terça-feira, 2 de setembro de 2025

Speakers' Corner 48

“Bombãs” e outras torturas medievais

Perdoem-me os tradicionalistas e os conservadores, os guardiões dos rituais seculares e das memórias antigas, mas o uso e o abuso de foguetes, roqueiras e “bombãs” nas festas populares das nossas ilhas tornou-se absolutamente insuportável.

O plácido verão açoriano, outrora pautado pela serenidade própria do isolamento insular, transformou-se numa opressiva sucessão de petardos que rebentam a toda a hora, meses a fio e nos momentos mais improváveis, por cima das nossas cabeças, num festival ensurdecedor digno de um cenário de guerra terceiro-mundista. Desde a Páscoa e o Santo Cristo, passando pelas coroações do Espírito Santo, até ao último santo de freguesia, lá nos idos de Setembro, a ilha inteira parece mergulhada num estardalhaço de pólvora e estrondo. Não há manhã, tarde ou noite em que o ar não seja rasgado por sucessivas e ritmadas explosões que nada anunciam, a não ser a paciência a desfazer-se de quem vive nas redondezas do rebentamento. Há casos, como é o meu, em que o lançamento dos ditos é feito sempre do mesmo lugar, paredes meias com o remanso do lar, invadindo-nos o silêncio com a força de um pontapé nos tímpanos.

Se outrora se compreendia a função prática dos foguetes, sinalizar a festa a longas distâncias, anunciar uma procissão ou marcar a saída de um cortejo, hoje, na era das telecomunicações, o ribombar súbito e ensurdecedor destes estampidos não passa de uma forma arcaica e torturante de nos enlouquecer.

Seria bom, se não for pedir muito, que alguém com assento nas Irmandades, nas Comissões Fabriqueiras, na Santa Casa ou na Casa do Povo nos explicasse o porquê de, em pleno século XXI, ainda andarmos a usar este método medieval de comunicação. Há alguma explicação plausível para esse trovão invasivo e arcaico que irrompe repetidamente pelas nossas vidas com a violência de uma bomba, nas horas mais esdrúxulas e inconvenientes? E haverá alguma alma amiga, ligada à pirotecnia, que me esclareça a dúvida sobre a potência da pólvora que, à medida que perco o cabelo, a visão e a audição, parece ser cada vez mais forte e perturbadoramente sonora?

Já para não falar no impacto ambiental. Em nome da tradição, lançam-se indiscriminadamente para o ar cartuchos de plástico com pólvora, sem olhar às consequências, caindo depois aleatoriamente no mar, nos campos ou mesmo nos telhados das casas, sem controlo, vistoria ou sombra de regulamento que nos valha.

Não se trata de acabar com a festa, mas de perceber que a festa não precisa de ser estrondosa para ser genuína. E até há alternativas, com luzes, lasers, música e pirotecnia silenciosa, que já se fazem noutras partes do mundo. Mas, por cá, insiste-se no medievalismo, como se a devoção tivesse de ser medida pelo número de decibéis que emite e pela pólvora que consome.

Depois há a questão das horas. Se antes havia uma lógica que se percebia e uma cadência que estruturava o anúncio da festa, agora reina a anarquia do barulho. Rebenta-se às oito, às oito e meia, às dez, às onze, às quatro da tarde, às seis, às dez da noite, à meia-noite ou até mais tarde. Tudo ao sabor da devoção do mordomo ou do grau de alcoolemia do “tio Joaquim”, que, de beata em riste, se entretém a atiçar os foguetes sem olhar a hora, a vizinhança ou a Lei do Ruído.

Na eterna dicotomia entre progressistas e conservadores, Chesterton lembrava que “a tradição é a democracia dos mortos”. É verdade que o mundo não pode ser feito apenas de inovação, e há tradições que merecem ser preservadas. Mas certas tradições, sobretudo aquelas que perderam o sentido e se mantêm apenas por inércia, não são mais do que um incómodo disfarçado de devoção. As festas são lugares de encontro e de comunidade. Mas este estrépito ensurdecedor dos foguetes e “bombãs” já não une nem informa, apenas mói e cansa.

Talvez esteja na hora de deixarmos os mortos em paz e oferecermos aos vivos um verão menos parecido com uma guerra de trincheira.