quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Speakers' Corner 10

Sociedade Açoriana de Trapalhadas Aéreas

Há data da sua fundação, a denominada Sociedade Açoreana de Estudos Aéreos, apresentava-se como instrumento determinante de ligação dos Açores ao Mundo. Na visão dos seus fundadores, um grupo de cinco notáveis empresários açorianos, a integração do arquipélago no contexto das ligações aéreas transatlânticas era condição fundamental para o desenvolvimento económico da região, não só no turismo mas, também, na alavancagem da exportação de outros sectores produtivos, e, ainda, como veículo de ligação das ilhas às suas diásporas. Contrariamente ao que hoje se possa pensar, a SATA não nasceu como companhia interilhas, o foco da companhia sempre foi a ligação dos Açores ao exterior.

Ao longo dos seus mais de oitenta anos de história, a companhia foi sobrevoando intempéries e desastres, reestruturações e vendas, mas mantendo sempre a sua matriz como companhia de bandeira de um arquipélago charneira na navegação aérea internacional, particularmente do Atlântico Norte. Com mais ou menos aterragens e descolagens, fossem elas financeiras, políticas ou propriamente aeronáuticas, a companhia manteve-se ao longo de décadas em velocidade de cruzeiro, cumprindo honradamente o seu desígnio, até ao fatídico ano de 2015 em que duas decisões distintas e aparentemente alheias entre si se conjugaram para mergulhar a companhia num voo picado rumo ao abismo – a liberalização e o “cachalote”.

A saga do conhecido A330-200, que teve como madrinha de batismo a cantora Nelly Furtado, popularizado como “cachalote”, foi agora reaquecida e amplificada por uma reportagem em horário nobre de uma televisão nacional e os contornos dessas decisões, tomadas em 2015, merecerão, se for caso disso, avaliação pelos tribunais. Mas, neste voo turbulento da SATA rumo à falência técnica, também recentemente decretada, com todas as letras, pelo Conselho Superior de Finanças Públicas, o que ninguém parece querer reconhecer, ou sequer falar, é o papel instrumental da abertura do espaço aéreo da região, numa liberalização selvagem, com a recorrente incapacidade dos governos em suportarem os custos das obrigações de serviço público, por eles definidas, e as suas consequências na saúde financeira da empresa, numa sucessão de trapalhadas que culminaram na situação atual, em que já nem mesmo as ditas low cost se propõem voar para os Açores. Na verdade, o problema da SATA, mais do que financeiro, ou administrativo, que também o é, é, acima de tudo, político.  A liberalização do espaço aéreo, fervorosamente defendida pelo então secretário de estado Sérgio Monteiro, foi uma decisão política arbitrária que não teve em consideração os melhores interesses da região e muito menos da sua companhia aérea, numa liberalização feita apenas com os interesses dos sacrossantos mercados em vista.

Ao longo dos últimos anos, as decisões dos gestores da companhia têm sido alvo de escrutínio e impropério por parte de opinião pública e publicada, mas seria bom que nos debruçássemos também sobre as decisões dos sucessivos governos, de cá e de lá, na estratégia e no dia-a-dia da companhia. O que a SATA precisa não é de privatização, mas de boa gestão. A ânsia atual da privatização busca apenas fugir de um problema, agravando-se a nossa dependência dos humores financeiros dos interesses privados. O desiderato dos fundadores, com bravura e sacrifício pessoal, foi abrir os Açores ao mundo, criando centralidade com uma companhia aérea própria. Hoje, políticos menores contentam-se com a vista curta de se colocarem inteiramente nas mãos da ganância dos mercados. E com a agravante, como confirmou recentemente o Presidente do Governo Regional, em entrevista nobre na televisão, de mais uma vez se deixar os prejuízos aos contribuintes e os lucros aos privados. Para usar uma linguagem dos aviões, na iminência da catástrofe: Brace! Brace!

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Speakers' Corner 9

O fim do sonho europeu

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, o continente europeu viu-se mergulhado numa escura e amordaçada multitude de escombros. Da destruição física ao trauma psicológico e espiritual. Da desagregação política e económica. E, da tenaz política e geoestratégica de duas novas grandes potências em ardente guerra fria, à sua esquerda e à sua direita. Mas deste pó ergueram-se grandes estadistas e deles brotou a esperança de instituições internacionais fortes, que agregassem os povos, oferecessem esperança e paz e, principalmente, impedissem que o continente soçobrasse de novo ao peso do apocalipse. A “Declaração Schumann”, mais do que um projeto económico, era uma visão ambiciosa e audaciosa para o seu tempo, se considerarmos que foi gizada apenas 5 anos depois do fim da segunda grande guerra. A consciência de que a prosperidade e a paz no continente só seriam possíveis com a normalização das relações entre França e Alemanha, e a sua aceitação por Konrad Adenauer, é um ponto basilar naquilo que foi a história da Europa nos últimos 75 anos. Robert Schumann, juntamente com Adenauer, Jean Monnet e outros, representam uma linhagem de estadistas conscientes e visionários que legaram ao mundo o seu mais longo período de paz e prosperidade. Nunca a expressão de Newton, de que nos “erguemos nos ombros de gigantes”, foi tão acutilantemente pertinente.

Mas desgraçadamente, o tempo dos grandes estadistas, europeus e mundiais, morreu. Os grande líderes políticos que construíram a Europa deram lugar a uma extensa família de eurocratas, e a visão de uma prosperidade que impedisse o eclodir de conflitos foi substituída pela miopia estéril da próxima eleição. Em vez de grandes desígnios ou aspirações, a política europeia é regida hoje pelos curtos ciclos das eleições e a perpetuação de mecanismos pouco claros, pouco democráticos e reduzidamente escrutináveis. Dos quais, o processo de escolha dos líderes da Comissão e do Conselho são, aliás, exemplo claro. E num mundo em acelerada e agitada mudança, a Europa é cada vez mais um velho e inconsequente protagonista, sem voz, sem ascendente e, muitas vezes, sem orientação.

Nas últimas semanas Ursula von der Leyen e António Costa viram confirmadas as suas indigitações para os mais altos cargos europeus. Costa, a quem o jornal Político designava como o primeiro líder europeu de uma “minoria étnica” (sic). O que dá bem nota da sua irrelevância e da baixíssima expectativa quanto ao seu desempenho. De melhor político da sua geração, em Portugal, a obscuro e irrelevante representante de uma minoria étnica, no grande palco europeu. Já a Sra. Leyen, a braços com uma investigação por corrupção na gestão dos contratos vacinais vê-se reconduzida na liderança de uma Europa cada dia mais irrelevante económica, política e estrategicamente, a braços com uma guerra à sua porta, instigada pelos interesses financeiros e económicos da máquina de guerra global, de um lado, e pela ambição de um tirano, pelo outro, numa nova tenaz de medo e conflito, exatamente o que os pais fundadores da União sempre desejaram evitar.

Postos perante esta escolha, os grande areópagos europeus optam pela guerra para assegurar o seu poder. O relatório Draghi indica na indústria militar o caminho para uma nova evolução económica do continente, numa nova corrida às armas e na criação de exércitos europeus, incensados pela sempre voraz racional belicista da alta finança mundial. E, no seu discurso de posse perante o parlamento, a Sra. Leyen vincava estas escolhas, enfatizando o tom de uma luta pela liberdade baseada, pasme-se, na segurança e defesa, e já não, como os gigantes que a antecederam ambicionaram, nos ombros da prosperidade, da igualdade e da fraternidade. É assim, neste sobressalto, que acordamos para dura realidade do fim do sonho europeu.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Speakers' Corner 8

O Fado do Embuçado

Portugal é prenhe de messianismo. Desde a sua incepção que o país se constrói na ideia de uma graça divina que longe se estenderá pela sua história. Tão longe que ainda hoje o povo se ajoelha na prece do seu “embuçado”. A lista é interminável e tem em D. Sebastião, o Encoberto, a expressão máxima dessa ideia messiânica que atravessa a nossa história, seguindo pelos séculos, em saltos políticos e filosóficos, contaminando o raciocínio das elites e o espírito do povo. E mesmo pela república dentro, até à democracia, as figuras messiânicas foram sempre pródigas na convulsiva e angustiada política portuguesa, numa linhagem que, de Afonso Henriques a Salazar, marca a neblina nacional pela ânsia de um Quinto Império. Salazar, e o seu principal propagandista, António Ferro, foram, aliás, os mais instrumentais elementos na construção deste Portugal contemporâneo, submergido no caldeirão denso do saudosismo, numa espécie de revisionismo histórico nacionalista e antimarxista, que continua hoje tão em voga, como se viu nessa equivoca e extemporânea sessão solene do 25 de Novembro, a que assistimos anteontem.

Vem este longo intróito a propósito das notícias veiculadas esta semana sobre a presuntiva candidatura presidencial de S. Exa. o Chefe de Estado Maior da Armada, Almirante Gouveia e Melo, ou, como ficou conhecido aquando da sua projeção para a fama, o Capitão Iglo da ditadura pandémica. Despenseiro logístico da panaceia vacinal feito novo messias da grandeza pátria, emergindo das águas do anonimato militar para os holofotes do circo político-mediático na velocidade de duas inoculações. Mas, o que me interessa realçar nesta putativa candidatura, não é a suposta incógnita bruma ideológica em que vem envolvida a personagem (para mim o autoritarismo do protocandidato é claro…), mas é precisamente a dinâmica das reações políticas à intenção do Sr. Almirante, imbuídas na sua quase totalidade por um revisionismo descarado e, diria eu, insultuoso.

É que Gouveia e Melo é uma invenção do Costismo, uma ideologia política impregnada pelo maquiavelismo clássico de que os fins justificam os meios. No auge da pandemia, o Costismo não se coibiu de fazer mão dos mais básicos instintos e armas do populismo, nomeadamente a instrumentalização da autoridade militar, para imposição de uma ordem arbitrária, eminentemente inconstitucional e ostensivamente ditatorial, alicerçada no medo, em que um comandante de submarinos, de porte arrogante e traje de combate, qual Eanes em cima do carro, funcionou como instrumento exemplar da estratégia comunicacional de um governo permanentemente em campanha eleitoral. Ainda hoje, ninguém me convence que não foi um qualquer Luís Paixão Martins que se lembrou de colocar à frente do COPCON do Infarmed um militar garboso e embarbado. É por isso que é particularmente cómico, para não dizer patético, assistir hoje aos porta-vozes do regime zurzirem no Almirante com todos os clichés do arrivismo eleitoral: o militar oportunista;  o populista antissistema; o fascista útil e outras lamentações do género quando foram eles próprios quem, não só inventou o “monstro” de que agora se acobardam, como criou o caldo de cultura que permite que hoje, 50 anos depois das promessas de Abril, o descrédito das pessoas perante um estado falhado seja tal, que um novo embuçado conquiste mais de 20% de aprovação do eleitorado.

Nos meus tempos de petiz, num Portugal mais simples, João Ferreira Rosa, um perigoso reacionário, cantava num lirismo particular o “Fado do Embuçado”, que todos entendiam como um hino a D. Sebastião. O poema, escrito por Gabriel Oliveira, conhecido, ironicamente, como Gabriel Marujo, e musicado pelo guitarrista José Marques Piscalarete, era, afinal, uma homenagem ao Rei D. Carlos que, consta, gostava de fados. Pode ser que o Almirante faça deste fado o seu fado, para grande mal do nosso fado coletivo…

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Speakers' Corner 7

Pelo buraco de Alice

Qualquer empresário sabe que o Governo Regional está numa lastimável situação financeira. São as dívidas aos fornecedores, os atrasos nos pagamentos, as linhas de apoio desertas e as comparticipações por pagar. Por outro lado, sucedem-se as notícias que dão conta dos aumentos da dívida da região, que já atinge uns impressionantes 3.2 mil milhões de euros. O Banco de Fomento que coloca a Secretaria das Finanças em Tribunal. E dos atrasos do PRR, então, já nem se fala. Aqui há umas semanas o Expresso fazia eco de fontes que davam nota da possibilidade da Região estar à beira de um “resgate”. A confirmação desse descalabro acaba por vir na forma de um apoio extraordinário em sede de Orçamento de Estado no valor de 75 milhões de euros para amortização da dívida, a que o PSD chama de “justa e adequada compensação” e o PS classifica, mais uma vez, de “resgate”, na esperança que seja esse eminente apocalipse financeiro a fazer tremer o governo de Bolieiro.

Na esteira das recentes eleições americanas, muito se tem falado sobre as motivações eleitorais e, principalmente, do impacto das questões económicas na orientação de voto dos eleitores. Colocando muitos analistas o ónus da derrota de Kamala Harris nas consequências da crise inflacionária na vida dos americanos, resumindo a teoria na velha e célebre expressão de James Carville, assessor político de Bill Clinton, que sentenciou: “é a economia, estúpido!”

Nos Açores, onde o peso da administração pública na economia ronda os 32% é difícil perceber os impactos reais da situação financeira na intenção de voto dos seus cerca de 34 mil funcionários públicos, cerca de um terço da população empregada. Mas, desconfio que enquanto continuarem a cair todos os meses os ordenados nas contas e o Turismo continue a fazer verter pequenos acrescentos ao seu rendimento o impacto será reduzido ou nulo. Para mal dos nossos pecados, o grande motivador eleitoral nos Açores é o recrutamento laboral nessa mesma administração pública, muito mais do que as percentagens do endividamento ou as curvas negativas do défice.

No mês passado, o PS-Açores realizou o seu congresso num Teatro Micaelense com meia casa e a tentativa de projetar o seu novo líder para o topo das preferências do eleitorado. Num episódio muito pouco comentado, mas elucidativo, Pedro Nuno Santos, no seu discurso, dirigindo-se a Francisco César, referiu a sua já longa carreira política conjunta, de mais de vinte anos, e a sua cumplicidade e amizade, o que é normal e apreciável, mas logo a seguir foi mais longe ao dizer que “nós sabíamos que este dia ia chegar”, cito, referindo-se à circunstância de serem ambos líderes nacional e regional do partido socialista, o que, isso sim, revela uma certa maneira de estar e de ver a política que tem tudo para ser condenável. Presos na sua própria mitomania, os dois jovens lideres como que caíram pelo buraco de Alice e perderam a noção da realidade, vivendo nesse devaneio sonhador de quem acha que está predestinado ao céu por direito próprio.

Há um lugar comum que diz que nos Açores não se ganha eleições, são os outros que as perdem. Esta nova sofreguidão dos socialistas açorianos com a dívida da Região mostra bem por onde acham que Bolieiro poderá vir a sentir mais dificuldades. Mas esta esperança, este pensamento mágico, labora em dois equívocos. O primeiro, como agora ficou provado com esta esmola orçamental, é que Montenegro nunca deixará cair Bolieiro e tão depressa Pedro Nuno não substituirá Montenegro. A segunda, e muitas vezes esquecida, e que James Carville repetia sempre depois de gritar pela economia, é que o que os eleitores pedem é mudança, e, como se vê pela incapacidade de constituir uma candidatura a Ponta Delgada, essa mudança, por pior que sejam os social-democratas, este PS não consegue pelos vistos corporizar.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Speakers' Corner 6

Porque perderam os Democratas

Muitas foram as reações a que assistimos, um pouco pelo mundo, à surpreendente vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas. Surpresa, choque, até mesmo, em alguns casos, pavor, perante o regresso à Casa Branca da alaranjada e iconoclástica celebridade americana, foram alguns dos mais comuns registos, tanto por parte de políticos como de comentadores, do lado esquerdo da barricada, nos dois lados do Atlântico. No campo Democrata, o grosso das respostas foram no mesmo sentido da campanha, uma visceral e contundente repulsa perante tudo aquilo que Trump representa, literalmente, um novo fascismo, englobando no epiteto tanto a criatura como os seus apoiantes

Em Portugal, no dia a seguir às eleições a líder parlamentar do Partido Socialista, Alexandra Leitão, foi ao ponto de publicar na rede social X um desabafo em que classificava o resultado como a vitória do ódio. “Venceu o ódio, a violência, o totalitarismo, a boçalidade, o racismo e a misoginia. (…) Venceu a indecência!” Escreveu. Este tipo de reações, mais ou menos gástricas, à eleição de Trump, embora compreensíveis, revelam, no entanto, um padrão mais complexo e, diria eu, perigoso, que é o alheamento dos diretórios partidários da esquerda global relativamente ao que são as legitimas aspirações dos eleitores e, mais grave, àquilo que eles próprios contribuíram para este tipo de desfecho, e o que isso significa para a própria saúde da democracia no seu todo.

Por alguma razão, a esquerda não consegue compreender o quão drasticamente se afastou do seu eleitorado e como as pessoas se sentem rejeitadas e abandonadas por aqueles cuja obrigação era protegê-las. E, de como décadas de subserviência ao  grande capital, ou, mais recente, a deriva para um segmento urbano, dito intelectual e woke, levaram a que a classe trabalhadora olhasse para o outro lado da barricada em busca de quem lhes resolva os problemas. Bernie Sanders, velho e empedernido socialista, foi o primeiro a colocar o dedo nesta ferida, assinalando precisamente este alheamento do partido democrata face àquilo que era o seu verdadeiro eleitorado – a “working class” americana, que luta no dia-a-dia para chegar ao fim do mês. Basicamente, o partido deixou de ouvir, defender e representar as suas bases.

Talvez o aspeto mais revelador desta oligarquia do diretório partidário seja a própria forma de designação dos candidatos. Primeiro com uma insistência absurda em Joe Biden, octogenário, impopular e decadente. E, a sua substituição, tardia, sombria e autoritária, por Kamala, numa usurpação incompreensível do procedimento enraizado de primárias. Os barões do Partido Democrata dispuseram a seu belo prazer das opções do partido, com o resultado desastroso que agora se conhece.

Enquanto a América real se preocupava com a economia, a emigração e os impactos e consequências da pandemia, a esquerda liberal e socialista perdia o seu tempo em preleções incoerentes sobre franjas sociais ou a pura e simples demonização, e mesmo insulto, dos seus adversários. Recordemos que Biden chegou a classificar de “lixo”(!) os apoiantes de Trump, tal como Alexandra Leitão os adjetiva de indecentes, numa arrogância e superioridade moral e intelectual que é a antítese de tudo o que deveria ser a Esquerda.

Esta incapacidade de estabelecer pontes, de ouvir o eleitorado e de se aproximar da realidade concreta das vidas dos cidadãos, desviando-se do centro e polarizando ainda mais o ambiente político é, como se vê, uma receita para a desgraça. Lá, como cá, inclusive até nestas pequenas ilhas no centro do lago, é na aproximação dos partidos às pessoas, sabendo escutar as bases, saindo das pequenas bolhas dos grupos de amigos, ou dos vídeos do TikTok, que se constroem alternativas, que se estreitam laços com críticos e opositores, e que, ao final do dia, se ganham eleições. Em democracia, não há vencedores pré-designados, nem sequer vitórias morais. Em democracia, quem manda é o povo, mesmo quando não concordamos com ele.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Speakers' Corner 5

Da Democracia na América

À hora em que o leitor olhar este jornal provavelmente já saberá quem foi o vencedor das eleições americanas, ou então, talvez não. À hora em que escrevo, mais de 240 milhões de eleitores registados para votar já terão feito ouvir a sua escolha na maior democracia do mundo. Se o resultado pode parecer problemático e imprevisível, há já uma certeza que podemos tirar deste processo eleitoral: a América está irreconciliavelmente dividida. E estas eleições apenas ajudaram a cavar ainda mais esse fosso de apartamento entre essas duas américas.

No entanto, já em 1835, um jovem aristocrata francês alertava para os perigos que ameaçavam a jovem democracia americana. “O despotismo de uma fação não deve ser menos temido do que o despotismo de um indivíduo” escreveu Alexis de Tocqueville no seu “Da Democracia na América”, alertando-nos para o que considerava ser a perigosa tendência para a “tirania da maioria”. Como assistimos agora, nestas eleições em que o insulto e as bandeiras do medo, agitadas à exaustão por ambas as partes, com acusações estridentes como “lixo” e “Hitler”, são o denominador comum dos slogans políticos. Muito pouco, na verdade, se quisermos ser isentos e independentes, distingue atualmente a praxis eleitoral de Republicanos e Democratas.

No final dos anos 90, dois políticos de esquerda, Tony Blair e Bill Clinton, nos dois lados do grande lago Atlântico, deram forma a uma teoria política a que se designou chamar de “Terceira Via”. O “centrismo radical”, como lhe chamou Anthony Giddens. Vindos da ressaca de Thatcher e Reagan, os dois líderes da grande social-democracia ocidental procuraram fazer a síntese entre o estado social e a economia de mercado como forma de, para além de conquistarem o poder, o poderem manter. Quase trinta anos passados, o que a Terceira Via fez ao centro-esquerda mundial foi desmembrá-lo e descaracterizá-lo, despindo-o das suas mais profundas ideologias e princípios, em prol de uma frenética obsessão com o politicamente correto e, em última instância, da fixação permanente das máquinas partidárias na mera vitória eleitoral.

Ao longo do tempo, a cedência ao capitalismo mais selvagem, levou a um afastamento dos eleitores do centro, que deixaram de ver as suas aspirações acarinhadas pelos partidos de centro-esquerda, e foi isso, também, que levou ao surgimento de agendas cada vez mais radicais e extremistas, com os nacionalismos xenófobos, de um lado, e os wokismos de género, do outro. Se associarmos a isto as consequências devastadoras de duas crises dramáticas no espaço de uma geração – financeira em 2008 e pandémica em 2020 – temos o caldo perfeito para o mundo bipolar em que vivemos hoje.

Independentemente das nossas opiniões sobre Trump e Kamala, eles próprios já não representando bem a natureza de Republicanos ou Democratas, um episódio em particular torna-se paradigmático para a compreensão destas eleições e da crise que atravessa a América. Robert Kennedy Jr, sobrinho de John e filho de Bobby, foi candidato democrata às primarias do seu partido e, depois de escorraçado pela máquina partidária democrata, candidato independente, até, finalmente, e em desespero de causa, declarar o seu apoio a Trump. O movimento criado por Kennedy apresenta-se hoje com uma plataforma designada Make America Healthy Again, apostado em combater os lobbys financeiros das grandes companhias farmacêuticas começando, precisamente, no ponto nevrálgico da questão: a saúde. Tornar a América saudável outra vez. Nada podia ser mais de esquerda do que isto, mas é Trump, o proto-tirano, quem parece querer abraçar este movimento. Enquanto Kamala, e os democratas, tirando a questão do aborto, que defende, e bem, propõe políticas monetaristas que, ao final do dia, apenas perpetuam as desigualdades de um sistema baseado na gestão, não da saúde, mas, do negócio da doença. Como bem alertou Tocqueville, triste América que se divide entre duas formas de tirania.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Speakers' Corner 4

A Pedra Filosofal

O passado fim-de-semana foi pródigo em fenómenos partidários na região. Em Ponta Delgada, os sociais-democratas reuniram-se em congresso. Uma concentração pujante, impregnada pelo odor inebriante do poder, que teve inclusive direito a destacados convidados de honra. Luís Montenegro, Miguel Albuquerque e, a coqueluche juvenil da social-democracia lusa, o Tom Riddle do centro-direita, o delfim Sebastião Bugalho. Ex enfant terrible do comentário político e hoje bem-instalado deputado europeu. Por seu turno, o Partido Socialista, reuniu timidamente a sua comissão regional, num pequeno auditório na singela e pitoresca Vila Franca do Campo. Nestes dois encontros, uma nota comum perpassa um pouco pelo tom dos discursos e da coreografia política: a obsessão com o “novo”. De um lado e do outro, este parece ser o foco principal de toda a acção político-partidária, o culto e a fixação na renovação e na juventude. O PS-Açores, até, adotou como slogan “um novo futuro” e fez anunciar que tinha renovado em mais de 81% o seu secretariado regional.  

Na velha ciência alquímica, uma das mais ambicionadas quimeras era a descoberta da “pedra filosofal”, uma substância mágica capaz de transformar outros metais em ouro e que era tida, também, como o elixir da eterna juventude, capaz de dar ao seu detentor a imortalidade. Atualmente, a vida política contemporânea parece estar tomada dessa febre, dessa embriagante pulsão pela longevidade e a eterna juventude, expressa na permanente procura de mudança e, paradoxalmente, de perpetuação no poder. Mesmo os partidos ditos mais conservadores parecem acometidos dessa ânsia marxista dos “amanhãs que cantam” e das jovens promessas. Como se o passado fosse um incandescente inferno de calamidades do qual precisam, a todo o custo, de se distanciar.

Não me interpretem mal. Eu sou progressista e acredito no valor da mudança. O triste não é mudar de ideias; triste é não ter ideias para mudar, como dizia o Barão de Itáraré. Mas, é precisamente aqui, no campo das ideias, que este culto partidário da renovação permanente me inquieta. Exatamente porque não são as ideias que eles querem mudar, nem os métodos, nem mesmo alguns cancros metastisados que pululam pelos vasos sanguíneos partidários como cadáveres ambulantes, na forma de longas e inexpugnáveis carreiras políticas. O foco único da mudança autofágica dos partidos são os nomes, as caras e, aqui e ali, um ou outro currículo útil.  O foco da atividade partidária não está nas políticas e nas soluções e na reconquista da confiança política dos cidadãos, mas na saltitante e permanente dança de cadeiras dos seus protagonistas, sejam eles novos-velhos ou falsos novos.

O que a política partidária, elemento fundamental da democracia, precisa urgentemente não é de caras novas, mas de novas soluções e outras e melhores formas de exercer a própria política. Novos métodos e novas estratégias para, dito de uma forma muito simples, resolver os problemas dos cidadãos. De que é que serve renovar em 80% um órgão dirigente se os discursos, as práticas e as ideias são as mesmas de sempre? Se as palavras são as de antigamente, se até o tom e a forma é o mesmo que o antepassado, mimeticamente estudado ao espelho do quarto de banho de hotel, para que servem essas fictícias renovação e juventude?  Destruíram o SNS. A escola pública está um caos. As finanças regionais no precipício de uma bancarrota. Mas são jovens e são novos. O que se percebe deste excitado agitar de rostos e de falsa juventude, ou mesmo desse renovar de listas inteiras de nomes de dirigentes, é que o que estes partidos verdadeiramente procuram é essa mítica “pedra filosofal” que lhes conceda não a mocidade mas a eternidade no poder. Como tristes e cansados Nicolas Flamel, descendentes de uma prática política velha e gasta que, afinal, já pouco ou nada tem para nos oferecer.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Speakers' Corner 3

O Gambito de Rainha de Montenegro

Nesta acirrada e intensa partida do xadrez político pátrio, em que nos vemos mergulhados cotidianamente, numa vertigem quase caleidoscópica, os dois grandes-mestres da arte do fianqueto partidário digladiam-se, em avanços e recuos táticos, sobre o tabuleiro da vida do cidadão comum, pondo e dispondo dos peões, que somos todos nós, como se só o Rei fosse importante para o resultado final, que é a sua manutenção e perpetuação no poder.

Quais Karpov e Kasparov do grande centrão político, Montenegro e Pedro Nuno Santos, afinam jogadas e calibram movimentos, em sucessões de ataques e defesas, numa partida disputada à melhor de três. Depois de um empate com cedência na primeira partida eleitoral, Montenegro saiu vencedor deste segundo round, com um Gambito de Rainha inesperado e sensacional, sacrificando dois peões fiscais para encurralar Nuno Santos num xeque-mate orçamental. Salvaguardado na extensão do calendário eleitoral e com Nuno Santos remetido à sua defesa para lamber as feridas de um péssimo arranque, Montenegro partiu para a terceira e derradeira partida com um ataque pela sua direita, fazendo subir, em simultâneo, o Cavalo da agenda securitária e o Bispo do anti-wokismo de género, materializado no anúncio bombástico da revisão dos currículos da pobre disciplina de Cidadania.

Num tempo em que ainda se estudavam Humanidades, antes desta febre utilitarista e algorítmica das últimas décadas, em que os miúdos todos tem de ser engenheiros computacionais, talhados para grandes carreiras nas consultoras da alta finança, a cidadania era algo que se aprendia nos livros, na História e na Filosofia, lendo os clássicos, e, principalmente, na vida na rua, dentro da família e das coletividades. Era na literatura e no dia-a-dia que se aprendia as normas e os vocabulários da convivência, da tolerância, do respeito e, essencialmente, da vida em comunidade. Hoje, numa sociedade deslaçada e hiperdigitalizada, é suposto ser a escola a educar as crianças sobre as mais básicas e fundamentais regras da República e do Estado de Direito Democrático: a Igualdade e o primado da Lei.

Mas antes de nos perdermos no frenesim mediático, a discutir a frívola dicotomia entre conservadorismos bacocos e progressismos woke, talvez fosse bom ponderarmos sobre como nos desviámos, enquanto comunidades políticas, da velha máxima de que uma verdadeira Democracia é a governação da maioria com respeito pelas minorias, e não uma permanente e opressiva ditadura das mais excêntricas e diminutas minorias, sejam elas do Grupo 1143 e do inefável Juiz Fonseca e Castro, da extrema-direita, de um lado, ou os wokismos alfanuméricos dos Diogos Faros desta vida, da extrema-esquerda, do outro. Talvez fosse bom refletirmos sobre como a política deixou de ser uma disputa entre diferentes ideologias económicas e sociais para ser um combate constante entre ideologias de género, agendas populistas e memes das redes sociais transformados em chavões atrativos na boca salivante dos influencers do slogan eleitoral.

O objetivo desta nova jogada de Montenegro é claro: enquanto estivermos a discutir o “retirar de amarras ideológicas” da Cidadania, ou o “combate sem tréguas à criminalidade”, seja lá o que isso for, ninguém vai ter tempo para perguntar sobre o maior aumento das cativações de sempre, o pífio investimento público previsto ou as miseráveis previsões de crescimento económico que o ministro Miranda Sarmento levou acabrunhadamente a Bruxelas, uns rastejantes 1,7%. O problema é que, ao criar esta cortina de fumo demagógica e populista de mais polícias na rua e menos sexo nas salas de aula, cedendo calculadamente aos encantos do discurso de André Ventura, Montenegro faz tombar perigosamente o PPD para o seu estibordo, correndo o sério risco de fazer adornar o barco de vez para os braços do Chega. É que fazer política com as armas dos outros é, acima de tudo, dar-lhes razão. E entre o original e a cópia, o povo vai sempre preferir o original.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Speakers' Corner 2

 “À Espera de Godot”

Samuel Beckett, poeta, romancista e dramaturgo irlandês, um dos mais importantes escritores do Séc. XX, escreveu que “nada é mais real do que o nada”. Em “À Espera de Godot”, a sua peça mais famosa, duas personagens, Vladimir e Estragon, estão parados na beira de uma estrada, ao centro de um cenário nu, onde apenas uma árvore pontua o vazio, o nada. Os dois esperam alguém, ou algo, chamado Godot. Enquanto esperam, Vladimir e Estragon, conversam sobre a vida, a passagem do tempo, a existência, numa espécie de melancolia resignada. São duas personagens num diálogo onde nada acontece e onde, aparentemente, nada se diz. Ao longo da peça apenas mais três personagens surgem no enredo. Pozzo, Lucky e um jovem rapaz que, no final, nos revela que Godot, afinal, não virá. “À Espera de Godot”, na sua despida contenção cénica e narrativa, é considerada pelos críticos um dos momentos altos do chamado “teatro do absurdo

Nas últimas semanas, talvez meses, o país tem estado ansiosamente em suspenso à espera do seu Godot. E, Pedro Nuno Santos e Luis Montenegro, como Vladimir e Estragon, conversam, numa espécie de penoso e cínico teatro do absurdo, sobre esse Godot da nossa existência que dá pelo nome de Orçamento de Estado. Há dias, os jornais davam corpo a uma dessas conversas entre estes dois protagonistas, com uma imagem paradigmática dessa encenação em que se transformou a nossa vida política. Numa das salas de São Bento, Montenegro e Pedro Nuno Santos, surgem sentados lado a lado, os corpos tensos no limiar dos assentos, as mãos juntas sobre os joelhos fletidos, as pontas dos dedos tocando-se num triângulo invertido, os dois emulando a postura um do outro, numa perfeita e ensaiada coreografia, como se, de facto, a única coisa que os distinguisse fosse esses míseros 1% de diferença no corte do IRC. No palco permanente da política espetáculo, a pose, a mímica dos protagonistas, tornaram-se o centro de toda a comunicação. Na polaroid do instante já nada distingue estes dois atores profissionais da dramaturgia política, perdidos no cenário do seu próprio vazio, onde o nada se tornou tudo. Num diálogo absurdo, os dois personagens trocam falas sobre o IRS para jovens, jovens até aos 35 anos(!), em breve deixará de haver adultos, seremos todos jovens indefinidamente até, um dia, acordarmos idosos sem direito a pensões. E lançam frases sobre um corte no IRC, num país onde quase 40% das empresas não pagam IRC. Subitamente, no meio desta discussão vazia, André Ventura, qual Pozzo, entra em cena agitando o caos no marasmo expectante dos dois personagens principais.

Entre um Primeiro-ministro gelatinoso, tremelicando entre linhas vermelhas, um líder da oposição acossado e titubeante, apelando, imagine-se, de dedo em riste, a uma espécie de unidade sindical da livre opinião partidária, e num país onde, com os serviços do Estado a desmoronarem perante os nossos olhos a cada dia que passa, o OE tem um peso de 40% do PIB e a rubrica do investimento é de uns miseráveis 3,5%, quem ganha é sempre o populista, o demagógico e o antissistema, mesmo que consigo apenas traga uma sucessão de mentiras. Porque, no final do dia, na frieza dos números e no vazio da narrativa, como o rapaz de Godot, o que o cidadão comum quer é que lhe resolvam os problemas básicos, coisas tão simples como a confiança nas instituições e não ter um país em que a corrupção surja no topo das preocupações das pessoas, emprego e habitação, uma administração pública eficiente, com hospitais a funcionar, uma justiça que não seja uma calamidade pública, com interrogatórios judiciais emitidos em prime time da TV, uma economia em que a TSU não pese 35% sobre o salário real, e escolas com professores, auxiliares e, já que é para ter computadores, que ao menos os ponham a tempo e horas nas mãos dos alunos…


 

 

 

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Speakers' Corner 1

 Ser ou não ser

Vivemos tempos conturbados em que o mundo no seu peso inabalável parece querer cair sobre nós de forma final e absoluta. Mal saído da loucura pandémica, para muitos uma luta que ainda não terminou, o mundo soçobrou sob o peso da guerra. Desde as estepes ucranianas ao eternamente bélico médio-oriente, onde o mais antigo conflito religioso e territorial do mundo continua a fazer-nos pôr em causa a nossa fé na humanidade. Na velha Europa, vivemos uma espécie de sensação de estertor final de uma longa época de paz e prosperidade, no ar paira um leve odor a declínio e queda do império, do sonho e do projeto europeu, cujo Brexit foi já o primeiro frémito, o primeiro chilrear do canário na mina. Uma profunda crise de confiança nas instituições democráticas, um titubeante e cada vez mais desigual desígnio económico e uma gravíssima crise humanitária colocam a União Europeia, outrora um farol global de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, na beira do precipício da irrelevância e da autodestruição. 

Edward Gibbon, o grande historiador britânico do século dezoito, identificou cinco grandes marcas do declínio do Império Romano: a desigualdade entre ricos e pobres; a dependência da sociedade e da economia face ao Estado; a desproporção entre a exteriorização da riqueza e a criação da mesma; a arte que se torna cada vez mais sensacionalista e aberrante; e uma sociedade cada vez mais dominada pela obsessão com o sexo. Olhando a civilização ocidental hoje não podemos deixar de pensar o quão embrenhados estamos nestes essenciais alertas de Gibbon. A Europa e a América, outrora a grande pátria do liberalismo esclarecido, agitam-se num turbilhão de crise económica e financeira, falência do Estado Social, desigualdade aberrante entre o 1% mais rico e a cada vez maior maioria de pobres e remediados e, por todo o lado, da comunicação social aos meios académicos, da arte ao entretenimento, o vírus woke que tudo contamina com a sua arrogância discriminatória e perversidade autoritária, como uma espécie de fatalíssimo e imparável covid intelectual. Em Portugal, 50 anos depois de Abril, cuja celebração inexplicável e escandalosamente passou quase como despercebida na torrente mediática e política, os dois principais partidos democráticos vivem a farsa pueril do orçamento, a extrema-direita, populista e demagógica, encavalita-se nos copiosos falhanços da partidocracia que capturou o país, onde um almirante autoritário, inventado no calor do pânico pandémico pelos próprios políticos, se arroga agora o plano de substituir no mais alto cargo da nação um pobre e envergonhado professor de direito caído em desgraça pela sua própria vaidade e maquiavélica sede de conspiração. Nos Açores, a política está refém dos caprichos bairristas e da incompetência verborrenta, por um lado, e do fatalismo hereditário de uma longa e meticulosamente planeada carreira política, por outro, e nem o clima nestes ofegantes e intermináveis dias seguidos de sudoeste nos deixa vir à tona para respirar, como que infinitamente submergidos na omnipresença transpirante do bafo. 

Vasco Pulido Valente, um dos mais lúcidos e icónicos intelectuais portugueses do virar do milénio, costumava escrever que “o mundo está perigoso”. Olhando este cenário mais ou menos dantesco que configura o ar do nosso tempo, um certo pessimismo realista levar-nos-ia a citar VPV com o mesmo presciente aviso. Mas, talvez, exatamente por isso, valha a pena antes, perante os infortúnios do mundo, clamar por uma defesa firme e intransigente dos valores da Liberdade e da Democracia. Perante as múltiplas atribulações do destino importa erguermo-nos, fazer ouvir a nossa voz e lutar. Citando Hamlet, na mais significativa parte do famoso solilóquio “ser ou não ser”, é mais nobre pegar em armas contra o mar das dificuldade e opondo-nos a elas pôr-lhes fim do que, perante grandes adversidades, dormir, sonhar – morrer.

Publicado na edição n.º 22408 de 09/10/2024 do Açoriano Oriental

domingo, 19 de maio de 2024

A Recuperação do Humano na Era do Número



Homem Vitruviano, desenho Leonardo da Vinci, 1490

[intervenção na Azorean Spiritual Summit]

A primeira pergunta que todos nos colocamos, desde a génese da consciência e do pensamento, é a de “quem sou?”. Quem sou eu? De onde venho, para onde vou, o que faço aqui? Ou, na irónica formulação de Herman José: “De onde vimos, para onde vamos e quem é que nos paga?”.

Desde os mais antigos tempos do humano que o questionamento do Eu marca a sua própria evolução. A busca pelo conhecimento é, afinal, a essência da espiritualidade, mas também é da ciência, da filosofia e, na perspetiva junguiana do próprio Ser e do Eu. Nas palavras do nosso santo Antero, tantas vezes esquecido ou remetido para a mera categoria de sonetista, quando foi de pleno direito um dos maiores pensadores portugueses do século XIX, e não só, na abertura do seu ensaio “Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX”, publicado em três artigos na Revista Portugal, dirigida pelo seu amigo Eça de Queiroz, entre Janeiro e Março de 1890 , pouco mais de um ano antes de tirar a sua própria vida, a tiro de pistola, sentado num baco do campo de São Francisco, – “A filosofia é eterna como o pensamento humano…

Espírito e alma, corpo, consciência e pensamento são ideias, formulações da mente, tão antigas como o próprio ser humano. São, afinal, características essenciais da caracterização da própria Humanidade e sempre estiveram interligadas entre si. Não se opunham, mas complementavam-se, como peças de um grande puzzle da sabedoria e instrumentos para a indagação da realidade que é a sina e o destino de todo o Ser Humano.

Nas formulações clássicas, espírito e sopro são uma e a mesma coisa. No grego antigo a palavra pneuma refere da mesma forma o ar, a respiração e o espírito. E, como sabemos no Jardim do Éden, Deus soprou a Vida pelas narinas de Adão. Esta noção do etéreo, do impalpável, do que é sublime e incorpóreo, como elemento primeiro da Vida, da alma e, por força do espírito, como condição imprescindível e distintiva do humano, marcou ao longo de milénios a história do Homem e a sua representação. E, interessa-me aqui recuperar esta imagem eminentemente simbólica do intangível como caracterização da existência para abordar o tema da espiritualidade e da sua antítese a materialidade. Porque, como diz Manly P. Hall, notável pensador e divulgador americano do pensamento esotérico, no seu magnum opus “The Secret Teachings of All Ages” – “a mais universal linguagem é o – Simbolismo.”

Ora, durante os mesmos milénios alma e espírito, pensamento e consciência, e até mesmo ciência e filosofia, foram, eram, de certa forma sinónimos, eram complementares e indissociáveis. Hoje, neste acelerado mundo moderno e binário, onde o código, restringido a zeros e uns, é o concreto, o material, o explicável e mensurável, que domina o pensamento contemporâneo, preso na armadilha do seu racionalismo, dito, lógico e científico.

Não me interpretem mal. Com isto não estou a criticar a ciência per si, enquanto grande corpo de conhecimento, mas antes a colocar em questão um certo cientifismo atual que se entende a si próprio como único, absoluto e omnipotente. Curiosamente este processo de progressiva materialização da consciência e do pensamento, afastando-se das componentes mais etéreas da alma e do espírito, do Sopro, ou, se quisermos mesmo, do Divino, teve o seu início com uma corrente filosófica denominada Humanismo, ou para ser mais correto, com as interpretações Iluministas do Humanismo e mais tarde, aprofundadas, ou adensadas, para ser mais exato, pela chamada Segunda Revolução Científica, a atomização do conhecimento. E, é claro, com a guerrilha ideológica entre a religião e a política, entre a Igreja, o Dogma, e o pensamento e a Liberdade.

Paradoxalmente, o Humanismo é, ou foi, precisamente, aquela corrente do pensamento que colocou o Homem no centro das coisas. Que procura no humano, caminhando de certa forma para além de Deus e do divino, do Sopro, afinal, a razão e a explicação da existência. O humanismo, em suma, responde à pergunta “quem sou?” com o Homem.

Lembremos o célebre desenho de Leonardo da Vinci do Homem Vitruviano, em que as proporções do corpo humano são matematicamente descritas numa simetria perfeita extensível ao contexto do Universo. Com o Humanismo o Homem torna-se o centro do conhecimento e, por extensão, do Universo. Se bem que, muitos dos principais pensadores do humanismo renascentista, como Copérnico, Pico de la Mirandola, Galileu ou Newton, para além de herdeiros do pensamento clássico, discípulos diretos nomeadamente de Platão e Aristóteles, eram, também e ao mesmo tempo, estudiosos e defensores do pensamento hermético traduzido do Antigo Egipto, por via ptolemaica, até ao humanismo renascentista e ao século das luzes. Sir Isaac Newton, para além de autor dos Principia Mathematica e criador dos fundamentos da mecânica clássica, a origem da física contemporânea, foi, também, um dos mais importantes alquimistas da História.

Entretanto, é curioso verificar que o famoso adágio cartesiano, “cogito ergo sum”, proferido por Descartes, considerado o fundador do método científico, na sequência de Francis Bacon, ele próprio um alquimista e rosa-cruz, é, afinal, uma versão lógico-matemática da chave hermética, “o Todo é Mente a Mente é Tudo”. Mais tarde, o nosso António Damásio irá contrapor à lógica cartesiana o primado das emoções na elaboração da razão, uma subjetivação do conhecimento que foi tão inovadora como extraordinariamente próxima desse Sopro inicial, mas divago…

Em seguida ao Humanismo, o Iluminismo vai adensar, e uso o termo propositadamente, no sentido de tornar mais denso e pesado, ainda mais esta materialização da razão e do antropocentrismo da filosofia e do conhecimento. Desviando-a e afastando-a de todos os ares, ou mares, que não sejam terrenos sólidos e concretos, ou, como usa dizer-se hoje em dia, com base científica. Num tempo em que a própria ciência já deixou de ser questionamento, hipótese, para se tornar certeza e verdade, tão inquestionável como o próprio Dogma. Deus Ex-Machina

Humanismo e Iluminismo, mais do que correntes filosóficas, mas enquanto manifestações políticas, procurando contrariar a verdade divina expressa na autoridade da Igreja e do Senhor, aqui tido tanto como Deus, no altíssimo, como Rei, todo-poderoso e absoluto, vão de certa forma degenerar, creio que involuntariamente, num totalitarismo empiricista onde apenas o que é mecânico e matemático é verdadeiro, e onde o Sopro, que é a matéria do sonho, é desvalorizado e descartável.

Esta questão, aliás, da verdade científica esta na raiz de muitos dos dilemas e das perplexidades que vivemos atualmente. O método científico, baseado em evidencias, exclui o que não pode ser materializado, seja de forma empírica, seja de forma teórica ou matemática. O Sopro, feliz ou infelizmente, não é equacionável. Nem tem formulação matemática.

A este propósito talvez seja interessante regressar a Epicuro de Samos, e à Atenas do século IV a.c. que busca nos prazeres, o Epicurismo, a via para a Felicidade plena através da qual se atingiria a Ética, o estado e aspiração última da existência do Homem.

Ao longo dos séculos a ciência e com ela o conhecimento e, de certa forma, a filosofia foi-se tornando progressivamente mais concreta, objetiva, microscópica e, apesar do Bosão de Higgs, material. Embora, quase como dois opostos que se atraem, a atomização e Sopro são, afinal, espantosa e universalmente próximos. Mais uma vez, e voltando às chaves herméticas, a dualidade como princípio de todas coisas.

Não querendo fugir muito para Oriente e entrando na área que me pediram que tratasse aqui hoje, os problemas e os desafios do mundo atual, dentro de uma perspetiva mais política do que filosófica, esta materialização de que vos tenho falado tem a sua realização plena no Capitalismo.

O capitalismo tem a sua fundamentação existencial na propriedade. Na posse e no lucro. E a primeira forma de propriedade foi a propriedade da terra. O solo arável. É interessante verificar que, em estreita oposição à fundamentação judaico-cristã de matriz clássica da civilização ocidental, as tribos norte americanas opõem-se determinantemente ao conceito da posse da terra. “Nós não somos os donos da terra, nós apenas a cuidamos de uma geração para a outra, nós somos a terra” dizem-nos os anciãos Cherokee e Iroquois e todas as outras tribos da vasta américa de Thoreau e Whitman. Hoje, capitalismo e materialismo são indissociáveis, são sinónimos, entrelaçados entre si, perdoem-me o pleonasmo. O “quem é que nos paga” do Herman José, tornou-se tão ou mais importante do que o “de onde vimos e para onde vamos”.

Vivemos não já numa sociedade de pessoas, de humanos, mas de referenciais numéricos, de estatísticas, gráficos, curvas, percentagens e o exemplo mais paradigmático e dramático disso mesmo foi precisamente na pandemia. Na distopia pandémica o humano foi substituído pelo paciente, o veículo da peste, um dossier sem nome, etiquetado e anónimo, número, dado, folha de Excel.

Mas adianto-me. Ao subjugarmos as nossas vidas às normas e aos desejos do capitalismo, que se desdobra em mercantilismo, industrialismo e, essa Hidra contemporânea que dá pelo nome de neoliberalismo estamos no fundo a subjugar-nos à posse, que é terrena e material e a rejeitar, ou a pôr-nos em oposição, ao Sopro que é etéreo e universal.

Num certo determinismo capitalista aquilo que nos identifica plenamente é o que possuímos, contrariamente aos movimentos progressistas que são fundamentalmente aspiracionais, que visam a utopia, que é ela própria impalpável, ou até de certa forma irrealizável, na medida em que está sempre por cumprir, e que se encontra quase que de forma sobrenatural no campo do Divino. Do Futuro.

Esta evolução determinista, conjugada com a cada vez mais poderosa revolução científica, levou-nos a de alguma maneira identificar o humano apenas e exclusivamente com a sua formulação matemática e física. A física, aliás, passou a ser a mãe de todos as ciências, destronando a própria filosofia. E aqui entra a Segunda Revolução Científica, com a física quântica, que vem tornar ainda mais densa toda a matéria do conhecimento e, em última instância, da procura do Eu.

Os nossos sistemas políticos, tal como o capitalismo, tornaram-se fundamentalmente inumanos. As democracias contemporâneas têm a tendência para olhar macro e microscopicamente para as pessoas, que se tornam entidades abstratas, não já indivíduos, ou mesmo cidadãos, para se tornarem, grandes massas estatísticas, os eleitores, ou essa coisa imprecisa e tantas vezes mal denominada de povo. O povo, que é afinal a humanidade, assume aos olhos do político uma existência conjunta, massificada, sem a pureza individual e humana da individualidade e da liberdade de cada um.

A pandemia foi disso um exemplo muito claro quando se estripou o humano dessas suas características essenciais, como liberdade e a individualidade, para, numa chantagem horrível e fundamentalmente desumana, o salvar. Destruímos o próprio objeto que ambicionamos preservar, numa alteração completa dos princípios básicos da vida. A realidade pandémica era a consumação plena do comercialismo capitalista, onde o homem era tão e apenas só rendimento per capita.

A desumanização da existência, que confronta até a própria morte, torna-nos vazios. Ou, esvazia-nos do que nos faz humanos que é a matéria divina do Sopro. Como um balão solto da mão de uma criança perdendo o ar em reviravoltas pelo céu. Ou uma alma abandonado ascendente o corpo. Vivemos um tempo de corpos sem anima. De aparência e de ficção. Da Hiper-realidade. A era do Tik-tok que mais não é afinal do que expressão visual, cinematográfica, do algoritmo que tudo vê, tudo capta e tudo ordena…

Pessoalmente, não me considero uma pessoa espiritual, falta-me, creio, esse elemento essencial da fé. Mas, no campo de onde venho, que é afinal o terreno da História e da Literatura, a espiritualidade é a continuada e eterna busca do conhecimento, a observação e interpretação simbólica do real, é a pulsação do pensamento no coração do poema, a metáfora, a ideia filosófica, a razão do Eu.

William Blake, o grande poeta místico do período áureo do romantismo inglês, dizia que “nós não vivemos na realidade, vivemos naquilo que julgamos ser a realidade”. O que penso que Blake pretendia era exatamente apelar para a suspeição do materialismo, apontando-nos o caminho múltiplo e infinito do sonho, ou do impalpável, do Sopro. Mas não enquanto ficção ou engano. Enquanto alteridade. O Eu e o Outro. Como Alice do outro lado do espelho.

T. S. Elliot, o grande poeta americano, dizia que a “Humanidade não suporta demasiada realidade”. Demasiada matéria. E, nessa ansiedade permanente do real, hoje ainda mais sufocante do que há cem anos, na juventude de Elliot, é no regresso ao espírito, o retomar do Sopro, que se fecunda a esperança do humano.

Se o Espírito é a forma primeira do Homem, falta então recuperar o espírito para recuperar o humano. Porque a recuperação do humano é essa reconquista do espaço do irrealizável, da magia, do afeto, do sopro do amor que é a realização plena da Humanidade.

Vila Franca do Campo, 18 de maio de 2024


 

sábado, 9 de março de 2024

Para Uma Ideia de Humanidade

 

Lady Lilith, Dante Gabriel Rossetti

desafios do feminino (e do masculino) num mundo em turbulência

Começo por agradecer à Profª Amélia Lopes o muito honroso convite para estar aqui hoje. Embora confesse que para mim foi uma surpresa, este convite. No mundo de hoje, tão propenso aos cancelamentos do tipo woke, ter um “velho homem branco” a falar sobre mulheres e sobre o feminino é não só surpreendente como até mesmo pode ser visto como um ato de vandalismo ofensivo, ou então um ato de bravura. Se bem que, na condição de neto, filho, marido e pai de duas raparigas, poderei ser talvez uma espécie de súbdito voluntário do império da mulher. Um subordinado militante do Divino Feminino, por assim dizer, o que, afinal possa constituir qualificação suficiente para falar sobre a mulher e o homem, a feminilidade em vez de feminismo, uma vez que os dois não devem ser confundidos, e a importância destes dois polos aparentemente antagónicos, mas que convergem e divergem, ao longo do vasto universo da História da Humanidade.

O pedido que me foi dirigido foi que abordasse os desafios que se nos colocam hoje, num mundo em turbulência, enquanto homens e mulheres, e principalmente a questão da igualdade, ou, por antinomia, da desigualdade entre homens e mulheres. O que me levou a pensar num outro título, que considerei dar a esta exposição, que foi - Para Uma Ideia de Humanidade – e estou aqui hoje acima de tudo, precisamente, como um Humanista. No sentido em que a ideia principal subjacente à razão de Ser é, justamente, o Humano e o humano só o É enquanto expressão da dualidade efetiva e permanente entre masculino e feminino. E, na minha modesta opinião, é dessa dialética permanente, entre Homem e Mulher, masculinidade e feminismo, que nasce o progresso e a evolução do Ser Humano enquanto entidade unificada. Sendo que, nesta perspetiva, poder-se-á dizer que o feminismo, afinal, está ele mesmo, desde logo, inserido nesta ideia de Humanismo verdadeiro, ou Humanismo Pleno, de que gostaria de vos falar.

E, é por estas duas motivações, a de um humanista que vive diariamente sob o signo do feminino, que gostaria de começar a minha intervenção, nesta III Cimeira Feminina, com uma pequena provocação.

Às mulheres que procuram ser iguais aos homens falta-lhes ambição.”

Esta frase de Timothy Leary, o grande mago do psicadelismo dos anos sessenta, a quem o presidente Nixon apelidou de “o homem mais perigoso da América” e, perdoem-me, é um “velho homem branco”, como seria hoje classificado pelas mais radicais defensoras do feminismo woke, revela, para mim, aquela que é, ou deveria ser a essência do feminismo, ou como mais à frente procurarei revelar, do tal Humanismo Pleno, que é, não a igualdade, per si, um valor não obstante fundamental para um progressista como eu, mas a superação e, em última instância, a transcendência, que é a aspiração última do Humano, a ambição de uma possível utopia de integração do género pela sublimação do mesmo, por mais contraditório isto que possa parecer à primeira vista.

Nesta abordagem ao “feminismo”, visto numa perspetiva histórica, ou historicista, socorro-me de um outro “velho homem branco”, o grande historiador Fernand Braudel que disse que a “História se podia dividir em três movimentos: aquilo que se move rapidamente, o que se move vagarosamente e aquilo que aparenta não ter qualquer movimento”. Ora a História das relações entre o Homem e a Mulher poderia, aparentemente, inserir-se nesta última categoria, ou seja, uma longa e ancestral história de conflito e desigualdade entre os sexos que se mantêm inalterada ao longo dos séculos. Mas, ao contrário do que se possa pensar, ou do que é geralmente difundido, na maior parte das vezes por homens, na história da Humanidade, e na nossa cultura ocidental, em particular, a ideia, ou a causa feminista, ou do feminismo, não nasce daquilo que se pretende instituir como uma profunda e ancestral desigualdade entre homem e mulher, que se perpetuaria ao longo de milénios desde o início dos tempos. O feminismo, tal como o conhecemos atualmente, como movimento de emancipação e libertação da mulher, e não são uma e a mesma coisa, é uma causa relativamente recente, em termos históricos, surgindo sensivelmente ali em meados do século dezanove, tem, portanto, pouco mais do que cento e cinquenta anos, e é filho, ou filha, do casamento tumultuoso e nem sempre profícuo entre a Revolução Industrial e o Capitalismo moderno.

Aquela que é conhecida como a primeira vaga do feminismo foi um movimento essencialmente anglo-saxónico que grassou pelo Reino Unido e os Estados Unidos da América, na segunda metade do século dezanove, e que procurava fundamentalmente nos seus primórdios conceder à mulher direitos sobre a propriedade, a riqueza e o capital, só mais tarde buscando o direito da representação legitimado no voto. De certa forma, apesar de perigosa e excessivamente simplista, podemos dizer que o feminismo é, em parte, o culminar dos ideais do Iluminismo revolucionário francês e do Liberalismo constitucional de raiz britânica, o que faz dele um movimento essencialmente político e económico com génese relativamente recente.

Antes desse tumulto oitocentista, a História fez-se livre desses rótulos de “feminismo” ou de “masculinidade tóxica” com que hoje olhamos para o mundo. Sem as caracterizações pop, ao estilo Bridget Jones, de que “os homens são de Marte e as mulheres são de Vénus”. Aliás, e para quem conheça essas matérias, Vênus e Marte governam-nos por igual, tanto a homens como a mulheres. Na verdade, e durante muitos milénios, homens e mulheres caminharam lado a lado, muitas vezes de mãos dadas, pelos percursos da História digladiando-se e amando-se em igual proporção e, principalmente, dando vida, literalmente, à História da Humanidade, envolvidos num fogoso e por vezes intenso amplexo feito de paixões e amizades, discussões e rivalidades, sexo, ódios e, necessariamente, amor…

Mas, se calhar, o melhor será começarmos esta história pelo seu princípio, e no princípio de tudo estava, não o Verbo, não Deus…, mas a Mulher. Neste caso concreto a Vénus de Willendorf. A Vênus de Willendorf é uma pequena estatueta em calcário com de cerca de 11 centímetros representando uma mulher de seios fartos, corpo volumoso e vulva protuberante que os arqueólogos associam, embora não sem alguma discordância, a ritos ou idealizações da fertilidade, e que, o dado aqui mais significativo, foi datada de há aproximadamente 25 mil a 30 mil anos, o que faz desta pequena mulher um dos mais antigos artefactos artísticos feitos por mão humana. A Vénus de Willendorf foi descoberta no início do século vinte na Áustria. Mais recentemente, em 2008, foi encontrada na localidade de Schelklingen, na Alemanha, uma outra pequena estatueta, neste caso feita de marfim de mamute, com cerca de 6 centímetros, representando, mais uma vez, uma figura feminina, de corpo voluminoso e seios salientes, que os antropólogos associam ao mesmo tipo de ritos da fertilidade e longevidade, e a que deram o nome de Vénus de Hohle Fels e que foi datada de há cerca de 40 mil a 45 mil anos, no início do Paleolítico Superior. A importância destes artefactos, que pela sua dimensão se crê fossem usados como amuletos, prende-se com a representação do feminino, da fertilidade, da longevidade, e da própria criação do humano como sendo condição e apanágio da mulher. Ou seja, no contexto daquilo a que podemos chamar os primeiros traços de civilização, as representações artísticas, a capacidade para a abstração, nas tribos de caçadores recolectores do Paleolítico Superior, as conceptualizações artísticas e ritualísticas das primeiras tribos humanas, pelo menos aquelas que chegaram até nós, incidiam sobre a fertilidade e o feminino e na representação da mulher. A mulher que dá à luz, que engorda e se sedentariza, a mulher que envelhece, que, essencialmente, sobrevive e que faz sobreviver a tribo. A mulher, não como subproduto ou inferior ao homem, mas como origem e princípio de todas as coisas. Uma espécie de longo e significativo Matriarcado pré-histórico, se quisermos. Ao longo de milénios, até aos alvores da civilização, o homem e a mulher são, foram, um binómio indivisível de equilíbrio na preservação da tribo, da espécie, do Humano. Um caminho que é relativamente seguro dizer que durou mais de 40 mil anos, até ao alvorecer da Idade do Bronze.

É seguro dizer, também, que é com a sedentarização e a urbanização, com o advento da revolução agrícola, e o que ela traz de subjacente de propriedade da terra, que os papéis do Homem e da Mulher, no contexto social e político, se irão progressivamente alterar, ou adulterar, se quisermos ser mais exatos. Tal como Rosseau nos indica no seu “Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens” de que “os frutos são de todos, e a terra de ninguém”. A propriedade é a mãe de todas as desigualdades. E, ao longo dos últimos 5 mil anos, das cidades aos reinos, dos feudos às nações e, finalmente, ao Estado as tenções políticas e sociais entre homens e mulheres vão-se sucessivamente agravando no sentido de transfigurar o papel da mulher e de impor uma visão mais redutora e mais desigual do seu papel nas sociedades, contrariamente ao que haveria sido uma tradição milenar anterior e, contrariamente também, ao que se poderia entender como a ordem natural da História da Humanidade, em que homens e mulheres são elementos igualmente importantes nessa evolução. E, é interessante verificar que na escala de valores da idealização do feminino a fertilidade irá dar lugar à castidade, porque a castidade é a forma inicial de assegurar a linhagem e a linhagem, ou o vínculo, são a primeira forma de assegurar a transmissão da propriedade.

Voltando outra vez ao início, a outro início, o das mitologias fundadoras da nossa civilização, mais especificamente no seu pilar judaico-cristão, a mulher, ou as mulheres, cumprem, ou cumpriram, na verdade um papel fundamental, se bem que o mesmo tenha sido sucessivamente e muito politicamente recalcado, ao longo dos últimos dois a três mil anos, pelas hierarquias das diferentes Igrejas e Religiões. Harold Bloom, talvez o mais importante crítico literário do nosso tempo, e em grande medida o símbolo maior do que significa ser-se um “velho homem branco”, arriscou, inclusive, dizer que o conjunto dos primeiros livros da chamada Bíblia Hebraica - Genesis, Êxodo e Números - que na tradição cristã compreendem o grosso do Antigo Testamento, e a que chamou o Livro de J, teriam sido escritos por uma mulher, mais especificamente, uma cortesã da corte do rei Roboão, filho de Salomão, no reino da Judia, cerca do ano mil antes de Cristo. Bloom irá mesmo ao ponto de afirmar que: “A misoginia no Ocidente é uma longa e sombria história de fracas e equivocadas interpretações da cómica J, que exalta as mulheres em toda a sua obra, e nunca mais do que nesta história deliciosamente irónica da criação.”

Ora, se escavarmos ainda mais nesta tradição judaico-cristã encontraremos ainda uma outra e superiormente relevante figura feminina – Lilith, a primeira mulher. De acordo com as mais antigas tradições judaicas Lilith é a primeira mulher de Adão, criada ao mesmo tempo e da mesma forma que ele, do barro da terra, moldada pelas próprias mãos de Deus, e não da costela de Adão, como Eva. As mesmas tradições referem também a revolta de Lilith perante Adão, recusando subjugar-se a este, a literalmente deitar-se debaixo dele, por ser igual a ele, abandonando por isso, ou sendo expulsa, do Jardim do Éden, as versões variam, e tornando-se, desde então, numa espécie de demónio, identificada com a serpente, instigadora e símbolo principal da queda da Humanidade. Noutra versão, Lilith tornar-se-á mesmo esposa de Samael, o Anjo da Morte, o veneno de Deus, o sedutor, o acusador, o Deus-cego e destruidor. O verdadeiro Satanás. À luz do dogma judaico-cristão, portanto, a mulher que se recusa a submeter ao homem passa a ser vista como uma representação do mal, um demónio pérfido e pernicioso, lenta e progressivamente obscurecido ao longo dos últimos milénios.

Já na tradição Suméria, a mais antiga civilização que conhecemos, cerca de 4500 anos antes de Cristo, Lilitu era igualmente um espírito ou um demónio, associado à Lua, representando as suas diferentes fases e estados de espírito, umas vezes benigna outras maligna, e o que pode haver de mais feminino. Mas, ao mesmo tempo, na tradição Suméria, nomeadamente no Épico de Gilgamesh, o mais antigo texto escrito que conhecemos, é uma Deusa, de nome Aruru, a mãe da Humanidade. É uma mulher quem cria o mundo e cria os homens e as mulheres moldados, pela sua mão, do barro da terra, tal como Deus fará na tradição judaica.

No fundo o que aqui me importa assinalar é a profunda e relevante importância da mulher, do chamado Divino Feminino, na nossa cultura e de como essas primeiras mulheres, fossem reais ou imaginadas, eram seres livres e poderosos e iguais em importância e estatuto ao próprio homem, sendo na progressiva sedentarização das sociedades e sedimentação dos dogmas da Religião e da Igreja, que são, na verdade, formulações políticas e económicas, que essa relevância vai ser posta em causa e que a relação da mulher com o homem vai sofrer a adulteração, e uso a palavra propositadamente, que conhecemos hoje.

Regressemos então ao Jardim do Éden e ao livro do Génesis que, recordo, de acordo com Harold Bloom, foi muito certamente, primeiramente, escrito por uma mulher. Depois de Deus, Jeová, ter criado o céu e a terra, Jeová deu forma a um homem do barro da terra e soprou-lhe o vento da vida pelas narinas e o homem tornou-se carne. A seguir Jeová plantou um jardim. Da terra cresceram as árvores boas de se ver e boas de se comer e nesse jardim estavam duas árvores, a árvore da vida e a árvore do bem e do mal, mais especificamente a árvore do “conhecimento” do bem e do mal, da qual o homem não se deve aproximar nem comer o seu fruto. Então, percebendo que não era bom o homem estar sozinho Jeová criará os animas da terra e os pássaros do ar e os seus nomes ser-lhe-ão dados pelo homem, mas entre eles não se encontrava o parceiro do homem. Então Jeová coloca o homem num sono profundo e retira-lhe uma costela e dessa costela dá forma à mulher e coloca-a ao lado do homem. “Este é osso do meu osso, carne da minha carne” diz o homem “mulher lhe chamarei, do homem ela foi separada. Tal como o homem se separa da sua mãe e do seu pai e se une à sua esposa; eles são uma só carne”. São, portanto, iguais, homem e mulher, e de se conhecerem, atenção ao termo, conhecer carnalmente neste caso, Eva, a mãe de todos os homens, conceberá, tal como Jeová havia concebido, Caim e depois Abel. É importante perceber e realçar que o conhecimento entre o homem e a mulher é também o conhecimento entre o bem e o mal. O resto da história penso que saberão, mas o que me interessa destacar aqui é que neste texto original, em hebraico, homem e mulher são em tudo iguais, carne da mesma carne e são tão criadores como Jeová, no conhecimento que completam um do outro. O Homem deu nome a todas as criaturas da terra e é da ligação entre o homem e a mulher, Adão e Eva, que nasce toda a Humanidade. Homem e Mulher, juntos.

Se olharmos a História ainda noutra perspetiva, a da História como o relato dos grandes acontecimentos e personalidades, a ideia da importância e da relevância da mulher ao longo do tempo, da História e da Literatura, atravessa toda a nossa Cultura Ocidental, e não só. Os primeiros poemas clássicos, a Ilíada e a Odisseia, nascem por causa de mulheres. O rapto de Helena, filha de Zeus, a mais bela mulher da terra, por Páris príncipe de Troia, despoletando uma sangrenta guerra, está na génese da Ilíada. Já a Odisseia relata-nos as atribulações de Ulisses, na sua viagem de regresso a Ítaca e, principalmente, de regresso aos braços da sua amada esposa Penélope que se mantém sempre fiel a Ulisses afastando todos os pretendentes com sábios estratagemas. A primeira, Helena, símbolo da beleza e da determinação. A segunda, Penélope, caracterizada como astuta e inteligente. Atributos que devem ser lidos como uma visão enaltecida do feminino, longe do que poderíamos supor ser uma visão desdenhável ou aviltante da mulher e da sua importância na história e na sociedade.

No Antigo Egipto, Hatshepsut, esposa de Tutmós II, foi designada faraó após a morte do marido, tendo governado o Egipto por quase vinte anos, cerca de mil e quinhentos anos antes de Cristo. Talvez uns duzentos anos mais tarde, na 18ª dinastia, Nefertiti governou ao lado do seu marido Akenaton e acredita-se que tenha sido faraó após a morte deste e até à maioridade do seu filho Tutankhamnon. E, obviamente, Cleópatra, a última imperatriz do império Ptolemaico, educada pelo filosofo Filóstrato, que falava oito línguas e foi amante de Marco António, e seduziu Júlio Cesar, e que ficou na História não só pela sua beleza, mas principalmente pela sua astúcia e inteligência.

No livro dos Juízes, do Antigo Testamento, encontramos Debora, Juíza, que libertou o povo de Israel do jugo de Canaã. Na Grécia Antiga, uma sociedade reconhecidamente misógina e esclavagista, temos ainda assim algumas mulheres que se destacaram, desde logo a grande poetisa Safo de Lesbos, ou as pitonisas, sacerdotisas do oráculo de Delfos, que gozavam de amplo estatuto e reverência. Artemísia de Cária, rainha de Halicarnasso, que comandou a armada persa de Xerxes na batalha de Salamina. E, Platão, na sua República, advoga uma igualdade plena entre homens e mulheres na organização do estado. Mais tarde, já na nossa era, Hypatia de Alexandria, enorme matemática, astrónoma, filósofa, será assassinada por cristãos fanáticos no ano de 417.

No Oriente, também, a mulher se destaca como elemento proeminente da história e das sociedades. Cadija Alcora, primeira mulher de Maomé, grande comerciante e mulher de destaque na sociedade da altura, apelidada da “mãe dos crentes”.  Ou Aisha, terceira mulher de Maomé, guerreira e libertadora dos Sunitas. E, também, Fátima, filha do profeta, poetisa, a dos nove nomes, “a sincera”, “a abençoada”, “a casta”, “a pura”, “a contente”, “a agradável”, “a falada por anjos”, “a radiante”, o que dá bem conta da sua importância, e esposa de Ali Ibne Abi Talibe, primo de Maomé e primeiro Iman dos Xiitas. Ou, mais a Oriente, Yeshe Tsogyal, a mãe do Budismo tibetano, que viveu entre os anos 757 e 817 e que ficou conhecida como “a imperatriz do Lago do Conhecimento”. E mais para lá, no Oriente do Oriente, na mitologia da criação japonesa, cinco pares de deuses, masculinos e femininos, irmãos e irmãs, maridos e mulheres, que por sua vez convocaram Izanami e Izanagi, Mulher e Homem, que dão origem ao arquipélago do Japão, onde entre os anos 600 e 770 da nossa era o “país do sol nascente” viria a ter uma sucessão de cerca de 7 imperatrizes.

O que pretendo assinalar com estes exemplos de mulheres transcendentes, no sentido em que se superaram a si mesmas e à sua condição de mulheres, numa História dita de homens, e de mitologias predominantemente mistas, que convocam tanto o feminino como o masculino, é que muitas vezes a narrativa mais fácil, ou aquela que nos é acometida, não é a verdadeira, não é a real. Muitas vezes os factos desmentem a própria História. Isto não quer dizer que a História, e as sociedades, não sejam muitas vezes patriarcais, nem que, pelo facto de algumas sociedades terem sido comprovadamente matriarcais, não haja uma tentativa, principalmente da História mais recente, de masculinizar, por assim dizer, o caminho da história humana, talvez por isso mesmo seja tão importante hoje, relembrar e celebrar estes exemplos femininos que se sublimaram imprimindo os seus nomes e exemplos nos cânones e no curso da vida e da história humana, para não cairmos em extremismos básicos, ignorantes e muitas vezes cegos e violentos.

E esses exemplos continuam ao longo do tempo. Lívia Drusila, mulher de Augusto primeiro imperador de Roma. Ou Agripina, mãe de Calígula. Teodora, mulher de Justiniano e Imperatriz do Imperio Bizantino. Leonor de Aquitânia, que viu o seu casamento com Luis VII de França anulado pelo Papa para se casar com Henrique II de Inglaterra, de cujo casamento viria a nascer o grande Ricardo o Coração de Leão. A inesquecível Joana d’Arc padroeira da França, heroína e mártir da Guerra dos Cem Anos. Outra Joana, Johanna Ferrour, líder da revolta dos camponeses da Inglaterra feudal. Ou Isabel a Católica, Rainha de Castela e Leão, obreira da última reconquista aos mouros e madrinha das conquistas dos novos mundos de Cristóvão Colombo. E a lista poderia ser interminável seguindo infinitas cronologias onde sempre, junto, não por detrás, par a par com os grandes reis, com os grandes líderes, se impuseram, igualmente, a força e a influência de grandes, enormes, mulheres. Ou, como bem expressou o comediante americano Jim Carrey – “por detrás de cada grande homem há uma mulher a revirar os olhos”…

E em Portugal? Portugal é desde logo uma nação “mariana”. E já iremos a Maria, mas desde a sua fundação que Afonso Henriques consagrará Portugal à Virgem Maria e ao Culto Mariano. Afonso Henriques que, aliás, faz construir um país em revolta edipiana contra a sua mãe, Dona Teresa, na batalha de São Mamede, que havia sucedido, como viúva, ao seu marido, o Conde D. Henrique no governo do então condado portucalense e que alguns historiadores consideram hoje ser mesmo a primeira Rainha de Portugal. E esta história nacional far-se-á numa sucessão de grandes mulheres, muitas vezes injustamente esquecidas ou subvalorizadas. A rainha Santa Isabel, mulher de D Dinis, a do milagre das rosas. Dona Inês de Castro, rainha do coração de D. Pedro. Brites de Almeida a Padeira de Aljubarrota. Dona Filipa de Lencastre a mãe da ínclita geração. A nossa Brianda Pereira, heroína da Batalha da Salga. D Maria I, que embora viesse a ficar conhecida como a Louca, foi efetivamente a primeira rainha portuguesa e ficou na História como arqui-inimiga do absolutista Marquês de Pombal, tendo esse sido mesmo um dos seus primeiros atos no seu reinado, a destituição do Marquês, por causa do processo dos Távoras. E Dona Maria II, filha de D Pedro IV, líder dos Liberais, padroeira do teatro nacional e, entre outros dignos feitos, mãe de 11 filhos em 16 anos.

Não querendo ser acusado de ligeireza, ou de excessivo desembaraço na corrida contra o tempo da história, deixando de fora tantas outras notáveis mulheres, como a Marquesa de Alorna e D Carlota Joaquina, Beatriz Angelo ou Florbela Espanca, Ana de Castro Osório e Maria Melena Vieira da Silva, ou Sophia e Agustina, seria impossível referir todas, permitam que destaque, por fim, nestes 50 anos do 25 de Abril, 4 mulheres, ou talvez 5, sem as quais a revolução, se não impossível, certamente seria outra. A primeira é, a nossa, Natália Correia, incansável lutadora pela liberdade que, com a coragem que a caracterizava, apadrinhou a edição de um livro, escrito a três mãos, por três mulheres, igualmente corajosas, chamado as “Novas Cartas Portuguesas” e que seria alvo de um mediático processo judicial que consolidaria o desgaste e a erosão do regime, fruto da vil censura a que foi sujeito. Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno são as 3 Marias que completam com Natália este quase matriarcado da revolução portuguesa, revolução essa que também não seria possível sem a participação de uma quinta mulher, ou uma supra-mulher, o sagrado feminino se quisermos, representado pelas mães, as irmãs e as mulheres dos quase 800 mil soldados portugueses mobilizados no ultramar, entre 1961 e 1974, e cuja relevância na constituição do quadro mental que levaria à sublevação militar dos Capitães de Abril não está ainda devidamente estudada e valorizada.

Ou seja, o que é que podemos inferir destes destaques que vos apresento? Essencialmente que o progresso da Humanidade, e tenhamos em conta que Humanidade é um substantivo feminino, seria impossível sem a ação de homens e de mulheres e que é do seu acontecer conjunto que essa mesma evolução se constrói. Homem e Mulher, masculino e feminino, estão no centro da roda e do movimento do devir humano e são inseparáveis desse mesmo movimento, desse conhecimento. Dai que a questão da igualdade, que não é necessariamente igualitarismo, entre homens e mulheres, ou da sua emancipação, seja tanto uma construção como uma constrição moderna e essencialmente materialista, ou até mesmo uma castração, alicerçada numa visão utilitária da história, feita na conquista de direitos, na posse, por oposição à visão humanista, feita de aspirações, ambições e capacidades. A Humanidade é, no fundo, o conjunto, o equilíbrio se quisermos, das forças, das energias, das oposições e das interligações, entre o masculino e o feminino. E os grandes desafios, como o individualismo, a vertigem da quantificação e da informação, a ditadura do instante e do presente, ou a chamada erosão do género, que se colocam hoje à Humanidade, colocam-se em igual medida a homens e mulheres e só poderão ser superados pela inclusão, integração e o equilibro entre essas duas forças, sendo que, em alguns casos, as mulheres, enquanto portadoras gestacionais da própria vida, enquanto protetoras, cuidadoras da vida, estarão até talvez mais bem preparadas para os ajudar a superar. Se bem que, ao mesmo tempo, outros haverá em que a deturpação contemporânea do feminino, tido já não como proteção, mas como posse, a linha ténue entre proteção e possessividade na maternidade, por exemplo, é um problema largamente identificado na psicologia, poderá levar a um agudizar desses mesmo desafios e dessas crises.

Aqui gostaria de regressar, por breves instantes, a dois ícones fundamentais da caracterização da feminilidade e que comportam dentro de si e nas suas nuances muita da essência do Arquétipo Feminino e daquilo que é hoje esta luta pela sua representação – Maria e Maria Madalena. E que, como já referi, explicam também, na medida em que foram sendo manipuladas politicamente pela religião, o ponto em que estamos hoje na dita “guerra dos sexos”.

Maria carrega desde logo dois princípios fundamentais do feminino; a pureza, na ausência de pecado, a castidade, e o da maternidade, na forma da dedicação ao filho. Maria, a Virgem Maria, imaculada pelo conhecimento carnal, é a escolhida por Deus para ser a mãe do Filho de Deus na Terra e para ser a sua educadora e cuidadora e Maria, a Maria cristã, é assim o símbolo da separação entre o Homem e Deus e, principalmente, entre Homem e Mulher. Maria não precisa de “conhecer” o Homem para gerar o descendente de Deus. Uma luta infinita que ocupara a Igreja durante quase dois mil anos até o dogma da imaculada conceição ser solenemente consagrado pela bula Ineffabilis Deus pelo papa Pio IX em 1854. Curiosamente, mais ou menos ao mesmo tempo em que o socialista libertário, e humanista, francês François Fourier andará a inventar a própria palavra “feminismo” nas suas críticas diretas ao cristianismo e ao dogma do pecado original. Fourrier escreverá que: “O progresso social e as mudanças do período histórico ocorrem em proporção ao avanço das mulheres em direção à liberdade, e o declínio social ocorre como resultado da diminuição da liberdade das mulheres.”

Intrinsecamente ligada a Maria e à História do feminino está outra mulher relacionada com Cristo, mas substancialmente menosprezada ou mesmo censurada, que é Maria Madalena. Se Maria é pureza e castidade, Madalena será pecado e, acima de tudo, sexualidade. E é como pecado, na sequência de Lilith, que será tida pela hierarquia da Igreja ao longo dos séculos, ao ponto do seu Evangelho ser considerado apócrifo. Ironicamente, ou talvez não, aquela que é tida, pela própria Bíblia, como a mais devota e significativa discípula de Jesus é-lhe retirada a condição de apóstolo, e do seu Evangelho, onde se lê, a palavra de Jesus destruindo um dos dogmas fundamentais da doutrina cristã, a inexistência de pecado, a Igreja tudo fará para que não seja lido e, palavra iniciática, conhecido. Porque o pecado é a origem da culpa e se a lei é uma forma de organização a culpa é uma forma de controlo. E importa lembrar que o pecado original é precisamente o fruto do conhecimento do bem e do mal, que o Salvador, Jesus, diz-nos Maria Madalena no seu Evangelho, quanto questionado por Pedro: “Uma vez que nos explicaste tudo, diz-nos ainda mais isto: o que é o pecado do mundo?” O Salvador responde: “Não existe pecado. Mas sois vós que cometeis o pecado quando fazeis o que é semelhante à natureza do adultério, que se chama «pecado».

É assim, muito por via do dogma religioso que a opressão política do feminino se vai instituir no pensamento e na sociedade patriarcal como forma de controlo da propriedade. Tornando-se, com a Revolução Industrial e com a introdução da mulher nas forças produtivas, num instrumento também de opressão do proletariado pelo poder do capital. E, chegamos assim aos dias de hoje, onde se questiona qual o papel da mulher, qual a sua representatividade nos lugares de poder e se criam quotas e exceções para assegurar descriminações positivas no acesso da mulher e do género, já entendido como para lá do feminino, numa endoutrinação woke, nos diversos setores da sociedade.

Uma questão fundamental aqui a ter em conta é a questão da interdependência, ou da “alteridade”, de certa forma, em que homem e mulher são vistos como sendo já totalmente independentes um do outro e não como interdependentes entre si. Ou seja, nas sociedades contemporâneas o lugar do homem e da mulher, o lugar do feminino e do masculino, não se interrelacionam entre si e afirmam-se quase por oposição um ao outro e já não cuidando um do outro, um aspeto fundamental, que o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, felizmente um jovem e asiático, embora homem, caracteriza como “a sociedade do cansaço” onde a constante procura do sucesso individual nos priva do encontro necessário e imprescindível com o outro, “A pessoa sente-se livre nas relações de amor e amizade. Não é a ausência de laços, mas os próprios laços que nos libertam. Liberdade é uma palavra que diz respeito às relações por excelência. Sem apego não há liberdade.” Apego esse que, diria eu, é não mais do que o encontro com o outro, cuja forma primeira é a do conhecimento entre o masculino e o feminino, de homem e de mulher. Atenção que com isto não estou a fazer qualquer juízo de valor sobre outras formas de alteridade, nem de censura da projeção de outras formas de relacionamento, para lá do binómio homem e mulher, estou apenas a salientar que a recusa ou a imposição do género sobre a existência, da condição sexual sobre a individual, levará em última instância, na minha opinião, à própria destruição do género, à destruição da essencialidade do feminino e, por maioria de razão, também, do masculino e com isso talvez até da própria condição do Ser Humano.

Do ponto de vista da política e da questão da representatividade das mulheres na política a ideia de que, por um lado elas estão sub-representadas ou, por outro lado de que elas estariam melhor capacitadas para a atividade política encerra, na minha perspetiva, um problema essencial que é a perda da liberdade. A limitação da escolha individual, sendo que numa sociedade totalmente livre homens e mulheres devem estar onde desejarem e puderem estar. Ao procurar libertar a mulher a sociedade estará a, de certa forma, oprimi-la para ocupar um lugar que lhe é imposto e não escolhido por si. E a liberdade é a aspiração última do humano.

Como procurei demonstrar atrás, a participação das mulheres na História não se fez com predeterminações, mas com desígnios individuais. O papel das mulheres na política foi feito das suas próprias escolhas pessoais. Eleanor Roosevelt, Rosa Parks, Indira Ghandi, Golda Meir, Benazir Butho ou Maria de Lurdes Pintasilgo são mulheres que se afirmaram politicamente e na política sem quotas ou ações afirmativas, apenas pela sua vontade e força pessoal e individual. Da mesma forma, outros exemplos haveria para se contestar a ideia ilusória de que por se ser mulher se estaria mais apto para exercer cargos de decisão ou governação, como creio que os exemplos recentes de frieza e de autoritarismo de mulheres como Jacinta Arden, primeira-ministra da Nova Zelândia durante a pandemia, ou Christine Lagarde à frente dos destinos financeiros do Mundo e da Europa, ou a Sra. Von Der Leyen, que recentemente fez aprovar a “economia de guerra europeia” e a diretiva europeia de serviços digitais e os seus limites à liberdade de expressão, de certa forma demonstram sobejamente. Homens e mulheres carregam dentro de si qualidades e defeitos. São igualmente marcados pelo conhecimento do bem e do mal e, como todos sabemos, por exemplo, não é a condição de mãe que faz automaticamente uma boa mãe, mas antes a prática do bem que nos faz bons pais ou boas mães. E, que nos faz, essencialmente, humanos.

De certa forma o feminismo hoje, tal como outras formas de reivindicação de género, de raça, ou de afirmação de escolhas ou visões sociais, tornaram-se uma forma contraditória de constrangimento individual, de aprisionamento de liberdades e das potencialidades e das escolhas de cada um, quase como se uma infinita e cega busca da liberdade se fechasse afinal num ciclo de clausura e de fanatismo em que a cegueira do dogma volta enfim a restringir e censurar aquilo que buscava libertar.

Talvez o maior desafio do nosso tempo seja a reconquista dessa primordialidade do feminino e do masculino, entendidos como equilíbrio entre si mesmos, e expressões puras da liberdade individual. Da identidade do Humano. Uma sociedade que não procure a erosão dos sentidos ou dos géneros, mas a afirmação da diferença como aceitação da individualidade e, nela, da humanidade. Uma sociedade não de conceitos pré-estabelecidos, ou preconceitos instituídos, mas de indivíduos livres, que se conhecem na e pela sua diferença. Uma sociedade enfim do amor, da paixão, do prazer, da ligação entre pessoas, entre homens e mulheres, de todos os géneros. Uma sociedade de pessoas. Porque não há nada mais importante, ou poético, na vida do que a liberdade de Ser. E, como nos disse Antero nas suas “Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX”: “O Universo aspira (…) à liberdade, mas só no espírito humano a realiza. É por isso que a história é especialmente o teatro da liberdade”.

A História da Humanidade é, então, uma história de aspiração pela liberdade, uma liberdade tanto individual como, por vezes, uma liberdade coletiva, mas uma liberdade que é essencialmente alicerçada na relação entre Mulher e Homem. Nas suas conquistas e nos seus sacrifícios, na sua disputa como no seu amor, no seu devir conjunto e eterno. A libertação da mulher, tal como a do homem, no sentido uno do Humano, far-se-á da sua interligação, da sua comunhão, liberta de quaisquer amarras e constrangimentos, mesmo aqueles que se afirmam como libertadores, na tentativa de alcançar o conhecimento e uma ideia de Humanidade Plena.

Termino com este belo e seminal poema de Maria Teresa Horta:

Sou feita de muitos

nós

desobediência e meio-dia

Sou aquela que negou

aquilo

que os outros queriam

Disse não à minha sina

de destino preparado

recusei as ordens escusas

preferi a liberdade

e vivo deste meu lado”.

 

Muito obrigado.

Vila Franca do Campo, março de 2024.

         texto da participação na III Cimeira Feminina

         Teatro Micaelense, 8 de março de 2024