quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Speakers' Corner 50

Balas não cantam baladas

“Bella Ciao” é uma antiga balada revolucionária italiana, nascida entre as camponesas dos campos de arroz do norte de Itália, no final do século XIX. Mais tarde foi retomada pelos partisans da Segunda Guerra Mundial, tornando-se hino da resistência antifascista. Nos anos 60 ganhou nova voz nos movimentos estudantis e, já no nosso tempo, regressou à cultura popular através da série da Netflix La Casa de Papel. A canção, que fala de liberdade, sacrifício e esperança, atravessa gerações como símbolo de uma utopia humanista feita de resistência, solidariedade e luta por uma vida melhor.

Na passada quarta-feira, dia 10, no campus da Universidade do Utah, o influenciador da direita radical Charlie Kirk, de 31 anos, foi abatido a tiro por um atirador furtivo que disparou a 183 metros de distância a partir do telhado de um prédio. A bala atingiu-o na carótida. O alegado autor, Tyler Robinson, de 22 anos, terá inscrito nas balas, entre outras mensagens ligadas ao movimento de esquerda radical Antifa, as palavras “Bella Ciao”.

Kirk era conhecido pelas suas posições misóginas e hostis aos direitos das minorias. A sua retórica conservadora e divisionista alimentava confrontos no espaço público, muitas vezes incitando ao ódio e à intolerância. Por cruel ironia acabou vítima do mesmo porte de armas que sempre defendeu.

Pouco se sabe, ainda, sobre as motivações do atirador. Ao que parece, Robinson era próximo da causa LGBTQ+ e, alegadamente, de uma certa esquerda radical antifascista. Mas, o essencial, neste momento, é compreender que vivemos num tempo em que os extremismos, sejam à direita ou à esquerda, já não se limitam a debater ideias. Empunham armas, impõem-se pela violência e destroem, com a sua intolerância, o espaço público, que deveria ser a casa comum das nossas democracias.

Mais chocante do que o atentado em si, um assassinato fútil e frio, cometido a céu aberto, é a polarização que tomou conta do debate mediático. Populismos de ambos os lados trocam acusações e hesitam na condenação clara e necessária do sucedido. Multiplicam-se tentativas de justificar o injustificável, como se alguma morte pudesse ser legitimada por razões ideológicas.

Num regime aberto e liberal, toda a violência deve ser condenada. A liberdade de opinião e de expressão tem de ser preservada, mesmo para quem pretende negá-la aos outros. O facto de Kirk defender o silenciamento de minorias não legitima que fosse condenado à morte por alguém que se via como parte dessas minorias. A bala que o matou não foi justiça. Foi intolerância, e prova da doença que corrói a democracia e destrói a liberdade.

Os Estados Unidos carregam infelizmente uma longa tradição de violência política. De Lincoln a Martin Luther King, dos irmãos Kennedy a Harvey Milk. Mais grave do que acrescentar mais um nome a essa trágica lista de óbitos é perceber como chegámos a um ponto em que radicalismo e intolerância substituem o debate pelo insulto e o diálogo pelas armas. Quando a morte se torna argumento político, é a democracia que deixa de respirar e a liberdade que morre por dentro.

No seu célebre “paradoxo da tolerância”, o filósofo britânico nascido em Viena, Karl Popper, alertava para a necessidade de as democracias liberais limitarem o discurso de ódio e as narrativas extremistas como única forma de se protegerem da intolerância. Mas esta teoria contem, dentro de si, um dilema. Até que ponto a luta contra o discurso de ódio não reproduz os mecanismos autoritários que procura evitar, conduzindo, em última instância, a gestos como o de Tyler Robinson?

A liberdade estará sempre em risco quando as armas da intolerância são empunhadas em seu nome. Não são as balas que garantem a democracia ou nos protegem dos extremismos, sejam de esquerda ou de direita. É precisamente a coragem de dizer não à linguagem das balas.

Porque as balas não cantam “Bella Ciao”. Apenas calam a voz da Liberdade.

 

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Speakers' Corner 49

O fim do Contrato Social

Nos últimos dias, o conceito de responsabilidade política tem estado nas bocas do país, a reboque, perdoem-me a ironia, da tragédia do Elevador da Glória. O próprio Presidente da República, sempre pronto a disparar comentários políticos, veio a terreiro referir-se ao tema, indicando explicitamente o escrutínio popular expresso no voto das próximas eleições autárquicas como forma imediata de assacar responsabilidades políticas ao autarca de Lisboa, Carlos Moedas.

Este, por seu lado, tentou esgrimir os argumentos da fuga ou da coragem política para justificar o injustificável, recorrendo a terminologias abjetas e inqualificáveis para classificar os adversários políticos e usando exemplos indecorosos ao evocar figuras que já não estão entre nós para se defender. Foi o caso de Jorge Coelho e da famosa Ponte Hintze Ribeiro, mais conhecida pela tragédia de Entre-os-Rios.

No meio desta cacofonia, talvez seja importante regressar ao que antecede a responsabilidade política, nomeadamente, o famoso Contrato Social. Só assim se percebe como, nos nossos dias, se confunde ética individual com escrutínio, este com responsabilidade política e, finalmente, com moral pública.

O Contrato Social teve origem no final do século XVIII, com os contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau, que teorizaram sobre a aliança entre governo e população, consubstanciada num pacto entre as partes. Apesar das diferenças entre eles, uma ideia era comum: os indivíduos organizam-se em sociedade estabelecendo regras e acordos para garantir direitos, deveres e um convívio pacífico sob a autoridade de um poder político legítimo. Tratava-se de um pacto em que as pessoas abriam mão de parte da sua liberdade em troca da proteção e segurança oferecidas pelo Estado.

Os direitos e deveres individuais eram definidos a partir desse pacto, que estabelecia regras e limites ao poder do governante. Cada pessoa renunciava parcialmente à sua liberdade natural para garantir a sobrevivência coletiva e direitos civis. A autoridade do Estado emanava desse consentimento dos governados, sendo legítima apenas enquanto respeitasse os termos do pacto. O Contrato Social fundamenta a ideia de responsabilidade política e a obrigação do governante de prestar contas à sociedade, servindo de base teórica à legitimidade do poder político e da organização das sociedades modernas.

Compreender estas raízes é essencial para perceber o princípio do bem comum e o próprio exercício de cargos públicos, em que os governantes devem estar ao serviço dos cidadãos. A tragédia que vivemos hoje, visível nos incêndios, na falência do SNS, numa justiça que não funciona, num sistema de ensino caduco e depauperado, num elevador que cai, ou até mesmo numa SATA em colapso, no Ilhéu que fecha a banhos ou na Praia do Monte Verde, é que os governantes deixaram de garantir o bem comum, a tal proteção e segurança do Estado, e passaram a cuidar apenas do seu interesse pessoal. Os partidos políticos deixaram de ser plataformas ideológicas de alternativa governativa e tornaram-se máquinas de disputar eleições, cujo único objetivo é a sobrevivência dos seus dirigentes.

Mais grave ainda é transformar eleições em plebiscitos sobre a responsabilidade política, ou a ausência dela, dos candidatos. Com isso, legitima-se a sua própria infidelidade ao princípio maior da responsabilidade moral dos governantes: a honra e o cumprimento estrito dos termos do Contrato Social. Bloco a bloco, esse contrato vai-se esboroando a cada tragédia, a cada incêndio, a cada política pública falhada, num acumular de incumprimentos que termina na dissolução da premissa essencial de um Estado de Direito: a confiança dos cidadãos nos governantes e no próprio Estado.

Jorge Coelho não se demitiu por ter lido qualquer relatório, mas porque tinha consciência moral do seu papel enquanto governante. Ao contrário de Carlos Moedas, e outros como ele, que não se demite, exatamente, porque não tem um pingo de moral ou mesmo de consciência.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Speakers' Corner 48

“Bombãs” e outras torturas medievais

Perdoem-me os tradicionalistas e os conservadores, os guardiões dos rituais seculares e das memórias antigas, mas o uso e o abuso de foguetes, roqueiras e “bombãs” nas festas populares das nossas ilhas tornou-se absolutamente insuportável.

O plácido verão açoriano, outrora pautado pela serenidade própria do isolamento insular, transformou-se numa opressiva sucessão de petardos que rebentam a toda a hora, meses a fio e nos momentos mais improváveis, por cima das nossas cabeças, num festival ensurdecedor digno de um cenário de guerra terceiro-mundista. Desde a Páscoa e o Santo Cristo, passando pelas coroações do Espírito Santo, até ao último santo de freguesia, lá nos idos de Setembro, a ilha inteira parece mergulhada num estardalhaço de pólvora e estrondo. Não há manhã, tarde ou noite em que o ar não seja rasgado por sucessivas e ritmadas explosões que nada anunciam, a não ser a paciência a desfazer-se de quem vive nas redondezas do rebentamento. Há casos, como é o meu, em que o lançamento dos ditos é feito sempre do mesmo lugar, paredes meias com o remanso do lar, invadindo-nos o silêncio com a força de um pontapé nos tímpanos.

Se outrora se compreendia a função prática dos foguetes, sinalizar a festa a longas distâncias, anunciar uma procissão ou marcar a saída de um cortejo, hoje, na era das telecomunicações, o ribombar súbito e ensurdecedor destes estampidos não passa de uma forma arcaica e torturante de nos enlouquecer.

Seria bom, se não for pedir muito, que alguém com assento nas Irmandades, nas Comissões Fabriqueiras, na Santa Casa ou na Casa do Povo nos explicasse o porquê de, em pleno século XXI, ainda andarmos a usar este método medieval de comunicação. Há alguma explicação plausível para esse trovão invasivo e arcaico que irrompe repetidamente pelas nossas vidas com a violência de uma bomba, nas horas mais esdrúxulas e inconvenientes? E haverá alguma alma amiga, ligada à pirotecnia, que me esclareça a dúvida sobre a potência da pólvora que, à medida que perco o cabelo, a visão e a audição, parece ser cada vez mais forte e perturbadoramente sonora?

Já para não falar no impacto ambiental. Em nome da tradição, lançam-se indiscriminadamente para o ar cartuchos de plástico com pólvora, sem olhar às consequências, caindo depois aleatoriamente no mar, nos campos ou mesmo nos telhados das casas, sem controlo, vistoria ou sombra de regulamento que nos valha.

Não se trata de acabar com a festa, mas de perceber que a festa não precisa de ser estrondosa para ser genuína. E até há alternativas, com luzes, lasers, música e pirotecnia silenciosa, que já se fazem noutras partes do mundo. Mas, por cá, insiste-se no medievalismo, como se a devoção tivesse de ser medida pelo número de decibéis que emite e pela pólvora que consome.

Depois há a questão das horas. Se antes havia uma lógica que se percebia e uma cadência que estruturava o anúncio da festa, agora reina a anarquia do barulho. Rebenta-se às oito, às oito e meia, às dez, às onze, às quatro da tarde, às seis, às dez da noite, à meia-noite ou até mais tarde. Tudo ao sabor da devoção do mordomo ou do grau de alcoolemia do “tio Joaquim”, que, de beata em riste, se entretém a atiçar os foguetes sem olhar a hora, a vizinhança ou a Lei do Ruído.

Na eterna dicotomia entre progressistas e conservadores, Chesterton lembrava que “a tradição é a democracia dos mortos”. É verdade que o mundo não pode ser feito apenas de inovação, e há tradições que merecem ser preservadas. Mas certas tradições, sobretudo aquelas que perderam o sentido e se mantêm apenas por inércia, não são mais do que um incómodo disfarçado de devoção. As festas são lugares de encontro e de comunidade. Mas este estrépito ensurdecedor dos foguetes e “bombãs” já não une nem informa, apenas mói e cansa.

Talvez esteja na hora de deixarmos os mortos em paz e oferecermos aos vivos um verão menos parecido com uma guerra de trincheira.