quinta-feira, 8 de julho de 2021

Em louvor da Tolerância

 

Auto-de-fé, Jan Luykens, 1559

A História da Humanidade é uma história de intolerância ou, dito de outra forma, é a estória da luta pela tolerância. E, é uma saga que recua a mais de 2 milhões de anos atrás, às lutas entre o homo habilis e o homo erectus, predecessores do designado homo sapiens, designação essa que, olhando o estado do mundo hoje, se diria ser, no mínimo, ligeiramente exagerada. Desde tempos imemoriais, antes mesmo que houvesse história, os humanos desconfiaram uns dos outros e evoluíram em permanente conflito. Citando Tucídides que, com a sua História da Guerra do Peloponeso, é considerado o pai da História, “toda a Terra é uma sepultura de homens famosos”. Um dos períodos mais negros desta infindável história de beligerância entre homens que se supunha serem iguais durou quase mil anos e teve como rosto essa infame instituição chamada Santa Inquisição. A Inquisição nasce, no séc. XII, como um tribunal católico que visava combater a heresia e a blasfémia, basicamente, aquilo a que hoje chamaríamos delito de opinião. Em nome do dogma da fé e contra a heresia, que mais não é do que uma divergência de pontos de vista, foram cometidos alguns dos mais horrendos crimes contra a dignidade do homem, o saber, a ciência, a tolerância e, numa palavra, contra a humanidade. O mais famoso de todos os inquisidores é, sem dúvida, o espanhol Tomás de Torquemada, confessor da Rainha Isabel a Católica, que ficou conhecido no seu tempo como “o martelo dos hereges”. Em Portugal, ao longo de quase 300 anos, e até à sua extinção em 1821, foram inúmeros os autos-de-fé, sendo a consequência mais gravosa de muitos deles a fogueira método pelo qual se queimava não só o corpo, mas, acima de tudo, o espírito dos hereges. Em O Nome da Rosa, Umberto Eco descreve assim o real Grande-Inquisidor Bernardo Gui: “Era um dominicano de cerca de setenta anos, frágil mas direito de figura. Impressionaram-me os seus olhos cinzentos, frios, capazes de fixar sem expressão, em que muitas vezes, porém, havia de ver bailar lampejos equívocos, hábil tanto em ocultar pensamentos e paixões como em exprimi-los de propósito.” … “Concluí que, de algum modo singular, ele estava inquirindo, e valia-se de uma arma formidável que todo o inquisidor no exercício da sua função possui e manobra: o medo do outro.

Vem este curto introito histórico a propósito de uma nova “heresia”, perseguida com fervor inquisitorial pela turba fanática e os seus muitos grande-inquisidores de hoje – a anti-vax. Neste tempo de aguda polarização, desde o início da loucura pandémica que qualquer tipo de dissinto é tido como heresia e quem ousar questionar essa nova fé científica é imediatamente apostado de negacionista. Embora, não deixe de ser irónico que o negacionismo tenha inicialmente sido usado para apontar pejorativamente os críticos das alterações climáticas, essa sim uma pandemia de consequências globais e genocidas. Mas, neste auge do fervor pandémico, os novos torquemadas do covidismo e inquisidores da vacinação escolheram imolar na fogueira do segregacionismo todos aqueles que, por qualquer íntima razão, escolheram e decidiram, fazendo uso do seu livre-arbítrio, recusar a vacina. Subitamente, é como se todo um novo vagão de cristãos-novos se formasse na sociedade açoriana, portuguesa, mundial, de pessoas ostracizadas pelo crime de pensamento. Esta intolerância primária e abjeta é não mais do que um novo auto-de-fé, onde, à luz de um dogma, de uma inusitada e ignóbil fé, se procura queimar quem pensa de forma diferente, com o mesmo autoritarismo e sobranceria moral dos torquemadas de antigamente. Mesmo que estivesse em causa um vírus com uma letalidade de 90% em vez dos 2% que este tem. (Isto se acreditarmos nos próprios métodos e números da OMS. Um dia far-se-á a história dos testes RT-PCR e das mortes "com" e "de" Covid-19). Mesmo, dizia eu, que esta pandemia fosse verdadeiramente uma ameaça mortal à sobrevivência da humanidade, quando, para a travar, abdicamos dos fundamentos do que nos faz humanos e de algo tão primordial à existência como é a tolerância a pergunta que fica é: estamos a lutar para salvar exatamente o quê? Se um mundo de cego e totalitário conformismo e intransigência, ou uma civilização que funde os seus pés na tolerância e no respeito como essência de todas as aspirações humanas. Eu escolho seguir e acreditar neste último.