quinta-feira, 30 de julho de 2020

Café Royal CLXXXV

A Enfermaria

Tirando os benefícios de lavar ou desinfectar as mãos com frequência, pouco há, sobre esta malfadada pandemia, que gere consenso na comunidade científica. Por esse mundo fora, médicos e epidemiologistas debatem-se com mais dúvidas do que certezas. Mas, nos Açores a Autoridade de Saúde acha-se detentora da mais alta sabedoria e das melhores e comprovadas “boas práticas”, alardeando-se mesmo o epiteto de salvadora das ilhas do infecto bicho. Mesmo que o seu único remédio para a contenção da pandemia seja recusar-lhe o visto de entrada. Porém, incapaz de mandar suster a vida, a Autoridade de Saúde Regional entretém-se a ordenar a detenção de todos os desafortunados cidadãos que, por azar, se sentam no lugar errado do avião. E ainda se lamenta, com inaudita arrogância, da interferência abusiva dessa coisa maçadora chamada Estado de Direito na sua cruzada abnegada em prol da saúde-pública. Desde os idos de Março que nos Açores vivemos, por resolução do governo, sob a égide do fascismo sanitário e nas mãos de quem vê no confinamento e no “isolamento profiláctico” as grandes armas de combate à doença e que acha que o mundo todo não é mais do que uma imensa enfermaria.

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 23 de julho de 2020

Café Royal CLXXXIV

O longo Inverno  

O italiano Antonio Gramsci, um dos pais do socialismo moderno, dizia ser “um pessimista pela inteligência e um optimista pela vontade”. Ao ver os parcos resultados da atribulada reunião do Conselho Europeu, recordei essa inspirada máxima, de um dos seus escritos da prisão, à qual foi condenado pela ditadura fascista e onde viria a passar os derradeiros anos da sua vida. Ao contrário do que nos querem fazer acreditar os líderes europeus, com os seus discursos laudatórios, o resultado dessa longa maratona negocial, não foi um êxito, muito menos um passo em frente na construção europeia. O que se exigia de uma União Europeia, neste momento pivô das nossa vidas, era alcançar um simples consenso e o que ficou demonstrado foi que a UE é incapaz de atingir tal desiderato. Até os muitos milhões de € anunciados em tom triunfante são, pela sua origem, pela forma como serão distribuídos, como pelos critérios da sua aplicação, tudo menos uma resposta solidária a esta crise devastadora que se vai estendendo sobre nós como o manto de um longo inverno nuclear. Dentro de cada um de nós há uma vontade de optimismo, mas a inteligência obriga-nos a perceber que o pior ainda está para vir…

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Café Royal CLXXXIII

Toda a diferença

A minha geração será a última que poderá afirmar, sem receio de erro, que viveu efectivamente a sua juventude. Nos últimos cinquenta anos, só duas gerações, a dos meus pais, nos frios e libertinos anos 50/60, e a minha, nos glamorosos e eletrificados anos 80/90, viveram plenamente essa idade que Proust classificou como “a única em que sempre se aprende alguma coisa”. Dai para cá, neste dealbar caótico do séc. XXI, aos jovens foi-lhes roubada a liberdade e a angústia da verdadeira adolescência. E se, nas primeiras décadas do século, esse furto foi imposto por razões económicas, hoje, na Era do Covid, é por imposição administrativa do crime de sociabilização que toda uma geração se vê privada dos seus anos mais ricos. De todas as devastadoras consequências desta crise talvez essa seja a mais amargurada e aquela que, na longa maratona da vida, venha a ter consequências mais profundas. Para quem já cruzou o meridiano da existência, um Verão é nada, mas para os jovens, que vivem exultantes entre o céu e o inferno, um dia de praia, uma noite de luar, um olhar ou um toque de mão na pele bronzeada, toda essa agridoce efervescência do Verão, é tudo! E perder isso, nem que seja só um ano, fará sempre toda a diferença.

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 9 de julho de 2020

Café Royal CLXXXII

O abismo

Ao fim de um tempo há uma espécie de torpor que se instala no corpo, uma imobilidade física e emocional, que bloqueia os movimentos e a esperança. Ao fim de um certo tempo nada nos comove, já escutamos as notícias como num leve zumbido, uma surdina a que os ouvidos se acostumaram e que está lá, latente, como um espectro nas costas da cabeça. Os olhos fitam o horizonte e há como que um peso nos músculos, uma dormência que nos prende, uma anestesiada insensibilidade aos acontecimentos, à retórica vazia e repetitiva dos políticos, à apatia dos dirigentes que vão maquinalmente digitando ordens nos seus teclados, aos números, sempre maiores, às estimativas, cada vez piores, ao agigantar inexorável da enorme crise, a maior de todas, aos zeros infinitos e sem dimensão dos milhões, e biliões, e triliões, e um número tão universal e infindável que não tem plural. A partir de um certo momento é como se desligássemos, como se já não quiséssemos saber. Como se tudo fosse negro e sem luz. Como se toda a sociedade se lançasse num enorme e oceânico suicídio colectivo. Uma precipitação voluntária no abismo. A catástrofe já está aí e cresce a cada dia, metastisando-se como um cancro, e quando Outubro chegar já será tarde demais.

in Açoriano Oriental


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Café Royal CLXXXI

Despautérios

Do céu ao inferno vai um sopro de distância. E, do milagre português, que pautou o nosso confinamento, com políticos de peito-feito a atirarem-se à pandemia como quem se automedica com uma mão cheia de antibióticos, bastou o fim da primavera para acordarmos, como se de um pesadelo, nos desvarios do luso-desconfinamento. Veja-se a TAP, cujo destino parece ser o de um novo Novo Banco, onde a bravata política e ideológica do nosso ministro das infraestruturas embateu de frente com o pragmatismo de uma velha raposa da aviação. Basta ter em conta que o pouco de bom que aconteceu à TAP nos últimos anos, nomeadamente nas duas Américas, se deveu, exclusivamente, aos conhecimentos do Sr. Neeleman, para ficarmos em sobressalto com a sua saída da companhia. E, olhando o despautério da TAP, é com temor aterrorizante que imaginamos o que por aí virá para a nossa agonizante SATA. Nestas ilhas em que testes de 12 horas se prolongam em 48, não é de admirar que o que nos aguarda seja um longo e penoso purgatório. Em jeito de aviso, já alguém pensou se noutros países, por exemplo na Suíça, é possível fazer os testes antes de apanhar o avião?

in Açoriano Oriental