[intervenção na Azorean Spiritual Summit]
A primeira pergunta que todos nos colocamos, desde a génese
da consciência e do pensamento, é a de “quem sou?”. Quem sou eu? De onde
venho, para onde vou, o que faço aqui? Ou, na irónica formulação de Herman José:
“De onde vimos, para onde vamos e quem é que nos paga?”.
Desde os mais antigos tempos do humano que o questionamento
do Eu marca a sua própria evolução. A busca pelo conhecimento é, afinal, a
essência da espiritualidade, mas também é da ciência, da filosofia e, na
perspetiva junguiana do próprio Ser e do Eu. Nas palavras do nosso santo Antero,
tantas vezes esquecido ou remetido para a mera categoria de sonetista, quando
foi de pleno direito um dos maiores pensadores portugueses do século XIX, e não
só, na abertura do seu ensaio “Tendências Gerais da Filosofia na Segunda
Metade do Século XIX”, publicado em três artigos na Revista Portugal,
dirigida pelo seu amigo Eça de Queiroz, entre Janeiro e Março de 1890 , pouco
mais de um ano antes de tirar a sua própria vida, a tiro de pistola, sentado
num baco do campo de São Francisco, – “A filosofia é eterna como o
pensamento humano…”
Espírito e alma, corpo, consciência e pensamento são ideias,
formulações da mente, tão antigas como o próprio ser humano. São, afinal,
características essenciais da caracterização da própria Humanidade e sempre
estiveram interligadas entre si. Não se opunham, mas complementavam-se, como
peças de um grande puzzle da sabedoria e instrumentos para a indagação da
realidade que é a sina e o destino de todo o Ser Humano.
Nas formulações clássicas, espírito e sopro são uma e a
mesma coisa. No grego antigo a palavra pneuma refere da mesma forma o
ar, a respiração e o espírito. E, como sabemos no Jardim do Éden, Deus soprou a
Vida pelas narinas de Adão. Esta noção do etéreo, do impalpável, do que é
sublime e incorpóreo, como elemento primeiro da Vida, da alma e, por força do
espírito, como condição imprescindível e distintiva do humano, marcou ao longo
de milénios a história do Homem e a sua representação. E, interessa-me aqui
recuperar esta imagem eminentemente simbólica do intangível como caracterização
da existência para abordar o tema da espiritualidade e da sua antítese a
materialidade. Porque, como diz Manly P. Hall, notável pensador e divulgador
americano do pensamento esotérico, no seu magnum opus “The Secret Teachings
of All Ages” – “a mais universal linguagem é o – Simbolismo.”
Ora, durante os mesmos milénios alma e espírito, pensamento
e consciência, e até mesmo ciência e filosofia, foram, eram, de certa forma
sinónimos, eram complementares e indissociáveis. Hoje, neste acelerado mundo
moderno e binário, onde o código, restringido a zeros e uns, é o concreto, o
material, o explicável e mensurável, que domina o pensamento contemporâneo,
preso na armadilha do seu racionalismo, dito, lógico e científico.
Não me interpretem mal. Com isto não estou a criticar a
ciência per si, enquanto grande corpo de conhecimento, mas antes a colocar em
questão um certo cientifismo atual que se entende a si próprio como único, absoluto
e omnipotente. Curiosamente este processo de progressiva materialização da
consciência e do pensamento, afastando-se das componentes mais etéreas da alma
e do espírito, do Sopro, ou, se quisermos mesmo, do Divino, teve o seu início
com uma corrente filosófica denominada Humanismo, ou para ser mais correto, com
as interpretações Iluministas do Humanismo e mais tarde, aprofundadas, ou
adensadas, para ser mais exato, pela chamada Segunda Revolução Científica, a
atomização do conhecimento. E, é claro, com a guerrilha ideológica entre a
religião e a política, entre a Igreja, o Dogma, e o pensamento e a Liberdade.
Paradoxalmente, o Humanismo é, ou foi, precisamente, aquela
corrente do pensamento que colocou o Homem no centro das coisas. Que procura no
humano, caminhando de certa forma para além de Deus e do divino, do Sopro,
afinal, a razão e a explicação da existência. O humanismo, em suma, responde à
pergunta “quem sou?” com o Homem.
Lembremos o célebre desenho de Leonardo da Vinci do Homem
Vitruviano, em que as proporções do corpo humano são matematicamente descritas
numa simetria perfeita extensível ao contexto do Universo. Com o Humanismo o
Homem torna-se o centro do conhecimento e, por extensão, do Universo. Se bem
que, muitos dos principais pensadores do humanismo renascentista, como
Copérnico, Pico de la Mirandola, Galileu ou Newton, para além de herdeiros do
pensamento clássico, discípulos diretos nomeadamente de Platão e Aristóteles,
eram, também e ao mesmo tempo, estudiosos e defensores do pensamento hermético
traduzido do Antigo Egipto, por via ptolemaica, até ao humanismo renascentista
e ao século das luzes. Sir Isaac Newton, para além de autor dos Principia
Mathematica e criador dos fundamentos da mecânica clássica, a origem da
física contemporânea, foi, também, um dos mais importantes alquimistas da
História.
Entretanto, é curioso verificar que o famoso adágio
cartesiano, “cogito ergo sum”, proferido por Descartes, considerado o fundador
do método científico, na sequência de Francis Bacon, ele próprio um alquimista
e rosa-cruz, é, afinal, uma versão lógico-matemática da chave hermética, “o
Todo é Mente a Mente é Tudo”. Mais tarde, o nosso António Damásio irá
contrapor à lógica cartesiana o primado das emoções na elaboração da razão, uma
subjetivação do conhecimento que foi tão inovadora como extraordinariamente
próxima desse Sopro inicial, mas divago…
Em seguida ao Humanismo, o Iluminismo vai adensar, e uso o
termo propositadamente, no sentido de tornar mais denso e pesado, ainda mais
esta materialização da razão e do antropocentrismo da filosofia e do
conhecimento. Desviando-a e afastando-a de todos os ares, ou mares, que não
sejam terrenos sólidos e concretos, ou, como usa dizer-se hoje em dia, com base
científica. Num tempo em que a própria ciência já deixou de ser questionamento,
hipótese, para se tornar certeza e verdade, tão inquestionável como o próprio
Dogma. Deus Ex-Machina
Humanismo e Iluminismo, mais do que correntes filosóficas,
mas enquanto manifestações políticas, procurando contrariar a verdade divina
expressa na autoridade da Igreja e do Senhor, aqui tido tanto como Deus, no
altíssimo, como Rei, todo-poderoso e absoluto, vão de certa forma degenerar,
creio que involuntariamente, num totalitarismo empiricista onde apenas o que é mecânico
e matemático é verdadeiro, e onde o Sopro, que é a matéria do sonho, é
desvalorizado e descartável.
Esta questão, aliás, da verdade científica esta na
raiz de muitos dos dilemas e das perplexidades que vivemos atualmente. O método
científico, baseado em evidencias, exclui o que não pode ser materializado,
seja de forma empírica, seja de forma teórica ou matemática. O Sopro, feliz ou
infelizmente, não é equacionável. Nem tem formulação matemática.
A este propósito talvez seja interessante regressar a
Epicuro de Samos, e à Atenas do século IV a.c. que busca nos prazeres, o
Epicurismo, a via para a Felicidade plena através da qual se atingiria a Ética,
o estado e aspiração última da existência do Homem.
Ao longo dos séculos a ciência e com ela o conhecimento e,
de certa forma, a filosofia foi-se tornando progressivamente mais concreta,
objetiva, microscópica e, apesar do Bosão de Higgs, material. Embora, quase
como dois opostos que se atraem, a atomização e Sopro são, afinal, espantosa e
universalmente próximos. Mais uma vez, e voltando às chaves herméticas, a
dualidade como princípio de todas coisas.
Não querendo fugir muito para Oriente e entrando na área que
me pediram que tratasse aqui hoje, os problemas e os desafios do mundo atual,
dentro de uma perspetiva mais política do que filosófica, esta materialização
de que vos tenho falado tem a sua realização plena no Capitalismo.
O capitalismo tem a sua fundamentação existencial na
propriedade. Na posse e no lucro. E a primeira forma de propriedade foi a propriedade
da terra. O solo arável. É interessante verificar que, em estreita oposição à
fundamentação judaico-cristã de matriz clássica da civilização ocidental, as
tribos norte americanas opõem-se determinantemente ao conceito da posse da
terra. “Nós não somos os donos da terra, nós apenas a cuidamos de uma
geração para a outra, nós somos a terra” dizem-nos os anciãos Cherokee e Iroquois
e todas as outras tribos da vasta américa de Thoreau e Whitman. Hoje,
capitalismo e materialismo são indissociáveis, são sinónimos, entrelaçados
entre si, perdoem-me o pleonasmo. O “quem é que nos paga” do Herman
José, tornou-se tão ou mais importante do que o “de onde vimos e para onde
vamos”.
Vivemos não já numa sociedade de pessoas, de humanos, mas de
referenciais numéricos, de estatísticas, gráficos, curvas, percentagens e o
exemplo mais paradigmático e dramático disso mesmo foi precisamente na
pandemia. Na distopia pandémica o humano foi substituído pelo paciente, o
veículo da peste, um dossier sem nome, etiquetado e anónimo, número, dado,
folha de Excel.
Mas adianto-me. Ao subjugarmos as nossas vidas às normas e
aos desejos do capitalismo, que se desdobra em mercantilismo, industrialismo e,
essa Hidra contemporânea que dá pelo nome de neoliberalismo estamos no fundo a
subjugar-nos à posse, que é terrena e material e a rejeitar, ou a pôr-nos em
oposição, ao Sopro que é etéreo e universal.
Num certo determinismo capitalista aquilo que nos identifica
plenamente é o que possuímos, contrariamente aos movimentos progressistas que
são fundamentalmente aspiracionais, que visam a utopia, que é ela própria
impalpável, ou até de certa forma irrealizável, na medida em que está sempre
por cumprir, e que se encontra quase que de forma sobrenatural no campo do
Divino. Do Futuro.
Esta evolução determinista, conjugada com a cada vez mais
poderosa revolução científica, levou-nos a de alguma maneira identificar o
humano apenas e exclusivamente com a sua formulação matemática e física. A
física, aliás, passou a ser a mãe de todos as ciências, destronando a própria
filosofia. E aqui entra a Segunda Revolução Científica, com a física quântica,
que vem tornar ainda mais densa toda a matéria do conhecimento e, em última
instância, da procura do Eu.
Os nossos sistemas políticos, tal como o capitalismo,
tornaram-se fundamentalmente inumanos. As democracias contemporâneas têm a
tendência para olhar macro e microscopicamente para as pessoas, que se tornam
entidades abstratas, não já indivíduos, ou mesmo cidadãos, para se tornarem,
grandes massas estatísticas, os eleitores, ou essa coisa imprecisa e tantas
vezes mal denominada de povo. O povo, que é afinal a humanidade, assume aos
olhos do político uma existência conjunta, massificada, sem a pureza individual
e humana da individualidade e da liberdade de cada um.
A pandemia foi disso um exemplo muito claro quando se
estripou o humano dessas suas características essenciais, como liberdade e a
individualidade, para, numa chantagem horrível e fundamentalmente desumana, o
salvar. Destruímos o próprio objeto que ambicionamos preservar, numa alteração
completa dos princípios básicos da vida. A realidade pandémica era a consumação
plena do comercialismo capitalista, onde o homem era tão e apenas só rendimento
per capita.
A desumanização da existência, que confronta até a própria
morte, torna-nos vazios. Ou, esvazia-nos do que nos faz humanos que é a matéria
divina do Sopro. Como um balão solto da mão de uma criança perdendo o ar em
reviravoltas pelo céu. Ou uma alma abandonado ascendente o corpo. Vivemos um
tempo de corpos sem anima. De aparência e de ficção. Da Hiper-realidade.
A era do Tik-tok que mais não é afinal do que expressão visual,
cinematográfica, do algoritmo que tudo vê, tudo capta e tudo ordena…
Pessoalmente, não me considero uma pessoa espiritual,
falta-me, creio, esse elemento essencial da fé. Mas, no campo de onde venho,
que é afinal o terreno da História e da Literatura, a espiritualidade é a
continuada e eterna busca do conhecimento, a observação e interpretação
simbólica do real, é a pulsação do pensamento no coração do poema, a metáfora,
a ideia filosófica, a razão do Eu.
William Blake, o grande poeta místico do período áureo do
romantismo inglês, dizia que “nós não vivemos na realidade, vivemos naquilo
que julgamos ser a realidade”. O que penso que Blake pretendia era
exatamente apelar para a suspeição do materialismo, apontando-nos o caminho
múltiplo e infinito do sonho, ou do impalpável, do Sopro. Mas não enquanto
ficção ou engano. Enquanto alteridade. O Eu e o Outro. Como Alice do outro lado
do espelho.
T. S. Elliot, o grande poeta americano, dizia que a “Humanidade
não suporta demasiada realidade”. Demasiada matéria. E, nessa ansiedade
permanente do real, hoje ainda mais sufocante do que há cem anos, na juventude
de Elliot, é no regresso ao espírito, o retomar do Sopro, que se fecunda a
esperança do humano.
Se o Espírito é a forma primeira do Homem, falta então
recuperar o espírito para recuperar o humano. Porque a recuperação do humano é
essa reconquista do espaço do irrealizável, da magia, do afeto, do sopro do
amor que é a realização plena da Humanidade.
Vila Franca do Campo, 18 de maio de 2024
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