domingo, 19 de maio de 2024

A Recuperação do Humano na Era do Número



Homem Vitruviano, desenho Leonardo da Vinci, 1490

[intervenção na Azorean Spiritual Summit]

A primeira pergunta que todos nos colocamos, desde a génese da consciência e do pensamento, é a de “quem sou?”. Quem sou eu? De onde venho, para onde vou, o que faço aqui? Ou, na irónica formulação de Herman José: “De onde vimos, para onde vamos e quem é que nos paga?”.

Desde os mais antigos tempos do humano que o questionamento do Eu marca a sua própria evolução. A busca pelo conhecimento é, afinal, a essência da espiritualidade, mas também é da ciência, da filosofia e, na perspetiva junguiana do próprio Ser e do Eu. Nas palavras do nosso santo Antero, tantas vezes esquecido ou remetido para a mera categoria de sonetista, quando foi de pleno direito um dos maiores pensadores portugueses do século XIX, e não só, na abertura do seu ensaio “Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX”, publicado em três artigos na Revista Portugal, dirigida pelo seu amigo Eça de Queiroz, entre Janeiro e Março de 1890 , pouco mais de um ano antes de tirar a sua própria vida, a tiro de pistola, sentado num baco do campo de São Francisco, – “A filosofia é eterna como o pensamento humano…

Espírito e alma, corpo, consciência e pensamento são ideias, formulações da mente, tão antigas como o próprio ser humano. São, afinal, características essenciais da caracterização da própria Humanidade e sempre estiveram interligadas entre si. Não se opunham, mas complementavam-se, como peças de um grande puzzle da sabedoria e instrumentos para a indagação da realidade que é a sina e o destino de todo o Ser Humano.

Nas formulações clássicas, espírito e sopro são uma e a mesma coisa. No grego antigo a palavra pneuma refere da mesma forma o ar, a respiração e o espírito. E, como sabemos no Jardim do Éden, Deus soprou a Vida pelas narinas de Adão. Esta noção do etéreo, do impalpável, do que é sublime e incorpóreo, como elemento primeiro da Vida, da alma e, por força do espírito, como condição imprescindível e distintiva do humano, marcou ao longo de milénios a história do Homem e a sua representação. E, interessa-me aqui recuperar esta imagem eminentemente simbólica do intangível como caracterização da existência para abordar o tema da espiritualidade e da sua antítese a materialidade. Porque, como diz Manly P. Hall, notável pensador e divulgador americano do pensamento esotérico, no seu magnum opus “The Secret Teachings of All Ages” – “a mais universal linguagem é o – Simbolismo.”

Ora, durante os mesmos milénios alma e espírito, pensamento e consciência, e até mesmo ciência e filosofia, foram, eram, de certa forma sinónimos, eram complementares e indissociáveis. Hoje, neste acelerado mundo moderno e binário, onde o código, restringido a zeros e uns, é o concreto, o material, o explicável e mensurável, que domina o pensamento contemporâneo, preso na armadilha do seu racionalismo, dito, lógico e científico.

Não me interpretem mal. Com isto não estou a criticar a ciência per si, enquanto grande corpo de conhecimento, mas antes a colocar em questão um certo cientifismo atual que se entende a si próprio como único, absoluto e omnipotente. Curiosamente este processo de progressiva materialização da consciência e do pensamento, afastando-se das componentes mais etéreas da alma e do espírito, do Sopro, ou, se quisermos mesmo, do Divino, teve o seu início com uma corrente filosófica denominada Humanismo, ou para ser mais correto, com as interpretações Iluministas do Humanismo e mais tarde, aprofundadas, ou adensadas, para ser mais exato, pela chamada Segunda Revolução Científica, a atomização do conhecimento. E, é claro, com a guerrilha ideológica entre a religião e a política, entre a Igreja, o Dogma, e o pensamento e a Liberdade.

Paradoxalmente, o Humanismo é, ou foi, precisamente, aquela corrente do pensamento que colocou o Homem no centro das coisas. Que procura no humano, caminhando de certa forma para além de Deus e do divino, do Sopro, afinal, a razão e a explicação da existência. O humanismo, em suma, responde à pergunta “quem sou?” com o Homem.

Lembremos o célebre desenho de Leonardo da Vinci do Homem Vitruviano, em que as proporções do corpo humano são matematicamente descritas numa simetria perfeita extensível ao contexto do Universo. Com o Humanismo o Homem torna-se o centro do conhecimento e, por extensão, do Universo. Se bem que, muitos dos principais pensadores do humanismo renascentista, como Copérnico, Pico de la Mirandola, Galileu ou Newton, para além de herdeiros do pensamento clássico, discípulos diretos nomeadamente de Platão e Aristóteles, eram, também e ao mesmo tempo, estudiosos e defensores do pensamento hermético traduzido do Antigo Egipto, por via ptolemaica, até ao humanismo renascentista e ao século das luzes. Sir Isaac Newton, para além de autor dos Principia Mathematica e criador dos fundamentos da mecânica clássica, a origem da física contemporânea, foi, também, um dos mais importantes alquimistas da História.

Entretanto, é curioso verificar que o famoso adágio cartesiano, “cogito ergo sum”, proferido por Descartes, considerado o fundador do método científico, na sequência de Francis Bacon, ele próprio um alquimista e rosa-cruz, é, afinal, uma versão lógico-matemática da chave hermética, “o Todo é Mente a Mente é Tudo”. Mais tarde, o nosso António Damásio irá contrapor à lógica cartesiana o primado das emoções na elaboração da razão, uma subjetivação do conhecimento que foi tão inovadora como extraordinariamente próxima desse Sopro inicial, mas divago…

Em seguida ao Humanismo, o Iluminismo vai adensar, e uso o termo propositadamente, no sentido de tornar mais denso e pesado, ainda mais esta materialização da razão e do antropocentrismo da filosofia e do conhecimento. Desviando-a e afastando-a de todos os ares, ou mares, que não sejam terrenos sólidos e concretos, ou, como usa dizer-se hoje em dia, com base científica. Num tempo em que a própria ciência já deixou de ser questionamento, hipótese, para se tornar certeza e verdade, tão inquestionável como o próprio Dogma. Deus Ex-Machina

Humanismo e Iluminismo, mais do que correntes filosóficas, mas enquanto manifestações políticas, procurando contrariar a verdade divina expressa na autoridade da Igreja e do Senhor, aqui tido tanto como Deus, no altíssimo, como Rei, todo-poderoso e absoluto, vão de certa forma degenerar, creio que involuntariamente, num totalitarismo empiricista onde apenas o que é mecânico e matemático é verdadeiro, e onde o Sopro, que é a matéria do sonho, é desvalorizado e descartável.

Esta questão, aliás, da verdade científica esta na raiz de muitos dos dilemas e das perplexidades que vivemos atualmente. O método científico, baseado em evidencias, exclui o que não pode ser materializado, seja de forma empírica, seja de forma teórica ou matemática. O Sopro, feliz ou infelizmente, não é equacionável. Nem tem formulação matemática.

A este propósito talvez seja interessante regressar a Epicuro de Samos, e à Atenas do século IV a.c. que busca nos prazeres, o Epicurismo, a via para a Felicidade plena através da qual se atingiria a Ética, o estado e aspiração última da existência do Homem.

Ao longo dos séculos a ciência e com ela o conhecimento e, de certa forma, a filosofia foi-se tornando progressivamente mais concreta, objetiva, microscópica e, apesar do Bosão de Higgs, material. Embora, quase como dois opostos que se atraem, a atomização e Sopro são, afinal, espantosa e universalmente próximos. Mais uma vez, e voltando às chaves herméticas, a dualidade como princípio de todas coisas.

Não querendo fugir muito para Oriente e entrando na área que me pediram que tratasse aqui hoje, os problemas e os desafios do mundo atual, dentro de uma perspetiva mais política do que filosófica, esta materialização de que vos tenho falado tem a sua realização plena no Capitalismo.

O capitalismo tem a sua fundamentação existencial na propriedade. Na posse e no lucro. E a primeira forma de propriedade foi a propriedade da terra. O solo arável. É interessante verificar que, em estreita oposição à fundamentação judaico-cristã de matriz clássica da civilização ocidental, as tribos norte americanas opõem-se determinantemente ao conceito da posse da terra. “Nós não somos os donos da terra, nós apenas a cuidamos de uma geração para a outra, nós somos a terra” dizem-nos os anciãos Cherokee e Iroquois e todas as outras tribos da vasta américa de Thoreau e Whitman. Hoje, capitalismo e materialismo são indissociáveis, são sinónimos, entrelaçados entre si, perdoem-me o pleonasmo. O “quem é que nos paga” do Herman José, tornou-se tão ou mais importante do que o “de onde vimos e para onde vamos”.

Vivemos não já numa sociedade de pessoas, de humanos, mas de referenciais numéricos, de estatísticas, gráficos, curvas, percentagens e o exemplo mais paradigmático e dramático disso mesmo foi precisamente na pandemia. Na distopia pandémica o humano foi substituído pelo paciente, o veículo da peste, um dossier sem nome, etiquetado e anónimo, número, dado, folha de Excel.

Mas adianto-me. Ao subjugarmos as nossas vidas às normas e aos desejos do capitalismo, que se desdobra em mercantilismo, industrialismo e, essa Hidra contemporânea que dá pelo nome de neoliberalismo estamos no fundo a subjugar-nos à posse, que é terrena e material e a rejeitar, ou a pôr-nos em oposição, ao Sopro que é etéreo e universal.

Num certo determinismo capitalista aquilo que nos identifica plenamente é o que possuímos, contrariamente aos movimentos progressistas que são fundamentalmente aspiracionais, que visam a utopia, que é ela própria impalpável, ou até de certa forma irrealizável, na medida em que está sempre por cumprir, e que se encontra quase que de forma sobrenatural no campo do Divino. Do Futuro.

Esta evolução determinista, conjugada com a cada vez mais poderosa revolução científica, levou-nos a de alguma maneira identificar o humano apenas e exclusivamente com a sua formulação matemática e física. A física, aliás, passou a ser a mãe de todos as ciências, destronando a própria filosofia. E aqui entra a Segunda Revolução Científica, com a física quântica, que vem tornar ainda mais densa toda a matéria do conhecimento e, em última instância, da procura do Eu.

Os nossos sistemas políticos, tal como o capitalismo, tornaram-se fundamentalmente inumanos. As democracias contemporâneas têm a tendência para olhar macro e microscopicamente para as pessoas, que se tornam entidades abstratas, não já indivíduos, ou mesmo cidadãos, para se tornarem, grandes massas estatísticas, os eleitores, ou essa coisa imprecisa e tantas vezes mal denominada de povo. O povo, que é afinal a humanidade, assume aos olhos do político uma existência conjunta, massificada, sem a pureza individual e humana da individualidade e da liberdade de cada um.

A pandemia foi disso um exemplo muito claro quando se estripou o humano dessas suas características essenciais, como liberdade e a individualidade, para, numa chantagem horrível e fundamentalmente desumana, o salvar. Destruímos o próprio objeto que ambicionamos preservar, numa alteração completa dos princípios básicos da vida. A realidade pandémica era a consumação plena do comercialismo capitalista, onde o homem era tão e apenas só rendimento per capita.

A desumanização da existência, que confronta até a própria morte, torna-nos vazios. Ou, esvazia-nos do que nos faz humanos que é a matéria divina do Sopro. Como um balão solto da mão de uma criança perdendo o ar em reviravoltas pelo céu. Ou uma alma abandonado ascendente o corpo. Vivemos um tempo de corpos sem anima. De aparência e de ficção. Da Hiper-realidade. A era do Tik-tok que mais não é afinal do que expressão visual, cinematográfica, do algoritmo que tudo vê, tudo capta e tudo ordena…

Pessoalmente, não me considero uma pessoa espiritual, falta-me, creio, esse elemento essencial da fé. Mas, no campo de onde venho, que é afinal o terreno da História e da Literatura, a espiritualidade é a continuada e eterna busca do conhecimento, a observação e interpretação simbólica do real, é a pulsação do pensamento no coração do poema, a metáfora, a ideia filosófica, a razão do Eu.

William Blake, o grande poeta místico do período áureo do romantismo inglês, dizia que “nós não vivemos na realidade, vivemos naquilo que julgamos ser a realidade”. O que penso que Blake pretendia era exatamente apelar para a suspeição do materialismo, apontando-nos o caminho múltiplo e infinito do sonho, ou do impalpável, do Sopro. Mas não enquanto ficção ou engano. Enquanto alteridade. O Eu e o Outro. Como Alice do outro lado do espelho.

T. S. Elliot, o grande poeta americano, dizia que a “Humanidade não suporta demasiada realidade”. Demasiada matéria. E, nessa ansiedade permanente do real, hoje ainda mais sufocante do que há cem anos, na juventude de Elliot, é no regresso ao espírito, o retomar do Sopro, que se fecunda a esperança do humano.

Se o Espírito é a forma primeira do Homem, falta então recuperar o espírito para recuperar o humano. Porque a recuperação do humano é essa reconquista do espaço do irrealizável, da magia, do afeto, do sopro do amor que é a realização plena da Humanidade.

Vila Franca do Campo, 18 de maio de 2024


 

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