domingo, 19 de maio de 2024

A Recuperação do Humano na Era do Número



Homem Vitruviano, desenho Leonardo da Vinci, 1490

[intervenção na Azorean Spiritual Summit]

A primeira pergunta que todos nos colocamos, desde a génese da consciência e do pensamento, é a de “quem sou?”. Quem sou eu? De onde venho, para onde vou, o que faço aqui? Ou, na irónica formulação de Herman José: “De onde vimos, para onde vamos e quem é que nos paga?”.

Desde os mais antigos tempos do humano que o questionamento do Eu marca a sua própria evolução. A busca pelo conhecimento é, afinal, a essência da espiritualidade, mas também é da ciência, da filosofia e, na perspetiva junguiana do próprio Ser e do Eu. Nas palavras do nosso santo Antero, tantas vezes esquecido ou remetido para a mera categoria de sonetista, quando foi de pleno direito um dos maiores pensadores portugueses do século XIX, e não só, na abertura do seu ensaio “Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX”, publicado em três artigos na Revista Portugal, dirigida pelo seu amigo Eça de Queiroz, entre Janeiro e Março de 1890 , pouco mais de um ano antes de tirar a sua própria vida, a tiro de pistola, sentado num baco do campo de São Francisco, – “A filosofia é eterna como o pensamento humano…

Espírito e alma, corpo, consciência e pensamento são ideias, formulações da mente, tão antigas como o próprio ser humano. São, afinal, características essenciais da caracterização da própria Humanidade e sempre estiveram interligadas entre si. Não se opunham, mas complementavam-se, como peças de um grande puzzle da sabedoria e instrumentos para a indagação da realidade que é a sina e o destino de todo o Ser Humano.

Nas formulações clássicas, espírito e sopro são uma e a mesma coisa. No grego antigo a palavra pneuma refere da mesma forma o ar, a respiração e o espírito. E, como sabemos no Jardim do Éden, Deus soprou a Vida pelas narinas de Adão. Esta noção do etéreo, do impalpável, do que é sublime e incorpóreo, como elemento primeiro da Vida, da alma e, por força do espírito, como condição imprescindível e distintiva do humano, marcou ao longo de milénios a história do Homem e a sua representação. E, interessa-me aqui recuperar esta imagem eminentemente simbólica do intangível como caracterização da existência para abordar o tema da espiritualidade e da sua antítese a materialidade. Porque, como diz Manly P. Hall, notável pensador e divulgador americano do pensamento esotérico, no seu magnum opus “The Secret Teachings of All Ages” – “a mais universal linguagem é o – Simbolismo.”

Ora, durante os mesmos milénios alma e espírito, pensamento e consciência, e até mesmo ciência e filosofia, foram, eram, de certa forma sinónimos, eram complementares e indissociáveis. Hoje, neste acelerado mundo moderno e binário, onde o código, restringido a zeros e uns, é o concreto, o material, o explicável e mensurável, que domina o pensamento contemporâneo, preso na armadilha do seu racionalismo, dito, lógico e científico.

Não me interpretem mal. Com isto não estou a criticar a ciência per si, enquanto grande corpo de conhecimento, mas antes a colocar em questão um certo cientifismo atual que se entende a si próprio como único, absoluto e omnipotente. Curiosamente este processo de progressiva materialização da consciência e do pensamento, afastando-se das componentes mais etéreas da alma e do espírito, do Sopro, ou, se quisermos mesmo, do Divino, teve o seu início com uma corrente filosófica denominada Humanismo, ou para ser mais correto, com as interpretações Iluministas do Humanismo e mais tarde, aprofundadas, ou adensadas, para ser mais exato, pela chamada Segunda Revolução Científica, a atomização do conhecimento. E, é claro, com a guerrilha ideológica entre a religião e a política, entre a Igreja, o Dogma, e o pensamento e a Liberdade.

Paradoxalmente, o Humanismo é, ou foi, precisamente, aquela corrente do pensamento que colocou o Homem no centro das coisas. Que procura no humano, caminhando de certa forma para além de Deus e do divino, do Sopro, afinal, a razão e a explicação da existência. O humanismo, em suma, responde à pergunta “quem sou?” com o Homem.

Lembremos o célebre desenho de Leonardo da Vinci do Homem Vitruviano, em que as proporções do corpo humano são matematicamente descritas numa simetria perfeita extensível ao contexto do Universo. Com o Humanismo o Homem torna-se o centro do conhecimento e, por extensão, do Universo. Se bem que, muitos dos principais pensadores do humanismo renascentista, como Copérnico, Pico de la Mirandola, Galileu ou Newton, para além de herdeiros do pensamento clássico, discípulos diretos nomeadamente de Platão e Aristóteles, eram, também e ao mesmo tempo, estudiosos e defensores do pensamento hermético traduzido do Antigo Egipto, por via ptolemaica, até ao humanismo renascentista e ao século das luzes. Sir Isaac Newton, para além de autor dos Principia Mathematica e criador dos fundamentos da mecânica clássica, a origem da física contemporânea, foi, também, um dos mais importantes alquimistas da História.

Entretanto, é curioso verificar que o famoso adágio cartesiano, “cogito ergo sum”, proferido por Descartes, considerado o fundador do método científico, na sequência de Francis Bacon, ele próprio um alquimista e rosa-cruz, é, afinal, uma versão lógico-matemática da chave hermética, “o Todo é Mente a Mente é Tudo”. Mais tarde, o nosso António Damásio irá contrapor à lógica cartesiana o primado das emoções na elaboração da razão, uma subjetivação do conhecimento que foi tão inovadora como extraordinariamente próxima desse Sopro inicial, mas divago…

Em seguida ao Humanismo, o Iluminismo vai adensar, e uso o termo propositadamente, no sentido de tornar mais denso e pesado, ainda mais esta materialização da razão e do antropocentrismo da filosofia e do conhecimento. Desviando-a e afastando-a de todos os ares, ou mares, que não sejam terrenos sólidos e concretos, ou, como usa dizer-se hoje em dia, com base científica. Num tempo em que a própria ciência já deixou de ser questionamento, hipótese, para se tornar certeza e verdade, tão inquestionável como o próprio Dogma. Deus Ex-Machina

Humanismo e Iluminismo, mais do que correntes filosóficas, mas enquanto manifestações políticas, procurando contrariar a verdade divina expressa na autoridade da Igreja e do Senhor, aqui tido tanto como Deus, no altíssimo, como Rei, todo-poderoso e absoluto, vão de certa forma degenerar, creio que involuntariamente, num totalitarismo empiricista onde apenas o que é mecânico e matemático é verdadeiro, e onde o Sopro, que é a matéria do sonho, é desvalorizado e descartável.

Esta questão, aliás, da verdade científica esta na raiz de muitos dos dilemas e das perplexidades que vivemos atualmente. O método científico, baseado em evidencias, exclui o que não pode ser materializado, seja de forma empírica, seja de forma teórica ou matemática. O Sopro, feliz ou infelizmente, não é equacionável. Nem tem formulação matemática.

A este propósito talvez seja interessante regressar a Epicuro de Samos, e à Atenas do século IV a.c. que busca nos prazeres, o Epicurismo, a via para a Felicidade plena através da qual se atingiria a Ética, o estado e aspiração última da existência do Homem.

Ao longo dos séculos a ciência e com ela o conhecimento e, de certa forma, a filosofia foi-se tornando progressivamente mais concreta, objetiva, microscópica e, apesar do Bosão de Higgs, material. Embora, quase como dois opostos que se atraem, a atomização e Sopro são, afinal, espantosa e universalmente próximos. Mais uma vez, e voltando às chaves herméticas, a dualidade como princípio de todas coisas.

Não querendo fugir muito para Oriente e entrando na área que me pediram que tratasse aqui hoje, os problemas e os desafios do mundo atual, dentro de uma perspetiva mais política do que filosófica, esta materialização de que vos tenho falado tem a sua realização plena no Capitalismo.

O capitalismo tem a sua fundamentação existencial na propriedade. Na posse e no lucro. E a primeira forma de propriedade foi a propriedade da terra. O solo arável. É interessante verificar que, em estreita oposição à fundamentação judaico-cristã de matriz clássica da civilização ocidental, as tribos norte americanas opõem-se determinantemente ao conceito da posse da terra. “Nós não somos os donos da terra, nós apenas a cuidamos de uma geração para a outra, nós somos a terra” dizem-nos os anciãos Cherokee e Iroquois e todas as outras tribos da vasta américa de Thoreau e Whitman. Hoje, capitalismo e materialismo são indissociáveis, são sinónimos, entrelaçados entre si, perdoem-me o pleonasmo. O “quem é que nos paga” do Herman José, tornou-se tão ou mais importante do que o “de onde vimos e para onde vamos”.

Vivemos não já numa sociedade de pessoas, de humanos, mas de referenciais numéricos, de estatísticas, gráficos, curvas, percentagens e o exemplo mais paradigmático e dramático disso mesmo foi precisamente na pandemia. Na distopia pandémica o humano foi substituído pelo paciente, o veículo da peste, um dossier sem nome, etiquetado e anónimo, número, dado, folha de Excel.

Mas adianto-me. Ao subjugarmos as nossas vidas às normas e aos desejos do capitalismo, que se desdobra em mercantilismo, industrialismo e, essa Hidra contemporânea que dá pelo nome de neoliberalismo estamos no fundo a subjugar-nos à posse, que é terrena e material e a rejeitar, ou a pôr-nos em oposição, ao Sopro que é etéreo e universal.

Num certo determinismo capitalista aquilo que nos identifica plenamente é o que possuímos, contrariamente aos movimentos progressistas que são fundamentalmente aspiracionais, que visam a utopia, que é ela própria impalpável, ou até de certa forma irrealizável, na medida em que está sempre por cumprir, e que se encontra quase que de forma sobrenatural no campo do Divino. Do Futuro.

Esta evolução determinista, conjugada com a cada vez mais poderosa revolução científica, levou-nos a de alguma maneira identificar o humano apenas e exclusivamente com a sua formulação matemática e física. A física, aliás, passou a ser a mãe de todos as ciências, destronando a própria filosofia. E aqui entra a Segunda Revolução Científica, com a física quântica, que vem tornar ainda mais densa toda a matéria do conhecimento e, em última instância, da procura do Eu.

Os nossos sistemas políticos, tal como o capitalismo, tornaram-se fundamentalmente inumanos. As democracias contemporâneas têm a tendência para olhar macro e microscopicamente para as pessoas, que se tornam entidades abstratas, não já indivíduos, ou mesmo cidadãos, para se tornarem, grandes massas estatísticas, os eleitores, ou essa coisa imprecisa e tantas vezes mal denominada de povo. O povo, que é afinal a humanidade, assume aos olhos do político uma existência conjunta, massificada, sem a pureza individual e humana da individualidade e da liberdade de cada um.

A pandemia foi disso um exemplo muito claro quando se estripou o humano dessas suas características essenciais, como liberdade e a individualidade, para, numa chantagem horrível e fundamentalmente desumana, o salvar. Destruímos o próprio objeto que ambicionamos preservar, numa alteração completa dos princípios básicos da vida. A realidade pandémica era a consumação plena do comercialismo capitalista, onde o homem era tão e apenas só rendimento per capita.

A desumanização da existência, que confronta até a própria morte, torna-nos vazios. Ou, esvazia-nos do que nos faz humanos que é a matéria divina do Sopro. Como um balão solto da mão de uma criança perdendo o ar em reviravoltas pelo céu. Ou uma alma abandonado ascendente o corpo. Vivemos um tempo de corpos sem anima. De aparência e de ficção. Da Hiper-realidade. A era do Tik-tok que mais não é afinal do que expressão visual, cinematográfica, do algoritmo que tudo vê, tudo capta e tudo ordena…

Pessoalmente, não me considero uma pessoa espiritual, falta-me, creio, esse elemento essencial da fé. Mas, no campo de onde venho, que é afinal o terreno da História e da Literatura, a espiritualidade é a continuada e eterna busca do conhecimento, a observação e interpretação simbólica do real, é a pulsação do pensamento no coração do poema, a metáfora, a ideia filosófica, a razão do Eu.

William Blake, o grande poeta místico do período áureo do romantismo inglês, dizia que “nós não vivemos na realidade, vivemos naquilo que julgamos ser a realidade”. O que penso que Blake pretendia era exatamente apelar para a suspeição do materialismo, apontando-nos o caminho múltiplo e infinito do sonho, ou do impalpável, do Sopro. Mas não enquanto ficção ou engano. Enquanto alteridade. O Eu e o Outro. Como Alice do outro lado do espelho.

T. S. Elliot, o grande poeta americano, dizia que a “Humanidade não suporta demasiada realidade”. Demasiada matéria. E, nessa ansiedade permanente do real, hoje ainda mais sufocante do que há cem anos, na juventude de Elliot, é no regresso ao espírito, o retomar do Sopro, que se fecunda a esperança do humano.

Se o Espírito é a forma primeira do Homem, falta então recuperar o espírito para recuperar o humano. Porque a recuperação do humano é essa reconquista do espaço do irrealizável, da magia, do afeto, do sopro do amor que é a realização plena da Humanidade.

Vila Franca do Campo, 18 de maio de 2024


 

sábado, 9 de março de 2024

Para Uma Ideia de Humanidade

 

Lady Lilith, Dante Gabriel Rossetti

desafios do feminino (e do masculino) num mundo em turbulência

Começo por agradecer à Profª Amélia Lopes o muito honroso convite para estar aqui hoje. Embora confesse que para mim foi uma surpresa, este convite. No mundo de hoje, tão propenso aos cancelamentos do tipo woke, ter um “velho homem branco” a falar sobre mulheres e sobre o feminino é não só surpreendente como até mesmo pode ser visto como um ato de vandalismo ofensivo, ou então um ato de bravura. Se bem que, na condição de neto, filho, marido e pai de duas raparigas, poderei ser talvez uma espécie de súbdito voluntário do império da mulher. Um subordinado militante do Divino Feminino, por assim dizer, o que, afinal possa constituir qualificação suficiente para falar sobre a mulher e o homem, a feminilidade em vez de feminismo, uma vez que os dois não devem ser confundidos, e a importância destes dois polos aparentemente antagónicos, mas que convergem e divergem, ao longo do vasto universo da História da Humanidade.

O pedido que me foi dirigido foi que abordasse os desafios que se nos colocam hoje, num mundo em turbulência, enquanto homens e mulheres, e principalmente a questão da igualdade, ou, por antinomia, da desigualdade entre homens e mulheres. O que me levou a pensar num outro título, que considerei dar a esta exposição, que foi - Para Uma Ideia de Humanidade – e estou aqui hoje acima de tudo, precisamente, como um Humanista. No sentido em que a ideia principal subjacente à razão de Ser é, justamente, o Humano e o humano só o É enquanto expressão da dualidade efetiva e permanente entre masculino e feminino. E, na minha modesta opinião, é dessa dialética permanente, entre Homem e Mulher, masculinidade e feminismo, que nasce o progresso e a evolução do Ser Humano enquanto entidade unificada. Sendo que, nesta perspetiva, poder-se-á dizer que o feminismo, afinal, está ele mesmo, desde logo, inserido nesta ideia de Humanismo verdadeiro, ou Humanismo Pleno, de que gostaria de vos falar.

E, é por estas duas motivações, a de um humanista que vive diariamente sob o signo do feminino, que gostaria de começar a minha intervenção, nesta III Cimeira Feminina, com uma pequena provocação.

Às mulheres que procuram ser iguais aos homens falta-lhes ambição.”

Esta frase de Timothy Leary, o grande mago do psicadelismo dos anos sessenta, a quem o presidente Nixon apelidou de “o homem mais perigoso da América” e, perdoem-me, é um “velho homem branco”, como seria hoje classificado pelas mais radicais defensoras do feminismo woke, revela, para mim, aquela que é, ou deveria ser a essência do feminismo, ou como mais à frente procurarei revelar, do tal Humanismo Pleno, que é, não a igualdade, per si, um valor não obstante fundamental para um progressista como eu, mas a superação e, em última instância, a transcendência, que é a aspiração última do Humano, a ambição de uma possível utopia de integração do género pela sublimação do mesmo, por mais contraditório isto que possa parecer à primeira vista.

Nesta abordagem ao “feminismo”, visto numa perspetiva histórica, ou historicista, socorro-me de um outro “velho homem branco”, o grande historiador Fernand Braudel que disse que a “História se podia dividir em três movimentos: aquilo que se move rapidamente, o que se move vagarosamente e aquilo que aparenta não ter qualquer movimento”. Ora a História das relações entre o Homem e a Mulher poderia, aparentemente, inserir-se nesta última categoria, ou seja, uma longa e ancestral história de conflito e desigualdade entre os sexos que se mantêm inalterada ao longo dos séculos. Mas, ao contrário do que se possa pensar, ou do que é geralmente difundido, na maior parte das vezes por homens, na história da Humanidade, e na nossa cultura ocidental, em particular, a ideia, ou a causa feminista, ou do feminismo, não nasce daquilo que se pretende instituir como uma profunda e ancestral desigualdade entre homem e mulher, que se perpetuaria ao longo de milénios desde o início dos tempos. O feminismo, tal como o conhecemos atualmente, como movimento de emancipação e libertação da mulher, e não são uma e a mesma coisa, é uma causa relativamente recente, em termos históricos, surgindo sensivelmente ali em meados do século dezanove, tem, portanto, pouco mais do que cento e cinquenta anos, e é filho, ou filha, do casamento tumultuoso e nem sempre profícuo entre a Revolução Industrial e o Capitalismo moderno.

Aquela que é conhecida como a primeira vaga do feminismo foi um movimento essencialmente anglo-saxónico que grassou pelo Reino Unido e os Estados Unidos da América, na segunda metade do século dezanove, e que procurava fundamentalmente nos seus primórdios conceder à mulher direitos sobre a propriedade, a riqueza e o capital, só mais tarde buscando o direito da representação legitimado no voto. De certa forma, apesar de perigosa e excessivamente simplista, podemos dizer que o feminismo é, em parte, o culminar dos ideais do Iluminismo revolucionário francês e do Liberalismo constitucional de raiz britânica, o que faz dele um movimento essencialmente político e económico com génese relativamente recente.

Antes desse tumulto oitocentista, a História fez-se livre desses rótulos de “feminismo” ou de “masculinidade tóxica” com que hoje olhamos para o mundo. Sem as caracterizações pop, ao estilo Bridget Jones, de que “os homens são de Marte e as mulheres são de Vénus”. Aliás, e para quem conheça essas matérias, Vênus e Marte governam-nos por igual, tanto a homens como a mulheres. Na verdade, e durante muitos milénios, homens e mulheres caminharam lado a lado, muitas vezes de mãos dadas, pelos percursos da História digladiando-se e amando-se em igual proporção e, principalmente, dando vida, literalmente, à História da Humanidade, envolvidos num fogoso e por vezes intenso amplexo feito de paixões e amizades, discussões e rivalidades, sexo, ódios e, necessariamente, amor…

Mas, se calhar, o melhor será começarmos esta história pelo seu princípio, e no princípio de tudo estava, não o Verbo, não Deus…, mas a Mulher. Neste caso concreto a Vénus de Willendorf. A Vênus de Willendorf é uma pequena estatueta em calcário com de cerca de 11 centímetros representando uma mulher de seios fartos, corpo volumoso e vulva protuberante que os arqueólogos associam, embora não sem alguma discordância, a ritos ou idealizações da fertilidade, e que, o dado aqui mais significativo, foi datada de há aproximadamente 25 mil a 30 mil anos, o que faz desta pequena mulher um dos mais antigos artefactos artísticos feitos por mão humana. A Vénus de Willendorf foi descoberta no início do século vinte na Áustria. Mais recentemente, em 2008, foi encontrada na localidade de Schelklingen, na Alemanha, uma outra pequena estatueta, neste caso feita de marfim de mamute, com cerca de 6 centímetros, representando, mais uma vez, uma figura feminina, de corpo voluminoso e seios salientes, que os antropólogos associam ao mesmo tipo de ritos da fertilidade e longevidade, e a que deram o nome de Vénus de Hohle Fels e que foi datada de há cerca de 40 mil a 45 mil anos, no início do Paleolítico Superior. A importância destes artefactos, que pela sua dimensão se crê fossem usados como amuletos, prende-se com a representação do feminino, da fertilidade, da longevidade, e da própria criação do humano como sendo condição e apanágio da mulher. Ou seja, no contexto daquilo a que podemos chamar os primeiros traços de civilização, as representações artísticas, a capacidade para a abstração, nas tribos de caçadores recolectores do Paleolítico Superior, as conceptualizações artísticas e ritualísticas das primeiras tribos humanas, pelo menos aquelas que chegaram até nós, incidiam sobre a fertilidade e o feminino e na representação da mulher. A mulher que dá à luz, que engorda e se sedentariza, a mulher que envelhece, que, essencialmente, sobrevive e que faz sobreviver a tribo. A mulher, não como subproduto ou inferior ao homem, mas como origem e princípio de todas as coisas. Uma espécie de longo e significativo Matriarcado pré-histórico, se quisermos. Ao longo de milénios, até aos alvores da civilização, o homem e a mulher são, foram, um binómio indivisível de equilíbrio na preservação da tribo, da espécie, do Humano. Um caminho que é relativamente seguro dizer que durou mais de 40 mil anos, até ao alvorecer da Idade do Bronze.

É seguro dizer, também, que é com a sedentarização e a urbanização, com o advento da revolução agrícola, e o que ela traz de subjacente de propriedade da terra, que os papéis do Homem e da Mulher, no contexto social e político, se irão progressivamente alterar, ou adulterar, se quisermos ser mais exatos. Tal como Rosseau nos indica no seu “Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens” de que “os frutos são de todos, e a terra de ninguém”. A propriedade é a mãe de todas as desigualdades. E, ao longo dos últimos 5 mil anos, das cidades aos reinos, dos feudos às nações e, finalmente, ao Estado as tenções políticas e sociais entre homens e mulheres vão-se sucessivamente agravando no sentido de transfigurar o papel da mulher e de impor uma visão mais redutora e mais desigual do seu papel nas sociedades, contrariamente ao que haveria sido uma tradição milenar anterior e, contrariamente também, ao que se poderia entender como a ordem natural da História da Humanidade, em que homens e mulheres são elementos igualmente importantes nessa evolução. E, é interessante verificar que na escala de valores da idealização do feminino a fertilidade irá dar lugar à castidade, porque a castidade é a forma inicial de assegurar a linhagem e a linhagem, ou o vínculo, são a primeira forma de assegurar a transmissão da propriedade.

Voltando outra vez ao início, a outro início, o das mitologias fundadoras da nossa civilização, mais especificamente no seu pilar judaico-cristão, a mulher, ou as mulheres, cumprem, ou cumpriram, na verdade um papel fundamental, se bem que o mesmo tenha sido sucessivamente e muito politicamente recalcado, ao longo dos últimos dois a três mil anos, pelas hierarquias das diferentes Igrejas e Religiões. Harold Bloom, talvez o mais importante crítico literário do nosso tempo, e em grande medida o símbolo maior do que significa ser-se um “velho homem branco”, arriscou, inclusive, dizer que o conjunto dos primeiros livros da chamada Bíblia Hebraica - Genesis, Êxodo e Números - que na tradição cristã compreendem o grosso do Antigo Testamento, e a que chamou o Livro de J, teriam sido escritos por uma mulher, mais especificamente, uma cortesã da corte do rei Roboão, filho de Salomão, no reino da Judia, cerca do ano mil antes de Cristo. Bloom irá mesmo ao ponto de afirmar que: “A misoginia no Ocidente é uma longa e sombria história de fracas e equivocadas interpretações da cómica J, que exalta as mulheres em toda a sua obra, e nunca mais do que nesta história deliciosamente irónica da criação.”

Ora, se escavarmos ainda mais nesta tradição judaico-cristã encontraremos ainda uma outra e superiormente relevante figura feminina – Lilith, a primeira mulher. De acordo com as mais antigas tradições judaicas Lilith é a primeira mulher de Adão, criada ao mesmo tempo e da mesma forma que ele, do barro da terra, moldada pelas próprias mãos de Deus, e não da costela de Adão, como Eva. As mesmas tradições referem também a revolta de Lilith perante Adão, recusando subjugar-se a este, a literalmente deitar-se debaixo dele, por ser igual a ele, abandonando por isso, ou sendo expulsa, do Jardim do Éden, as versões variam, e tornando-se, desde então, numa espécie de demónio, identificada com a serpente, instigadora e símbolo principal da queda da Humanidade. Noutra versão, Lilith tornar-se-á mesmo esposa de Samael, o Anjo da Morte, o veneno de Deus, o sedutor, o acusador, o Deus-cego e destruidor. O verdadeiro Satanás. À luz do dogma judaico-cristão, portanto, a mulher que se recusa a submeter ao homem passa a ser vista como uma representação do mal, um demónio pérfido e pernicioso, lenta e progressivamente obscurecido ao longo dos últimos milénios.

Já na tradição Suméria, a mais antiga civilização que conhecemos, cerca de 4500 anos antes de Cristo, Lilitu era igualmente um espírito ou um demónio, associado à Lua, representando as suas diferentes fases e estados de espírito, umas vezes benigna outras maligna, e o que pode haver de mais feminino. Mas, ao mesmo tempo, na tradição Suméria, nomeadamente no Épico de Gilgamesh, o mais antigo texto escrito que conhecemos, é uma Deusa, de nome Aruru, a mãe da Humanidade. É uma mulher quem cria o mundo e cria os homens e as mulheres moldados, pela sua mão, do barro da terra, tal como Deus fará na tradição judaica.

No fundo o que aqui me importa assinalar é a profunda e relevante importância da mulher, do chamado Divino Feminino, na nossa cultura e de como essas primeiras mulheres, fossem reais ou imaginadas, eram seres livres e poderosos e iguais em importância e estatuto ao próprio homem, sendo na progressiva sedentarização das sociedades e sedimentação dos dogmas da Religião e da Igreja, que são, na verdade, formulações políticas e económicas, que essa relevância vai ser posta em causa e que a relação da mulher com o homem vai sofrer a adulteração, e uso a palavra propositadamente, que conhecemos hoje.

Regressemos então ao Jardim do Éden e ao livro do Génesis que, recordo, de acordo com Harold Bloom, foi muito certamente, primeiramente, escrito por uma mulher. Depois de Deus, Jeová, ter criado o céu e a terra, Jeová deu forma a um homem do barro da terra e soprou-lhe o vento da vida pelas narinas e o homem tornou-se carne. A seguir Jeová plantou um jardim. Da terra cresceram as árvores boas de se ver e boas de se comer e nesse jardim estavam duas árvores, a árvore da vida e a árvore do bem e do mal, mais especificamente a árvore do “conhecimento” do bem e do mal, da qual o homem não se deve aproximar nem comer o seu fruto. Então, percebendo que não era bom o homem estar sozinho Jeová criará os animas da terra e os pássaros do ar e os seus nomes ser-lhe-ão dados pelo homem, mas entre eles não se encontrava o parceiro do homem. Então Jeová coloca o homem num sono profundo e retira-lhe uma costela e dessa costela dá forma à mulher e coloca-a ao lado do homem. “Este é osso do meu osso, carne da minha carne” diz o homem “mulher lhe chamarei, do homem ela foi separada. Tal como o homem se separa da sua mãe e do seu pai e se une à sua esposa; eles são uma só carne”. São, portanto, iguais, homem e mulher, e de se conhecerem, atenção ao termo, conhecer carnalmente neste caso, Eva, a mãe de todos os homens, conceberá, tal como Jeová havia concebido, Caim e depois Abel. É importante perceber e realçar que o conhecimento entre o homem e a mulher é também o conhecimento entre o bem e o mal. O resto da história penso que saberão, mas o que me interessa destacar aqui é que neste texto original, em hebraico, homem e mulher são em tudo iguais, carne da mesma carne e são tão criadores como Jeová, no conhecimento que completam um do outro. O Homem deu nome a todas as criaturas da terra e é da ligação entre o homem e a mulher, Adão e Eva, que nasce toda a Humanidade. Homem e Mulher, juntos.

Se olharmos a História ainda noutra perspetiva, a da História como o relato dos grandes acontecimentos e personalidades, a ideia da importância e da relevância da mulher ao longo do tempo, da História e da Literatura, atravessa toda a nossa Cultura Ocidental, e não só. Os primeiros poemas clássicos, a Ilíada e a Odisseia, nascem por causa de mulheres. O rapto de Helena, filha de Zeus, a mais bela mulher da terra, por Páris príncipe de Troia, despoletando uma sangrenta guerra, está na génese da Ilíada. Já a Odisseia relata-nos as atribulações de Ulisses, na sua viagem de regresso a Ítaca e, principalmente, de regresso aos braços da sua amada esposa Penélope que se mantém sempre fiel a Ulisses afastando todos os pretendentes com sábios estratagemas. A primeira, Helena, símbolo da beleza e da determinação. A segunda, Penélope, caracterizada como astuta e inteligente. Atributos que devem ser lidos como uma visão enaltecida do feminino, longe do que poderíamos supor ser uma visão desdenhável ou aviltante da mulher e da sua importância na história e na sociedade.

No Antigo Egipto, Hatshepsut, esposa de Tutmós II, foi designada faraó após a morte do marido, tendo governado o Egipto por quase vinte anos, cerca de mil e quinhentos anos antes de Cristo. Talvez uns duzentos anos mais tarde, na 18ª dinastia, Nefertiti governou ao lado do seu marido Akenaton e acredita-se que tenha sido faraó após a morte deste e até à maioridade do seu filho Tutankhamnon. E, obviamente, Cleópatra, a última imperatriz do império Ptolemaico, educada pelo filosofo Filóstrato, que falava oito línguas e foi amante de Marco António, e seduziu Júlio Cesar, e que ficou na História não só pela sua beleza, mas principalmente pela sua astúcia e inteligência.

No livro dos Juízes, do Antigo Testamento, encontramos Debora, Juíza, que libertou o povo de Israel do jugo de Canaã. Na Grécia Antiga, uma sociedade reconhecidamente misógina e esclavagista, temos ainda assim algumas mulheres que se destacaram, desde logo a grande poetisa Safo de Lesbos, ou as pitonisas, sacerdotisas do oráculo de Delfos, que gozavam de amplo estatuto e reverência. Artemísia de Cária, rainha de Halicarnasso, que comandou a armada persa de Xerxes na batalha de Salamina. E, Platão, na sua República, advoga uma igualdade plena entre homens e mulheres na organização do estado. Mais tarde, já na nossa era, Hypatia de Alexandria, enorme matemática, astrónoma, filósofa, será assassinada por cristãos fanáticos no ano de 417.

No Oriente, também, a mulher se destaca como elemento proeminente da história e das sociedades. Cadija Alcora, primeira mulher de Maomé, grande comerciante e mulher de destaque na sociedade da altura, apelidada da “mãe dos crentes”.  Ou Aisha, terceira mulher de Maomé, guerreira e libertadora dos Sunitas. E, também, Fátima, filha do profeta, poetisa, a dos nove nomes, “a sincera”, “a abençoada”, “a casta”, “a pura”, “a contente”, “a agradável”, “a falada por anjos”, “a radiante”, o que dá bem conta da sua importância, e esposa de Ali Ibne Abi Talibe, primo de Maomé e primeiro Iman dos Xiitas. Ou, mais a Oriente, Yeshe Tsogyal, a mãe do Budismo tibetano, que viveu entre os anos 757 e 817 e que ficou conhecida como “a imperatriz do Lago do Conhecimento”. E mais para lá, no Oriente do Oriente, na mitologia da criação japonesa, cinco pares de deuses, masculinos e femininos, irmãos e irmãs, maridos e mulheres, que por sua vez convocaram Izanami e Izanagi, Mulher e Homem, que dão origem ao arquipélago do Japão, onde entre os anos 600 e 770 da nossa era o “país do sol nascente” viria a ter uma sucessão de cerca de 7 imperatrizes.

O que pretendo assinalar com estes exemplos de mulheres transcendentes, no sentido em que se superaram a si mesmas e à sua condição de mulheres, numa História dita de homens, e de mitologias predominantemente mistas, que convocam tanto o feminino como o masculino, é que muitas vezes a narrativa mais fácil, ou aquela que nos é acometida, não é a verdadeira, não é a real. Muitas vezes os factos desmentem a própria História. Isto não quer dizer que a História, e as sociedades, não sejam muitas vezes patriarcais, nem que, pelo facto de algumas sociedades terem sido comprovadamente matriarcais, não haja uma tentativa, principalmente da História mais recente, de masculinizar, por assim dizer, o caminho da história humana, talvez por isso mesmo seja tão importante hoje, relembrar e celebrar estes exemplos femininos que se sublimaram imprimindo os seus nomes e exemplos nos cânones e no curso da vida e da história humana, para não cairmos em extremismos básicos, ignorantes e muitas vezes cegos e violentos.

E esses exemplos continuam ao longo do tempo. Lívia Drusila, mulher de Augusto primeiro imperador de Roma. Ou Agripina, mãe de Calígula. Teodora, mulher de Justiniano e Imperatriz do Imperio Bizantino. Leonor de Aquitânia, que viu o seu casamento com Luis VII de França anulado pelo Papa para se casar com Henrique II de Inglaterra, de cujo casamento viria a nascer o grande Ricardo o Coração de Leão. A inesquecível Joana d’Arc padroeira da França, heroína e mártir da Guerra dos Cem Anos. Outra Joana, Johanna Ferrour, líder da revolta dos camponeses da Inglaterra feudal. Ou Isabel a Católica, Rainha de Castela e Leão, obreira da última reconquista aos mouros e madrinha das conquistas dos novos mundos de Cristóvão Colombo. E a lista poderia ser interminável seguindo infinitas cronologias onde sempre, junto, não por detrás, par a par com os grandes reis, com os grandes líderes, se impuseram, igualmente, a força e a influência de grandes, enormes, mulheres. Ou, como bem expressou o comediante americano Jim Carrey – “por detrás de cada grande homem há uma mulher a revirar os olhos”…

E em Portugal? Portugal é desde logo uma nação “mariana”. E já iremos a Maria, mas desde a sua fundação que Afonso Henriques consagrará Portugal à Virgem Maria e ao Culto Mariano. Afonso Henriques que, aliás, faz construir um país em revolta edipiana contra a sua mãe, Dona Teresa, na batalha de São Mamede, que havia sucedido, como viúva, ao seu marido, o Conde D. Henrique no governo do então condado portucalense e que alguns historiadores consideram hoje ser mesmo a primeira Rainha de Portugal. E esta história nacional far-se-á numa sucessão de grandes mulheres, muitas vezes injustamente esquecidas ou subvalorizadas. A rainha Santa Isabel, mulher de D Dinis, a do milagre das rosas. Dona Inês de Castro, rainha do coração de D. Pedro. Brites de Almeida a Padeira de Aljubarrota. Dona Filipa de Lencastre a mãe da ínclita geração. A nossa Brianda Pereira, heroína da Batalha da Salga. D Maria I, que embora viesse a ficar conhecida como a Louca, foi efetivamente a primeira rainha portuguesa e ficou na História como arqui-inimiga do absolutista Marquês de Pombal, tendo esse sido mesmo um dos seus primeiros atos no seu reinado, a destituição do Marquês, por causa do processo dos Távoras. E Dona Maria II, filha de D Pedro IV, líder dos Liberais, padroeira do teatro nacional e, entre outros dignos feitos, mãe de 11 filhos em 16 anos.

Não querendo ser acusado de ligeireza, ou de excessivo desembaraço na corrida contra o tempo da história, deixando de fora tantas outras notáveis mulheres, como a Marquesa de Alorna e D Carlota Joaquina, Beatriz Angelo ou Florbela Espanca, Ana de Castro Osório e Maria Melena Vieira da Silva, ou Sophia e Agustina, seria impossível referir todas, permitam que destaque, por fim, nestes 50 anos do 25 de Abril, 4 mulheres, ou talvez 5, sem as quais a revolução, se não impossível, certamente seria outra. A primeira é, a nossa, Natália Correia, incansável lutadora pela liberdade que, com a coragem que a caracterizava, apadrinhou a edição de um livro, escrito a três mãos, por três mulheres, igualmente corajosas, chamado as “Novas Cartas Portuguesas” e que seria alvo de um mediático processo judicial que consolidaria o desgaste e a erosão do regime, fruto da vil censura a que foi sujeito. Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno são as 3 Marias que completam com Natália este quase matriarcado da revolução portuguesa, revolução essa que também não seria possível sem a participação de uma quinta mulher, ou uma supra-mulher, o sagrado feminino se quisermos, representado pelas mães, as irmãs e as mulheres dos quase 800 mil soldados portugueses mobilizados no ultramar, entre 1961 e 1974, e cuja relevância na constituição do quadro mental que levaria à sublevação militar dos Capitães de Abril não está ainda devidamente estudada e valorizada.

Ou seja, o que é que podemos inferir destes destaques que vos apresento? Essencialmente que o progresso da Humanidade, e tenhamos em conta que Humanidade é um substantivo feminino, seria impossível sem a ação de homens e de mulheres e que é do seu acontecer conjunto que essa mesma evolução se constrói. Homem e Mulher, masculino e feminino, estão no centro da roda e do movimento do devir humano e são inseparáveis desse mesmo movimento, desse conhecimento. Dai que a questão da igualdade, que não é necessariamente igualitarismo, entre homens e mulheres, ou da sua emancipação, seja tanto uma construção como uma constrição moderna e essencialmente materialista, ou até mesmo uma castração, alicerçada numa visão utilitária da história, feita na conquista de direitos, na posse, por oposição à visão humanista, feita de aspirações, ambições e capacidades. A Humanidade é, no fundo, o conjunto, o equilíbrio se quisermos, das forças, das energias, das oposições e das interligações, entre o masculino e o feminino. E os grandes desafios, como o individualismo, a vertigem da quantificação e da informação, a ditadura do instante e do presente, ou a chamada erosão do género, que se colocam hoje à Humanidade, colocam-se em igual medida a homens e mulheres e só poderão ser superados pela inclusão, integração e o equilibro entre essas duas forças, sendo que, em alguns casos, as mulheres, enquanto portadoras gestacionais da própria vida, enquanto protetoras, cuidadoras da vida, estarão até talvez mais bem preparadas para os ajudar a superar. Se bem que, ao mesmo tempo, outros haverá em que a deturpação contemporânea do feminino, tido já não como proteção, mas como posse, a linha ténue entre proteção e possessividade na maternidade, por exemplo, é um problema largamente identificado na psicologia, poderá levar a um agudizar desses mesmo desafios e dessas crises.

Aqui gostaria de regressar, por breves instantes, a dois ícones fundamentais da caracterização da feminilidade e que comportam dentro de si e nas suas nuances muita da essência do Arquétipo Feminino e daquilo que é hoje esta luta pela sua representação – Maria e Maria Madalena. E que, como já referi, explicam também, na medida em que foram sendo manipuladas politicamente pela religião, o ponto em que estamos hoje na dita “guerra dos sexos”.

Maria carrega desde logo dois princípios fundamentais do feminino; a pureza, na ausência de pecado, a castidade, e o da maternidade, na forma da dedicação ao filho. Maria, a Virgem Maria, imaculada pelo conhecimento carnal, é a escolhida por Deus para ser a mãe do Filho de Deus na Terra e para ser a sua educadora e cuidadora e Maria, a Maria cristã, é assim o símbolo da separação entre o Homem e Deus e, principalmente, entre Homem e Mulher. Maria não precisa de “conhecer” o Homem para gerar o descendente de Deus. Uma luta infinita que ocupara a Igreja durante quase dois mil anos até o dogma da imaculada conceição ser solenemente consagrado pela bula Ineffabilis Deus pelo papa Pio IX em 1854. Curiosamente, mais ou menos ao mesmo tempo em que o socialista libertário, e humanista, francês François Fourier andará a inventar a própria palavra “feminismo” nas suas críticas diretas ao cristianismo e ao dogma do pecado original. Fourrier escreverá que: “O progresso social e as mudanças do período histórico ocorrem em proporção ao avanço das mulheres em direção à liberdade, e o declínio social ocorre como resultado da diminuição da liberdade das mulheres.”

Intrinsecamente ligada a Maria e à História do feminino está outra mulher relacionada com Cristo, mas substancialmente menosprezada ou mesmo censurada, que é Maria Madalena. Se Maria é pureza e castidade, Madalena será pecado e, acima de tudo, sexualidade. E é como pecado, na sequência de Lilith, que será tida pela hierarquia da Igreja ao longo dos séculos, ao ponto do seu Evangelho ser considerado apócrifo. Ironicamente, ou talvez não, aquela que é tida, pela própria Bíblia, como a mais devota e significativa discípula de Jesus é-lhe retirada a condição de apóstolo, e do seu Evangelho, onde se lê, a palavra de Jesus destruindo um dos dogmas fundamentais da doutrina cristã, a inexistência de pecado, a Igreja tudo fará para que não seja lido e, palavra iniciática, conhecido. Porque o pecado é a origem da culpa e se a lei é uma forma de organização a culpa é uma forma de controlo. E importa lembrar que o pecado original é precisamente o fruto do conhecimento do bem e do mal, que o Salvador, Jesus, diz-nos Maria Madalena no seu Evangelho, quanto questionado por Pedro: “Uma vez que nos explicaste tudo, diz-nos ainda mais isto: o que é o pecado do mundo?” O Salvador responde: “Não existe pecado. Mas sois vós que cometeis o pecado quando fazeis o que é semelhante à natureza do adultério, que se chama «pecado».

É assim, muito por via do dogma religioso que a opressão política do feminino se vai instituir no pensamento e na sociedade patriarcal como forma de controlo da propriedade. Tornando-se, com a Revolução Industrial e com a introdução da mulher nas forças produtivas, num instrumento também de opressão do proletariado pelo poder do capital. E, chegamos assim aos dias de hoje, onde se questiona qual o papel da mulher, qual a sua representatividade nos lugares de poder e se criam quotas e exceções para assegurar descriminações positivas no acesso da mulher e do género, já entendido como para lá do feminino, numa endoutrinação woke, nos diversos setores da sociedade.

Uma questão fundamental aqui a ter em conta é a questão da interdependência, ou da “alteridade”, de certa forma, em que homem e mulher são vistos como sendo já totalmente independentes um do outro e não como interdependentes entre si. Ou seja, nas sociedades contemporâneas o lugar do homem e da mulher, o lugar do feminino e do masculino, não se interrelacionam entre si e afirmam-se quase por oposição um ao outro e já não cuidando um do outro, um aspeto fundamental, que o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, felizmente um jovem e asiático, embora homem, caracteriza como “a sociedade do cansaço” onde a constante procura do sucesso individual nos priva do encontro necessário e imprescindível com o outro, “A pessoa sente-se livre nas relações de amor e amizade. Não é a ausência de laços, mas os próprios laços que nos libertam. Liberdade é uma palavra que diz respeito às relações por excelência. Sem apego não há liberdade.” Apego esse que, diria eu, é não mais do que o encontro com o outro, cuja forma primeira é a do conhecimento entre o masculino e o feminino, de homem e de mulher. Atenção que com isto não estou a fazer qualquer juízo de valor sobre outras formas de alteridade, nem de censura da projeção de outras formas de relacionamento, para lá do binómio homem e mulher, estou apenas a salientar que a recusa ou a imposição do género sobre a existência, da condição sexual sobre a individual, levará em última instância, na minha opinião, à própria destruição do género, à destruição da essencialidade do feminino e, por maioria de razão, também, do masculino e com isso talvez até da própria condição do Ser Humano.

Do ponto de vista da política e da questão da representatividade das mulheres na política a ideia de que, por um lado elas estão sub-representadas ou, por outro lado de que elas estariam melhor capacitadas para a atividade política encerra, na minha perspetiva, um problema essencial que é a perda da liberdade. A limitação da escolha individual, sendo que numa sociedade totalmente livre homens e mulheres devem estar onde desejarem e puderem estar. Ao procurar libertar a mulher a sociedade estará a, de certa forma, oprimi-la para ocupar um lugar que lhe é imposto e não escolhido por si. E a liberdade é a aspiração última do humano.

Como procurei demonstrar atrás, a participação das mulheres na História não se fez com predeterminações, mas com desígnios individuais. O papel das mulheres na política foi feito das suas próprias escolhas pessoais. Eleanor Roosevelt, Rosa Parks, Indira Ghandi, Golda Meir, Benazir Butho ou Maria de Lurdes Pintasilgo são mulheres que se afirmaram politicamente e na política sem quotas ou ações afirmativas, apenas pela sua vontade e força pessoal e individual. Da mesma forma, outros exemplos haveria para se contestar a ideia ilusória de que por se ser mulher se estaria mais apto para exercer cargos de decisão ou governação, como creio que os exemplos recentes de frieza e de autoritarismo de mulheres como Jacinta Arden, primeira-ministra da Nova Zelândia durante a pandemia, ou Christine Lagarde à frente dos destinos financeiros do Mundo e da Europa, ou a Sra. Von Der Leyen, que recentemente fez aprovar a “economia de guerra europeia” e a diretiva europeia de serviços digitais e os seus limites à liberdade de expressão, de certa forma demonstram sobejamente. Homens e mulheres carregam dentro de si qualidades e defeitos. São igualmente marcados pelo conhecimento do bem e do mal e, como todos sabemos, por exemplo, não é a condição de mãe que faz automaticamente uma boa mãe, mas antes a prática do bem que nos faz bons pais ou boas mães. E, que nos faz, essencialmente, humanos.

De certa forma o feminismo hoje, tal como outras formas de reivindicação de género, de raça, ou de afirmação de escolhas ou visões sociais, tornaram-se uma forma contraditória de constrangimento individual, de aprisionamento de liberdades e das potencialidades e das escolhas de cada um, quase como se uma infinita e cega busca da liberdade se fechasse afinal num ciclo de clausura e de fanatismo em que a cegueira do dogma volta enfim a restringir e censurar aquilo que buscava libertar.

Talvez o maior desafio do nosso tempo seja a reconquista dessa primordialidade do feminino e do masculino, entendidos como equilíbrio entre si mesmos, e expressões puras da liberdade individual. Da identidade do Humano. Uma sociedade que não procure a erosão dos sentidos ou dos géneros, mas a afirmação da diferença como aceitação da individualidade e, nela, da humanidade. Uma sociedade não de conceitos pré-estabelecidos, ou preconceitos instituídos, mas de indivíduos livres, que se conhecem na e pela sua diferença. Uma sociedade enfim do amor, da paixão, do prazer, da ligação entre pessoas, entre homens e mulheres, de todos os géneros. Uma sociedade de pessoas. Porque não há nada mais importante, ou poético, na vida do que a liberdade de Ser. E, como nos disse Antero nas suas “Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX”: “O Universo aspira (…) à liberdade, mas só no espírito humano a realiza. É por isso que a história é especialmente o teatro da liberdade”.

A História da Humanidade é, então, uma história de aspiração pela liberdade, uma liberdade tanto individual como, por vezes, uma liberdade coletiva, mas uma liberdade que é essencialmente alicerçada na relação entre Mulher e Homem. Nas suas conquistas e nos seus sacrifícios, na sua disputa como no seu amor, no seu devir conjunto e eterno. A libertação da mulher, tal como a do homem, no sentido uno do Humano, far-se-á da sua interligação, da sua comunhão, liberta de quaisquer amarras e constrangimentos, mesmo aqueles que se afirmam como libertadores, na tentativa de alcançar o conhecimento e uma ideia de Humanidade Plena.

Termino com este belo e seminal poema de Maria Teresa Horta:

Sou feita de muitos

nós

desobediência e meio-dia

Sou aquela que negou

aquilo

que os outros queriam

Disse não à minha sina

de destino preparado

recusei as ordens escusas

preferi a liberdade

e vivo deste meu lado”.

 

Muito obrigado.

Vila Franca do Campo, março de 2024.

         texto da participação na III Cimeira Feminina

         Teatro Micaelense, 8 de março de 2024


domingo, 12 de novembro de 2023

Carta a um Amigo

                Meu Muito Querido Amigo,

                Apanha-me este teu amável e honroso convite, para que contribua com um texto para o próximo número da GROTTA, num momento particularmente complexo da minha vida. O meu tempo parece que se esvai em turbilhão rápido e intempestivo, dividido entre as solicitações inadiáveis do trabalho propriamente dito, há que agarrar os turistas enquanto eles ainda cá estão e, acima de tudo, enquanto cá continuarem a querer vir, passado que parece estar o Inverno covídico, e este novo projeto, que um pouco inadvertida e surpreendentemente abracei, de tentar fixar em livro e documentário uma História do Surf nos Açores, que muito gozo e labor me tem dado, mas que me deixam com a sensação de que corro atrás de um futuro que não se materializa, na vã tentativa de corporalizar o intangível, de eternizar a própria espuma das ondas, como se estendesse encarecidamente a mão a um nevoeiro intocável e inalcançável, sem nunca ter tempo para efetivamente nada e sem que nunca nada se chegue ao alcance dessa mão.

                Acresce a isto tudo o caso arrepiante dos últimos dois anos, que foram profundamente angustiantes, como sabes, e, acima de tudo, enormemente dececionantes para mim. Toda a histeria pandémica, a distopia sanitária em que a humanidade se mergulhou, o ter que assistir desesperado ao mundo descendo voluntariamente ao calabouço da mais vil opressão e tirania. O pânico vendido às massas como guião oficial da narrativa do Estado. O soçobrar da razão, da civilização, às mãos do cientismo barato e da demagogia populista da política contemporânea rendida à manipulação vil do ser humano pela insanidade covidiota. Tudo isto destruiu-me por dentro, e creio que talvez nos tenha verdadeiramente destruído a todos, enquanto comunidade, enquanto entidade social, emocional e animicamente. Ao que se acrescenta, ainda, o verdadeiro assassinato a sangue-frio perpetrado pelo Estado ao meu modo de vida. Os inconcebíveis e irracionais confinamentos, que destruíram uma indústria feita de amabilidade, a indústria da hospitalidade, como acertadamente lhe chamam no mundo anglo-saxónico. Como poder exercer uma profissão de pessoas quando os governos as impediram de existir, de sair à rua, de se relacionarem entre si e de conviverem umas com as outras? A loucura pandémica matou, por dois longos anos, a fraternidade entre os humanos e fez colapsar aquela que é, talvez, a mais importante atividade de interpelação e concórdia entre as pessoas – o Turismo.

                Agora, corremos todos atrás de uma mirífica recuperação, ofegantemente ansiando por um regresso a um passado que nunca regressará, tentado salvar a pele e a vida, dos nossos negócios, das nossas famílias, não entendendo que o mundo nunca mais será o mesmo. Não, não andará tudo bem, o mundo não voltará para trás, num qualquer novo normal feito das mesmas soluções gastas, intolerantes e segregadoras. Que dividem em vez de juntar, que rotulam e separam, em lugar de congregar. O livre transito dos detentores do passaporte vacinal e os negacionistas, espécie de novos párias contemporâneos portadores de uma peste libertária. Recusamos compreender que nunca nada volta para trás e que o futuro será sempre feito de outros desejos, outras e novas formas de estar na vida e no mundo.

E nós, aqui nos Açores, em São Miguel, particularmente, parecemos correr sempre atrás do prejuízo, nunca antevendo e precavendo os sismos do futuro, nunca criando, mas copiando sempre os métodos e os sistemas dos outros. Assim na pandemia, como agora na euforia pós-pandémica da estagflação planetária.  

                Por estes dias muito tenho pensado sobre o passado e, principalmente, sobre as aspirações dos nossos avós. Os sonhos que acalentaram, os esforços que fizeram para criar uma região mais moderna, mais aberta e, acima de tudo, mais próspera e solidária. O que diriam eles, hoje, de nós? Na pesquisa que estou em mãos de fazer consultei o outro dia, na Biblioteca da Universidade dos Açores, um extraordinário edifício, de uma enorme beleza arquitetónica invulgar, diga-se aliás, o famoso número da revista “Insula”, de 1932, comemorativo do Quinto Centenário do Descobrimento dos Açores e onde Nemésio escreveu um famoso artigo sobre essa coisa de se ser açoriano. O tal que é tantas vezes glosado, tanto por políticos como intelectuais, e mal, diria eu, pela poética, se bem que incorreta, imagem das sereias na escama dos açorianos e da sua dupla natureza, de carne e de pedra, e esses “ossos que mergulham no mar” sem nunca lá verdadeiramente terem metido os pés, que os açorianos nunca foram gente de mar, e onde Nemésio cunha, pela primeira vez, o famoso termo da “Açorianidade”, essa circunstância incandescente da alma que ninguém ainda conseguiu convenientemente definir.

                Por uma luminosa coincidência do destino, deparei-me, nesse número da revista, com um curtíssimo texto do meu bisavô, Augusto Arruda. De entre todas essas altas personalidades da nação, da política e da cultura, Sua Excelência o Presidente da República, Óscar Carmona, a escritora Alice Moderno, o meu outro bisavô, pelo lado paterno, o genealogista Rodrigo Rodrigues, o Almirante Gago Coutinho, o Marquês de Jácome Correia, Aristides da Mota, o poeta Oliveira San-Bento, Brito Camacho, Urbano Mendonça Dias, Hernâni Cidade, o próprio Nemésio, ali estava o meu bisavô materno, com quarenta e poucos anos, sensivelmente a idade que eu próprio tenho agora, despejando em uma dúzia de curtos parágrafos a sua elegia açoriana, o seu lamento por um arquipélago. E, foi isso exatamente que me surpreendeu, a sua profunda melancolia, o seu quase enfado com o devir açoriano e a sua, dir-se-ia, permanente intangibilidade. Este era um homem que sofregamente perseguiu o ensejo de uns Açores encastrados no centro de uma modernidade entre dois continentes e que ali, na celebração do cinquentenário do seu achamento, se vê na circunstância de apontar a incongruência de um arquipélago bafejado pela fortuna da riqueza natural e geográfica, mas que é incapaz de fazer cumprir esse destino e acabando o seu texto com esta reflexão toda ela cheia de tristeza e pesar e, como ele próprio classifica o seu estado de espírito, de mágoa:

                «Razão há pois para que, relanceando os olhos para o estado em que esses cinco séculos nos deixaram, uma mágoa, uma enorme mágoa nos invada a alma, onde teimosamente nos fica a impressão do que poderíamos ser…»

                É esta consciência de um enorme potencial incumprido que julgo que mais profundamente define os Açores e que, em boa verdade, define também o açoriano. É esta consciência do possível que falhou que mais caracteriza o seu histórico ao longo dos séculos e que, extraordinariamente ainda hoje se faz sentir e se reflete na nossa essência de nove rochedos perdidos no meio do grande mar Atlântico como se estivéssemos predestinados a uma grandeza que nunca conseguiremos realmente atingir.

Homem de inquebrantável vontade e inexcedível e incomparável visão, o meu bisavô multiplicou-se em atividades, desde a política, aos negócios, visando sempre o desenvolvimento e a prosperidade dos Açores. Depositou toda a sua esperança no Turismo, como motor primeiro do desenvolvimento e do crescimento económico da região e em especial da sua ilha, São Miguel, acreditando e trabalhando arduamente para que as Furnas, a maior e mais singular hidrópole da Europa e do Mundo, pudesse, de facto, ser o centro e a alma do Turismo dos Açores. Ele e uns poucos outros como ele construíram hotéis e casinos, fizeram brochuras e promoveram feiras, chamaram jornalistas e viajaram pelos centros sociais e económicos da América e da Europa divulgando as maravilhas da sua ilha. Foram tão longe como fundar uma companhia aérea para que os turistas não os sobrevoassem em moderníssimos jatos de ambição transatlântica e para que estas ilhas não se perdessem nesses traços de fumo branco pintados no ar sobre céu que nos envolve.  A SATA, contrariamente ao que hoje querem fazer crer, não foi feita para unir os açorianos, mas para unir os açorianos ao mundo, dando-lhes finalmente centralidade e modernidade e quebrando esses cinco pesados séculos de isolamento. Hoje, quase cem anos passados, os intelectuais do funcionalismo público, confortavelmente instalados no seu salário certo, e os oportunistas da esquerda mais retrograda e nacionalista, fazem petições contra o turismo de massas, desconhecendo, na verdade o que isso seja, o Turismo e as massas, e desconhecendo ainda que nem almoçar condignamente, numa tarde de Verão no Nordeste, se consegue. Numa região que não produz riqueza querem, por medos atávicos de fantasmas que não existem, matar um dos seus poucos sectores exportadores. Os Açores são e serão sempre esta fulgurância adiada, este provir irrealizável e intangível. O “que poderíamos ser…

                E, a questão, parece-me a mim, é exatamente essa. O que somos, verdadeiramente, se não tivermos um desígnio, um projeto, uma ambição comum e conjunta, que nos mobilize e identifique como povo que o quer ser? Como reconhecer essa açorianidade difusa sem mais matéria do que a bruma e o nevoeiro e os cinzentos de chuva e lassidão? Os americanos têm o sonho. Os franceses o orgulho, os ingleses o império da língua. Os italianos o culto da beleza. E os espanhóis, bem ou mal, têm a España que, contra ventos e marés, os agrega como nação compósita de várias nações e onde, se calhar, lá deveria estar, também, a nossa o que, infelizmente, por inépcia dos Filipes e pela audácia conjurada de uns quantos barões lisboetas, amedrontados pela magnificência madrilena, a defenestraram de arremesso para o chão térreo do Terreiro do Paço impossibilitando definitivamente essa grande Ibéria de romantismo anteriano. Portugal terá o quê? O Fado? O Cristiano Ronaldo? A Nossa Senhora de Fátima e os seus infantis pastorinhos? A Saudade, talvez possivelmente a língua? E, nessa ordem de razão, os Açores, então, o que terão? Geografia? Gente? Mar? Talvez, ou talvez não…

                O naturalista Arruda Furtado, que era um darwininano e que não consta fosse da família, uma das grandes figuras portuguesas do Oitocentos, entre a antropologia e a etnografia do açoriano, com tabelas de medição encefálica e tudo, que hoje fariam corar de vergonha os mais reputados cientistas sociais, arvorou uma pureza pátria insular, fruto de séculos de isolamento dos industriosos movimentos da modernidade continental, que dariam ao açoriano a duvidosa notabilidade de ser um português mais puro, mais verdadeiro se bem que mais tacanho e atrasado. Já no século XX, Luís da Silva Ribeiro tentará uma visão mais sebastiânica do tipo insular, classificando esse mesmo isolamento como uma proteção do açoriano, uma barreira conducente a um apuramento genético, se quisermos, dos princípios e ideais do português de Quinhentos. Resta saber se essa herança de uma “Ínclita Geração” mítica e camoniana não se desfez na própria epopeia que a gerou e se, nos Açores, o que ficou não foi a ferida aberta e traumática desse naufrágio pátrio de um Império que nunca verdadeiramente se materializou? No fundo, dos dois, o que fica é essa nota comum da distância, do supremo e imperioso isolamento e apartamento insular. O açoriano é no fundo um exilado do mundo e da história, preso na sua prisão de ilha, rodeado de mar por todos os lados, como uma trincheira intransponível e condenado pela eternidade às tempestades, e aos piratas, e outras calamidades náuticas de impossível superação. Provavelmente, só verdadeiramente realizável na diáspora, contrariando a sarcástica máxima do nosso amigo Daniel de Sá, da pior maneira de ficar na ilha ser sair dela…

                Depois há aquela questão, de que ninguém gosta de falar, que é a do povo e das elites, se é que isso existe por estes calhaus basálticos erguidos vulcanicamente por sobre o mar. O próprio Nemésio, quando se propõe a identificar os tipos diferentes de açorianos, dos quais distingue marcadamente três – o picaroto, o terceirense e o micaelense – remete principalmente para uma caracterização do tipo popular, das gentes da terra, de cabo de enxada, amanhando ao tubérculo, podando o pomar, pronto para saltar à canoa à saga da baleia. Intelectual só mesmo Antero, mas até esse superiormente inatingível, lá alto no Olimpo das Ideias. As grandes elites açorianas, terratenentes e alcandoradas na liteira dourada do morgadio, que tiveram o seu zénite na efervescência liberal e nos movimentos autonomistas, desvaneceram-se como espuma na praia do protetorado metropolitano. Sempre reivindicando, sempre de mão estendida, pedindo, incapazes de conquistar a sua própria alforria e autonomia. Não deixa, também, de ser despiciendo que os grandes nomes da riqueza insular sejam Hicklings e Dabneys e Bensaúdes e outros estrangeirados expatriados e não Camaras, Botelhos ou Cortês-Reais, de local e digníssima nobreza, mas incapazes de multiplicar riqueza…

                Hoje, então, nem se fala, que as elites já nem as há. Estamos entregues ao bulício enxameado do politico-partidarismo, com tudo o que ele traz de apoucamento da razão e da inteligência. O primado do mínimo denominador comum. A exaltação do oportunismo. Em quase cinquenta anos de autonomia a região pouco mais avançou do que meia dúzia de infraestruturas. A democracia do betão-armado, da engenharia civil em detrimento da evolução social e cultural. A monocultura da boçalidade e do servilismo de Estado. Acabámos com os distritos, mas fomos incapazes de gerar uma verdadeira identidade arquipelágica. Só agudizamos ainda mais um bairrismo bacoco, cheirando a mofo e a bafio, cheio de invejazinhas e birras de crianças reivindicando hospitais em cada ilha, escolas secundárias em cada concelho, portos oceânicos e aeroportos e um avião por dia em cada cidade e capelas funerárias em cada freguesia que o defunto da Covoada não pode ir velar para os Arrifes. Quase cinquenta anos de democracia e de Autonomia Administrativa, com Estatuto e Finanças, e a única coisa que conseguimos foi gerar nove açorianos diferentes, de costas voltadas uns para os outros. Mesmo lá fora, nesses outros Açores de abundância, de Lisboa ao Havai, do Brasil às outras Américas, todos são faialenses e terceirenses e ribeira-grandenses e mesmo portugueses antes de serem verdadeiramente, todos, açorianos. E a classe política, nem vale a pena…

                A questão é, voltando atrás, que me perco, onde está o nosso desígnio? Que projeto para a região, que não seja sorver, babando-se, da malga dessas novas especiarias dos euros bruxelenses? Que podem estes Açores ser que não seja só ser pobres e indigentes e coitadinhos com uma pitada, aqui e ali, de chico-espertismo charlatão sacando uns euritos ao erário publico em prol da vivenda assoalhada com piscina e o novo BMW elétrico que é chique ser verde, mas viajar só de avião, com cunha na SATA para ir de rabo numa executiva que não existe. Tudo à custa do ouro não já do Brasil, mas do próximo Quadro Comunitário de Apoio. Até ao dia em que lá, nos cubículos da Rue Joseph II número 30, algum jovem amanuense se proponha olhar com olhos de ver para a conta do deve e do haver da nossa mercearia insular.

                Para mim, e tenho-o muito claro, o caminho do futuro destas ilhas é o Turismo e o Mar. O Turismo como fonte económica de exportação, alicerçado na mais pura idiossincrasia insular que é a comunhão entre o homem e a natureza. E, deixem-se, por amor de Deus, dessas lamechices inúteis e irreais da natureza pura, ou viva, ou intocada e sustentavelsinha. A nossa natureza é uma de harmonia com a mão humana, a nossa natureza são seiscentos anos de virada das terras e de povoamento e de explosão de infestantes, da cana-roca e do novelão, e da criptoméria que viajou do Japão. A única coisa que ainda é verdadeiramente endémica é a carestia e precisamos de nos livrar dela e isso só será possível fazer com a porta aberta ao mundo, fazendo-nos respeitar, mas acolhendo com simpatia e esmero e orgulho na nossa condição de centro deste grande lago Atlântico que o futuro se encarregará de recolocar no centro do grande concerto das Nações. Os arautos da desgraça que veem no Turismo um cataclismo, esquecem que somos nós que mais destruímos, que conspurcamos e negligenciamos. Clamam por uma paisagem pristina quando nem sabem distinguir entre uma azorina e uma conteira. Falam de sustentabilidade quando fomos nós que deixamos ilhas inteiras serem comidas por infestantes. Ao final do dia, são os turistas os que mais se revoltam com a nossa barbárie endémica.

                Já o Mar será o petróleo do futuro. Dele virá energia e alimento e fonte de riqueza, de ciência e de cultura, e nós temos tanto mar que não o conseguimos ver como deve ser, ofuscados na sua imensidão de luz e agitação. Durante séculos os açorianos viveram de costas voltadas para o mar, amanhando a terra, temendo as desgraças e os desmandos do Oceano. O tempo virou, como se de um vento se tratasse, e falta virarmo-nos também para o oceano que nos rodeia, mas sem fitar sempre o horizonte, olhando mais devagar a orla costeira, as praias, as baias e as enseadas, percebendo os contornos, o desenho e a letra da maresia, a partitura cinzelada do mar. E abraçá-lo como uma amante no leito da praia…

                De todas as coisas que a nossa geração poderá deixar para os que vierem a seguir, talvez a mais importante seja essa visão de que não somos o centro do mundo para que ele nos venha salvar, mas que estamos no centro de um mundo, um mundo feito de água salgada e ondas e vida marinha, onde a própria humanidade anseia por mergulhar. O nosso legado deverá ser esse, de uns Açores transatlânticos, multioceanicos, argonáuticos e universais. Desconheço se o cumpriremos, mas todo o horizonte é um imaginário de sonho.

                Aquele forte e sentido abraço,

                Vila Franca do Campo, Agosto de 2022

                Pedro Arruda

Texto para a edição número seis da revista Grotta.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Clube de Leitura


Sessão na BPARPDL, a 12 de Dezembro, para uma leitura de “O Silêncio dos Livros seguido de Esse Vício Ainda Impune” de George Steiner e Michel Crépu, edição Gradiva, 2005

 O que é a civilização? Que traços a caracterizam e onde e quando é que ela começou é uma pergunta que tem ocupado historiadores, arqueólogos e antropólogos desde há, pelo menos, algumas centenas de anos.

Um episódio muito glosado, em especial nos memes da internet, é o da conhecida antropóloga americana Margaret Mead. Reza a lenda que quando questionada sobre qual o primeiro sinal encontrado de civilização esta terá respondido que seria um fémur cicatrizado com cerca de 15 000 anos descoberto numa escavação arqueológica. Este artefacto constituiria o primeiro sinal de uma sociedade civilizada pelo que testemunhava, desde logo, de cuidado e abnegação entre seres humanos. Uma fratura do fémur, o maior osso do corpo humano, levará, no mínimo, 2 meses, sendo que geralmente o tempo de cicatrização será de cerca de 4 a 6 meses, para uma recuperação completa. Nesse período é necessário repouso e imobilização o que coloca o paciente na completa dependência de terceiros para garantir a sua sobrevivência. Para Margaret Mead seria esta ideia de entreajuda e de cuidado, representada naquele osso humano cicatrizado, que, para além de indicar a transição de uma sociedade nomádica de caçadores recolectores para uma sociedade gregaria e organizada, que permitia, ela mesma, a realização desse mesmo cuidado, que separaria os hominídeos, ainda demasiado próximos do mundo animal, de uma humanidade civilizada. Embora não seja possível comprovar que, de facto, a famosa antropóloga americana, discípula de Franz Boas, um dos pais da antropologia moderna, e que ficou conhecida pelas suas teorias avançadas sobre a liberalidade sexual, que vieram a marcar os anos sessenta do século vinte, tenha realmente sugerido esta teoria a ideia em si não deixa de ter uma certa beleza poética que a torna extremamente cativante.

Na historiografia clássica o “berço da civilização” é colocado nas civilizações mesopotâmicas do crescente fértil sensivelmente 3 a 4 000 anos antes de Cristo, tendo como características fundamentais a já referida sedentarização, a agricultura e, principalmente, a escrita, como fatores distintivos essenciais. A escrita em pequenas tábuas de argila de carateres cuneiformes seria um dos elementos primordiais à existência da própria civilização, o que, não sem alguma ironia, fazem do grande “Épico de Gilgamesh” e da cobrança de impostos os primeiros sinais concretos de um mundo civilizado. No entanto, outros historiadores, em particular no âmbito da História da Arte, como H. W. Janson, por exemplo, têm sugerido, ao longo dos tempos, que se deve recuar bastante mais atrás para detetar provas de civilização, tão atrás como 25 a 30 000 anos, que é a data provável dos mais antigos artefactos artísticos feitos pelo Homem, no longínquo Paleolítico, encontrados até hoje. Em 1908, na região de Willendorf, na Áustria, a equipa do arqueólogo Josef Szombathy desenterrou, de um sítio do paleolítico superior uma pequena escultura antropomórfica representando uma mulher de seios fartos e ventre saliente, com cerca de 11 centímetros e esculpida em calcário, que ficou conhecida como a “Vénus de Willendorf”, por se supor que fosse um objeto de culto de alguma forma ligado à fertilidade e aos seus rituais. Esta pequena escultura representa, desde logo, a capacidade do Homem de passar da criação de utensílios próprios para a execução de tarefas básicas de sobrevivência como caçar, quebrar e lascar pedras e ossos ou apanhar frutas das árvores, por exemplo, para uma utilização ritual, baseada numa abstração imaginativa, já não meramente utilitária, mas ritualística o que lhe confere uma qualidade mais próxima do pensamento e da imaginação do que meramente da função e da luta pela sobrevivência.

Conforme nos explica Fernand Braudel na sua “Gramática das Civilizações” o termo civilização afirma-se em oposição à barbárie: «de um lado, os povos civilizados, do outro os povos selvagens, primitivos ou bárbaros.» Neste sentido, e é também o próprio Braudel quem o diz, civilização e cultura são, de certa forma, alegres companheiros na viagem da História, percorrendo lado a lado, como D. Quixote e Sancho Pança, a viagem temporal, o itinerário específico, que nos transporta desde os tempos primitivos das cavernas do paleolítico até aos grandes salões intelectuais da Europa moderna e contemporânea. Para Braudel as civilizações são um conjunto de manifestações culturais, societais, económicas, psíquicas, em interação umas com as outras e com o meio, físico, onde se inserem e que as rodeia, sendo que a religião, ou a mentalidade, é o “cerne das civilizações”. Como explica Braudel «em todas as épocas, há uma certa representação do mundo e das coisas, uma mentalidade colectiva dominante, que anima, penetra toda a massa da sociedade. (…) Quase sempre as civilizações são invadidas, submergidas pelo religioso, pelo sobrenatural, pelo mágico; sempre viveram aí, sempre aí foram buscar as mais poderosas motivações do seu psiquismo próprio.» A civilização é, assim, a capacidade de formulação de uma determinada ideia e conceção do mundo, uma projeção, talvez mesmo uma narrativa, do contexto e do lugar do Homem no Tempo e no Espaço, podendo, por isso, ser definida por um elemento singular e particular, diríamos que a partícula inicial, o bosão de Higgins de toda a civilização, que é – a Linguagem.

Se é difícil determinar a origem da civilização, é ainda mais ou, pelo menos, igualmente difícil, estudar e apontar a origem da linguagem, tanto que o problema foi apodado como o “mais difícil problema da ciência”, desde logo por ser impossível comprová-la com evidências, o pensamento e a sua formulação, em linguagem, são do domínio do etéreo, do transcendente, fora da materialidade concreta da evidência científica e da prova física. O Verbo, em boa verdade, não é fossilizável. De qualquer forma, mesmo perante este aparentemente intransponível obstáculo as teorias modernas mais consensuais apontam para que a linguagem tenha surgido em ligação estreita com o surgimento dos chamados traços da “modernidade comportamental”, um conjunto de formulações e características que distinguem o Homo sapiens atual dos restantes hominídeos, nomeadamente: a capacidade para o pensamento abstrato, a profundidade e complexidade do planejamento, o comportamento simbólico expresso pela arte, a ornamentação, a musica e a dança, e a tecnologia representada pelo fabrico de lâminas e outros tipos de utensílios para a caça e outras atividades, algo que, de acordo com a Teoria da Origem Recente Africana, terá acontecido no Paleolítico Médio, há sensivelmente 200 000 anos, no sul do continente africano. Muitos milhares de anos antes da escrita cuneiforme, dos primeiros papiros, de Homero, Ovídio, São Paulo e Santo Agostinho, Dante, Guttenberg, Camões, Cervantes, Shakespeare, Milton, Whitman, Proust ou Pessoa.

Perdoar-me-ão este relativamente longo introito, mas a ideia de um Clube de Leitura, congregado nos claustros monásticos de uma Biblioteca Pública, antigo convento jesuítico, e o simpático convite que me foi endereçado pela Dra. Iva Matos para que viesse animar uma das suas sessões, remeteu-me imediatamente, como um redemoinho do pensamento, para a importância dos livros e o seu valor e papel na História das Ideias e, por sinédoque, na História dos Homens ou, para usar a expressão de Braudel, na própria “Gramática das Civilizações”. Refletindo sobre a matéria veio-me imediatamente à mente o portentoso livro de Irene Vallejo, “O Infinito num Junco”, uma brilhante elegia pela leitura, pela literatura e, em particular, pelo objeto físico do livro e a forma como transporta em si, através do tempo e do espaço, dos rolos de papiro aos codex medievais e aos milhares de paperbacks vendidos hoje nas lojas dos aeroportos, a luz da Linguagem. Não querendo sobrecarregar os membros deste Clube com uma tarefa tão árdua e dramática como a de ter de consumir as suas mais de 400 páginas em poucos dias, veio-me à memoria um outro livro, um pequeno opusculo de George Steiner, que li há já quase vinte anos, intitulado “O Silencio dos Livros” que é, então o, tomo que vos sugiro aqui.

Escrito originalmente em 2005, como um artigo para a conceituada revista francesa “Esprit”, com o título “O Ódio ao Livro”, este curto ensaio, cujo tema principal é a inata fragilidade do livro e da leitura, não só pela sua vulnerabilidade ao tempo e aos seus desmandos, como, também, pela permanente ameaça que o próprio Homem impõe sobre as ideias, das quais os livros são os principais portadores, “O Silêncio dos Livros” acaba também por ser, e é esta a ideia que gostaria de partilhar e discutir convosco, uma ode ao mais profundo e ancestral património da Humanidade e da Civilização, de todas as civilizações, que são o pensamento e a linguagem e a sua expressão mais pura, que é – a Oralidade. Como nos diz Steiner, numa imagem, julgo eu, particularmente feliz «a escrita constitui um arquipélago na imensidade oceânica da oralidade humana.» De certa forma, esta mesma reunião, de um Clube de Leitura, onde um grupo de pessoas se sentam em círculo, em redor de uma mesa ou, imaginemos nós, em torno de uma fogueira, para falar sobre um livro, está mais íntima e ancestralmente ligada aos primórdios da civilização humana do que com o surgimento desse objeto a que chamamos livro. Uma espécie de regresso fictício ao mais profundo mistério das cavernas primordiais onde a chama do imaginário ilumina as sombras do pensamento. Ainda citando Steiner «(…) os mais antigos fragmentos datados da Bíblia dos Hebreus são tardios, muito mais próximos do ‘Ulisses’ de James Joyce do que das suas próprias origens, que se relacionam com o canto arcaico e a narrativa oral.» Ou seja, embora a principal preocupação de Steiner ao escrever o seu ensaio fosse as ameaças contemporâneas, cuja genealogia histórica nos aponta ao longo do texto, ao livro e à leitura, “O Silêncio dos Livros” acaba, também, por ser um cântico de esperança pela sobrevivência da literatura, seja ela ficcional ou ensaística, pela via da sempre presente, e eterna na eternidade do Homem, oralidade que se sustenta no pensamento. «A escrita – e não vale a pena determo-nos nos diferentes formatos que o livro foi assumindo», isso fará, e de forma brilhante, Irene Vallejo em “O Infinito num Junco”, «configura um caso à parte, uma técnica específica de entre um todo semiótico maioritariamente oral. Milhares de anos antes do processo de desenvolvimento de formas escritas já se contavam histórias, já se transmitiam por via oral ensinamentos de caracter religioso e mágico, já se compunham e se transmitiam formulas encantatórias de amor, ou então anátemas.» Embalados pelo ritmo pulsante do coração humano, ou pelo passo cadenciado da migração, do pé ante pé da caminhada humana, os primeiros homens compuseram cânticos e criaram poemas e partilharam em canções e histórias «sentimentos e significações.» Como nos diz Steiner: «A maior parte das pessoas não lê livros. Porem canta e dança.» Ou, de forma ainda mais contundente e, quiçá, irónica: «a nossa herança intelectual e ética, (…) vêm-nos de Sócrates e de Jesus de Nazaré. Nenhum deles, contudo, fez questão de ser autor e muito menos de ser publicado

Não pretendo ser mal interpretado ou tido como deselegante nesta apologia da oralidade num lugar de silêncios, uma Biblioteca. Tal como Steiner, também eu, nutro um amor puro, como certamente todos os membros deste Clube, pela leitura e pela sua mais direta forma de consumação, que é o livro. Mas, talvez o mais importante a reter, neste tempo de rápida e asfixiante digitalização e de cada vez maior domínio das linguagens imagéticas em detrimento da escrita e da leitura, é que na antecâmara da literatura e na génese da escrita está a capacidade inata do ser humano de criar e formular ideias e palavras e que essa será sempre a base de toda a civilização. Tão, ou mais importante, do que o instrumento da comunicação, seja um livro, um texto, ou uma imagem e um som, é a comunicação em si, a troca e a partilha de ideias, sensações e emoções, que são a essência do Humano. E, que se consubstanciam em reuniões e lugares como este.

Como pai sou confrontado constantemente com o alheamento das minha filhas face à leitura, os livros são para elas um objeto entediante, quase arcaico, incapaz de lhes conquistar a atenção face à atratividade e enleamento das imagens, seja nos telemóveis, nas redes sociais, ou na TV, os filmes, ou as séries da Netflix. Recentemente até a Escola aboliu para a minha filha mais velha, com apenas 13 anos, os manuais escolares, que eram ainda a única e solitária forma das crianças lidarem, no seu dia-a-dia, com o papel e as folhas e as páginas impressas, acentuando-se assim, ainda mais, o distanciamento dos jovens com o texto, a escrita e, essencialmente, o tempo e o esforço da leitura. Aquela relação íntima e simbiótica entre o leitor e o texto e deste com o escritor que Steiner descreve como «o texto implica, entre o autor e o respectivo leitor, a promessa de um sentido.» A aproximação à Verdade, que se esvai assim no desenrolar hipnotizante das imagens nos ecrãs luminescentes que nos rodeiam ofegantemente.  

Porém, como nos explica Steiner e Irene Vallejo, também, as ameaças ao livro sempre existiram, caminharam, aliás, lado a lado com a criação de grandes Bibliotecas, com os seus exércitos de escribas, ou copistas e tradutores. Do outro lado da mesma moeda os incêndios, as cheias e a loucura ou a raiva dos homens acentuaram sempre a fragilidade e perecibilidade dos suportes escritos das palavras. Desde os conquistadores muçulmanos de Alexandria, aos militares sérvios que bombardearam a biblioteca de Sarajevo, passando pelos censores, o Index Librorum Prohibitorum da Inquisição, ou passando ainda pelos extremistas ideológicos do nazismo ou do estalinismo, ou até mesmo das fatwas estéticas e filosóficas que ditaram, de uma forma ou de outra, ao longo da História moderna, o fim do diferente e a destruição do inimigo, fosse ele um escritor ou um livro. Como diz Steiner: «ao longo da História, os livros foram sendo sempre lançados para a fogueira.» E, com eles, alguns escritores também.

A este propósito permitam-me que resgate da memória, “a mãe de todas as musas”, outra obra fundamental. «Queimar era um prazer», é com estas palavras que Ray Bradbury começa o seu sensacional e talvez presciente romance “Farenheit 451” – «a temperatura a que um livro se inflama e consume…» Embora muito marcado pelo ambiente político do seu tempo, publicado em 1953, o subtexto do romance é uma critica à censura ideológica e política do Macarthismo, o romance é, também, um hino à literatura e ao papel fundamental dos livros na perpetuação de uma certa ideia de Humanidade. Montag, a personagem principal do livro, é um bombeiro, numa inversão metafórica do próprio sentido, cuja missão é queimar livros. Numa sociedade distópica em que os livros são considerados inimigos da felicidade e onde os resistentes, os excluídos, os ostracizados, se tornam eles próprios livros-humanos guardando na sua memória os textos mais adorados.  Alguém é “A Republica” de Platão, outro “As Viagens de Gulliver”, Montag poderá tornar-se “O Livro de Eclesiastes”, tal como outros serão Aristófanes, Ghandi, Confúcio, Marx, Thomas Jefferson, ou Mateus, Marcos, Lucas e João. «Somos igualmente incendiários de livros. Lemos os livros e queimamo-los, com medo que alguém os descubra. (…) O melhor será guardar tudo na memória, onde ninguém irá procurá-los. Somos todos constituídos por pedaços, extractos de história, de literatura, de direito internacional, Byron, Tom Paine, Maquiavel, Engels, Cristo, tudo está registado.» Há algo de profundamente maravilhoso e poético nesta ideia de cada pessoa ser um livro, de cada um de nós poder, não só, guardar dentro de si a memória de um livro, como, também, de ser pela sua vida e através da oralidade um outro livro a partilhar com os demais. Será essa, no fundo, a verdadeira eternidade da literatura, muito para lá da morte física do livro enquanto matéria, a sua eternidade na memória, seja ela individual ou coletiva e na forma como a literatura se imiscui na própria intertextualidade do tempo, no “ar do tempo”, e no “inconsciente colectivo” para usar a formulação de Carl Jung, em que todos vivemos.

Regressando ao “Silêncio dos Livros”, no outro ensaio que acompanha Steiner, o ensaísta francês Michel Crépu remete-nos para Proust e o seu gargantuano “Em Busca do Tempo Perdido” e indica-nos que «existe um caminho que leva do jardim de Combray ao triunfo da Arte sobre a morte.» Em “Esse Vício Ainda Impune”, Crépu, resgata a obra, com o mesmo título, do escritor modernista francês Valery Larbaud e a sua teoria de como a literatura é, tal como para o narrador de Proust, que ambiciona tornar-se escritor, uma porta para a eternidade, uma via de superação sobre a própria morte. O gigantesco romance de Proust tornou-se num dos mais significativos livros do nosso tempo encerrando nas suas mais de 3 200 páginas divididas em 7 volumes os múltiplos significados e singularidades da vida humana. Uma grande pintura, um fresco, daquilo que é “A Condição Humana” como lhe chamaria Hannah Arendt numa fixação autoral e autorizada que só os grandes criadores são capazes de fazer.

Harold Bloom, um dos mais importantes críticos literários do nosso tempo, criou a teoria da “Angústia da Influência”, que sugere que em cada momento, cada grande escritor, se encontra em luta com os seus predecessores e sucessores numa luta interior pela primazia no cânone literário. Para Bloom é Shakespeare o vértice superior desta pirâmide de criação literária sendo ele o mais inventivo e completo escritor da história, Bloom irá mesmo ao ponto de considerar Shakespeare o “inventor do humano”. Ora, nesta batalha da angústia da influência os escritores debatem-se não só com as suas próprias leituras, mas também com a literatura como um todo, como um imenso corpo sobrenatural, um monstro ou uma estrela de luz eterna, conforme a perspetiva de cada um, mesmo a que há-de vir, que ainda se esconde nas sombras do futuro, pressupondo quase uma leitura subconsciente, numa visão jungiana, que está presente na matéria impalpável da imaginação, num reino para lá da matéria e acessível apenas pela pena do pensamento e, possivelmente, do canto doce da oralidade ou da escrita. É também isso que, de certa forma, nos sugere Crépu na omnipresença cultural de um romance tão vasto e assoberbante como o “Em busca…”, que poucos hoje terão a disponibilidade e, ironicamente, o próprio tempo para ler, mas que faz parte, assim mesmo, da nossa herança cultural coletiva. Hoje essa ambição transcendente do escritor de abarcar a totalidade da vida é representada pela obra do escritor norueguês Karl Ove Knausgard, um enorme épico de 6 volumes e, também, mais de 3 000 páginas intitulado “A Minha Luta”, onde Knausgard conta, ficcionada ou não, a história da sua vida partindo do momento em que a escreve, aos 40 e poucos anos, entre os anos de 2009 e 2011.

No fundo, o amor pelos livros é tão só um instrumento para a árdua tarefa da Vida, uma enxada para lavrar o solo fértil do pensamento onde germinam e crescem as flores da imaginação e da poesia e que invade, como um odor que se espalha por um campo florido levado pela brisa primaveril, o espírito e a mente de leitores e não-leitores e todos os tipos de escritores. O que nos sugerem Steiner e Crépu, o que Vallejo descreve com inigualável mestria, o que liga como uma argamassa de éter o cânone de Bloom, é essa magia que se transporta e que nos transporta entre a Vida e a Arte, entre o real e a ficção, e que tem nos livros a sua barca, as suas velas, o seu navio velejando no oceano não já só da oralidade, mas da linguagem e do pensamento.

Em 1994, aos 71 anos, Jorge Semprún, então já um aclamado romancista, guionista e intelectual franco-espanhol publica, nas prestigiadas edições Gallimard, e como são importantes as editoras e os editores, os bons editores, um livro intitulado “L’Ecriture ou la Vie”, uma espécie de objecto híbrido entre a memória autobiográfica, o romance ficcional e o ensaio histórico, escrito na primeira pessoa, sobre a passagem de um homem, ele próprio, pelo mais profundo campo do horror e da morte – o campo concentracional nazi de Buchenwald. Filho de um diplomata, vivendo em Paris, membro do partido comunista e da resistência francesa, em 1943 Semprún é denunciado e preso pela Gestapo sendo transferido para o campo de concentração de Buchenwald, no centro oeste da Alemanha a poucos quilómetros da bela Weimar de Goethe e aonde ficará detido até 1945 quando as tropas de Patton libertarão os prisioneiros sobreviventes do campo. “A Escrita ou a Vida” é um relato da batalha de um escritor com a morte, não apenas a morte concreta e omnipresente do campo de concentração, mas a morte metafísica da escrita num lugar sem livros, sem leitores, onde a escrita é apenas mental e a leitura memória e oralidade e desejo, ou sonho, se é que é possível sonhar na escuridão das «sombras impassíveis e mudas» dos que já não vivem. Em todo o livro, por onde de certa maneira, passam também todos os outros escritores com que Semprún se debate na sua angústia blooomiana, de André Gide, a Cesar Vallejo, de Bakunine a Goethe, de Proust, sempre Proust, que Semprún também confessa que não leu, que nunca precisou de o ler porque o conhece intimamente, como se de um familiar se tratasse, há uma teia de pensamento e de memória, um encadear sucessivo da matéria da história que liga Semprún, que nos liga a todos, desde a origem da própria História, da Itaka de Ulisses aos pedintes de Brecht ou aos clássicos de Italo Calvino, num ensejo de superar a própria morte.

Steiner, tal como Semprún e Harold Bloom, são representantes últimos de uma espécie em vias de extinção, a do grande intelectual europeu e ocidental. Homens de uma craveira e erudição acima da média, com vidas inteiras dedicadas à academia, à vida pública e, principalmente, à leitura, baseando a sua participação cívica numa profunda humanidade construída nas fundações da tradição cultural e civilizacional judaico-cristã. Curiosamente, os três nasceram na década de vinte do século passado e viveram as agruras dessa Era que o historiador inglês, Eric Hobsbawm, chamou “dos Extremos”. George Steiner, nascido em paris em 1929, filho de uma família de judeus austríacos, com o alvor do nazismo, Steiner emigra, com a sua família, para os Estados Unidos da América, onde viria a fazer a sua carreira como ensaísta, critico, filósofo e professor de línguas e literaturas nas mais prestigiadas universidades americanas e europeias. De entre a sua vasta obra destacam-se volumes como: “No Castelo do Barba Azul”; “Gramáticas da Criação” e “Lições dos Mestres”. George Steiner faleceu em 2020 aos 91 anos. Harold Bloom, também ele de origem judaica, nasce em Brooklyn, Nova York em 1930 e viria a falecer, com 89 anos, em Outubro de 2019, escassos cinco meses antes de Steiner. Considerado o mais importante e proeminente critico literário do seu tempo Bloom dedicou toda uma vida ao estudo e divulgação do cânone literário ocidental, um grande corpo literário, que para Bloom, constituía a base da nossa cultura e civilização. Tal como Steiner, Bloom foi um dos mais fervorosos contestatários do politicamente correto e daquilo a que chamou “as escolas do ressentimento”, assinalando com particular acutilância a ameaça que essa ditadura das ideologias minoritárias apresenta para a cultura liberal ocidental baseada nos pilares da liberdade individual e da tolerância.  Jorge Semprún o mais velho dos três, nasceu em Madrid, em 1923, no seio de uma família abastada de políticos e diplomatas espanhóis. Com uma vida dedicada à política, à literatura e ao cinema, foi membro ativo desde 1942 do partido comunista espanhol, desafiou o franquismo e o nazismo, viria a ser Ministro da Cultura de Espanha, entre 1988 e 1991, no segundo Governo de Felipe Gonzalez. No cinema colaborou como argumentista em mais de uma dezena de filmes com realizadores como Alain Resnais, Costa Gravas e Joseph Losey. “A Grande Viagem” foi o seu primeiro romance e o mais aclamado, escreveria mais cerca de vinte livros dos quais “O Regresso de Netchaiev”; “Autobiografia de Federico Sanchez” e “O Adeus de Federico Sanchez”, o seu nome na clandestinidade, e “A Escrita ou a Vida”, são os mais significativos. Semprún morre em Paris, em 2011, com 88 anos. Jorge Semprún foi me apresentado pela minha avó materna, Leonor Arruda, que era, ela própria, uma leitora avida e insistente, apreciadora de vários géneros, da prosa à poesia, e, por força do coração, fora casada com um espanhol, uma devota apaixonada pela literatura de España.

Os livros, como toda a Arte, são pequenas perolas de pensamento no oceano da vida, frágeis e humanas tentativas de superar a eternidade da morte. Mas, tal como para Proust, ou Semprún, tal como para Steiner, ou para cada um de nós, tal como para mim que agora aqui escrevo estas palavras, ou para as minhas filhas que no futuro encontrarão outras forma de leitura, o que fica, o que é verdadeiramente importante, e que nos separa da barbárie que se esconde nos calabouços selvagens da alma, são as ideias, a luz e a estrela do pensamento e da linguagem, é esse o fio de Ariadne que nos guia no labirinto da civilização, desde há milhares e milhares de anos, até um futuro que outros ousarão imaginar e conhecer. Porque se “a memória é a mãe das musas” é a imaginação que dá à luz o Verbo. E, nós, leitores e escritores, livros e amantes dos livros somos os guardiões, os bibliotecários, dessa infinita Luz que deu e dá origem a tudo…

Pedro Arruda

Vila Franca do Campo, Dezembro de 2022