quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Speakers' Corner 46

A Primeira Lei de Newton

Portugal arde.

Com a fatalidade de um destino traçado e a regularidade de um relógio solar, o país consome-se, ou é consumido, pelo fogo no verão. Esta sina triste e aparentemente imutável repete-se ano após ano, com o rigor de uma lei por entre o calendário das procissões e das férias dos veraneantes. Uma verdadeira “Volta a Portugal”, não de bicicletas, mas de labaredas e de fumo.

Pelas notícias, somos inundados (perdoem-me a ironia) pelo suor banhado de espanto, coragem e exaustão dos bombeiros; pela fúria de alguns autarcas; pela aflição das populações; e pelos discursos gastos dos políticos de Lisboa que fogem das perguntas dos jornalistas ou fazem brindes com cervejas na festa do Pontal. Tudo isto em diretos televisivos incessantes, que procuram a emoção crua da catástrofe num guião estudado de desilusão e medo.

E o país arde.

E, como sempre, lamentamos a crónica falta de meios, os aviões que avariam, os eucaliptos que tomaram conta da paisagem como uma praga movida pela avareza e pelo lucro, e a sempre prometida mas nunca cumprida gestão do território, que os especialistas repetem há décadas como sendo o mais profundo e premente problema do país. Desertificámos o interior e, com ele, colocámo-nos a todos em risco.

Vivemos num tempo que se desmaterializou, que se desprendeu do solo, da terra, das culturas, das pastorícias, das estações. Como dizia há dias Henrique Pereira dos Santos, deixámos de comer cabrito para comer salmão e abacate. Os cabritos cresciam nas serras, alimentando-se do mesmo combustível que hoje alimenta os fogos que crescem sem travão, ao sabor do vento e de décadas de desertificação. Os salmões crescem em tanques, à base de ração de soja e antibióticos. Os abacates chegam de produções intensivas, imunes às restrições da sazonalidade e banhados numa enxurrada de rega e fertilizantes.

Esta artificialização dos ritmos e contextos coloca-nos numa condição permanente de alerta em que, ironicamente, somos ao mesmo tempo vítimas e agressores. Todo um mundo que desapareceu e recusamos adaptar-nos ao novo que surgiu.

Paradoxalmente, aqui na ilha, um autarca confrontado com uma óbvia e inacreditável asneira de urinóis e águas residuais de um evento a correrem sem freio para a ribeira e o mar respondeu candidamente: “sempre foi assim”. Perante o absurdo, a reação foi a resignada aceitação da barbárie, como se a estupidez fosse uma fatalidade da natureza, numa espécie de híper-conservadorismo que recusa a mudança, o progresso e até o próprio bom senso.

Estes dois movimentos, aparentemente opostos, um mundo rural desertificado e uma rudeza que se repete, radicam afinal no mesmo princípio: a inércia.

No país que arde e no autarca que se conforma há a mesma incapacidade de perceber que o mundo à volta se transforma, se modifica, que o mundo pula e avança num perpétuo movimento de constante evolução. O “sempre foi assim” traduz exatamente essa incapacidade de reconhecer que o mundo, afinal, já não é assim.

Da mesma forma que em Portugal continental o interior foi abandonado por décadas de migração para as grandes cidades, também nas ilhas o litoral se aburguesou, por assim dizer. Tornou-se finalmente habitado, fonte de prazer e fruição. Onde antes vivia o vazio e a indigência, hoje multiplicam-se turistas, escolas de surf, banhistas de diferentes proveniências e costumes. Sinalizando, numa inescapável fluorescência, que as coisas afinal já não são assim e que temos forçosamente de nos adaptar a elas.

Newton explicou que um objeto, esteja em repouso ou em movimento, não muda o seu estado a menos que seja forçado por uma força exterior. Já que nos recusamos a aceitar Newton, que ao menos nos lembremos de Darwin para perceber que, se não fizermos alguma coisa diferente do que “sempre foi”, se não nos adaptarmos, acabaremos fatalmente por ser os agentes da nossa própria autodestruição, tanto pela (má) ação como pela inércia.

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