Apontamentos e Memórias
Quem, há
vinte ou trinta anos atrás, poderia imaginar que, um dia, seria possível? Para
os mais antigos, como eu, aquele é e será sempre o “Pico da Ganza”. Aquele
cantinho, aquele morro, aquelas ondas, eram uma espécie de refúgio escondido
aonde acedíamos sob risco da própria pele, perseguidos por cães de fila, os
pneus dos carros furados e rendeiros furiosos perseguindo-nos como se fossemos
invasores. Só chegar ao “Pico da Ganza” já era uma realização plena da rebeldia
e da inquietação punk do surf nos anos 80 e 90. O risco, o estar fora da lei,
não olhar a meios, ou a ameaças, para cumprir o chamamento das ondas, das boas
ondas. Uma quase libertinagem aquática e oceânica movida pelo prazer dos tubos
e de deslizar naquelas ondas isoladas e desconhecidas.
Naquele
tempo os Açores eram uma entidade inexistente no universo mundial do Surf. Não
havia fotógrafos. As revistas chegavam com meses de atraso. As fotografias eram
todas do Havai, da Califórnia, do Brasil ou de França. Os destinos eram todos
distantes e exóticos, a Austrália, a Indonésia, nem sequer as Fiji, ou o Taiti,
eram ainda conhecidas. Agora, o distante e exótico somos nós. E, o nosso velho “Pico
da Ganza” é cartaz promocional de uma marca de pranchas de Bodyboard, com
distribuição planetária. Aquilo com que nós sonhávamos, há tantos anos atrás,
olhando as fotografias de outros mares e outras ondas, em oceanos diferentes do
nosso, hoje, algum miúdo igual ao que fomos então, sonha ser surfista, ali,
dentro de um tubo, no “Pico da Ganza”. Quem, então, haveria de dizer…
Por isso, a
pergunta, então, que fica por fazer é esta: como foi possível esta evolução de
180 graus, num curto espaço de 20 anos? Como, numa região historicamente virada
de costas para o mar, os desportos de ondas, Surf e Bodyboard, conseguiram esta
projeção e esta relevância no seio da sociedade açoriana, influenciando
decisões políticas e fazendo parte do dia-a-dia de tantas famílias e da própria
sociedade açoriana e captando o interesse e a atenção do mundo do Surf um pouco
por todo o globo?
Dizem-nos,
os compêndios e os manuais de historiografia, que o tempo das gerações é medido
em décadas. 25 anos, sensivelmente, é a duração e a mudança entre cada geração.
Porém, nesta história que aqui me interessa contar o tempo mede-se em verões e
as gerações mudam em dias de praia, de sol e de ondas. Em períodos de swell,
ritmos de ondulação, manobras, histórias e experiências. Tudo aquilo que compõe
uma vida, no fundo, que é feita de instantes e singularidades, como o primeiro take-off,
o primeiro drop, o primeiro tubo, a primeira vez naquela onda inóspita e
nunca antes surfada.
Não existem
registos escritos sobre os primórdios longínquos do surf nos Açores. Não
tivemos um Capitão Cook, nem havia aqui um outro tipo de polinésios, que
escrevesse nas crónicas a agitação das ondas nas praias, baías e enseadas
destas ilhas atlânticas nos idos de quinhentos. O Surf, aqui, é um fenómeno
moderno e é, essencialmente, um filho da baleação. Embora ainda não esteja comprovado,
por um estudo aprofundado, de fontes coevas, é seguro dizer-se que o Surf, ou
essa ideia e gesto de correr vagas com auxílio de um objeto de madeira, terá, possivelmente,
aportado aos Açores, Madeira e Cabo Verde, pela mão dos baleeiros do séc. XIX.
Começando a
partir dos anos 30 do séc. XIX, e ao longo de toda a época de ouro da baleação
americana, os grandes navios baleeiros partiam da costa este dos EUA,
nomeadamente dos portos de Nantucket e New Bedford, em grandes viagens anuais
de circum-navegação, que os levavam a cruzar o Atlântico e o Pacífico, em busca
de caçar os grandes cetáceos e na procura de óleo, gordura e espermacete.
Nessas viagens, era frequente a recolha de marinheiros originários das ilhas
tendo, assim, muitos açorianos, madeirenses e cabo-verdianos chegado ao Havai
levados nessas longas rotas da baleação. De igual forma, muitos americanos se
fixaram nos Açores como agentes de navegação, dos quais o exemplo maior e mais
significativo é, sem dúvida, a família Dabney, que se sediou na Horta.
No final do
século dezanove, entre 1878 e 1887, dá-se uma grande leva de emigração açoriana
e madeirense para o Havai. Famílias inteiras são contratadas pela Hawaiian
Sugar Planters Association para trabalharem nos campos de cana-de-açúcar,
muitos deles levando mulheres e filhos e fixando-se permanentemente nesse
arquipélago do pacífico. Estima-se que neste período cerca de 10 500
portugueses se fixaram nas ilhas havaianas, até cerca de 11% da população do Havai,
pelo ano de 1910, ser de ascendência portuguesa. Os portugueses, apelidados de
“Pukiki” pelos nativos havaianos, levaram consigo várias tradições que, ainda
hoje, se mantêm e fazem parte da cultura popular do Havai, como as “malassadas”
ou o culto do “Espírito Santo”, ainda hoje celebrado, no início de maio, em
vários pontos dessas ilhas do Pacífico.
O nosso
cavaquinho, um instrumento originário do Minho e historicamente muito popular
entre os marinheiros, por ser maneirinho e fácil de transportar, é o pai do
famoso Ukelele havaiano e é seguro dizer-se que terá chegado ao Havai,
precisamente, pela mão dos marinheiros portugueses das escunas baleeiras de
novecentos. É, aliás, esta correlação de causas e efeitos que nos permite dizer
que esses mesmos marinheiros terão tido contacto com a prática do surf no Havai,
nesse tempo, e que poderão, talvez, ter trazido a mesma para as ilhas
atlânticas.
Nos anos 80
do século passado era costume ver miúdos a apanhar ondas, carreiras, em
pranchas improvisadas de esferovite ou em pequenas canoas, quase caixas, feitas
de madeira ou de lata, no centro da baía de Rabo de Peixe. Ao que tudo indica,
e pelo que era relatado pelos próprios, essa era uma prática passada entre
gerações, anterior mesmo aos primeiros surfistas das ilhas. Esses relatos
permitem pressupor que entre os homens do mar haveria esse conhecimento e essa
tradição do divertimento nas ondas com recurso a algum tipo de “pranchas”, um
conhecimento passado ao longo dos tempos, de geração em geração. Não é,
portanto, inverosímil pressupor que este estreito contacto entre os povos dos
dois arquipélagos, dos dois maiores oceanos, tenha levado a trocas culturais e
que algum emigrante açoriano possa ter trazido, de volta, essa tradição havaiana
de correr vagas de mar com o auxílio de uma prancha.
Também é
possível especular que as duas grandes guerras mundiais terão trazido surfistas
aos Açores. O Surf moderno tem a sua primeira expansão após os jogos olímpicos
de 1912, com as tournées mundiais do campeão olímpico de natação, o havaiano
Duke Kahanamoku, que popularizou o desporto, por vários países, fazendo demonstrações
documentadas de surf na Califórnia, na Austrália e no norte da Europa. Durante
a 1ª guerra mundial, a marinha dos EUA teve uma importante base militar na
cidade de Ponta Delgada, entre 1917 e 1919, Naval Base 13 – Mid-Atlantic
Naval Base Ponta Delgada, com o seu comando naval na antiga residência do Cônsul
Hickling, também ele um americano radicado nos Açores, na freguesia de São
Pedro, comandada pelo Almirante Herbert Owar Dunn.
Natural de
Rhode Island, Dunn era amante dos desportos náuticos, nomeadamente da vela, e
podemos imaginar os marinheiros americanos a disfrutarem, nos seus momentos de
lazer, das praias e das ondas das Milícias e do Pópulo, em pranchas de madeira
improvisadas.
O mesmo
poderá ter ocorrido durante a segunda guerra mundial, nas ilhas de Santa Maria,
entre 1941 e 1945, período em que o Governo Português assinou um acordo de
cedência militar, com o Governo americano, visando a cedência do aeroporto para
missões de defesa do esforço de guerra dos aliados, e Terceira, na Base das
Lajes, a partir de 1943, com varias centenas de militares e aviadores
americanos ai estacionados, muitos deles originários da Califórnia, onde, por
essa altura, o Surf era já um desporto popular e em franco crescimento.
Nos quarenta
anos que mediaram entre a segunda guerra mundial e os anos oitenta o Surf nas
ilhas terá sido uma atividade maioritariamente de turistas e de alguns, muito
poucos, entusiastas. Velejadores e marinheiros terão certamente trazido
pranchas e experimentado as ondas açorianas. Rusty Miller, o famoso e reputado
surfista californiano, cruzou o Atlântico nos anos 50, num navio-escola, e
passou nos Açores, embora, de acordo com o seu próprio relato, não tenha aqui
surfado, mas outros como ele poderão tê-lo feito. Pedro Martins de Lima o
“primeiro” surfista português, viajava regularmente aos Açores na mesma altura,
para velejar, fazer caça submarina e, quem sabe, apanhar ondas com o seu amigo
Leo Weitzenbaur. E, claro, temos a história épica do Carlos “Garoupa” Medeiros
que, no final dos anos 40, construiu, ele próprio, uma prancha de madeira de
criptoméria, inspirado pelos filmes de Hollywood do Cine-teatro Vilafranquense
e surfando, solitário, as inchas no baixio sob o olhar atento e imponente do
Ilhéu de Vila Franca do Campo.
Ao contrário
do que se poderia pensar o conceito de lazer é extraordinariamente recente na
história da humanidade. A ideia de tempo livre só entrou no léxico
civilizacional há sensivelmente cento e cinquenta anos com o advento da
revolução industrial e a libertação da força de trabalho. Até lá as atividades
humanas, para além de comer e dormir, eram ocupadas em funções ditas
reprodutivas como caçar, cultivar, transformar, comerciar, aprender, entre
outras ocupações estritamente funcionais e utilitárias. Não fazer nenhum é uma
conquista moderna, aliás, inscrita na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, no seu Artigo 24, em 1948, se bem que, e infelizmente, tenha muito pouco
de realmente universal.
Da mesma
forma, o ato de desfrutar da orla marítima, de gozar a praia, o oceano e as
ondas, também só entrou nos hábitos sociais do mundo ocidental no virar do
século dezanove para o século vinte. “As Praias de Portugal, guia do
banhista e viajante”, de Ramalho Ortigão, teve a sua primeira edição em
1876 e seguia a então moderníssima tendência de incentivar a descoberta e
usufruto da vida à beira-mar como fonte de saúde, de bem-estar e de saudável
ocupação do tempo livre. Ir a banhos, como então se dizia, era para Ramalho
Ortigão algo tão chique e moderno como é para nos hoje comer sushi por
encomenda entregue pelo estafeta da Glovo.
Tirando o Havai
e outras ilhas do Pacífico, a ideia de tirar prazer de uma atividade no mar era
absolutamente estranha para todo o Ocidente. O mar era local de faina, de gesta
e de labor, ou aventura. O oceano era mais um local de perigo do que de
conforto, ou de alegria. O Adamastor em oposição à Ilha dos Amores que era,
como o próprio nome indica, uma ilha. Terra firme e segura e luxuriante. Só no
século XX o ocidente descobriu o encanto e o chamamento das ondas e a arte de
ser levado por elas, ou de se levar com elas.
A minha
primeira onda foi na praia do CDS, na Costa da Caparica, algures pela
primavera/verão de 82 ou 83, numa prancha Suntalon do Rodrigo Carmona.
Lembro-me dessa carreirinha como se fosse hoje, em linha reta desde o outside até arrojar,
como um cetáceo, na areia. A paixão, que logo se transformou em vício, foi
instantânea e levou a que numa Nauticampo, poucos meses depois, os meus pais me
comprassem uma Atunas, azul com quilhas aparafusadas e gráficos coloridos no deck.
Comparativamente,
a Atunas era um míssil ao lado da Suntalon. Com os seus rails curvos, crescent
tail e nose curto, ao lado do formato charuto das Suntalon, a minha
Atunas fazia-me acreditar ser um exímio corredor de vagas. No entanto, ambas
eram iguais na tortura cutânea. Os decks picotados e as horas infindáveis que
passávamos na água provocavam chagas profundas e dolorosas nos nossos peitos
imberbes e infantis. Aqueles primeiros verões, imersos em felicidade e água
salgada, foram o meu ato iniciático na religião das ondas. Para alguém, como
eu, que não acredita em Deus o mar tornou-se, desde então, na minha única fé.
Um ou dois
anos depois uma apendicite aguda levou-me ao bloco operatório do Hospital Santa
Maria, o resultado foi a remoção do apêndice e, a minha mãe, pesarosa,
ofereceu-me, em jeito de recompensa, uma Morey Boogie Mach 7-7 e um fato
O’Neill, um short-john, denominado O’No, que era lindo de morrer,
azul-marinho e verde-água, mas perfeitamente inútil nas águas geladas das
praias do litoral de Lisboa, não que isso me preocupasse, que a vontade e a
excitação de estar na água era tanta que o frio era uma coisa que não se me
assistia. Para além do Rodrigo, também fazia parte desse grupo das primeiras
surfadas o atual Ministro da Cultura, o Pedro Adão e Silva, os dois
bodyboarders arrependidos que cedo, como São Pedro fez a Jesus, renegaram as
suas pranchas, o Pedro tinha uma BZ stinger, se não me engano, e abraçaram o
Surf, que era uma forma mais exigente, mais endinheirada e mais amiga das
miúdas, de apanhar ondas. Eu, provavelmente por ser mais remediado, ou mais
preguiçoso, deixei-me ficar pela arte dos el rolos e dos 360…
E depois,
metem-se as férias, nos Açores, nos fluorescentes anos 80…
De todas as
coisas que o 25 de Abril de 74 deu a Portugal, e foram muitas, e foram
importantes, talvez a menos óbvia seja dizer que lhe deu a primeira verdadeira
geração de surfistas nacionais. Se bem que, se tivermos em conta aquilo que o
Surf representa de liberdade e afirmação pessoal, então, até fará sentido a
ligação à Revolução dos Cravos. Até à revolução a evolução do Surf em território
continental fez-se muito à imagem do que foi a sua evolução nas ilhas, ou se
calhar até em menor escala e a um ritmo mais lento do que nas ilhas, vivendo da
influência de viajantes, turistas e outros nómadas, hippies dos anos 60 e 70,
na sua maioria americanos e australianos, com o ocasional francês, que corriam
a costa portuguesa em busca de um sentido para a vida e no entretanto, enquanto o destino não aparecia, iam
apanhando umas ondas. Eram esses viajantes que iam deixando, aqui e ali, umas
pranchas, alguns ensinamentos e muitos sonhos nas cabeças dos poucos jovens
surfistas portugueses.
Com o 25 de
Abril, e acima de tudo com a partida para o Brasil de um número significativo
de crianças e jovens, fugidos com as famílias às incógnitas do PREC, e ainda mais
com o regresso desses jovens a Portugal cheios do sal, do samba e do espírito
de Ipanema, é que nasceu, em pleno, o Surf em Portugal. De igual modo, nas
ilhas, é esse contacto com o exterior, com a América, também com o Brasil e
principalmente com o continente, Lisboa nomeadamente, que se dá a génese do
Surf no arquipélago. São miúdos cujas famílias tinham contacto direto com o
exterior que vão trazer não só os materiais, pranchas, fatos e outro tipo de
equipamento, mas a cultura e o espírito do Surf para os Açores.
Partindo do
início dos anos 80, quando eu comecei a surfar, aqui em São Miguel já havia uma
meia dúzia de surfistas. O Carlos Gouveia, mais conhecido como “Perna”, um terceirense
naturalizado micaelense, que surfava todos os tipos de mar com a mesma bonomia
e que conseguia a coisa espantosa de ter uma namorada, mais tarde sua mulher,
que aguentava horas e horas, sentada no carro, a ler, à espera dele enquanto
ele surfava Rabo de Peixe clássico. Para quem conheça ou consiga imaginar o
largo em frente à igreja de Rabo de Peixe em meados dos anos oitenta percebe
que este é em si mesmo um feito digno de registo. O “Perna” tinha um irmão que
por brincadeira apelidamos de “Braço”. O Marco Sousa e o Armindo, dois homens
da vela que por isso, julgo eu, se aproximaram do Surf. O Marco depois foi
também parapentista e sempre que me via, fosse onde fosse, perguntava “o que é
que fazes aqui”, como se ficasse sempre espantado de me ver. Foi com o Marco e
o Armindo que surfamos, pela primeira vez, nos areais de Santa Bárbara, que na
altura era uma praia sem areia fruto da apanha ilegal de areia para a
construção civil. Estes eram os mais velhos, por terem sensivelmente mais 10
anos do que nós.
Fazem ainda
parte desta primeira geração, se assim lhes podemos chamar, o Henrique Areias.
Os irmãos "Violante" Pedro e o Manuel Medeiros. O Paulo “Sagão” Ramos. O Francisco Cabral
de Melo. O Paulinho “Picuruta” Santos. O Rigoberto Oliveira. O Miguel Read. Bruno
Brum. Guy Costa. O Rui Horta Santos. E, o João Carlos Fraga, no Faial e o João
Monjardino, na Terceira.
Depois,
havia os da nossa idade. O Zé Albergaria, os irmãos Valdemar, Pedro e “Valdinho”
Bettencourt d'Oliveira. O Pedro Neves. Luis Paiva. O Joao Brilhante e o Miguel “Fru”.
O Paulo “Gadelha” e os “Romis”. O Zé e o Valdinho eram dois talentos natos, com
uma habilidade e uma queda natural para apanhar e deslizar nas ondas e um
estilo, no Surf o estilo é tudo, sem precedentes e é preciso ter em conta que
nessa altura não havia filmes, nem spots na TV ou vídeos do YouTube. Não havia
comparação nem orientação. Aprendíamos observando as revistas, imaginando o
antes e o depois dos movimentos fixados no milésimo de segundo da fotografia.
No final dos anos 80 os “valdinhos” foram, inclusive, ao Havai e trouxeram consigo
de volta pranchas do Eric Arakawa, se não me engano, uma espécie de Fórmula 1
das ondas, naquele tempo.
No Bodyboard
formou-se naquela altura um pequeno grupo, quase um gang, de miúdos apaixonados
e havidos por apanhar ondas, onde eu me incluía quando aterrava, “o português”,
na ilha, nas férias, e do qual faziam parte o André Almeida e Sousa, o Diogo
Cymbron e o Bernardo Rodrigues. O Bernardo era, ainda é, aquele tipo de pessoa
que é bom em tudo o que faz. Surfava melhor que nós todos, tocava guitarra,
tinha boas notas e um sucesso absolutamente invejável com as raparigas, tudo
coisas que nos deixava a todos a querer ser como o Bernardo. O André ficou
conhecido como o “Selvagem”, o Diogo era o “Punk Rural” e a mim foi-me dada,
pelo Zé “Minhoca”, a sensacional alcunha do “Pavarotti”, ou parvaroti
como a minha avó Leonor gostava, ironicamente, de dizer. Paralelamente, havia o
Pedro Machado, o Alvarinho e os irmãos Moniz, Joao e o seu irmão mais novo o
Vasquinho, que era, também, um enorme talento natural, com um estilo de dropknee
que, provavelmente, na altura, em Portugal, seria apenas comparável ao do malogrado
Ricardo Horta. Uns anos mais tarde, surgiu também, o grupo dos Sousa Lima, que
carregavam consigo, em doses iguais, o entusiasmo e os materiais topo de gama.
Esta é a
primeira geração de surfistas a sério em São Miguel e foram estes que tornaram
a imagem dos corredores de vagas algo habitual nas praias da costa sul, desde a
Ribeira Quente aos Mosteiros e desbravaram, com coragem, inconsciência e muita ousadia
os principais spots da costa norte - Rabo de Peixe, Areais, Monte Verde e Sta.
Iria, que eram, naquele tempo, ao que se cingia o North Shore micaelense.
Este foi um
tempo e uma história feita de criatividade, adolescência, bravura, asneiras,
pranchas, fatos, carros inesquecíveis, viagens marcantes, escaldões, boiões de
Nívea, escapadas às escondidas dos pais e dos avós, copos, festas, finos na
Cascata, socos no Cheers, amassos no Pópulos e não, ninguém metia wax no
cabelo, os cabelos louros e descolorados eram só dos dias inteiros passados na
praia debaixo do sol….
A história
da evolução do Surf moderno está intimamente ligada à evolução das tecnologias
e da própria globalização. Em “The World in The Curl: An Unconventional
History of Surfing”, Peter Westwick e Peter Neushul explicam bem como a
invenção e o desenvolvimento de novos materiais compósitos e o acesso e
liberalização de meios de deslocação no planeta, com o advento dos aviões a
jato, tiveram um papel fundamental na disseminação do Surf pelo globo.
O
desenvolvimento das espumas de poliuretano, fruto do esforço científico da
segunda guerra, é um elemento fulcral na expansão da indústria do Surf. As espumas
de poliuretano, inventadas por Otto Bayer, tiveram um papel fundamental na
indústria aeronáutica do tempo da guerra, sendo que muitos dos principais
centros de desenvolvimento da força aérea americana ficavam precisamente na
Califórnia. Após a guerra, muitos destes engenheiros enveredaram por outros
voos associando o seu conhecimento científico e de engenharia ao uso desses
mesmos materiais na construção e multiplicação de pranchas.
É esta
relativa facilidade na produção de equipamentos para a prática de Surf que vai
permitir a sua democratização, embora este nunca tenha sido um desporto barato.
Em 1971, Tom Morey, engendrou, na sua garagem no Havai, o primeiro protótipo da
prancha de bodyboard a que chamou de Boogie Board, em homenagem ao Boogie
Woogie, um estilo de blues do qual Tom era particularmente fã. Daí nasceu a
sua marca Morey Boogie que, em 1977, vendeu à gigante fabricante de brinquedos
Mattel, tornando-se o bodyboard tão ou mais popular que a Barbie e o Ken.
O acesso a
materiais é fundamental para o desenvolvimento do Surf. Sem pranchas e fatos
não há Surf ou Bodyboard, só bodysurf. As surf shops, nos anos oitenta,
eram inexistentes nos Açores e raras em Portugal. Em Ponta Delgada a MAP uma
loja de material náutico e de pesca, do Honorato, era onde, lá de quando em
vez, se conseguia comprar um fato ou uns pés de pato, depois a Jamé passou a
ter também algum material técnico para além do habitual surf wear, mas a
maioria do material vinha de fora, principalmente dos EUA, ou do continente, dada
a facilidade de muitos jovens açorianos contactarem familiares emigrados na
América e pedir para enviarem, fatos e pranchas. Em Lisboa, o cenário não era
muito melhor com meia dúzia de lojas espalhadas pela Costa da Caparica e no
eixo linha Cascais. Esta escassez de material fazia com que as pranchas
durassem anos e fossem sendo remendadas e reparadas consoante o uso e a
necessidade. O mesmo com os fatos, feitos daquilo que à luz da tecnologia
moderna era não polietileno fino e maleável, como o que temos hoje, mas um
quase couro, duro e ressequido. Uma técnica comum para ajudar a vestir os fatos
era o uso de sacos de plástico, ou meias, para melhor fazer deslizar os membros
do corpo para dentro daquelas autênticas armaduras de borracha. E pazadas de
creme Nívea, no pescoço e outras zonas da anatomia onde o neopreno ressequido
tinha tendência a queimar a pele, como alcatrão seco, depois de horas e horas de fato vestido.
No campo das
pranchas de bodyboard para além da 7-7 e da BZ Stinger, dois clássicos
absolutos da altura, havia outras pranchas que despertavam a cobiça da
miudagem. Turbo e Wave Rebel eram duas outras marcas que dominavam o mercado e
também a Génesis, do visionário brasileiro Marcus Kal Kung. Por cá o Bernardo
surfava com uma Mach 20, o modelo mais futurista da Morey, com as suas quilhas
retrateis e o deck em vinil, com gráficos ao melhor estilo cyber
disco dos anos 80, uma espécie de hit do Giorgio Moroder em formato prancha
de bodyboard. Olhando para a prancha hoje parece um tanque de guerra, mas como
ela andava e como ele a fazia andar…
O meu único
encosto relativo com o mundo da “prozada”, patrocínios, marcas e campeonatos
foi quando o meu tio João Augusto, ligado ao negócio da importação de alimentos
para pássaros, recebeu uma proposta para representar em Portugal uma marca sul
africana de waveskis, a Wave Warrior, que por sinal, na altura, estava a lançar
uma gama de pranchas de bodyboard com slicks em fibra. Uma novidade
absoluta no mercado, mas um flop tanto técnico como comercial. Sendo o único
“surfista” da família, fui chamado para ser consultor e atleta da marca, uma
aventura que foi tão rápida e curta, como fracassada.
Que eu tenha
conhecimento só houve dois shapers, dignos desse nome, na ilha de São
Miguel, o João Brilhante, uma das mais singulares e marcantes personagens do
Surf açoriano e o Dário Correia. Claro que havia alguns curiosos e inspirados e
corajosos aspirantes a shapers como os irmãos Mário e Jorge e as suas
Crystal Voyagers, que, ao que sei, se auto exilaram na paradisíaca Caldeira da
Fajã do Santo Cristo, e consta que o Francisco Cabral de Melo também se terá
aventurado no fabrico de pranchas. Mas, nada sequer comparável aos sucessos
comerciais de marcas como a Semente ou a Pólen, os dois grandes gigantes do
Surf nacional nos anos 80 e 90.
Ser surfista,
naquele tempo, era tratar bem do material, saber estimar e cuidar e ser vintage
antes do tempo…
Rastejantes,
sapos, pensos higiénicos, lombas, boogies, moreyboogies, etc., etc., eram
muitos os epítetos que marcavam a “má” relação entre surfistas e bodyboarders
ao longo dos loucos anos 80 e 90. O estigma era tão grande que, na verdade, a
grande maioria da malta da minha geração, que começou a apanhar ondas de Bodyboard,
mais tarde ou mais cedo, a certa altura da vida, passaram a fazer Surf e alguns
deles hoje fazem paddle que é a versão gondoleira dos desportos de ondas,
algo que só comprova que nem todas as evoluções são no sentido positivo, mas
adiante.
O ponto
central aqui é que o Bodyboard era tanto do ponto de vista financeiro como
desportivo mais acessível do que o Surf. Por metade do preço era possível
comprar uma prancha de Bodyboard e, com metade da chatice, era possível começar
a curtir, verdadeiramente desfrutar, umas ondas. Como costumávamos dizer o Bodyboard
era mais fácil de aprender, mas mais difícil de evoluir, enquanto no Surf a
curva evolutiva era ao contrário, era mais difícil de pôr em pé, mas ir em
frente, todos iam…
Ao contrário
do que acontecia no continente onde a clivagem entre surfistas e “rastejantes”
era mais profunda, com atritos e inimizades constantes, em muito potenciadas
pelo crowd, que era já muito em praias como as da Costa ou da Linha, nos
Açores, o número reduzido de gente no mar e o facto de sermos todos basicamente
primos uns dos outros levava a uma mais saudável convivência entre os subgrupos
de surfistas. Aliás, a única separação, a haver alguma, era entre betos e alternativos
e os mistos, mais conhecidos como betos-alternativos. Embora, uma amiga minha
do liceu D Pedro V tivesse a teoria que todos os surfistas eram betos e
gostavam de INXS… mas já estou a fugir do tema.
Como já
referi, o primeiro grupo de bodyboarders, a sério, de São Miguel era composto
pelo Bernardo, o Diogo, o André, eu, quando vinha nas férias, e a inolvidável
Guilhermina. A Guilhermina era o Volvo GL do pai do Bernardo que nos levava
pelas estradas, ruas e canadas da ilha, as vezes em contramão, em busca de
ondas, cervejas, miúdas e juventude. Os carros, aliás, são uma parte importante
desta história. Para além da GL do Bernardo, havia a Renault 4L dos
Albergarias, um dos, se não o mais marcante surf vehicle da ilha,
durante aqueles anos, e que, para além de literalmente voar, tinha uma
aparelhagem que valia mais do que o carro todo e com um bom gosto musical de
fazer inveja a qualquer rádio alternativa britânica. Havia, também, um Opel
Corsa, dos pais do Diogo, que eu espatifei uma vez à saída de um bar porque me
apetecia pão quente às tantas da noite, mas também já estou a fugir do tema…
Antes dos
carros, havia os sapatos e as boleias. Antes de alguém ter a carta, fazíamos
todos cerca de um a quatro anos de diferença de idades, mas não se notava,
andávamos a pé ou à boleia. Da Fajã de Baixo até ao Pópulo ainda eram um par de
quilómetros que de manhã, à ida, ainda se faziam facilmente, ao fim do dia era
telefonar a pedir boleia aos pais, mães e avós. Depois havia as boleias, às
escondidas, para a Ribeira Grande, em carrinhas de caixa aberta de lavradores
ou camiões das obras na estrada da Ribeira Grande antiga.
Nesta altura
o Bernardo e o Vasquinho eram os melhores talentos na água. Logo depois surgiu
uma nova geração, uns cinco anos mais novos do que nós e a quem passamos a ser
nós a dar boleia, onde se destacavam o Serginho, o Ricardo “Caveira”, o
Miguili, o Ivo Batista, que era tão bom na água como na grande área, e um miúdo
franzino e sempre sorridente chamado Ricardo Moura. Estes putos entraram na
água e no mundo do bodyboard açoriano lançando aéreos e el rolos e dando-nos
calças a nós todos. E, o Moura, não fora o azar de um tímpano, poderia ter
muito bem sido um dos melhores bodyboarders nacionais, quem ficou a ganhar com
isso foram os rallies. O único defeito dos miúdos era gostarem de Offspring…
Logo a
seguir vem uma outra leva, cheia de talento e, gosto eu de pensar, com a enorme
vantagem de terem malta na água para observar, coisa que nós não tínhamos tido,
a nossa foi uma aprendizagem de instinto, cassetes VHS mil vezes rebobinadas,
com uns clips do Eurosport que misturavam windsurf, com Bodyboard, com Surf, e
as revistas emprestadas, recortadas e mil vezes folheadas, fujo outra vez… esta
segunda leva tinha o Bruno “animal”, o Corvelo, o Rijo e o Pedrim Correia, que
hoje é patrocinado pela Pride, que acabou de lançar uma prancha, que só por ter
uma foto do “Pico da Ganza” no slick devia, também, ter o nome dele estampado
no deck.
Apesar de
tudo, nos Açores, Surf e Bodyboard sempre conviveram e sempre se incentivaram
um ao outro, a união faz a força e ainda bem que assim foi…
Costumo
dizer que só é local quem nunca viajou. Viajar é uma parte fundamental da
vivência do Surf. A ideia e a prática da viagem está, até, na génese do Surf
moderno, com essa autêntica viagem de peregrinação de Duke Kahanamoku, em redor
do mundo, ofertando a dádiva da arte de correr ondas aos pagãos e aos não
iniciados.
Procurar
ondas, na praia ao lado, naquela baía do outro lado da falésia, percorrer a
costa, ou sonhar com costas distantes, em outros continentes e ilhas
paradisíacas, é, também, ser surfista. Desde o filme “Endless Summer” do
John Severson, estreado em 1966, que essa mística do “search”, da
procura, está impressa no mais íntimo de cada surfista, de cada um de nós,
aqueles que se deixaram tomar pela ânsia de conquistar a magia das ondas.
Também aqui,
nestas ilhas atlânticas, a História do Surf é feita de viagens, desde os
baleeiros, aos velejadores, passando por militares estacionados ou peregrinos
desterrados, ou aqueles a quem eu chamo os expatriados. Até as viagens entre as
ilhas ou dentro das ilhas experimentando e mapeando novos spots, novas ondas e
emoções, são também uma forma de se ser verdadeiramente surfista.
O conceito
dos expatriados é fundamental para compreender a evolução do Surf nos Açores.
Estou a falar dos continentais que nos anos 80 e 90, por razões relacionadas
com o Surf, ou não, escolhem os Açores para viver, trazendo consigo desde logo
as pranchas e o hábito não sazonal de surfar. Assim de repente recordo dois
nomes: o Pires dos Santos e o José Maria Pyrrait.
O João Luis
Pires dos Santos era um verdadeiro profeta das ondas, alguém que dedicou a sua
vida, de uma forma radical e quase monástica, a uma certa ideia e conceção das
ondas e do Surf, não como um desporto, ou uma atividade de lazer, mas como uma
religião. Uma quase maçonaria das vagas, com rituais de iniciação, cerimoniais
secretos e conhecimentos ocultos. A paixão que tinha pelo mar e a sua visão do
Surf deixou não só uma marca profunda como um legado, principalmente na ilha
Terceira, mas não só, que vai para além da célebre COCOVAMA, a Confraria dos
Corredores de Vagas de Mar, e que perdurará no tempo. Embora num plano muito
diferente do meu, tivemos até algumas polémicas, o João Luís foi alguém que me
marcou pessoalmente, pela sua cultura e desenvoltura, e que merecia uma mais
justa homenagem e celebração por tudo aquilo que fez pelo Surf nos Açores.
Mas, não deixa
de ser irónico como muitas vezes são estes mesmos expatriados os mais acérrimos
defensores do localismo como se quisessem defender a sua pátria adotiva dos
erros cometidos nas suas pátrias de origem…
O Pyrrait
era outro estilo, grande, sonoro, aberto e aventureiro. O Pyrrait tornou-se
açoriano pela razão mais sincera de todas, o amor. Amor as ondas, à liberdade
de as viver, e amor a uma açoriana. Anos mais tarde o Pyrrait recebia-nos, a
mim e ao André, em Ribeira D’Ilhas, sempre com a sua alegria e cervejas
Budweiser estupidamente geladas. O Pyrrait foi também, se não estou em erro, o
fotógrafo da primeira e famosa surf trip da SurfPortugal ao Açores, que
se tornou lendária pela forma como alicerçou, ainda mais, na mente dos
açorianos, essa ideia de que os surfistas eram uma espécie James Deans das
ondas, jovens rebeldes sem causa e salvação…
A lista dos
expatriados é longa e diversa, uns vieram e partiram, outros ficaram, alguns
regressam, de tempos a tempos. O Hugo Valente é um de muitos professores que
começaram carreira e assentaram nos Açores. A Joana Cadete e o João Silvestre.
O Duarte Filipe, pai do Jácome Correia. O Marco Costa, pai da Azores Atlantic
Surfers. O Zé Seabra, que, para além de ter dado início à primeira verdadeira
escola de Surf de São Miguel, fora de outros projetos mais de âmbito social,
como o do Luís Melo no Clube K e Clube Naval de Rabo de Peixe, ou do João
Brilhante com os miúdos de São Roque, o Seabra, dizia eu, foi um desbravador de
picos e alguém que nos fez a todos olhar com outros olhos para o potencial de
lugares que eram, até a sua coragem e experiência o mostrar possível, vistos
como insurfáveis. Uma das minhas primeiras incursões na Fajã do Araújo, algures
no início dos anos 2000, foi com o Zé e o Valente, numa surfada da qual nunca
na minha vida me esquecerei.
São muitos,
e não é possível, nesta lista de memórias pessoais falar de todos. Hoje,
talvez, dois dos mais relevantes, por razões opostas, obviamente, mas
igualmente importantes, pela natureza do seu trabalho e da sua marca no
panorama do Surf açoriano, são o Rodrigo Heredia, campeão europeu, profissional
do Surf e das competições, que alavancou o desenvolvimento do Surf como produto
turístico. E, o João Rei, artista, designer e profissional do amor pela pureza
e pela alma do Surf, que importa todos os dias a candura e o espírito sulista
de Sagres para estas nossas ilhas de bruma.
Eu próprio,
sou de certa maneira um expatriado. Açoriano em Lisboa e Português nos Açores.
Nascido de famílias micaelenses, que vinha cá nas férias, e que acertei
residência permanente na ilha em 1998.
Estes são só
alguns exemplos da importância destes expatriados e das viagens na construção
de um universo de Surf nas ilhas, tal como as muitas viagens pontuais de
surfistas estrangeiros e de revistas, como a viagem dos irmãos Greg e Rusty
Long às Flores, na perseguição de um swell gigante no atlântico. E
tantas outras, de revistas como a Surfing, a Surf Session e, claro, as muitas
que a SurfPortugal fez ao longo dos anos.
Ainda no
âmbito das viagens duas em particular. Em 1990 ou 91 um grupo gigantesco de micaelenses
embarcou na fragata em Ponta Delgada rumo à Maré de Agosto. Entre eles iam um
grupo substancial de surfistas e bodyboarders que, por especial alinhamento dos
astros, ou sorte se quiserem, apanhou algumas das melhores e maiores inchas das
últimas décadas. Instalados em tendas no forte da Praia Formosa passamos uma
semana de surf, música e enamoramento só possível quando se tem 15 ou 16 anos.
O swell estava tão bom que até as esquerdas, do lado este da praia,
funcionaram e alguns de nós optaram por essa onda para fugir ao crowd e
lançar o olho atrevido às miúdas que iam para aí fazer topless. Surfamos
até não conseguir mais, comemos cachorros-quentes e latas de atum, bebemos
cervejas com os Repórter Estrábico, engatamos miúdas ao som dos Trovante, e
fugimos a correr com rolos de papel higiénico na mão dos donos das casas que
tinham o azar de ter os portões a dar para a ribeira onde por alguma razão
alguém achou que era o melhor substituto de uma casa de banho. Um grupo ficou
numa tenda gigante do Diogo Cymbrn que se tornou uma espécie de quartel-general
e centro de convívio todas as noites. E ficaram célebres os gemidos do Diogo, a
sofrer de dores nos pés das feridas dos pés de pato, enquanto dormia com o
Bernardo ao lado. Eu, o André e o João Henrique ficamos numa outra tenda,
mínima, que não dava para os três, mas não fazia mal porque o João Henrique
praticamente nunca dormiu lá que tinha sempre outra companhia. O João não
surfava e acabou, infelizmente, como tantos outros, por se perder nesse
universo infernal do consumo de drogas. Nessa viagem iam também um grupo de
surfistas do continente, com o João Antas, o Miguel Fortes e, julgo eu, se a
memória não me atraiçoa, os irmãos Villas-Boas. Numa onda o João Antas abriu a
cabeça nas pedras, ou com a prancha, e foi ao centro de saúde suturar o escalpe
para uma horas depois estar de novo na água.
Pela mesma
altura, eu o Bernardo e o Diogo fomos, na pior surf trip de sempre, de
expedição à ilha Terceira na esperança mal prevista de apanhar ondas em Santa
Catarina não sabendo que era Verão e o Surf, como todos sabemos, é um desporto
de Inverno. Dessa viagem ficam as memórias da Twins, das noites dormidas no
quartel dos bombeiros e uma senhora no parque de campismo de Porto Martins ao
ver-me limpar o doce de amora cujo frasco se tinha partido dentro da mochila com
os dedos e a língua gritar em sobressalto e sotaque fundo da ilha: “wuei pá
nã mames nos dedos que te podes cortjá…”
Em 1998,
quando acabei o curso, numa espécie de contrato de compra e venda com os meus
pais, fui 6 meses de pranchas e mochilas as costas para os EUA e o México, na
procura de viver em pleno esse sonho do Endless Summer e foi onde acabei por
decidir vir viver para os Açores e onde, ainda hoje, de certa maneira, procuro ainda
viver esse sonho…
O que penso
que fica deste caminho é a noção de que, ao contrário de locais como a
Califórnia, a Austrália, de certa forma o Brasil e o Norte de França, que desde
os anos 40 viam o Surf a crescer exponencialmente, nos Açores, e até mesmo em
Portugal continental, a primeira grande geração de surfistas surge no final dos
anos 70, início de 80. E isso leva-me a um outro conceito importante, que é o
de retorno. É no final dos anos 90, no virar do milénio, quando esta geração (a
geração conhecida como do Portugal Radical) tinha acabado os cursos e regressa
aos Açores, para continuar a sua vida, trabalhar, constituir família, essas
coisas sérias e adultas, que se dá o primeiro grande boom, a verdadeira
ignição, daquilo a que podemos chamar uma cultura de Surf na região. E, é
quando podemos, com segurança, afirmar que o Surf se assume como um motor de
desenvolvimento económico e social no seio da sociedade açoriana.
Ainda esta
manhã, o António Benjamim, um dos sócios da surf shop Espaço Azul, me
dizia que a loja fará no próximo ano 20 anos. Esta longevidade, ou como se diz
em História Económica, esta sustentabilidade do mercado, só é possível porque
existe desde então para cá uma comunidade, um grupo coeso e sustentado, de
clientes que permite a manutenção do negócio. Não que alguma vez eles irão ficar
ricos à conta disso, mas, e isto é importante, poderão certamente deixar o
negócio à próxima geração.
A melhor
figura para ilustrar aquilo que foram os últimos vinte e tal anos do Surf nos
Açores é, inquestionavelmente, o Luis Melo. O Luís representa esse crescimento,
essa evolução segura e constante que o Surf tem tido nas ilhas. Eu e o Luís
coincidimos temporalmente no regresso aos Açores, ali no final dos anos 90.
Nesse tempo ainda éramos meia dúzia os que surfavam regularmente e, no Inverno,
não eram poucas as vezes que chegávamos aos Areais, Monte Verde ou Rabo de
Peixe, dois metrões clássico off-shore e ficávamos no carro sentados à
espera meia hora, uma hora, a ver se chegava mais alguém para não surfarmos
sozinhos. Uma noite, no Forno, fui ter com o Luís e trocamos números de
telemóvel, sim já havia telemóveis, e combinamos avisar sempre que fôssemos ao
mar, foi assim, isso e o facto de eu ter ficado sem carta de condução durante
um ano por o medidor de alcoolemia estar avariado…, que nos tornamos
companheiros de ondas e de projetos ligados às ondas durante mais de uma
década. Para além de ser uma excelente pessoa, com uma retidão e uma
honestidade absolutas, que muitos confundem com altivez ou antipatia, o Luís
tem uma extraordinária qualidade, a disciplina. É essa forma de estar na vida
que faz do Luís não só um ótimo parceiro na água, algumas das melhores e
maiores ondas que já surfei foram com ele, como um ótimo organizador e
colaborador em tantos projetos como provas, campeonatos, associações e um sem
número de programas. O Luís é não só o homem dos mil desportos, como o homem
das múltiplas atividades. Para além de ter promovido duas escolinhas de Surf,
vários campeonatos amadores e o primeiro programa de TV regional dedicado aos
desportos radicais, o Alta Pressão, com a Joana Cadete e realizado pelo Bruno
Correia e o Alexandre Jesus, o Luís, fruto também de ser um professor de
educação física considerado por todos, trouxe para o Surf uma imagem de
respeitabilidade que até então pura e simplesmente não existia.
Nos anos
2000 o associativismo ligado ao Surf era inexistente ou, na melhor das
hipóteses, comatoso, nos Açores. Quando em 2008 o Rodrigo Heredia imagina
trazer os campeonatos nacionais e mundiais para São Miguel, a única associação
local era a recentemente ressuscitada ASSM, Associação de Surf de São Miguel,
que era presidida pelo João Brilhante. Nesse momento gerou-se uma discussão,
que passados todos estes anos pode parecer obtusa e disparatada, entre duas fações,
ou duas ideias antagónicas do caminho que o Surf devia seguir em São Miguel e
nos Açores. Por um lado, uma conceção mais conservadora e protecionista, se
quisermos, que entendia que as ondas açorianas deviam ser resguardadas da
massificação mediática e turística, restringindo os eventos e os campeonatos e
privilegiando os locais, representada pelo João Brilhante. Do outro lado, uma
ideia de que era preciso apanhar rapidamente o comboio do progresso e
orientá-lo no sentido dos melhores interesses dos locais, mas não só, se não a
coisa ia rebentar, como rebentou, e a malta ia ficar a ver passar o comboio,
basicamente vinham os de fora fazer a festa e lançar os foguetes, para os
políticos aplaudirem, e nós ficávamos a apanhar as canas. Eu, o Luís, o Vasco
Medeiros e um grupo de outros malucos estávamos desse lado da barricada e foi
assim que nasceu a USBA, União de Surfista e Bodyboarders dos Açores. A única
agremiação de desportos de ondas que juntou surfistas e bodyboarders e não teve
medo de o colocar no nome até hoje em todo o país e, creio eu, no mundo. A USBA
consumiu 8 anos das nossas vidas e apesar de todos os erros e disparates,
pessoalmente perdi muito dinheiro com a USBA, fomos responsáveis, junto com o
Rodrigo, é certo, que era ele o detentor da licença da ASP para realizar os
campeonatos e os governos só queriam era patrocinar campeonatos mundiais, mas
fomos responsáveis por uma série de iniciativas que, estou certo, permitiram
não só solidificar as bases da nossa comunidade de amantes dos desportos de
ondas, como projetar os Açores como destino de Surf no mundo todo, mas mais
importante de tudo, julgo eu, sedimentou na sociedade açoriana uma imagem do
Surf e dos surfistas, nos antípodas dos hippies junkies de antigamente, mas de
pessoas normais que apenas sofriam com uma paixão maluca por essa coisa louca de
apanhar ondas.
Para mim,
pessoalmente, ter trazido aos Açores os campeonatos nacionais e mundiais de
Surf e Bodyboard, o Mundial da IBA em Santa Catarina, feito em parceria com a
AST, Associação de Surf da Terceira, com o Carlos Leal à frente, uma das
melhores pessoas com que tive o privilégio de me cruzar na vida, e o Paulinho
Costa, uma lenda do Bodyboard nacional, ter podido trazer o Mike Stewart aos
Açores e apertar a mão ao Tom Curren, entre tantas outras iniciativas maiores e
mais pequenas, cursos de juízes, palestras, conferências, é algo que trarei
para sempre comigo, no meu íntimo, com a certeza que é fruto, também, desse
trabalho que muito do que existe hoje continua, e continuará no futuro, para
outras gerações, e que os desportos de ondas e os locais onde os mesmos são
praticados nunca mais serão tratados como, por exemplo, os Areais foram no
passado.
E, é essa
caminhada, desde ser estaleiro de construção civil para ser hoje cartaz de
candidatura a Reserva Mundial de Surf, que os Areais representam, que, para
mim, marca uma história absolutamente singular de como no espaço de uma
geração, com uma conjugação de vontades, se consegue mudar um local, uma
comunidade e apontar para um futuro melhor para todos nós…
Há pouco
mais de 20 anos atrás, a praia dos Areais de Sta. Bárbara era, literalmente, um
estaleiro de construção civil. Abandonada, negligenciada, deixada pelas autoridades
públicas à mercê da rapina e da selvajaria de empreiteiros, rendeiros e
proprietários, toda aquela linha de costa, desde Santana à Ribeira Seca, ou
mesmo até ao Palheiro e às Piscinas da Ribeira Grande, abarcando o Monte Verde,
era uma zona de ninguém. Ou, de quase ninguém.
Um dado
histórico e sociológico que temos que compreender é que a sociedade e a cultura
açoriana foram sempre pouco atreitas ao mar, receosa e temente do oceano. A
construção da história açoriana fez-se ao longo dos seus quinhentos anos de
ligação e de exploração da terra. Até as igrejas, na sua maioria, estão viradas
de costas para o mar. O mar era de onde vinham os piratas, as tempestades e
outro tipo de ameaças. Era da terra que vinha a riqueza e o mar era mais porta
de saída do que de entrada dessas riquezas. Mesmo as pequenas comunidades
piscatórias eram frágeis e ostracizadas, vivendo numa economia mais de
subsistência do que de exportação. Os homens da baleia estavam na verdade em
terra, trabalhando as vinhas e os campos quando ao longe se avistavam os bufos
das baleias e se lançavam roqueiras e correrias até aos botes. E, a descoberta
do mar e da orla marítima como lugar de lazer é uma conquista contemporânea, é
um fenómeno recente e já nosso, dos nossos pais e não muito mais longe do que
isso.
Este, para
mim, é que é um dos aspetos fundamentais desta história. Este verdadeiro conto
de Cinderella que leva a que um lugar sujo e abandonado seja hoje uma praia
limpa, a maior parte das vezes, vigiada, protegida, com restaurantes, balneários,
estacionamento, hotéis, resorts, vídeos no YouTube, cartaz de promoção
turística, cenário publicitário, ex-libris de uma cidade e com surfistas na
água o ano inteiro.
Apesar dos
Açores terem tido contacto com o Surf desde meados do século XIX e serem
certamente dos primeiros lugares do país a contar com esporádicos surfistas
desde o dealbar do século XX, é só após a revolução que a orla marítima vai
ganhar relevância no contexto da sociedade portuguesa e açoriana e é só com a
geração do Portugal Radical que os desportos de ondas vão, lenta mas
afirmativamente, ganhar peso e lastro como interlocutores respeitados no xadrez
social e político.
Não estou
com isto a dizer que foram os surfistas que salvaram os Areais, não foram,
tanto não que o mesmo, por exemplo, não foi possível fazer com Rabo de Peixe,
foram as regras de Bruxelas e as oscilações económicas que moldaram a economia
no sentido de ser cada vez menos rentável extrair areia daquele local. Mas,
foram certamente, também, os surfistas que dignificaram aquele local e
contribuíram para que o mesmo fosse visto pelos políticos de outra maneira. E
nós estávamos lá e lembro-me bem das primeiras conversas com o Ricardo Silva,
na altura Presidente da Câmara Municipal, e com o Fernando Monteiro, arquiteto
responsável pelo projeto, sobre a construção de um estacionamento e de um apoio
de praia nos Areais e isso passou-se há pouco mais de 20 anos.
Costuma-se
dizer que a única voz que os políticos realmente ouvem, e não é por vontade, é
por obrigação, é a das urnas. Quando um político olha para um grupo de pessoas
não vê indivíduos, nem cidadãos, vê votos. E isso, neste caso concreto, nesta
história, é o elemento mais importante. A coisa mais importante na História do
Surf nos Açores não foram as ondas, que as há e muitas e de qualidade,
felizmente, não foram as pranchas, os fatos e os materiais mais ou menos
baratos e acessíveis, não foram os dirigentes e as associações, ou os eventos
com mais ou menos projeção mediática. A coisa mais importante foram os
surfistas, fomos nós. Médicos, advogados, engenheiros, professores,
empresários, carpinteiros, músicos, artistas, surfistas a tempo inteiro, fomos
nós, foi haver gente na água o ano todo tornando natural e apetecível aos olhos
dos outros, dos que nos olham de terra, a existência daqueles locais, daqueles
pedaços de costa esquecidos e negligenciados durante tantos anos, décadas, e
levando a um lento, mas progressivo e já não reversível virar das mentalidades
açorianas de frente para o mar.
O André
“Galinha”, o Sérgio Aparício, o “Xolim”, o Serginho e todos os miúdos e graúdos
e turistas que nestes anos tem experimentado o batismo das ondas. O Pedro e o
Almeida. Todos os putos que entraram num campeonato, o Jácome e o Nicolau, o
Xico Benjamim e o Peter Helión, o Pedrim e o Rijo, o Miguel Reis, o Luís, o
Afri, o Hélder, o “Tricky”. As miúdas, todas as raparigas e mulheres que se redescobriram
no mar e na liberdade das ondas, uma espécie de nova emancipação no oceano. O
João e o Gui e mais todos os pais e filhos e netos que vão juntos ao mar, seja
de semana ou no fim-de-semana, seja na Maia ou no Baixio da Vila, nos Areais ou
na Fajã do Araújo, seja em merrecas, espumas, meio-metrinho ou dois metrões, do
flat ao gigante e os vagalhões do Marco Medeiros em Santana ou na Viola. A História
do Surf e do Bodyboard nos Açores é feita dos seus surfistas e bodyboarders,
tantos e ao mesmo tempo tão poucos, que ao longo destas últimas duas décadas
conquistaram para si e deram a ganhar aos açorianos essa dádiva pura da
natureza que são esses pedaços de magia em que a terra se enamora do mar em
ondas…
Para quem,
como eu, assistiu a essa viagem e percorreu esse caminho não deixa de ser fabuloso
perceber aonde chegámos. Ainda há muito para andar, tanto para fazer. A luta
pela preservação do oceano e pela defesa da orla marítima não se faz com fotos
bonitas e estátuas de bronze ou slogans e prémios de belo efeito, mas de
medidas concretas, obras, mesmo aquelas que ficam debaixo do chão e não dão
votos, organização, planeamento e priorização de investimentos. Mas, quantos
mais surfistas houver e mais empenhados eles forem, de fim-de-semana ou do ano
todo, pros ou paparucos, de verão ou de inverno, maior e melhor será o futuro
do Surf nos Açores. Aloha…
Vila Franca
do Campo, Maio de 2022