sábado, 9 de junho de 2018

Mix Tape 1

Track 1 – Intro

Em criança todos construímos castelos, nem que sejam imaginários. No quarto, com almofadas e cobertores, rearranjando os moveis, construímos fortes para batalhas épicas e palácios com príncipes e princesas. Nos jardins, com ramos e folhas e canas, erguemos cabanas, westerns sonhados de índios e cowboys. Frágeis, mas magníficos, teatros de sonhos. Ao longo da vida, a criação do gosto, é um pouco como esses castelos. Uma arquitectura de memórias. Com o passar dos anos vamos construindo uma enorme Torre de Babel interior de referências, vivências, momentos. Catalogando cada um com uma determinada banda sonora. Como o desenhar de um mapa, traçando as diferentes latitudes e longitudes da vida. Azimutes e esquadrias. São assim os meus castelos, um caleidoscópio de gostos, que se desenham numa argamassa, mais ou menos caótica de géneros, de sul para norte, este para oeste, um planisfério sentimental de lembranças, que vão de Guns N’ Roses a Stone Roses, de Camané a Kronos Quartet. Numa navegação sentimental através do oceano dos sons, imenso corpo de água, pontilhado de ilhas míticas, apenas alcançáveis pela leitura das estrelas. Há vinte anos atrás, naquele que foi um dos dois momentos mais importantes da minha vida até hoje, passei longos meses a viajar sozinho na Califórnia e no México. De mochila e pranchas às costas e com um Discman Sony e um estojo de CD’s. Se fechar os olhos ainda consigo sentir o balançar ritmado dos autocarros, nas longas travessias noturnas entre misteriosas cidades mexicanas e vejo, nitidamente, como estrelas na noite, os cd’s dentro desse estojo: Tarantula dos Ride; o primeiro álbum dos Stone Roses; Grace do JeffBuckley; Sketches of Spain de Miles Davis; Five Tango Sensations de AstorPiazzolla e Kronos Quartet; Chet Baker Sings. E outros, que formam as paredes dessa construção elíptica, espécie de confluência entre as escadas de Escher e a infinita biblioteca de Borges, que é a recordação dessa viagem, ou que é, afinal, a solidificação mental dessa experiência em tudo o que ela teve de concretização e consubstanciação de todo o meu percurso de vida e que fica, para sempre, marcado por essa colecção de sons. Mas a construção do gosto é, também, uma construção de relações humanas, de emoções, de paixões. Gestos puros e iniciais, como a oferta materna dessa viagem, como forma de libertação individual, ou a partilha, entre um pai e um filho, do gosto pela boa música e do que ela representa enquanto experiência verdadeira da natureza do belo e da sua importância basilar na vida.

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