Perseguidores de tempestades
Nos últimos dias, a comunidade surfista açoriana esteve em
estado de alerta em antecipação à chegada da ondulação originada pelo furacão
Erin.
Nascido de uma onda tropical que se formou próximo de Cabo
Verde, no dia 11 de agosto, quatro dias depois, ao aproximar-se das Antilhas e
do mar das Caraíbas, o Erin atingiu a categoria de furacão. O que o torna
particularmente extraordinário foi o seu impressionante crescimento à medida
que curvava pelo Atlântico em aproximação aos Estados Unidos, tornando-se o
furacão que mais rapidamente atingiu a categoria 5 na escala de Saffir-Simpson.
Passou da categoria 1, com ventos na ordem dos 120 km/h, para a categoria 5,
com ventos superiores a 250 km/h, em apenas um dia.
Felizmente, o Erin desenvolveu-se maioritariamente sobre o
mar, afetando ligeiramente as ilhas das Caraíbas e já como tempestade tropical
atingiu as Bermudas, provocando chuvas, alguns cortes de energia e dificuldades
nas ligações aéreas. Ironia do destino, os principais impactos do Erin foram,
afinal, as fortes inundações que causou em Cabo Verde, ainda na sua fase
inicial, e, agora, a poderosa ondulação que gerou ao longo de todo o Atlântico
Norte.
Os surfistas são seres especiais, buscam a agitação onde
outros procuram a calmaria. O surf, afinal, é um jogo de paciência, mais de
espera e de busca do que de ação, mais de antecipação do que de agitação.
Somos, por assim dizer, vindimadores de tempestades, e a emoção única das ondas
talvez só seja igualada pela excitação de imaginar uma ondulação a cruzar
vastos oceanos até se materializar, de forma pura e intocada, em ondas no
litoral escondido e isolado da ilha.
Ontem, enquanto os banhistas eram surpreendidos por ondas
inusitadamente grandes, os surfistas percorriam a costa em busca do pico
perfeito, daquela onda única e rara que só quebra circunstancialmente, com as
condições certas. E, por toda a internet chegavam relatos dessa ondulação gigantesca,
com ondas de 24 metros a atingirem a costa leste dos Estados Unidos e previsões
de vagas de quase 20 metros, em pleno agosto, na costa portuguesa.
Felizmente para uns, decepcionante para outros, o Erin passou
tranquilamente pelas ilhas açorianas, com ondas a rondar os 2 metros, perfeitamente
aceitáveis para os surfistas de fim de semana que infestam as praias da ilha
nesta altura do ano.
Mas, o que importa reter são os dados globais destas
tempestades e o que elas representam para os Açores. A verdade é que temos
assistido a um aumento significativo não só do número de tempestades como
também, e mais grave, da sua intensidade. Os dados dizem-nos que, nos últimos
100 anos, os Açores passaram a ter três vezes mais tempestades tropicais e
furacões do que no início do século XX, sendo as décadas de 70 e 90 as que
registaram maior número. Outro dado significativo é a intensidade: cinco
grandes furacões atingiram os Açores nos últimos 20 anos. Desde o Gordon, que
cruzou o arquipélago em setembro de 2006, a sul de São Miguel, ainda como
furacão de categoria 1, até ao Lorenzo, que assolou as ilhas do Grupo Ocidental
nos primeiros dias de outubro de 2019, também ainda como furacão de categoria
1, atingindo as Flores e o Corvo com ventos sustentados de 100 km/h e ondas na
ordem dos 15 a 20 metros, causando os estragos que todos conhecemos.
O que isto nos diz é que a natureza não se preocupa com as
aflições humanas. Como dizia Pessoa: “A natureza não tem coração; é de uma
indiferença que ofende”. Somos nós, os humanos, que temos de aprender a
compreendê-la, a aceitar-lhe os humores e a saber viver com ela. Isso significa
que não vale a pena contrariar os desígnios do clima, nem querer,
arrogantemente, enfrentar as suas forças que, como todos os surfistas sabem, se
estão nas tintas para com os desejos ou ambições dos homens.
Se não soubermos moldar-nos ao que a natureza nos oferece,
acabaremos inevitavelmente por ser destruídos por ela.
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