O Desafio Arquipelágico
Ao fim de quase trinta anos a viver nos Açores e mais de vinte
como filho de açorianos no continente estou convicto de que o maior desafio que
estas ilhas enfrentam, ainda hoje, é o desafio arquipelágico.
Não se trata apenas de afirmar a tão glosada e tantas vezes
mal interpretada “açorianidade”, mas de construir uma verdadeira
identidade arquipelágica. Una, coesa e realmente interdependente entre si. O
grande desafio destas ilhas é conquistar a consciência de um arquipélago que se
reconheça como tal, feito das suas nove partes, mas unido na certeza de uma
realidade comum, partilhada por todos, entre o mar e a terra, e de um povo
moldado na dicotomia entre os dois.
Desde os primeiros povoamentos que estas nove ilhas se mantêm
de costas voltadas umas para as outras. Hoje, continuam a perder-se em
bairrismos fúteis e disputas estéreis. Basta ver como as decisões políticas, seja
de que natureza forem, ainda se fazem, tantas vezes, à medida da pressão local
e não de uma visão arquipelágica sobre as ilhas.
E mesmo na diáspora, o açoriano só é “açoriano” para fora. Por
dentro, mantém a marca indelével da sua ilha e, dentro dela, da sua freguesia.
Como dizia, creio que, Daniel de Sá, pode-se tirar o homem da freguesia, mas
não se consegue tirar a freguesia de dentro do homem.
Este apego telúrico, íntimo e inexpugnável, é talvez o traço
mais pungente do ser açoriano. Talvez até, junto com a religiosidade, seja o
mais premente. Mas, mesmo nessa religiosidade, o traço comum fragmenta-se em
mil formas. Até no que poderia ser a mais unificadora das tradições, o culto do
Espírito Santo, somos uma manta de retalhos. As sopas das Flores não são as
mesmas que as de Santa Maria ou as da Terceira.
Ao longo dos séculos, esta fragmentação foi reforçada por
divisões administrativas e políticas. No tempo das donatarias, a lógica era de
feudo; mais tarde, os distritos acentuaram rivalidades, criando uma geografia
mental onde “ilha vizinha” passou a ser “concorrente” e não “parceira”. Já na
autonomia, a tripartição entre ilhas e cidades ecoa, de certa forma, as três
pessoas do Espírito Santo, distintas, mas que raramente funcionam em verdadeira
comunhão.
O grande desafio autonómico de 1976, que em breve
comemoraremos (esperemos que de forma séria e não apenas celebratória e
politicamente esvaziada), era e continua a ser a construção de uma verdadeira
consciência de união arquipelágica. Olhando para o que foi feito nestes quase
cinquenta anos, fica a sensação de que falhámos em criar um património
identitário conjunto. Continuamos sem uma relação filial entre nove ilhas tão
distintas e distantes, mas necessariamente dependentes umas das outras.
Se tivesse de assinalar os verdadeiros motores desse
movimento eles seriam, não as formulações políticas, mas a SATA, a Universidade
dos Açores e, fundamentalmente, a RTP-Açores. Cada uma, à sua maneira, fizeram
mais pela ideia de Açores do que meio século de autonomia. A companhia aérea,
ligando as ilhas e estas ao exterior. A universidade, dando-lhes lastro
cultural, científico e diplomático, até. E a RTP-Açores, talvez a mais
importante de todas, pelo conhecimento real que permitiu entre as ilhas dando-se
os açorianos a conhecer entre si através dos ecrãs da televisão.
A identidade constrói-se com esse conhecimento mútuo, com
partilha de sensibilidades e afectos, com o acto simples, mas poderoso, de
mostrar a um açoriano do Corvo a realidade de outro em Santa Maria. E, nestes
cinquenta anos, que agora se celebram, talvez tenha sido a RTP-Açores, mais do
que ninguém, a conseguir esse abraço arquipelágico. Num território que vive de
costas voltadas, é a televisão quem, com imagens e palavras, aproxima o que a
geografia e a história tantas vezes separam.
Resta-nos esperar que talvez um dia essa união não dependa só das ondas hertzianas, mas das ondas reais de cooperação e reconhecimento mútuo e que nos viremos todos, finalmente, de frente uns para os outros.
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