O surf nunca foi uma actividade intelectual e não consta que
os surfistas sejam gente de grandes leituras. A fama de vagabundos de praia é,
aliás, inteiramente merecida. No seu todo, os surfistas são um grupo de alienígenas,
que vivem num mundo próprio e relativamente isolado do resto da sociedade,
auscultando as cartas meteorológicas e desligando-se de terrenos sólidos para
deslizar sobre a superfície do mar, levados pela energia das ondas. O máximo de
conhecimento necessário a um surfista é saber ler o mar, o que, em boa verdade,
não é de somenos, mas citar Sophia ou Ruy Belo, ou Whitman e Twain, não é propriamente
uma qualidade que faça falta para passar uma rebentação ou para sair de um tubo
num closeout em Carcavelos. As próprias revistas de Surf foram sempre mais um
caleidoscópio de imagens do que um repositório de saber e não creio que
ninguém, alguma vez, tenha comprado uma revista de Surf exclusivamente pela relevância
dos seus textos. No entanto, qualquer cultura, e o Surf tem permanentemente
essa ambição de se considerar uma cultura, uma filosofia de vida até, dirão
alguns, qualquer cultura, dizia eu, para poder ser tida como tal tem que necessariamente
ser fixada, primeiro em hábitos, depois em tradições e, finalmente, num corpo sólido
de artefactos, textos, que possam ser preservados e transmitidos através das
gerações. Aqui os surfistas dir-me-ão que a essência da cultura do Surf reside
no acto de apanhar ondas e que esse gesto é puramente pessoal e intransmissível.
Provavelmente a imensa dificuldade do Surf em se relacionar com a sociedade provirá,
também, dessa sua natureza intrinsecamente solitária. Mas, tal como explicou o
grande Harold Bloom, que não era surfista, “saber ler é um dos grandes
prazeres que a solidão nos pode dar” e o Surf também. E essa solidão
específica do Surf é também uma das razões pelas quais se tornou sempre tão difícil
traduzir em palavras, pelo menos em palavras que possam ser entendidas pelo
outro, os sentimentos e as emoções características daquelas frações de segundo
em que, como que sem peso, ausentes de gravidade, deslizamos, sem espaço nem
tempo, como que numa realidade alternativa, sobre as ondas. Contam-se pelos
dedos da mão os textos e os autores que fixaram essas emoções, que as
traduziram em palavras, em linguagens perceptíveis por outros, fora do universo
dos surfistas. Mas, ao longo destes 100 anos de história moderna do Surf o mais
próximo que a nossa cultura chegou de ter uma Bíblia foi a Surfer. A revista
criada em 1960 por John Severson, como panfleto promocional de um dos seus
filmes, granjeou, ao longo de décadas, a fama e o proveito de ser o órgão de comunicação oficial
da cultura do Surf. Para além de pelas suas páginas terem passado alguns, se
não todos, os melhores fotógrafos, nela surgiram muitos dos principais autores
daquilo a que podemos chamar uma escrita de Surf. Nomes como Drew Kampion,
Derek Hynd, Dave Parmenter, Steve Hawk, entre outros são os pilares daquilo a
que podemos chamar o cânone do Surf. Pode-se argumentar que tal coisa não
existe ou até que, existindo, é perfeitamente inútil para quem queira apenas
ler a linha entre um bottom-turn e um off-the-lip. Mas, a sobrevivência do Surf,
como parte da cultura moderna e a sua sobrevivência futura, para lá da subida
do nível do mar, da acidificação dos oceanos e da queda das sociedades ocidentais
numa distopia urbana e internauta passará, inevitavelmente, por esses textos.
Existem outras revistas, a Surfers Journal por exemplo, ou outros autores, que
nunca escreveram na Surfer, como é o caso do hoje célebre William Finnegan.
Mas, a relevância da Surfer para a consolidação do que é o Surf e a sua Cultura
é inigualável. Pelo que dizem as notícias a Surfer terá acabado hoje, com o
despedimento de todo o seu staff. Não é só o fim de uma era é, também, o fim de
uma certa ideia de Surf. E, pelo menos para mim, que fui assinante durante os
últimos 20 anos é o fim de uma outra solidão, a do prolongamento em terra, em infindáveis
horas de leitura, da flutuação etérea das ondas no mar em movimento…