O fim do Contrato Social
Nos últimos dias, o conceito de responsabilidade política
tem estado nas bocas do país, a reboque, perdoem-me a ironia, da tragédia do
Elevador da Glória. O próprio Presidente da República, sempre pronto a disparar
comentários políticos, veio a terreiro referir-se ao tema, indicando
explicitamente o escrutínio popular expresso no voto das próximas eleições
autárquicas como forma imediata de assacar responsabilidades políticas ao
autarca de Lisboa, Carlos Moedas.
Este, por seu lado, tentou esgrimir os argumentos da fuga ou
da coragem política para justificar o injustificável, recorrendo a
terminologias abjetas e inqualificáveis para classificar os adversários
políticos e usando exemplos indecorosos ao evocar figuras que já não estão
entre nós para se defender. Foi o caso de Jorge Coelho e da famosa Ponte Hintze
Ribeiro, mais conhecida pela tragédia de Entre-os-Rios.
No meio desta cacofonia, talvez seja importante regressar ao
que antecede a responsabilidade política, nomeadamente, o famoso Contrato
Social. Só assim se percebe como, nos nossos dias, se confunde ética individual
com escrutínio, este com responsabilidade política e, finalmente, com moral
pública.
O Contrato Social teve origem no final do século XVIII, com
os contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau, que teorizaram sobre a aliança
entre governo e população, consubstanciada num pacto entre as partes. Apesar
das diferenças entre eles, uma ideia era comum: os indivíduos organizam-se em
sociedade estabelecendo regras e acordos para garantir direitos, deveres e um
convívio pacífico sob a autoridade de um poder político legítimo. Tratava-se de
um pacto em que as pessoas abriam mão de parte da sua liberdade em troca da
proteção e segurança oferecidas pelo Estado.
Os direitos e deveres individuais eram definidos a partir
desse pacto, que estabelecia regras e limites ao poder do governante. Cada
pessoa renunciava parcialmente à sua liberdade natural para garantir a
sobrevivência coletiva e direitos civis. A autoridade do Estado emanava desse
consentimento dos governados, sendo legítima apenas enquanto respeitasse os
termos do pacto. O Contrato Social fundamenta a ideia de responsabilidade
política e a obrigação do governante de prestar contas à sociedade, servindo de
base teórica à legitimidade do poder político e da organização das sociedades
modernas.
Compreender estas raízes é essencial para perceber o
princípio do bem comum e o próprio exercício de cargos públicos, em que os
governantes devem estar ao serviço dos cidadãos. A tragédia que vivemos hoje,
visível nos incêndios, na falência do SNS, numa justiça que não funciona, num
sistema de ensino caduco e depauperado, num elevador que cai, ou até mesmo numa
SATA em colapso, no Ilhéu que fecha a banhos ou na Praia do Monte Verde, é que
os governantes deixaram de garantir o bem comum, a tal proteção e segurança do
Estado, e passaram a cuidar apenas do seu interesse pessoal. Os partidos
políticos deixaram de ser plataformas ideológicas de alternativa governativa e
tornaram-se máquinas de disputar eleições, cujo único objetivo é a
sobrevivência dos seus dirigentes.
Mais grave ainda é transformar eleições em plebiscitos sobre
a responsabilidade política, ou a ausência dela, dos candidatos. Com isso,
legitima-se a sua própria infidelidade ao princípio maior da responsabilidade
moral dos governantes: a honra e o cumprimento estrito dos termos do Contrato
Social. Bloco a bloco, esse contrato vai-se esboroando a cada tragédia, a cada
incêndio, a cada política pública falhada, num acumular de incumprimentos que
termina na dissolução da premissa essencial de um Estado de Direito: a
confiança dos cidadãos nos governantes e no próprio Estado.
Jorge Coelho não se demitiu por ter lido qualquer relatório,
mas porque tinha consciência moral do seu papel enquanto governante. Ao contrário
de Carlos Moedas, e outros como ele, que não se demite, exatamente, porque não
tem um pingo de moral ou mesmo de consciência.
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