Meu Muito Querido Amigo,
Apanha-me
este teu amável e honroso convite, para que contribua com um texto para o
próximo número da GROTTA, num momento particularmente complexo da minha vida. O
meu tempo parece que se esvai em turbilhão rápido e intempestivo, dividido entre
as solicitações inadiáveis do trabalho propriamente dito, há que agarrar os
turistas enquanto eles ainda cá estão e, acima de tudo, enquanto cá continuarem
a querer vir, passado que parece estar o Inverno covídico, e este novo projeto,
que um pouco inadvertida e surpreendentemente abracei, de tentar fixar em livro
e documentário uma História do Surf nos Açores, que muito gozo e labor me tem
dado, mas que me deixam com a sensação de que corro atrás de um futuro que não
se materializa, na vã tentativa de corporalizar o intangível, de eternizar a
própria espuma das ondas, como se estendesse encarecidamente a mão a um
nevoeiro intocável e inalcançável, sem nunca ter tempo para efetivamente nada e
sem que nunca nada se chegue ao alcance dessa mão.
Acresce
a isto tudo o caso arrepiante dos últimos dois anos, que foram profundamente
angustiantes, como sabes, e, acima de tudo, enormemente dececionantes para mim.
Toda a histeria pandémica, a distopia sanitária em que a humanidade se
mergulhou, o ter que assistir desesperado ao mundo descendo voluntariamente ao
calabouço da mais vil opressão e tirania. O pânico vendido às massas como guião
oficial da narrativa do Estado. O soçobrar da razão, da civilização, às mãos do
cientismo barato e da demagogia populista da política contemporânea rendida à
manipulação vil do ser humano pela insanidade covidiota. Tudo isto destruiu-me
por dentro, e creio que talvez nos tenha verdadeiramente destruído a todos,
enquanto comunidade, enquanto entidade social, emocional e animicamente. Ao que
se acrescenta, ainda, o verdadeiro assassinato a sangue-frio perpetrado pelo Estado
ao meu modo de vida. Os inconcebíveis e irracionais confinamentos, que destruíram
uma indústria feita de amabilidade, a indústria da hospitalidade, como
acertadamente lhe chamam no mundo anglo-saxónico. Como poder exercer uma
profissão de pessoas quando os governos as impediram de existir, de sair à rua,
de se relacionarem entre si e de conviverem umas com as outras? A loucura
pandémica matou, por dois longos anos, a fraternidade entre os humanos e fez
colapsar aquela que é, talvez, a mais importante atividade de interpelação e
concórdia entre as pessoas – o Turismo.
Agora,
corremos todos atrás de uma mirífica recuperação, ofegantemente ansiando por um
regresso a um passado que nunca regressará, tentado salvar a pele e a vida, dos
nossos negócios, das nossas famílias, não entendendo que o mundo nunca mais
será o mesmo. Não, não andará tudo bem, o mundo não voltará para trás, num
qualquer novo normal feito das mesmas soluções gastas, intolerantes e
segregadoras. Que dividem em vez de juntar, que rotulam e separam, em lugar de congregar.
O livre transito dos detentores do passaporte vacinal e os negacionistas, espécie
de novos párias contemporâneos portadores de uma peste libertária. Recusamos
compreender que nunca nada volta para trás e que o futuro será sempre feito de
outros desejos, outras e novas formas de estar na vida e no mundo.
E nós, aqui nos Açores, em São
Miguel, particularmente, parecemos correr sempre atrás do prejuízo, nunca
antevendo e precavendo os sismos do futuro, nunca criando, mas copiando sempre
os métodos e os sistemas dos outros. Assim na pandemia, como agora na euforia
pós-pandémica da estagflação planetária.
Por
estes dias muito tenho pensado sobre o passado e, principalmente, sobre as aspirações
dos nossos avós. Os sonhos que acalentaram, os esforços que fizeram para criar
uma região mais moderna, mais aberta e, acima de tudo, mais próspera e
solidária. O que diriam eles, hoje, de nós? Na pesquisa que estou em mãos de
fazer consultei o outro dia, na Biblioteca da Universidade dos Açores, um
extraordinário edifício, de uma enorme beleza arquitetónica invulgar, diga-se aliás,
o famoso número da revista “Insula”, de 1932, comemorativo do Quinto Centenário
do Descobrimento dos Açores e onde Nemésio escreveu um famoso artigo sobre essa
coisa de se ser açoriano. O tal que é tantas vezes glosado, tanto por políticos
como intelectuais, e mal, diria eu, pela poética, se bem que incorreta, imagem
das sereias na escama dos açorianos e da sua dupla natureza, de carne e de
pedra, e esses “ossos que mergulham no mar” sem nunca lá verdadeiramente
terem metido os pés, que os açorianos nunca foram gente de mar, e onde Nemésio cunha,
pela primeira vez, o famoso termo da “Açorianidade”, essa circunstância incandescente
da alma que ninguém ainda conseguiu convenientemente definir.
Por uma
luminosa coincidência do destino, deparei-me, nesse número da revista, com um
curtíssimo texto do meu bisavô, Augusto Arruda. De entre todas essas altas
personalidades da nação, da política e da cultura, Sua Excelência o Presidente
da República, Óscar Carmona, a escritora Alice Moderno, o meu outro bisavô,
pelo lado paterno, o genealogista Rodrigo Rodrigues, o Almirante Gago Coutinho,
o Marquês de Jácome Correia, Aristides da Mota, o poeta Oliveira San-Bento,
Brito Camacho, Urbano Mendonça Dias, Hernâni Cidade, o próprio Nemésio, ali
estava o meu bisavô materno, com quarenta e poucos anos, sensivelmente a idade
que eu próprio tenho agora, despejando em uma dúzia de curtos parágrafos a sua
elegia açoriana, o seu lamento por um arquipélago. E, foi isso exatamente que
me surpreendeu, a sua profunda melancolia, o seu quase enfado com o devir
açoriano e a sua, dir-se-ia, permanente intangibilidade. Este era um homem que
sofregamente perseguiu o ensejo de uns Açores encastrados no centro de uma
modernidade entre dois continentes e que ali, na celebração do cinquentenário
do seu achamento, se vê na circunstância de apontar a incongruência de um
arquipélago bafejado pela fortuna da riqueza natural e geográfica, mas que é incapaz
de fazer cumprir esse destino e acabando o seu texto com esta reflexão toda ela
cheia de tristeza e pesar e, como ele próprio classifica o seu estado de espírito,
de mágoa:
«Razão
há pois para que, relanceando os olhos para o estado em que esses cinco séculos
nos deixaram, uma mágoa, uma enorme mágoa nos invada a alma, onde teimosamente
nos fica a impressão do que poderíamos ser…»
É esta consciência
de um enorme potencial incumprido que julgo que mais profundamente define os
Açores e que, em boa verdade, define também o açoriano. É esta consciência do
possível que falhou que mais caracteriza o seu histórico ao longo dos séculos e
que, extraordinariamente ainda hoje se faz sentir e se reflete na nossa
essência de nove rochedos perdidos no meio do grande mar Atlântico como se
estivéssemos predestinados a uma grandeza que nunca conseguiremos realmente
atingir.
Homem de inquebrantável vontade e
inexcedível e incomparável visão, o meu bisavô multiplicou-se em atividades, desde
a política, aos negócios, visando sempre o desenvolvimento e a prosperidade dos
Açores. Depositou toda a sua esperança no Turismo, como motor primeiro do
desenvolvimento e do crescimento económico da região e em especial da sua ilha,
São Miguel, acreditando e trabalhando arduamente para que as Furnas, a maior e
mais singular hidrópole da Europa e do Mundo, pudesse, de facto, ser o centro e
a alma do Turismo dos Açores. Ele e uns poucos outros como ele construíram
hotéis e casinos, fizeram brochuras e promoveram feiras, chamaram jornalistas e
viajaram pelos centros sociais e económicos da América e da Europa divulgando
as maravilhas da sua ilha. Foram tão longe como fundar uma companhia aérea para
que os turistas não os sobrevoassem em moderníssimos jatos de ambição
transatlântica e para que estas ilhas não se perdessem nesses traços de fumo
branco pintados no ar sobre céu que nos envolve. A SATA, contrariamente ao que hoje querem
fazer crer, não foi feita para unir os açorianos, mas para unir os açorianos ao
mundo, dando-lhes finalmente centralidade e modernidade e quebrando esses cinco
pesados séculos de isolamento. Hoje, quase cem anos passados, os intelectuais
do funcionalismo público, confortavelmente instalados no seu salário certo, e
os oportunistas da esquerda mais retrograda e nacionalista, fazem petições
contra o turismo de massas, desconhecendo, na verdade o que isso seja, o
Turismo e as massas, e desconhecendo ainda que nem almoçar condignamente, numa
tarde de Verão no Nordeste, se consegue. Numa região que não produz riqueza
querem, por medos atávicos de fantasmas que não existem, matar um dos seus
poucos sectores exportadores. Os Açores são e serão sempre esta fulgurância
adiada, este provir irrealizável e intangível. O “que poderíamos ser…”
E, a
questão, parece-me a mim, é exatamente essa. O que somos, verdadeiramente, se
não tivermos um desígnio, um projeto, uma ambição comum e conjunta, que nos
mobilize e identifique como povo que o quer ser? Como reconhecer essa açorianidade
difusa sem mais matéria do que a bruma e o nevoeiro e os cinzentos de chuva e
lassidão? Os americanos têm o sonho. Os franceses o orgulho, os ingleses o
império da língua. Os italianos o culto da beleza. E os espanhóis, bem ou mal,
têm a España que, contra ventos e marés, os agrega como nação compósita de
várias nações e onde, se calhar, lá deveria estar, também, a nossa o que,
infelizmente, por inépcia dos Filipes e pela audácia conjurada de uns quantos
barões lisboetas, amedrontados pela magnificência madrilena, a defenestraram de
arremesso para o chão térreo do Terreiro do Paço impossibilitando
definitivamente essa grande Ibéria de romantismo anteriano. Portugal terá o
quê? O Fado? O Cristiano Ronaldo? A Nossa Senhora de Fátima e os seus infantis pastorinhos?
A Saudade, talvez possivelmente a língua? E, nessa ordem de razão, os Açores,
então, o que terão? Geografia? Gente? Mar? Talvez, ou talvez não…
O
naturalista Arruda Furtado, que era um darwininano e que não consta fosse da
família, uma das grandes figuras portuguesas do Oitocentos, entre a antropologia
e a etnografia do açoriano, com tabelas de medição encefálica e tudo, que hoje
fariam corar de vergonha os mais reputados cientistas sociais, arvorou uma
pureza pátria insular, fruto de séculos de isolamento dos industriosos
movimentos da modernidade continental, que dariam ao açoriano a duvidosa
notabilidade de ser um português mais puro, mais verdadeiro se bem que mais
tacanho e atrasado. Já no século XX, Luís da Silva Ribeiro tentará uma visão
mais sebastiânica do tipo insular, classificando esse mesmo isolamento como uma
proteção do açoriano, uma barreira conducente a um apuramento genético, se
quisermos, dos princípios e ideais do português de Quinhentos. Resta saber se
essa herança de uma “Ínclita Geração” mítica e camoniana não se desfez
na própria epopeia que a gerou e se, nos Açores, o que ficou não foi a ferida
aberta e traumática desse naufrágio pátrio de um Império que nunca
verdadeiramente se materializou? No fundo, dos dois, o que fica é essa nota
comum da distância, do supremo e imperioso isolamento e apartamento insular. O
açoriano é no fundo um exilado do mundo e da história, preso na sua prisão de
ilha, rodeado de mar por todos os lados, como uma trincheira intransponível e
condenado pela eternidade às tempestades, e aos piratas, e outras calamidades
náuticas de impossível superação. Provavelmente, só verdadeiramente realizável
na diáspora, contrariando a sarcástica máxima do nosso amigo Daniel de Sá, da
pior maneira de ficar na ilha ser sair dela…
Depois
há aquela questão, de que ninguém gosta de falar, que é a do povo e das elites,
se é que isso existe por estes calhaus basálticos erguidos vulcanicamente por
sobre o mar. O próprio Nemésio, quando se propõe a identificar os tipos
diferentes de açorianos, dos quais distingue marcadamente três – o picaroto, o
terceirense e o micaelense – remete principalmente para uma caracterização do
tipo popular, das gentes da terra, de cabo de enxada, amanhando ao tubérculo,
podando o pomar, pronto para saltar à canoa à saga da baleia. Intelectual só mesmo
Antero, mas até esse superiormente inatingível, lá alto no Olimpo das Ideias. As
grandes elites açorianas, terratenentes e alcandoradas na liteira dourada do
morgadio, que tiveram o seu zénite na efervescência liberal e nos movimentos
autonomistas, desvaneceram-se como espuma na praia do protetorado metropolitano.
Sempre reivindicando, sempre de mão estendida, pedindo, incapazes de conquistar
a sua própria alforria e autonomia. Não deixa, também, de ser despiciendo que
os grandes nomes da riqueza insular sejam Hicklings e Dabneys e Bensaúdes e
outros estrangeirados expatriados e não Camaras, Botelhos ou Cortês-Reais, de
local e digníssima nobreza, mas incapazes de multiplicar riqueza…
Hoje,
então, nem se fala, que as elites já nem as há. Estamos entregues ao bulício
enxameado do politico-partidarismo, com tudo o que ele traz de apoucamento da
razão e da inteligência. O primado do mínimo denominador comum. A exaltação do
oportunismo. Em quase cinquenta anos de autonomia a região pouco mais avançou do
que meia dúzia de infraestruturas. A democracia do betão-armado, da engenharia
civil em detrimento da evolução social e cultural. A monocultura da boçalidade
e do servilismo de Estado. Acabámos com os distritos, mas fomos incapazes de
gerar uma verdadeira identidade arquipelágica. Só agudizamos ainda mais um
bairrismo bacoco, cheirando a mofo e a bafio, cheio de invejazinhas e birras de
crianças reivindicando hospitais em cada ilha, escolas secundárias em cada
concelho, portos oceânicos e aeroportos e um avião por dia em cada cidade e
capelas funerárias em cada freguesia que o defunto da Covoada não pode ir velar
para os Arrifes. Quase cinquenta anos de democracia e de Autonomia Administrativa,
com Estatuto e Finanças, e a única coisa que conseguimos foi gerar nove
açorianos diferentes, de costas voltadas uns para os outros. Mesmo lá fora,
nesses outros Açores de abundância, de Lisboa ao Havai, do Brasil às outras
Américas, todos são faialenses e terceirenses e ribeira-grandenses e mesmo
portugueses antes de serem verdadeiramente, todos, açorianos. E a classe
política, nem vale a pena…
A
questão é, voltando atrás, que me perco, onde está o nosso desígnio? Que
projeto para a região, que não seja sorver, babando-se, da malga dessas novas
especiarias dos euros bruxelenses? Que podem estes Açores ser que não seja só
ser pobres e indigentes e coitadinhos com uma pitada, aqui e ali, de chico-espertismo
charlatão sacando uns euritos ao erário publico em prol da vivenda assoalhada
com piscina e o novo BMW elétrico que é chique ser verde, mas viajar só de
avião, com cunha na SATA para ir de rabo numa executiva que não existe. Tudo à
custa do ouro não já do Brasil, mas do próximo Quadro Comunitário de Apoio. Até
ao dia em que lá, nos cubículos da Rue Joseph II número 30, algum jovem
amanuense se proponha olhar com olhos de ver para a conta do deve e do haver da
nossa mercearia insular.
Para
mim, e tenho-o muito claro, o caminho do futuro destas ilhas é o Turismo e o
Mar. O Turismo como fonte económica de exportação, alicerçado na mais pura idiossincrasia
insular que é a comunhão entre o homem e a natureza. E, deixem-se, por amor de Deus,
dessas lamechices inúteis e irreais da natureza pura, ou viva, ou intocada e sustentavelsinha.
A nossa natureza é uma de harmonia com a mão humana, a nossa natureza são
seiscentos anos de virada das terras e de povoamento e de explosão de
infestantes, da cana-roca e do novelão, e da criptoméria que viajou do Japão. A
única coisa que ainda é verdadeiramente endémica é a carestia e precisamos de
nos livrar dela e isso só será possível fazer com a porta aberta ao mundo,
fazendo-nos respeitar, mas acolhendo com simpatia e esmero e orgulho na nossa
condição de centro deste grande lago Atlântico que o futuro se encarregará de
recolocar no centro do grande concerto das Nações. Os arautos da desgraça que
veem no Turismo um cataclismo, esquecem que somos nós que mais destruímos, que
conspurcamos e negligenciamos. Clamam por uma paisagem pristina quando nem
sabem distinguir entre uma azorina e uma conteira. Falam de sustentabilidade
quando fomos nós que deixamos ilhas inteiras serem comidas por infestantes. Ao
final do dia, são os turistas os que mais se revoltam com a nossa barbárie
endémica.
Já o
Mar será o petróleo do futuro. Dele virá energia e alimento e fonte de riqueza,
de ciência e de cultura, e nós temos tanto mar que não o conseguimos ver como
deve ser, ofuscados na sua imensidão de luz e agitação. Durante séculos os açorianos
viveram de costas voltadas para o mar, amanhando a terra, temendo as desgraças
e os desmandos do Oceano. O tempo virou, como se de um vento se tratasse, e
falta virarmo-nos também para o oceano que nos rodeia, mas sem fitar sempre o
horizonte, olhando mais devagar a orla costeira, as praias, as baias e as
enseadas, percebendo os contornos, o desenho e a letra da maresia, a partitura cinzelada
do mar. E abraçá-lo como uma amante no leito da praia…
De
todas as coisas que a nossa geração poderá deixar para os que vierem a seguir,
talvez a mais importante seja essa visão de que não somos o centro do mundo
para que ele nos venha salvar, mas que estamos no centro de um mundo, um mundo
feito de água salgada e ondas e vida marinha, onde a própria humanidade anseia
por mergulhar. O nosso legado deverá ser esse, de uns Açores transatlânticos,
multioceanicos, argonáuticos e universais. Desconheço se o cumpriremos, mas
todo o horizonte é um imaginário de sonho.
Aquele
forte e sentido abraço,
Vila
Franca do Campo, Agosto de 2022
Pedro
Arruda
Texto para a edição número seis da revista Grotta.