e cínico teatro do absurdo, sobre esse Godot da nossa existência que dá pelo nome de Orçamento de Estado. Há dias, os jornais davam corpo a uma dessas conversas entre estes dois protagonistas, com uma imagem paradigmática dessa encenação em que se transformou a nossa vida política. Numa das salas de São Bento, Montenegro e Pedro Nuno Santos, surgem sentados lado a lado, os corpos tensos no limiar dos assentos, as mãos juntas sobre os joelhos fletidos, as pontas dos dedos tocando-se num triângulo invertido, os dois emulando a postura um do outro, numa perfeita e ensaiada coreografia, como se, de facto, a única coisa que os distinguisse fosse esses míseros 1% de diferença no corte do IRC. No palco permanente da política espetáculo, a pose, a mímica dos protagonistas, tornaram-se o centro de toda a comunicação. Na polaroid do instante já nada distingue estes dois atores profissionais da dramaturgia política, perdidos no cenário do seu próprio vazio, onde o nada se tornou tudo. Num diálogo absurdo, os dois personagens trocam falas sobre o IRS para jovens, jovens até aos 35 anos(!), em breve deixará de haver adultos, seremos todos jovens indefinidamente até, um dia, acordarmos idosos sem direito a pensões. E lançam frases sobre um corte no IRC, num país onde quase 40% das empresas não pagam IRC. Subitamente, no meio desta discussão vazia, André Ventura, qual Pozzo, entra em cena agitando o caos no marasmo expectante dos dois personagens principais.

Entre um Primeiro-ministro gelatinoso, tremelicando entre linhas vermelhas, um líder da oposição acossado e titubeante, apelando, imagine-se, de dedo em riste, a uma espécie de unidade sindical da livre opinião partidária, e num país onde, com os serviços do Estado a desmoronarem perante os nossos olhos a cada dia que passa, o OE tem um peso de 40% do PIB e a rubrica do investimento é de uns miseráveis 3,5%, quem ganha é sempre o populista, o demagógico e o antissistema, mesmo que consigo apenas traga uma sucessão de mentiras. Porque, no final do dia, na frieza dos números e no vazio da narrativa, como o rapaz de Godot, o que o cidadão comum quer é que lhe resolvam os problemas básicos, coisas tão simples como a confiança nas instituições e não ter um país em que a corrupção surja no topo das preocupações das pessoas, emprego e habitação, uma administração pública eficiente, com hospitais a funcionar, uma justiça que não seja uma calamidade pública, com interrogatórios judiciais emitidos em prime time da TV, uma economia em que a TSU não pese 35% sobre o salário real, e escolas com professores, auxiliares e, já que é para ter computadores, que ao menos os ponham a tempo e horas nas mãos dos alunos…


 

 

 

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