“Bombãs” e outras torturas medievais
Perdoem-me os tradicionalistas e os conservadores, os
guardiões dos rituais seculares e das memórias antigas, mas o uso e o abuso de
foguetes, roqueiras e “bombãs” nas festas populares das nossas ilhas tornou-se
absolutamente insuportável.
O plácido verão açoriano, outrora pautado pela serenidade
própria do isolamento insular, transformou-se numa opressiva sucessão de
petardos que rebentam a toda a hora, meses a fio e nos momentos mais
improváveis, por cima das nossas cabeças, num festival ensurdecedor digno de um
cenário de guerra terceiro-mundista. Desde a Páscoa e o Santo Cristo, passando
pelas coroações do Espírito Santo, até ao último santo de freguesia, lá nos
idos de Setembro, a ilha inteira parece mergulhada num estardalhaço de pólvora
e estrondo. Não há manhã, tarde ou noite em que o ar não seja rasgado por
sucessivas e ritmadas explosões que nada anunciam, a não ser a paciência a
desfazer-se de quem vive nas redondezas do rebentamento. Há casos, como é o
meu, em que o lançamento dos ditos é feito sempre do mesmo lugar, paredes meias
com o remanso do lar, invadindo-nos o silêncio com a força de um pontapé nos
tímpanos.
Se outrora se compreendia a função prática dos foguetes, sinalizar
a festa a longas distâncias, anunciar uma procissão ou marcar a saída de um
cortejo, hoje, na era das telecomunicações, o ribombar súbito e ensurdecedor
destes estampidos não passa de uma forma arcaica e torturante de nos
enlouquecer.
Seria bom, se não for pedir muito, que alguém com assento
nas Irmandades, nas Comissões Fabriqueiras, na Santa Casa ou na Casa do Povo
nos explicasse o porquê de, em pleno século XXI, ainda andarmos a usar este
método medieval de comunicação. Há alguma explicação plausível para esse trovão
invasivo e arcaico que irrompe repetidamente pelas nossas vidas com a violência
de uma bomba, nas horas mais esdrúxulas e inconvenientes? E haverá alguma alma
amiga, ligada à pirotecnia, que me esclareça a dúvida sobre a potência da
pólvora que, à medida que perco o cabelo, a visão e a audição, parece ser cada
vez mais forte e perturbadoramente sonora?
Já para não falar no impacto ambiental. Em nome da tradição,
lançam-se indiscriminadamente para o ar cartuchos de plástico com pólvora, sem
olhar às consequências, caindo depois aleatoriamente no mar, nos campos ou
mesmo nos telhados das casas, sem controlo, vistoria ou sombra de regulamento
que nos valha.
Não se trata de acabar com a festa, mas de perceber que a
festa não precisa de ser estrondosa para ser genuína. E até há alternativas, com
luzes, lasers, música e pirotecnia silenciosa, que já se fazem noutras partes
do mundo. Mas, por cá, insiste-se no medievalismo, como se a devoção tivesse de
ser medida pelo número de decibéis que emite e pela pólvora que consome.
Depois há a questão das horas. Se antes havia uma lógica que
se percebia e uma cadência que estruturava o anúncio da festa, agora reina a
anarquia do barulho. Rebenta-se às oito, às oito e meia, às dez, às onze, às
quatro da tarde, às seis, às dez da noite, à meia-noite ou até mais tarde. Tudo
ao sabor da devoção do mordomo ou do grau de alcoolemia do “tio Joaquim”, que,
de beata em riste, se entretém a atiçar os foguetes sem olhar a hora, a
vizinhança ou a Lei do Ruído.
Na eterna dicotomia entre progressistas e conservadores,
Chesterton lembrava que “a tradição é a democracia dos mortos”. É
verdade que o mundo não pode ser feito apenas de inovação, e há tradições que
merecem ser preservadas. Mas certas tradições, sobretudo aquelas que perderam o
sentido e se mantêm apenas por inércia, não são mais do que um incómodo
disfarçado de devoção. As festas são lugares de encontro e de comunidade. Mas
este estrépito ensurdecedor dos foguetes e “bombãs” já não une nem informa, apenas
mói e cansa.
Talvez esteja na hora de deixarmos os mortos em paz e
oferecermos aos vivos um verão menos parecido com uma guerra de trincheira.
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