sábado, 26 de junho de 2021

os componentes do olhar

 

Migrant Mother (1936) photo by Dorothea Lang

Imaginemos, por um momento, um país civilizado. E, imaginemo-lo numa ilha que é essa a forma verdadeira de todas as utopias. Nesse país todas as pessoas são educadas e letradas, cursaram as mais prestigiadas universidades, completando doutoramentos e pós-doc. A economia é pujante e efervescente, exalando dinamismo e empreendedorismo e todos os outros ismos da língua e do inevitável anglicismo. Desemprego inexistente e superavit permanente. Nesse país o Estado é uma entidade magnânima e protetora. Provendo zelosamente as mais básicas necessidades dos cidadãos. Sistema de Saúde Universal, com cobertura a cem porcento. Maternidades de ponta, médicos de família com rácio de 1 para 10 e cuidados primários e políticas para a prevenção na saúde tão eficazes que o mais moderno centro de tratamento oncológico era um imenso e ecoante vazio. Os melhores números na educação, zero abandono escolar, iguais taxas de reprovação. No desporto um acumular de medalhas e vitórias em mundiais e olimpíadas. As forças de segurança, desarmadas, desempenham funções cívicas, auxiliando crianças e idosos. O exército, dedicado apenas a missões de paz em países estrangeiros, empobrecidos, dizimados pela fome, a pobreza e a guerra. Não existem cidades, nem campo, nesse país, todo o território é um vasto e geométrico subúrbio equilibrando suavemente a natureza e o urbanismo numa síntese perfeita e harmónica entre a terra e o homem. Imaginemos que esse país é súbita e misteriosamente atacado por uma pandemia, provocada por um vírus desconhecido e, potencialmente, letal. O Governo decreta imediatamente um confinamento geral que é escrupulosamente respeitado por toda a população. O país entra em pausa. Os cidadãos, recolhidos aos seus lares amplos e modernos, acompanham pelas televisões o evoluir da situação. Ouvem-se os melhores especialistas, os mais doutos sábios e cientistas, números são analisados, gráficos desenhados, curvas e planaltos, equações e extrapolações, relatórios clínicos e múltiplos cenários. Os governantes exortam o civismo e a responsabilidade individual, a nação inteira une-se na batalha pandémica. Indiferente ao estrito confinamento e distanciamento, ao uso permanente de máscara e etiqueta respiratória, o vírus segue o seu variante caminho, positivando constantemente, internando esporadicamente e matando raramente. Trabalhadores e empresas abraçam o teletrabalho, os negócios fechados vivem das subvenções do Estado. Os jovens comunicam por Tik-tok e os pais por Whatsapp. A sociedade prossegue num confortável alheamento a narrativa pandémica até que um dia, como se despertasse de um sonho, alguém decide sair à rua e, espreguiçando-se num prolongado abrir dos braços, respirar.

Imaginemos, agora, uma outra ilha. Pobre, deficitária, caótica. Governada pela cobiça e a incompetência. Onde a pobreza grassa e a saúde escassa. Onde o medo medra, como uma acha, soprada em labareda, disseminando-se a uma velocidade maior que a contaminação do bicho. Onde o confinamento não é mais do que uma pandemia em cima de uma pandemia, impondo destruição e desigualdade em cima de confusão e desunião. Onde a demagogia e o populismo são armas de arremesso no autoritarismo simplista e o mais básico bom-senso é liminarmente suprimido no êxtase do fascismo sanitário. Imaginemo-nos, então, a nós e perguntemo-nos em que mundo habitamos nós, verdadeiramente?

Num mundo perfeito qualquer pandemia é benigna. No nosso mundo a pandemia começa, de facto, dentro de cada um de nós, mas não na bioquímica, antes sim na forma como o nosso olhar se lança sobre as cambiantes de cada dia e como o coração, e o pensamento, abraçam as emoções que compõem a sinfonia da Vida, porque é isso que verdadeiramente nos faz humanos.