quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Speakers' Corner 10

Sociedade Açoriana de Trapalhadas Aéreas

Há data da sua fundação, a denominada Sociedade Açoreana de Estudos Aéreos, apresentava-se como instrumento determinante de ligação dos Açores ao Mundo. Na visão dos seus fundadores, um grupo de cinco notáveis empresários açorianos, a integração do arquipélago no contexto das ligações aéreas transatlânticas era condição fundamental para o desenvolvimento económico da região, não só no turismo mas, também, na alavancagem da exportação de outros sectores produtivos, e, ainda, como veículo de ligação das ilhas às suas diásporas. Contrariamente ao que hoje se possa pensar, a SATA não nasceu como companhia interilhas, o foco da companhia sempre foi a ligação dos Açores ao exterior.

Ao longo dos seus mais de oitenta anos de história, a companhia foi sobrevoando intempéries e desastres, reestruturações e vendas, mas mantendo sempre a sua matriz como companhia de bandeira de um arquipélago charneira na navegação aérea internacional, particularmente do Atlântico Norte. Com mais ou menos aterragens e descolagens, fossem elas financeiras, políticas ou propriamente aeronáuticas, a companhia manteve-se ao longo de décadas em velocidade de cruzeiro, cumprindo honradamente o seu desígnio, até ao fatídico ano de 2015 em que duas decisões distintas e aparentemente alheias entre si se conjugaram para mergulhar a companhia num voo picado rumo ao abismo – a liberalização e o “cachalote”.

A saga do conhecido A330-200, que teve como madrinha de batismo a cantora Nelly Furtado, popularizado como “cachalote”, foi agora reaquecida e amplificada por uma reportagem em horário nobre de uma televisão nacional e os contornos dessas decisões, tomadas em 2015, merecerão, se for caso disso, avaliação pelos tribunais. Mas, neste voo turbulento da SATA rumo à falência técnica, também recentemente decretada, com todas as letras, pelo Conselho Superior de Finanças Públicas, o que ninguém parece querer reconhecer, ou sequer falar, é o papel instrumental da abertura do espaço aéreo da região, numa liberalização selvagem, com a recorrente incapacidade dos governos em suportarem os custos das obrigações de serviço público, por eles definidas, e as suas consequências na saúde financeira da empresa, numa sucessão de trapalhadas que culminaram na situação atual, em que já nem mesmo as ditas low cost se propõem voar para os Açores. Na verdade, o problema da SATA, mais do que financeiro, ou administrativo, que também o é, é, acima de tudo, político.  A liberalização do espaço aéreo, fervorosamente defendida pelo então secretário de estado Sérgio Monteiro, foi uma decisão política arbitrária que não teve em consideração os melhores interesses da região e muito menos da sua companhia aérea, numa liberalização feita apenas com os interesses dos sacrossantos mercados em vista.

Ao longo dos últimos anos, as decisões dos gestores da companhia têm sido alvo de escrutínio e impropério por parte de opinião pública e publicada, mas seria bom que nos debruçássemos também sobre as decisões dos sucessivos governos, de cá e de lá, na estratégia e no dia-a-dia da companhia. O que a SATA precisa não é de privatização, mas de boa gestão. A ânsia atual da privatização busca apenas fugir de um problema, agravando-se a nossa dependência dos humores financeiros dos interesses privados. O desiderato dos fundadores, com bravura e sacrifício pessoal, foi abrir os Açores ao mundo, criando centralidade com uma companhia aérea própria. Hoje, políticos menores contentam-se com a vista curta de se colocarem inteiramente nas mãos da ganância dos mercados. E com a agravante, como confirmou recentemente o Presidente do Governo Regional, em entrevista nobre na televisão, de mais uma vez se deixar os prejuízos aos contribuintes e os lucros aos privados. Para usar uma linguagem dos aviões, na iminência da catástrofe: Brace! Brace!

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Speakers' Corner 9

O fim do sonho europeu

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, o continente europeu viu-se mergulhado numa escura e amordaçada multitude de escombros. Da destruição física ao trauma psicológico e espiritual. Da desagregação política e económica. E, da tenaz política e geoestratégica de duas novas grandes potências em ardente guerra fria, à sua esquerda e à sua direita. Mas deste pó ergueram-se grandes estadistas e deles brotou a esperança de instituições internacionais fortes, que agregassem os povos, oferecessem esperança e paz e, principalmente, impedissem que o continente soçobrasse de novo ao peso do apocalipse. A “Declaração Schumann”, mais do que um projeto económico, era uma visão ambiciosa e audaciosa para o seu tempo, se considerarmos que foi gizada apenas 5 anos depois do fim da segunda grande guerra. A consciência de que a prosperidade e a paz no continente só seriam possíveis com a normalização das relações entre França e Alemanha, e a sua aceitação por Konrad Adenauer, é um ponto basilar naquilo que foi a história da Europa nos últimos 75 anos. Robert Schumann, juntamente com Adenauer, Jean Monnet e outros, representam uma linhagem de estadistas conscientes e visionários que legaram ao mundo o seu mais longo período de paz e prosperidade. Nunca a expressão de Newton, de que nos “erguemos nos ombros de gigantes”, foi tão acutilantemente pertinente.

Mas desgraçadamente, o tempo dos grandes estadistas, europeus e mundiais, morreu. Os grande líderes políticos que construíram a Europa deram lugar a uma extensa família de eurocratas, e a visão de uma prosperidade que impedisse o eclodir de conflitos foi substituída pela miopia estéril da próxima eleição. Em vez de grandes desígnios ou aspirações, a política europeia é regida hoje pelos curtos ciclos das eleições e a perpetuação de mecanismos pouco claros, pouco democráticos e reduzidamente escrutináveis. Dos quais, o processo de escolha dos líderes da Comissão e do Conselho são, aliás, exemplo claro. E num mundo em acelerada e agitada mudança, a Europa é cada vez mais um velho e inconsequente protagonista, sem voz, sem ascendente e, muitas vezes, sem orientação.

Nas últimas semanas Ursula von der Leyen e António Costa viram confirmadas as suas indigitações para os mais altos cargos europeus. Costa, a quem o jornal Político designava como o primeiro líder europeu de uma “minoria étnica” (sic). O que dá bem nota da sua irrelevância e da baixíssima expectativa quanto ao seu desempenho. De melhor político da sua geração, em Portugal, a obscuro e irrelevante representante de uma minoria étnica, no grande palco europeu. Já a Sra. Leyen, a braços com uma investigação por corrupção na gestão dos contratos vacinais vê-se reconduzida na liderança de uma Europa cada dia mais irrelevante económica, política e estrategicamente, a braços com uma guerra à sua porta, instigada pelos interesses financeiros e económicos da máquina de guerra global, de um lado, e pela ambição de um tirano, pelo outro, numa nova tenaz de medo e conflito, exatamente o que os pais fundadores da União sempre desejaram evitar.

Postos perante esta escolha, os grande areópagos europeus optam pela guerra para assegurar o seu poder. O relatório Draghi indica na indústria militar o caminho para uma nova evolução económica do continente, numa nova corrida às armas e na criação de exércitos europeus, incensados pela sempre voraz racional belicista da alta finança mundial. E, no seu discurso de posse perante o parlamento, a Sra. Leyen vincava estas escolhas, enfatizando o tom de uma luta pela liberdade baseada, pasme-se, na segurança e defesa, e já não, como os gigantes que a antecederam ambicionaram, nos ombros da prosperidade, da igualdade e da fraternidade. É assim, neste sobressalto, que acordamos para dura realidade do fim do sonho europeu.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Speakers' Corner 8

O Fado do Embuçado

Portugal é prenhe de messianismo. Desde a sua incepção que o país se constrói na ideia de uma graça divina que longe se estenderá pela sua história. Tão longe que ainda hoje o povo se ajoelha na prece do seu “embuçado”. A lista é interminável e tem em D. Sebastião, o Encoberto, a expressão máxima dessa ideia messiânica que atravessa a nossa história, seguindo pelos séculos, em saltos políticos e filosóficos, contaminando o raciocínio das elites e o espírito do povo. E mesmo pela república dentro, até à democracia, as figuras messiânicas foram sempre pródigas na convulsiva e angustiada política portuguesa, numa linhagem que, de Afonso Henriques a Salazar, marca a neblina nacional pela ânsia de um Quinto Império. Salazar, e o seu principal propagandista, António Ferro, foram, aliás, os mais instrumentais elementos na construção deste Portugal contemporâneo, submergido no caldeirão denso do saudosismo, numa espécie de revisionismo histórico nacionalista e antimarxista, que continua hoje tão em voga, como se viu nessa equivoca e extemporânea sessão solene do 25 de Novembro, a que assistimos anteontem.

Vem este longo intróito a propósito das notícias veiculadas esta semana sobre a presuntiva candidatura presidencial de S. Exa. o Chefe de Estado Maior da Armada, Almirante Gouveia e Melo, ou, como ficou conhecido aquando da sua projeção para a fama, o Capitão Iglo da ditadura pandémica. Despenseiro logístico da panaceia vacinal feito novo messias da grandeza pátria, emergindo das águas do anonimato militar para os holofotes do circo político-mediático na velocidade de duas inoculações. Mas, o que me interessa realçar nesta putativa candidatura, não é a suposta incógnita bruma ideológica em que vem envolvida a personagem (para mim o autoritarismo do protocandidato é claro…), mas é precisamente a dinâmica das reações políticas à intenção do Sr. Almirante, imbuídas na sua quase totalidade por um revisionismo descarado e, diria eu, insultuoso.

É que Gouveia e Melo é uma invenção do Costismo, uma ideologia política impregnada pelo maquiavelismo clássico de que os fins justificam os meios. No auge da pandemia, o Costismo não se coibiu de fazer mão dos mais básicos instintos e armas do populismo, nomeadamente a instrumentalização da autoridade militar, para imposição de uma ordem arbitrária, eminentemente inconstitucional e ostensivamente ditatorial, alicerçada no medo, em que um comandante de submarinos, de porte arrogante e traje de combate, qual Eanes em cima do carro, funcionou como instrumento exemplar da estratégia comunicacional de um governo permanentemente em campanha eleitoral. Ainda hoje, ninguém me convence que não foi um qualquer Luís Paixão Martins que se lembrou de colocar à frente do COPCON do Infarmed um militar garboso e embarbado. É por isso que é particularmente cómico, para não dizer patético, assistir hoje aos porta-vozes do regime zurzirem no Almirante com todos os clichés do arrivismo eleitoral: o militar oportunista;  o populista antissistema; o fascista útil e outras lamentações do género quando foram eles próprios quem, não só inventou o “monstro” de que agora se acobardam, como criou o caldo de cultura que permite que hoje, 50 anos depois das promessas de Abril, o descrédito das pessoas perante um estado falhado seja tal, que um novo embuçado conquiste mais de 20% de aprovação do eleitorado.

Nos meus tempos de petiz, num Portugal mais simples, João Ferreira Rosa, um perigoso reacionário, cantava num lirismo particular o “Fado do Embuçado”, que todos entendiam como um hino a D. Sebastião. O poema, escrito por Gabriel Oliveira, conhecido, ironicamente, como Gabriel Marujo, e musicado pelo guitarrista José Marques Piscalarete, era, afinal, uma homenagem ao Rei D. Carlos que, consta, gostava de fados. Pode ser que o Almirante faça deste fado o seu fado, para grande mal do nosso fado coletivo…

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Speakers' Corner 7

Pelo buraco de Alice

Qualquer empresário sabe que o Governo Regional está numa lastimável situação financeira. São as dívidas aos fornecedores, os atrasos nos pagamentos, as linhas de apoio desertas e as comparticipações por pagar. Por outro lado, sucedem-se as notícias que dão conta dos aumentos da dívida da região, que já atinge uns impressionantes 3.2 mil milhões de euros. O Banco de Fomento que coloca a Secretaria das Finanças em Tribunal. E dos atrasos do PRR, então, já nem se fala. Aqui há umas semanas o Expresso fazia eco de fontes que davam nota da possibilidade da Região estar à beira de um “resgate”. A confirmação desse descalabro acaba por vir na forma de um apoio extraordinário em sede de Orçamento de Estado no valor de 75 milhões de euros para amortização da dívida, a que o PSD chama de “justa e adequada compensação” e o PS classifica, mais uma vez, de “resgate”, na esperança que seja esse eminente apocalipse financeiro a fazer tremer o governo de Bolieiro.

Na esteira das recentes eleições americanas, muito se tem falado sobre as motivações eleitorais e, principalmente, do impacto das questões económicas na orientação de voto dos eleitores. Colocando muitos analistas o ónus da derrota de Kamala Harris nas consequências da crise inflacionária na vida dos americanos, resumindo a teoria na velha e célebre expressão de James Carville, assessor político de Bill Clinton, que sentenciou: “é a economia, estúpido!”

Nos Açores, onde o peso da administração pública na economia ronda os 32% é difícil perceber os impactos reais da situação financeira na intenção de voto dos seus cerca de 34 mil funcionários públicos, cerca de um terço da população empregada. Mas, desconfio que enquanto continuarem a cair todos os meses os ordenados nas contas e o Turismo continue a fazer verter pequenos acrescentos ao seu rendimento o impacto será reduzido ou nulo. Para mal dos nossos pecados, o grande motivador eleitoral nos Açores é o recrutamento laboral nessa mesma administração pública, muito mais do que as percentagens do endividamento ou as curvas negativas do défice.

No mês passado, o PS-Açores realizou o seu congresso num Teatro Micaelense com meia casa e a tentativa de projetar o seu novo líder para o topo das preferências do eleitorado. Num episódio muito pouco comentado, mas elucidativo, Pedro Nuno Santos, no seu discurso, dirigindo-se a Francisco César, referiu a sua já longa carreira política conjunta, de mais de vinte anos, e a sua cumplicidade e amizade, o que é normal e apreciável, mas logo a seguir foi mais longe ao dizer que “nós sabíamos que este dia ia chegar”, cito, referindo-se à circunstância de serem ambos líderes nacional e regional do partido socialista, o que, isso sim, revela uma certa maneira de estar e de ver a política que tem tudo para ser condenável. Presos na sua própria mitomania, os dois jovens lideres como que caíram pelo buraco de Alice e perderam a noção da realidade, vivendo nesse devaneio sonhador de quem acha que está predestinado ao céu por direito próprio.

Há um lugar comum que diz que nos Açores não se ganha eleições, são os outros que as perdem. Esta nova sofreguidão dos socialistas açorianos com a dívida da Região mostra bem por onde acham que Bolieiro poderá vir a sentir mais dificuldades. Mas esta esperança, este pensamento mágico, labora em dois equívocos. O primeiro, como agora ficou provado com esta esmola orçamental, é que Montenegro nunca deixará cair Bolieiro e tão depressa Pedro Nuno não substituirá Montenegro. A segunda, e muitas vezes esquecida, e que James Carville repetia sempre depois de gritar pela economia, é que o que os eleitores pedem é mudança, e, como se vê pela incapacidade de constituir uma candidatura a Ponta Delgada, essa mudança, por pior que sejam os social-democratas, este PS não consegue pelos vistos corporizar.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Speakers' Corner 6

Porque perderam os Democratas

Muitas foram as reações a que assistimos, um pouco pelo mundo, à surpreendente vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas. Surpresa, choque, até mesmo, em alguns casos, pavor, perante o regresso à Casa Branca da alaranjada e iconoclástica celebridade americana, foram alguns dos mais comuns registos, tanto por parte de políticos como de comentadores, do lado esquerdo da barricada, nos dois lados do Atlântico. No campo Democrata, o grosso das respostas foram no mesmo sentido da campanha, uma visceral e contundente repulsa perante tudo aquilo que Trump representa, literalmente, um novo fascismo, englobando no epiteto tanto a criatura como os seus apoiantes

Em Portugal, no dia a seguir às eleições a líder parlamentar do Partido Socialista, Alexandra Leitão, foi ao ponto de publicar na rede social X um desabafo em que classificava o resultado como a vitória do ódio. “Venceu o ódio, a violência, o totalitarismo, a boçalidade, o racismo e a misoginia. (…) Venceu a indecência!” Escreveu. Este tipo de reações, mais ou menos gástricas, à eleição de Trump, embora compreensíveis, revelam, no entanto, um padrão mais complexo e, diria eu, perigoso, que é o alheamento dos diretórios partidários da esquerda global relativamente ao que são as legitimas aspirações dos eleitores e, mais grave, àquilo que eles próprios contribuíram para este tipo de desfecho, e o que isso significa para a própria saúde da democracia no seu todo.

Por alguma razão, a esquerda não consegue compreender o quão drasticamente se afastou do seu eleitorado e como as pessoas se sentem rejeitadas e abandonadas por aqueles cuja obrigação era protegê-las. E, de como décadas de subserviência ao  grande capital, ou, mais recente, a deriva para um segmento urbano, dito intelectual e woke, levaram a que a classe trabalhadora olhasse para o outro lado da barricada em busca de quem lhes resolva os problemas. Bernie Sanders, velho e empedernido socialista, foi o primeiro a colocar o dedo nesta ferida, assinalando precisamente este alheamento do partido democrata face àquilo que era o seu verdadeiro eleitorado – a “working class” americana, que luta no dia-a-dia para chegar ao fim do mês. Basicamente, o partido deixou de ouvir, defender e representar as suas bases.

Talvez o aspeto mais revelador desta oligarquia do diretório partidário seja a própria forma de designação dos candidatos. Primeiro com uma insistência absurda em Joe Biden, octogenário, impopular e decadente. E, a sua substituição, tardia, sombria e autoritária, por Kamala, numa usurpação incompreensível do procedimento enraizado de primárias. Os barões do Partido Democrata dispuseram a seu belo prazer das opções do partido, com o resultado desastroso que agora se conhece.

Enquanto a América real se preocupava com a economia, a emigração e os impactos e consequências da pandemia, a esquerda liberal e socialista perdia o seu tempo em preleções incoerentes sobre franjas sociais ou a pura e simples demonização, e mesmo insulto, dos seus adversários. Recordemos que Biden chegou a classificar de “lixo”(!) os apoiantes de Trump, tal como Alexandra Leitão os adjetiva de indecentes, numa arrogância e superioridade moral e intelectual que é a antítese de tudo o que deveria ser a Esquerda.

Esta incapacidade de estabelecer pontes, de ouvir o eleitorado e de se aproximar da realidade concreta das vidas dos cidadãos, desviando-se do centro e polarizando ainda mais o ambiente político é, como se vê, uma receita para a desgraça. Lá, como cá, inclusive até nestas pequenas ilhas no centro do lago, é na aproximação dos partidos às pessoas, sabendo escutar as bases, saindo das pequenas bolhas dos grupos de amigos, ou dos vídeos do TikTok, que se constroem alternativas, que se estreitam laços com críticos e opositores, e que, ao final do dia, se ganham eleições. Em democracia, não há vencedores pré-designados, nem sequer vitórias morais. Em democracia, quem manda é o povo, mesmo quando não concordamos com ele.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Speakers' Corner 5

Da Democracia na América

À hora em que o leitor olhar este jornal provavelmente já saberá quem foi o vencedor das eleições americanas, ou então, talvez não. À hora em que escrevo, mais de 240 milhões de eleitores registados para votar já terão feito ouvir a sua escolha na maior democracia do mundo. Se o resultado pode parecer problemático e imprevisível, há já uma certeza que podemos tirar deste processo eleitoral: a América está irreconciliavelmente dividida. E estas eleições apenas ajudaram a cavar ainda mais esse fosso de apartamento entre essas duas américas.

No entanto, já em 1835, um jovem aristocrata francês alertava para os perigos que ameaçavam a jovem democracia americana. “O despotismo de uma fação não deve ser menos temido do que o despotismo de um indivíduo” escreveu Alexis de Tocqueville no seu “Da Democracia na América”, alertando-nos para o que considerava ser a perigosa tendência para a “tirania da maioria”. Como assistimos agora, nestas eleições em que o insulto e as bandeiras do medo, agitadas à exaustão por ambas as partes, com acusações estridentes como “lixo” e “Hitler”, são o denominador comum dos slogans políticos. Muito pouco, na verdade, se quisermos ser isentos e independentes, distingue atualmente a praxis eleitoral de Republicanos e Democratas.

No final dos anos 90, dois políticos de esquerda, Tony Blair e Bill Clinton, nos dois lados do grande lago Atlântico, deram forma a uma teoria política a que se designou chamar de “Terceira Via”. O “centrismo radical”, como lhe chamou Anthony Giddens. Vindos da ressaca de Thatcher e Reagan, os dois líderes da grande social-democracia ocidental procuraram fazer a síntese entre o estado social e a economia de mercado como forma de, para além de conquistarem o poder, o poderem manter. Quase trinta anos passados, o que a Terceira Via fez ao centro-esquerda mundial foi desmembrá-lo e descaracterizá-lo, despindo-o das suas mais profundas ideologias e princípios, em prol de uma frenética obsessão com o politicamente correto e, em última instância, da fixação permanente das máquinas partidárias na mera vitória eleitoral.

Ao longo do tempo, a cedência ao capitalismo mais selvagem, levou a um afastamento dos eleitores do centro, que deixaram de ver as suas aspirações acarinhadas pelos partidos de centro-esquerda, e foi isso, também, que levou ao surgimento de agendas cada vez mais radicais e extremistas, com os nacionalismos xenófobos, de um lado, e os wokismos de género, do outro. Se associarmos a isto as consequências devastadoras de duas crises dramáticas no espaço de uma geração – financeira em 2008 e pandémica em 2020 – temos o caldo perfeito para o mundo bipolar em que vivemos hoje.

Independentemente das nossas opiniões sobre Trump e Kamala, eles próprios já não representando bem a natureza de Republicanos ou Democratas, um episódio em particular torna-se paradigmático para a compreensão destas eleições e da crise que atravessa a América. Robert Kennedy Jr, sobrinho de John e filho de Bobby, foi candidato democrata às primarias do seu partido e, depois de escorraçado pela máquina partidária democrata, candidato independente, até, finalmente, e em desespero de causa, declarar o seu apoio a Trump. O movimento criado por Kennedy apresenta-se hoje com uma plataforma designada Make America Healthy Again, apostado em combater os lobbys financeiros das grandes companhias farmacêuticas começando, precisamente, no ponto nevrálgico da questão: a saúde. Tornar a América saudável outra vez. Nada podia ser mais de esquerda do que isto, mas é Trump, o proto-tirano, quem parece querer abraçar este movimento. Enquanto Kamala, e os democratas, tirando a questão do aborto, que defende, e bem, propõe políticas monetaristas que, ao final do dia, apenas perpetuam as desigualdades de um sistema baseado na gestão, não da saúde, mas, do negócio da doença. Como bem alertou Tocqueville, triste América que se divide entre duas formas de tirania.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Speakers' Corner 4

A Pedra Filosofal

O passado fim-de-semana foi pródigo em fenómenos partidários na região. Em Ponta Delgada, os sociais-democratas reuniram-se em congresso. Uma concentração pujante, impregnada pelo odor inebriante do poder, que teve inclusive direito a destacados convidados de honra. Luís Montenegro, Miguel Albuquerque e, a coqueluche juvenil da social-democracia lusa, o Tom Riddle do centro-direita, o delfim Sebastião Bugalho. Ex enfant terrible do comentário político e hoje bem-instalado deputado europeu. Por seu turno, o Partido Socialista, reuniu timidamente a sua comissão regional, num pequeno auditório na singela e pitoresca Vila Franca do Campo. Nestes dois encontros, uma nota comum perpassa um pouco pelo tom dos discursos e da coreografia política: a obsessão com o “novo”. De um lado e do outro, este parece ser o foco principal de toda a acção político-partidária, o culto e a fixação na renovação e na juventude. O PS-Açores, até, adotou como slogan “um novo futuro” e fez anunciar que tinha renovado em mais de 81% o seu secretariado regional.  

Na velha ciência alquímica, uma das mais ambicionadas quimeras era a descoberta da “pedra filosofal”, uma substância mágica capaz de transformar outros metais em ouro e que era tida, também, como o elixir da eterna juventude, capaz de dar ao seu detentor a imortalidade. Atualmente, a vida política contemporânea parece estar tomada dessa febre, dessa embriagante pulsão pela longevidade e a eterna juventude, expressa na permanente procura de mudança e, paradoxalmente, de perpetuação no poder. Mesmo os partidos ditos mais conservadores parecem acometidos dessa ânsia marxista dos “amanhãs que cantam” e das jovens promessas. Como se o passado fosse um incandescente inferno de calamidades do qual precisam, a todo o custo, de se distanciar.

Não me interpretem mal. Eu sou progressista e acredito no valor da mudança. O triste não é mudar de ideias; triste é não ter ideias para mudar, como dizia o Barão de Itáraré. Mas, é precisamente aqui, no campo das ideias, que este culto partidário da renovação permanente me inquieta. Exatamente porque não são as ideias que eles querem mudar, nem os métodos, nem mesmo alguns cancros metastisados que pululam pelos vasos sanguíneos partidários como cadáveres ambulantes, na forma de longas e inexpugnáveis carreiras políticas. O foco único da mudança autofágica dos partidos são os nomes, as caras e, aqui e ali, um ou outro currículo útil.  O foco da atividade partidária não está nas políticas e nas soluções e na reconquista da confiança política dos cidadãos, mas na saltitante e permanente dança de cadeiras dos seus protagonistas, sejam eles novos-velhos ou falsos novos.

O que a política partidária, elemento fundamental da democracia, precisa urgentemente não é de caras novas, mas de novas soluções e outras e melhores formas de exercer a própria política. Novos métodos e novas estratégias para, dito de uma forma muito simples, resolver os problemas dos cidadãos. De que é que serve renovar em 80% um órgão dirigente se os discursos, as práticas e as ideias são as mesmas de sempre? Se as palavras são as de antigamente, se até o tom e a forma é o mesmo que o antepassado, mimeticamente estudado ao espelho do quarto de banho de hotel, para que servem essas fictícias renovação e juventude?  Destruíram o SNS. A escola pública está um caos. As finanças regionais no precipício de uma bancarrota. Mas são jovens e são novos. O que se percebe deste excitado agitar de rostos e de falsa juventude, ou mesmo desse renovar de listas inteiras de nomes de dirigentes, é que o que estes partidos verdadeiramente procuram é essa mítica “pedra filosofal” que lhes conceda não a mocidade mas a eternidade no poder. Como tristes e cansados Nicolas Flamel, descendentes de uma prática política velha e gasta que, afinal, já pouco ou nada tem para nos oferecer.