Uma Capital sem ambição
A escassos três meses do seu início foi finalmente assinado o
protocolo financeiro de Ponta Delgada Capital da Cultura 2026.
Indiferentes ao ridículo da sua própria situação, a
assinatura de um compromisso financeiro para um evento que, a esta altura, já
deveria estar praticamente todo programado, calendarizado e, em alguns aspetos,
plenamente executado, a sessão solene contou com a presença de dois ministros,
secretários de estado, presidentes de governo, secretários regionais e
autarcas. Só faltou convidarem os proponentes originais da candidatura, uma
pequena deselegância que, para alguns, não passou despercebida.
De facto, este arranque aos solavancos da Capital da Cultura
tem sido pródigo em erros, omissões e falhas de comunicação, revelando uma
ausência de projeto a todos os níveis preocupante. E, infelizmente, os sinais
deixados nestes últimos dias não auguram, para já, nada de bom.
No âmbito da sessão de assinatura do protocolo, o
comissariado da Capital da Cultura promoveu uma conferência sob o tema
“Cultura, Educação e Território no Lugar do Amanhã”. Ora, o aspeto mais
saliente desta iniciativa foi a inconspícua ausência de protagonistas locais.
Os painéis foram exclusivamente compostos por especialistas “de fora”. E se a
educação, na sua vertente de formação de públicos e de hábitos de consumo cultural,
e o território, numa região arquipelágica como esta, se apresentam como eixos fundamentais
de um projeto desta natureza, não se compreende como podem ser abordados sem a
participação dos agentes locais. Por mais meritórias que sejam as experiências
e perspetivas apresentadas, estas revelam-se inevitavelmente desfasadas de uma
realidade dispersa e insular como é a nossa.
A questão que se impõe é que território é exatamente este
que a Capital da Cultura se propõe abordar? Está esta iniciativa confinada ao
eixo Mosteiros–Rosto de Cão? Ou a ilha, as ilhas e a projeção da região para o
exterior fazem também parte do seu âmbito de ação?
Ao apartar-se da sua génese, a de uma capital cultural
ampla, enraizada nos seus nove bairros, esta Capital da Cultura recusa aquilo
que deveria ser uma das suas primeiras preocupações, a de uma Ponta Delgada
central na vida do próprio arquipélago, não como imposição, mas como
responsabilidade. E essa componente arquipelágica, que deveria estar no cerne
do projeto, parece, ao que se sabe e até ver, posta de parte. Não se percebendo
porquê.
Por outro lado, duas notas deixadas nestes primeiros
momentos públicos causam alguma estupefação ao espectador mais atento.
Desde logo, o “monumento à vaca”. Uma parceria com o Grupo
Bel para a construção de uma escultura de homenagem aos produtores de leite
açorianos. Trata-se de uma subjugação clara ao marketing privado de uma
multinacional dos lacticínios e de uma redução óbvia da imagem dos Açores a um
dos seus mínimos denominadores comuns, hoje até dos mais polémicos, pelos
impactos económicos e ambientais que acarreta.
Se juntarmos a isto as declarações da comissária, quando
questionada sobre a programação já prevista, resumida a um retomar de tradições
como os Assaltos de Carnaval e o Menino Mija, temos uma Capital da Cultura
prisioneira de uma certa ideia nostálgica e infantil de uma Ponta Delgada dos
anos oitenta do século passado, feita de clichés folclóricos e memórias
pessoais.
A ideia de uma Capital da Cultura era um sonho bonito, que
gerou enorme expectativa e vontade entre os agentes locais, na esperança de um
evento capaz de projetar a criação artística açoriana para o mundo e trazer o
mundo aos Açores, com rasgo, vanguarda e vontade de rutura. Uma capital que
fosse de arte, pensamento e projeção.
Pelo que é público até agora, temos apenas uma velha Ponta
Delgada, presa nos seus próprios fantasmas e tradições folclóricas, sem mundo e
sem imaginação. Sinceramente, o que espero é que esta Capital da Cultura possa
vir a ser mais do que apenas mais uma oportunidade perdida.
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