quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Café Royal CXXXIX


Regressos

O Verão é o tempo dos regressos. Do regresso à casa dos avós e aos nossos lugares de conforto. Do regresso uterino ao mar. Do regresso, por essa indolência própria que só o Verão tem, à infância. O Verão é o tempo em que os homens regressam a vestir calções e as mulheres à luminosidade dos corpos despidos inocentemente. O Verão é o regresso ao mais puro dos descomprometimentos, à verdadeira isenção de horários, à liberdade de não ter o que fazer e ao seu prazer. E do regresso, muitas vezes, a nós próprios e ao obrigatório dever de ter tempo para nós. O Verão é, também, o regresso a uma ideia imaginada de felicidade. Como se só pelo calor do sol e dos balanços do mar fossemos verdadeira e permanentemente felizes, com a felicidade única de quando éramos crianças. Um regresso aos milhentos tons de azul do mar de águas translucidas e do céu infinito e iniciador de tudo. Um regresso, místico, à pureza inicial da luz e da mente livre. O Verão é, enfim, o regresso ao sonho e ao sentimento de que o futuro se abre à nossa frente, pleno de hipóteses, encantadoramente indefinido. Resta-nos fazer permanecer o Verão, em cada dia…  


quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Café Royal CXXXVIII


Deste Verão

Há um adágio popular, recorrente nestes nublados e chuvosos dias de Agosto, que diz que o Verão nos Açores é tão bom que até o Inverno vem cá passar o Verão. Os ecrãs das redes sociais estão pilhados de lamentações por este Verão que nunca foi. E, vemo-los por aí, como zombies, cambaleando pesarosos pelas ruas molhadas, protegendo-se da chuva com olhos tristes, órfãos do sol, os veraneantes de Agosto, a quem o clima roubou o Verão. Lá longe, presos nos seus cubículos, em prédios altos, levaram o ano todo a sonhar com os preciosos 22 dias de férias de Agosto e saiu-lhes isto. Ilhas de bruma. Quem quiser as monotonias algarvias que poupe nos bilhetes de avião. Aqui não há dias ensolarados de céus espantosamente azuis. Aqui não há trinta graus de temperatura, areias finas e brancas e bolas de Berlim. Aqui há o ciclo da água. Estas são ilhas de cinzas, dos vulcões, que as criaram, e das nuvens, que as alimentam. E não há prazeres fáceis. O verão nos Açores é um trabalho árduo, não é para veraneantes. Este Verão não cumpre calendários. É um Verão com humores. É cínico e irónico e, por vezes, um pouco sádico.  Se quiserem dizer que passaram o Verão nos Açores tirem férias em Outubro.


quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Café Royal CXXXVII


Mar

Atravessando a janela, indo para lá das recortadas folhas da árvore da borracha, os olhos mergulham na visão do mar. E o mar, pleno e omnipresente, como que entra pela casa, inundando os espaços com os seus sons sincopados e os vários cheiros da maresia. A própria casa, espécie de barco ancorado nas rochas, salpicada constantemente pela espuma das ondas, é uma extensão do oceano, num eterno e imperturbável enlace, uma jura de amor, um casamento para a vida. Por vezes, questiono-me se foi a casa que nos escolheu a nós. Se, ao contrário de Ulisses, sucumbimos ao seu cântico e naufragamos aqui, nestes muros, nestas paredes, janelas e varandas debruçadas sobre o imenso azul do oceano. Ou, pelo contrário, se fomos nós que aqui decidimos aportar, caminhando para o mar pelo verão, como no verso de Ruy Belo. Para sermos, tal como a casa, parte permanente do mar. Constante e quotidianamente líquidos e ondulantes, plenos. Sim, porque o mar é a antítese do vazio. O mar enche, envolve, o mar abraça. O mar abraça-nos na sua frequência cintilante e acolhe-nos nos seus quentes reflexos de Sol. Nós, não somos pó, somos mar. Do mar viemos e ao mar retornaremos, perpetuamente.


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Café Royal CXXXVI


Da humidade

Dormimos descobertos, sem roupa e sem lençóis, abafados apenas pelo calor e pela humidade. Uma humidade que se cola na pele como se de um óleo se tratasse, uma espécie de gordura invisível e peganhenta, melada, gastrópode. Nem sequer a noite vence a humidade. A humidade é omnipresente, é ubíqua. A humidade é a única constante de Agosto. Tudo o resto é volátil, o sol é esparso, a chuva intermitente, as ondas vão e vêm na sua cadência ondulada, como os turistas, nos seus carros alugados, entrando pelas ruas em contra-mão. Só a humidade se instala na ilha, com armas e bagagens e todas as suas noventas porcento de percentagens, para a temporada inteira de verão. Ao contrário do que nos querem fazer crer os meteorologistas, a humidade, nos Açores, no verão, é tudo menos relativa. É concretíssima, definitiva e incondicional. Nem mesmo os maravilhosos e aliviantes, embora curtos, banhos de mar conseguem vencer a humidade. Saindo da água somos imediatamente absorvidos por ela, como se submergíssemos novamente, como se estivéssemos, na verdade, novamente debaixo de água. No fundo é isso: o verão nos Açores é estar permanentemente, de uma forma ou de outra, debaixo de água.

...por alguma razão, que desconheço, a crónica desta semana não saiu no Açoriano Oriental. De qualquer modo, para não quebrar uma série que já corre há 136 semanas, ininterruptamente, aqui fica o registo...

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Café Royal CXXXV


Chuva de verão

Acordamos com a chuva. Acordamos com o som forte e humedecido da chuva que caía numa torrente cinzenta, espessa e quente. Todo o horizonte era neblina e água, como se a ilha inteira tivesse sido coberta por uma nuvem. Aconchegados ainda pela cama, ficamos a ouvir chover. Entrelaçados, em silêncio, escutando os diferentes sons que se desprendiam da água. Ao fim de um bocado, como sempre acontece, a chuva parou, as nuvens desataram-se deixando entrever o azul do céu e o sol. Lá fora, a terra molhada evaporava-se em tufos, como o vapor das caldeiras subindo pelo ar. Acordamos uma segunda vez, tentando compreender o dia, refazer os planos de ontem. Nem sequer as aplicações dos telemóveis tinham previsto a chuva. Nenhum satélite conseguiu antever a vontade do clima e a sua força súbita. A praia esperaria por nós, enquanto nós esperávamos que o calor do sol secasse a areia, esperávamos que o calor refizesse a nossa própria vontade de estar na areia escutando, por entre os ondulantes barulhos do mar e do riso das crianças, o som crepitante do sol, quente e luminoso, a derramar-se sobre a nossa pele em mais um dia de Agosto na ilha.