quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Café Royal CXCVIII

Dos resultados

Ao “p’rá frente é que é caminho!”, do PS, os eleitores responderam com “pare, escute e olhe”. Infelizmente, Vasco Cordeiro, ainda em choque, surgiu na noite eleitoral com a arrogância autista de quem se recusa a compreender que, com menos 5 deputados do que em 2016 e menos 12 mil votos do que em 2012, o PS não podia reclamar vitória nem arrogar-se ares do habitual “quero, posso e mando”. O que foi dito pelos cidadãos não foi uma maioria de direita, ao contrário de alguma euforia imediatista dalguns jovens vampiros sedentos de sangue socialista, mas uma votação massiva no Bloco Central. O que Cordeiro deveria ter dito no domingo, recusando fantasmas na sua retaguarda, era que tinha ouvido as pessoas. E, com humildade, ligar a Bolieiro, propondo um pacto de regime autonómico, que permitisse aos Açores navegar, com estabilidade parlamentar, o furacão económico e social que aí vêm. O resto são uma minoria de esquerda a 27 mais o PAN, que ninguém sabe o que é, ou outra minoria de direitas com 28 deputados, mas onde um dos pés desse periclitante andaime é o extremismo nacional-populista do Dr. Ventura. No meio, onde se senta a virtude, a IL, que pode e deve liderar a oposição, seja qual for o governo que vier a tomar posse.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Café Royal CXCVII

Das eleições

Ao contrário do que nos diz o vulgar jargão partidário, a escolha a que somos chamados domingo não é por um presidente de governo, nem mesmo, na pura exactidão do voto, pelos 57 homens e mulheres que irão compor o próximo parlamento. Estas eleições deviam ser uma escolha pelo que queremos que os Açores sejam no futuro. Pela afirmação de uma ideia de arquipélago, da sua unidade, a sua identidade e, também, da sua posição no todo do país, da Europa e do Mundo. Uma escolha pelo sonho que cada um de nós possa ambicionar para si e para os seus e para estes nove pedaços de terra que nascem isolados do centro do grande lago atlântico. 44 anos depois das primeiras eleições em autonomia aquilo que somos chamados a sufragar, com o poder do voto, devia ser a nossa própria condição de açorianos. Homens e mulheres livres, capazes, unidos num desígnio de prosperidade, de equidade, de luta fraterna por uma sociedade mais justa, menos corrupta e desigual, desenvolvida e civilizada, que se afirme como um bastião de defesa do bem-estar social e ambiental e que, acima de tudo, se erga, sem receio, sobre a mancha sombria do medo, da pobreza e da indiferença. A escolha devia ser pela Utopia, que é, na verdade, a melhor expressão da condição insular.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Café Royal CXCVI

Da abstenção

Nas últimas eleições regionais a taxa de abstenção foi de uns obscenos 59.2%. A cada eleição, os políticos choram lágrimas de crocodilo sobre o flagelo e juram medidas para o combater. O Presidente do Governo chegou a sugerir, depois de a taxa de abstenção para as europeias ter atingido o valor estratosférico de 81,3%, benefícios fiscais para os eleitores. No entanto, apesar das flagelações públicas, os políticos nada fazem para limpar os cadernos eleitorais e incentivar o voto. Esta semana, os contribuintes da região receberam um email da AT com informação sobre o voto em mobilidade. Em face da celeuma de tão inusitada missiva o Vice veio a terreiro defender o gesto como sendo de combate à abstenção. É como aquele aluno cábula, que passou o ano na borga e que só estuda para o exame na noite anterior, e depois se queixa de ter chumbado. A abstenção combate-se com coisas simples como, por exemplo, incutir na sociedade a ideia de que não há eleitos e eleitores, um nós e um eles, o povo e os políticos, mas que em democracia somos todos cidadãos. Segundo o último Eurobarómetro apenas 22% dos portugueses confiam nos partidos e 94% acham que a corrupção está disseminada na sociedade. Talvez devessem começar por aí…

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Café Royal CXCV

Honestidade.

Sobre essa interessantíssima polémica dos dramas da Contratação Pública, e pondo de lado o despedimento sem justa causa do presidente do Tribunal de Contas, há uma ideia simples que gostaria de partilhar. Quem quer que já tenha trabalhado de perto com a gestão da coisa pública sabe perfeitamente que, em matéria de dinheiros, o problema em Portugal, ao contrário do que nos querem impingir Marcelo e Costa, não é a burocracia. As verdadeiras hérnias do sistema, ainda para mais num país pequeno e pobre como o nosso, são a falta de firmeza moral de quem decide, conjugada à elasticidade ética dos advogados que aconselham e que são, como ensina Ambrose Bierce, no seu delicioso Dicionário do Diabo, indivíduos especializados em contornar a lei, somadas, por fim e lapidarmente, a uma Justiça que ou não atua ou atua tarde. E, se há coisa que o CCP tentava fazer era pôr ordem nesta trapalhada toda. Num sistema limpo, para não dizer num país civilizado, o CCP nem sequer seria preciso. Bastava honestidade no serviço público e celeridade na punição judicial. Mas em Portugal, como sabemos, tanto a justiça como o erário público são farta mercadoria e a honestidade, infelizmente, matéria escassa…

in Açoriano Oriental

sábado, 3 de outubro de 2020

lamento por uma solidão incompleta

 


O surf nunca foi uma actividade intelectual e não consta que os surfistas sejam gente de grandes leituras. A fama de vagabundos de praia é, aliás, inteiramente merecida. No seu todo, os surfistas são um grupo de alienígenas, que vivem num mundo próprio e relativamente isolado do resto da sociedade, auscultando as cartas meteorológicas e desligando-se de terrenos sólidos para deslizar sobre a superfície do mar, levados pela energia das ondas. O máximo de conhecimento necessário a um surfista é saber ler o mar, o que, em boa verdade, não é de somenos, mas citar Sophia ou Ruy Belo, ou Whitman e Twain, não é propriamente uma qualidade que faça falta para passar uma rebentação ou para sair de um tubo num closeout em Carcavelos. As próprias revistas de Surf foram sempre mais um caleidoscópio de imagens do que um repositório de saber e não creio que ninguém, alguma vez, tenha comprado uma revista de Surf exclusivamente pela relevância dos seus textos. No entanto, qualquer cultura, e o Surf tem permanentemente essa ambição de se considerar uma cultura, uma filosofia de vida até, dirão alguns, qualquer cultura, dizia eu, para poder ser tida como tal tem que necessariamente ser fixada, primeiro em hábitos, depois em tradições e, finalmente, num corpo sólido de artefactos, textos, que possam ser preservados e transmitidos através das gerações. Aqui os surfistas dir-me-ão que a essência da cultura do Surf reside no acto de apanhar ondas e que esse gesto é puramente pessoal e intransmissível. Provavelmente a imensa dificuldade do Surf em se relacionar com a sociedade provirá, também, dessa sua natureza intrinsecamente solitária. Mas, tal como explicou o grande Harold Bloom, que não era surfista, “saber ler é um dos grandes prazeres que a solidão nos pode dar” e o Surf também. E essa solidão específica do Surf é também uma das razões pelas quais se tornou sempre tão difícil traduzir em palavras, pelo menos em palavras que possam ser entendidas pelo outro, os sentimentos e as emoções características daquelas frações de segundo em que, como que sem peso, ausentes de gravidade, deslizamos, sem espaço nem tempo, como que numa realidade alternativa, sobre as ondas. Contam-se pelos dedos da mão os textos e os autores que fixaram essas emoções, que as traduziram em palavras, em linguagens perceptíveis por outros, fora do universo dos surfistas. Mas, ao longo destes 100 anos de história moderna do Surf o mais próximo que a nossa cultura chegou de ter uma Bíblia foi a Surfer. A revista criada em 1960 por John Severson, como panfleto promocional de um dos seus filmes, granjeou, ao longo de décadas, a fama e o proveito de ser o órgão de comunicação oficial da cultura do Surf. Para além de pelas suas páginas terem passado alguns, se não todos, os melhores fotógrafos, nela surgiram muitos dos principais autores daquilo a que podemos chamar uma escrita de Surf. Nomes como Drew Kampion, Derek Hynd, Dave Parmenter, Steve Hawk, entre outros são os pilares daquilo a que podemos chamar o cânone do Surf. Pode-se argumentar que tal coisa não existe ou até que, existindo, é perfeitamente inútil para quem queira apenas ler a linha entre um bottom-turn e um off-the-lip. Mas, a sobrevivência do Surf, como parte da cultura moderna e a sua sobrevivência futura, para lá da subida do nível do mar, da acidificação dos oceanos e da queda das sociedades ocidentais numa distopia urbana e internauta passará, inevitavelmente, por esses textos. Existem outras revistas, a Surfers Journal por exemplo, ou outros autores, que nunca escreveram na Surfer, como é o caso do hoje célebre William Finnegan. Mas, a relevância da Surfer para a consolidação do que é o Surf e a sua Cultura é inigualável. Pelo que dizem as notícias a Surfer terá acabado hoje, com o despedimento de todo o seu staff. Não é só o fim de uma era é, também, o fim de uma certa ideia de Surf. E, pelo menos para mim, que fui assinante durante os últimos 20 anos é o fim de uma outra solidão, a do prolongamento em terra, em infindáveis horas de leitura, da flutuação etérea das ondas no mar em movimento…

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Café Royal CXCIV

Sobre pandemias

A nossa sociedade está sob ataque de um vírus invisível. Uma pandemia global, que em Portugal mata em média 17 pessoas por dia. No mundo, cerca de 1.4 milhões de mortes são anualmente atribuídas a doenças provocadas por este vírus, a sétima causa de morte a nível mundial. E, os Açores são a região da Europa onde este vírus mais mata, 74 pessoas por cada 100 mil.  A média europeia é 22. Este “vírus” chama-se diabetes e juntamente com a obesidade é responsável por 3.2 milhões de mortes, todos os anos, no mundo todo. Nos Açores mais de 20 mil pessoas estão diagnosticadas com diabetes, perto de 10% da população, e 70%, repito 70%, da população açoriana tem excesso de peso. Os governos tem uma responsabilidade directa no combate a este gravíssimo problema de saúde pública, seja na promoção de alimentação e hábitos de vida saudáveis, seja em normas de rotulagem dos alimentos, ou na taxação, multa e até mesmo, à semelhança do que está a ser feito com a Covid, no encerramento forçado das indústrias produtoras e importadoras de alimentos contaminados com essa droga que são os açucares. Porém, pouco ou nada é feito para combater este flagelo. Porque a Covid é que faz ganhar eleições…

in Açoriano Oriental