quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Café Royal CLXXXIX

O Liberalismo

Celebrou-se por estes dias o duo centenário do pronunciamento liberal do Porto. A Revolução Liberal de 1820 marca o dealbar da afirmação das liberdades e dos direitos fundamentais na governação do país e, principalmente, na libertação dos cidadãos perante o Estado. A primeira Constituição Liberal é mais do que um mero documento legislativo, é um marco fundamental na asserção dos ideais progressistas – liberdade, igualdade e fraternidade – no Portugal de oitocentos e está, também, na génese de todos os ideários republicanos e socialistas, não marxistas, que se lhe seguiram. Nas cerca de duas décadas posteriores, o país viveria mergulhado em conflitos e na disputa fratricida entre absolutistas e liberais. Durante este período as ilhas permaneceriam um indomitável bastião liberal e foram palco de algumas das suas principais batalhas. E é, também, das mais profundas convicções liberais que nasceram as mais antigas aspirações autonomistas, não podendo estas últimas ser compreendidas sem a luz das primeiras. Para os Açores esta não é uma efeméride qualquer. Evocar o Liberalismo é celebrar os seus valores – a Liberdade e a Constituição. Talvez por isso os poderes políticos de hoje se tenham tão oportunisticamente abstido de os assinalar…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Café Royal CLXXXVIII

A Tourada

Já ninguém aguenta o Covid, mas com a tourada em que se transformou a pandemia nos Açores, a piada é demasiado fácil para deixar passar. Tiago Lopes, que era um mero peão de brega, chegou a novilheiro e foi subindo na hierarquia a ponto de querer ser matador, cortando aqui e ali a eito, ao ritmo de passodobles e com verónicas de capote e passes de muleta. O problema é que ninguém lhe compreende a arte muito menos a justeza da estocada. Já o cavaleiro Vasco Cordeiro vai dando voltas ao touro, desacertando as bandarilhas ora de frente ora em violino e evitando a esquerda, mas sem música ou sorte na lide e correndo mesmo o risco de, no futuro, se ver ele próprio na pele do touro tal é a desgraça que se aproxima. Já nós, trabalhadores e empresários, somos os forcados amadores que damos o peito à besta na pega da catástrofe económica. Sendo que o mais certo é que a pega acabe de cernelha que pelo agigantar da braveza do animal não há quem se lhe agarre aos cornos. E, o mais provável é que no final não haja volta à arena e, todos, Matador, Cavaleiro e Forcados, manquejando e esfarrapados, sairão de cena sem glória nem aplauso ao som de uma triste e amargurada marcha fúnebre monumental.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Café Royal CLXXXVII

Da saúde pública

Há vários meses que São Miguel está a braços com uma gravíssima e continuada crise de saúde pública. Uma crise não só extremamente penalizadora para a saúde e o bem-estar das populações como, também, para a economia, o turismo e a imagem exterior da região no seu todo. Não me refiro à já omnipresente e insuportável Covid, mas aos elevadíssimos níveis de Escherichia coli e Enterococos intestinais que, desde Junho, têm sido detectados numa grande variedade de zonas balneares da ilha com particular, e atrevo-me a dizer vergonhosa, incidência nas do concelho com melhores praias da ilha, Vila Franca do Campo. Ao ponto do Ilhéu, esse ícone maior da nossa proximidade entre a terra e o mar, estar desde 22 de Junho com, intermitentemente, a água imprópria para banhos. Diga-se, que o nível considerado óptimo de e-coli é de menos de 15 e o Ilhéu chegou a ter níveis acima de 7000! A tudo isto, os responsáveis, em lugar de assegurarem os equipamentos imprescindíveis à garantia da saúde pública, respondem ora com um ominoso silêncio ora com cocó de gaivota. E, enquanto isso, a magnânima Autoridade de Saúde entretém-se a analisar troços de rally e o Presidente do Governo a fazer de constitucionalista e de director de colégio interno…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Café Royal CLXXXVI

A Retaguarda

Desde o início da pandemia que ouvimos os governantes a usar enfaticamente a metáfora da guerra para descrever esta crise e, principalmente, para justificar a maioria dos seus actos. O maléfico vírus é o inimigo. Profissões como varredores, empregados de supermercado, forças de segurança, enfermeiros e médicos, tantas vezes esquecidas, formam a linha da frente. Reuniões à porta-fechada como conselhos de guerra. E, as nossas vidas, como carne para canhão, à mercê das ordens de Autoridades Sanitárias. Sartre escreveu que “quando os ricos fazem a guerra são os pobres que morrem”. Esta semana vários dados estatísticos vieram dar razão ao filósofo existencialista francês. O precipício do PIB e a sua queda de 16% no semestre. A alta mortalidade do mês de Julho da qual apenas 1.5% foi por causa do Covid. Ou a hecatombe do turismo com variações negativas acima dos 90%. Ofuscados pela vã glória dessa luta que julgam travar, os decisores políticos lançaram-se cegamente nesse combate invisível deixando, à revelia da mais básica estratégia, totalmente desprotegida, a retaguarda onde as principais batalhas, contra um vírus com uma taxa de mortalidade de 5%, estão definitiva e desesperadamente a ser perdidas.

in Açoriano Oriental