desafios do feminino (e do masculino)
num mundo em turbulência
Começo por agradecer à Profª Amélia Lopes o muito honroso
convite para estar aqui hoje. Embora confesse que para mim foi uma surpresa, este
convite. No mundo de hoje, tão propenso aos cancelamentos do tipo woke, ter um “velho
homem branco” a falar sobre mulheres e sobre o feminino é não só surpreendente
como até mesmo pode ser visto como um ato de vandalismo ofensivo, ou então um
ato de bravura. Se bem que, na condição de neto, filho, marido e pai de duas
raparigas, poderei ser talvez uma espécie de súbdito voluntário do império da
mulher. Um subordinado militante do Divino Feminino, por assim dizer, o que, afinal
possa constituir qualificação suficiente para falar sobre a mulher e o homem, a
feminilidade em vez de feminismo, uma vez que os dois não devem ser confundidos,
e a importância destes dois polos aparentemente antagónicos, mas que convergem
e divergem, ao longo do vasto universo da História da Humanidade.
O pedido que me foi dirigido foi que abordasse os desafios
que se nos colocam hoje, num mundo em turbulência, enquanto homens e mulheres, e
principalmente a questão da igualdade, ou, por antinomia, da desigualdade entre
homens e mulheres. O que me levou a pensar num outro título, que considerei dar
a esta exposição, que foi - Para Uma Ideia de Humanidade – e estou aqui hoje acima
de tudo, precisamente, como um Humanista. No sentido em que a ideia principal
subjacente à razão de Ser é, justamente, o Humano e o humano só o É enquanto expressão
da dualidade efetiva e permanente entre masculino e feminino. E, na minha
modesta opinião, é dessa dialética permanente, entre Homem e Mulher, masculinidade
e feminismo, que nasce o progresso e a evolução do Ser Humano enquanto entidade
unificada. Sendo que, nesta perspetiva, poder-se-á dizer que o feminismo,
afinal, está ele mesmo, desde logo, inserido nesta ideia de Humanismo
verdadeiro, ou Humanismo Pleno, de que gostaria de vos falar.
E, é por estas duas motivações, a de um humanista que vive
diariamente sob o signo do feminino, que gostaria de começar a minha
intervenção, nesta III Cimeira Feminina, com uma pequena provocação.
“Às mulheres que procuram ser iguais aos homens falta-lhes
ambição.”
Esta frase de Timothy Leary, o grande mago do psicadelismo
dos anos sessenta, a quem o presidente Nixon apelidou de “o homem mais
perigoso da América” e, perdoem-me, é um “velho homem branco”, como
seria hoje classificado pelas mais radicais defensoras do feminismo woke,
revela, para mim, aquela que é, ou deveria ser a essência do feminismo, ou como
mais à frente procurarei revelar, do tal Humanismo Pleno, que é, não a
igualdade, per si, um valor não obstante fundamental para um
progressista como eu, mas a superação e, em última instância, a transcendência,
que é a aspiração última do Humano, a ambição de uma possível utopia de integração
do género pela sublimação do mesmo, por mais contraditório isto que possa
parecer à primeira vista.
Nesta abordagem ao “feminismo”, visto numa perspetiva histórica,
ou historicista, socorro-me de um outro “velho homem branco”, o grande
historiador Fernand Braudel que disse que a “História se podia dividir em
três movimentos: aquilo que se move rapidamente, o que se move vagarosamente e
aquilo que aparenta não ter qualquer movimento”. Ora a História das
relações entre o Homem e a Mulher poderia, aparentemente, inserir-se nesta
última categoria, ou seja, uma longa e ancestral história de conflito e
desigualdade entre os sexos que se mantêm inalterada ao longo dos séculos. Mas,
ao contrário do que se possa pensar, ou do que é geralmente difundido, na maior
parte das vezes por homens, na história da Humanidade, e na nossa cultura ocidental,
em particular, a ideia, ou a causa feminista, ou do feminismo, não nasce daquilo
que se pretende instituir como uma profunda e ancestral desigualdade entre
homem e mulher, que se perpetuaria ao longo de milénios desde o início dos
tempos. O feminismo, tal como o conhecemos atualmente, como movimento de
emancipação e libertação da mulher, e não são uma e a mesma coisa, é uma causa
relativamente recente, em termos históricos, surgindo sensivelmente ali em meados
do século dezanove, tem, portanto, pouco mais do que cento e cinquenta anos, e é
filho, ou filha, do casamento tumultuoso e nem sempre profícuo entre a Revolução
Industrial e o Capitalismo moderno.
Aquela que é conhecida como a primeira vaga do feminismo foi
um movimento essencialmente anglo-saxónico que grassou pelo Reino Unido e os Estados
Unidos da América, na segunda metade do século dezanove, e que procurava fundamentalmente
nos seus primórdios conceder à mulher direitos sobre a propriedade, a riqueza e
o capital, só mais tarde buscando o direito da representação legitimado no voto.
De certa forma, apesar de perigosa e excessivamente simplista, podemos dizer que
o feminismo é, em parte, o culminar dos ideais do Iluminismo revolucionário
francês e do Liberalismo constitucional de raiz britânica, o que faz dele um
movimento essencialmente político e económico com génese relativamente recente.
Antes desse tumulto oitocentista, a História fez-se livre
desses rótulos de “feminismo” ou de “masculinidade tóxica” com que hoje olhamos
para o mundo. Sem as caracterizações pop, ao estilo Bridget Jones, de que “os
homens são de Marte e as mulheres são de Vénus”. Aliás, e para quem conheça
essas matérias, Vênus e Marte governam-nos por igual, tanto a homens como a
mulheres. Na verdade, e durante muitos milénios, homens e mulheres caminharam
lado a lado, muitas vezes de mãos dadas, pelos percursos da História digladiando-se
e amando-se em igual proporção e, principalmente, dando vida, literalmente, à
História da Humanidade, envolvidos num fogoso e por vezes intenso amplexo feito
de paixões e amizades, discussões e rivalidades, sexo, ódios e,
necessariamente, amor…
Mas, se calhar, o melhor será começarmos esta história pelo seu
princípio, e no princípio de tudo estava, não o Verbo, não Deus…, mas a Mulher.
Neste caso concreto a Vénus de Willendorf. A Vênus de Willendorf é uma pequena
estatueta em calcário com de cerca de 11 centímetros representando uma mulher
de seios fartos, corpo volumoso e vulva protuberante que os arqueólogos
associam, embora não sem alguma discordância, a ritos ou idealizações da
fertilidade, e que, o dado aqui mais significativo, foi datada de há aproximadamente
25 mil a 30 mil anos, o que faz desta pequena mulher um dos mais antigos
artefactos artísticos feitos por mão humana. A Vénus de Willendorf foi
descoberta no início do século vinte na Áustria. Mais recentemente, em 2008,
foi encontrada na localidade de Schelklingen, na Alemanha, uma outra pequena estatueta,
neste caso feita de marfim de mamute, com cerca de 6 centímetros, representando,
mais uma vez, uma figura feminina, de corpo voluminoso e seios salientes, que
os antropólogos associam ao mesmo tipo de ritos da fertilidade e longevidade, e
a que deram o nome de Vénus de Hohle Fels e que foi datada de há cerca de 40
mil a 45 mil anos, no início do Paleolítico Superior. A importância destes
artefactos, que pela sua dimensão se crê fossem usados como amuletos, prende-se
com a representação do feminino, da fertilidade, da longevidade, e da própria criação
do humano como sendo condição e apanágio da mulher. Ou seja, no contexto daquilo
a que podemos chamar os primeiros traços de civilização, as representações
artísticas, a capacidade para a abstração, nas tribos de caçadores recolectores
do Paleolítico Superior, as conceptualizações artísticas e ritualísticas das
primeiras tribos humanas, pelo menos aquelas que chegaram até nós, incidiam
sobre a fertilidade e o feminino e na representação da mulher. A mulher que dá
à luz, que engorda e se sedentariza, a mulher que envelhece, que, essencialmente,
sobrevive e que faz sobreviver a tribo. A mulher, não como subproduto ou
inferior ao homem, mas como origem e princípio de todas as coisas. Uma espécie
de longo e significativo Matriarcado pré-histórico, se quisermos. Ao longo de
milénios, até aos alvores da civilização, o homem e a mulher são, foram, um
binómio indivisível de equilíbrio na preservação da tribo, da espécie, do Humano.
Um caminho que é relativamente seguro dizer que durou mais de 40 mil anos, até
ao alvorecer da Idade do Bronze.
É seguro dizer, também, que é com a sedentarização e a
urbanização, com o advento da revolução agrícola, e o que ela traz de
subjacente de propriedade da terra, que os papéis do Homem e da Mulher, no
contexto social e político, se irão progressivamente alterar, ou adulterar, se
quisermos ser mais exatos. Tal como Rosseau nos indica no seu “Discurso
Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens” de que “os
frutos são de todos, e a terra de ninguém”. A propriedade é a mãe de todas
as desigualdades. E, ao longo dos últimos 5 mil anos, das cidades aos reinos,
dos feudos às nações e, finalmente, ao Estado as tenções políticas e sociais
entre homens e mulheres vão-se sucessivamente agravando no sentido de
transfigurar o papel da mulher e de impor uma visão mais redutora e mais desigual
do seu papel nas sociedades, contrariamente ao que haveria sido uma tradição
milenar anterior e, contrariamente também, ao que se poderia entender como a
ordem natural da História da Humanidade, em que homens e mulheres são elementos
igualmente importantes nessa evolução. E, é interessante verificar que na
escala de valores da idealização do feminino a fertilidade irá dar lugar à
castidade, porque a castidade é a forma inicial de assegurar a linhagem e a
linhagem, ou o vínculo, são a primeira forma de assegurar a transmissão da propriedade.
Voltando outra vez ao início, a outro início, o das
mitologias fundadoras da nossa civilização, mais especificamente no seu pilar
judaico-cristão, a mulher, ou as mulheres, cumprem, ou cumpriram, na verdade um
papel fundamental, se bem que o mesmo tenha sido sucessivamente e muito politicamente
recalcado, ao longo dos últimos dois a três mil anos, pelas hierarquias das diferentes
Igrejas e Religiões. Harold Bloom, talvez o mais importante crítico literário
do nosso tempo, e em grande medida o símbolo maior do que significa ser-se um “velho
homem branco”, arriscou, inclusive, dizer que o conjunto dos primeiros
livros da chamada Bíblia Hebraica - Genesis, Êxodo e Números - que na tradição
cristã compreendem o grosso do Antigo Testamento, e a que chamou o Livro de J,
teriam sido escritos por uma mulher, mais especificamente, uma cortesã da corte
do rei Roboão, filho de Salomão, no reino da Judia, cerca do ano mil antes de Cristo.
Bloom irá mesmo ao ponto de afirmar que: “A misoginia no Ocidente é uma
longa e sombria história de fracas e equivocadas interpretações da cómica J,
que exalta as mulheres em toda a sua obra, e nunca mais do que nesta história
deliciosamente irónica da criação.”
Ora, se escavarmos ainda mais nesta tradição judaico-cristã encontraremos
ainda uma outra e superiormente relevante figura feminina – Lilith, a primeira
mulher. De acordo com as mais antigas tradições judaicas Lilith é a primeira
mulher de Adão, criada ao mesmo tempo e da mesma forma que ele, do barro da
terra, moldada pelas próprias mãos de Deus, e não da costela de Adão, como Eva.
As mesmas tradições referem também a revolta de Lilith perante Adão, recusando
subjugar-se a este, a literalmente deitar-se debaixo dele, por ser igual a ele,
abandonando por isso, ou sendo expulsa, do Jardim do Éden, as versões variam, e
tornando-se, desde então, numa espécie de demónio, identificada com a serpente,
instigadora e símbolo principal da queda da Humanidade. Noutra versão, Lilith
tornar-se-á mesmo esposa de Samael, o Anjo da Morte, o veneno de Deus, o
sedutor, o acusador, o Deus-cego e destruidor. O verdadeiro Satanás. À luz do
dogma judaico-cristão, portanto, a mulher que se recusa a submeter ao homem passa
a ser vista como uma representação do mal, um demónio pérfido e pernicioso,
lenta e progressivamente obscurecido ao longo dos últimos milénios.
Já na tradição Suméria, a mais antiga civilização que
conhecemos, cerca de 4500 anos antes de Cristo, Lilitu era igualmente um espírito
ou um demónio, associado à Lua, representando as suas diferentes fases e
estados de espírito, umas vezes benigna outras maligna, e o que pode haver de
mais feminino. Mas, ao mesmo tempo, na tradição Suméria, nomeadamente no Épico
de Gilgamesh, o mais antigo texto escrito que conhecemos, é uma Deusa, de nome Aruru,
a mãe da Humanidade. É uma mulher quem cria o mundo e cria os homens e as
mulheres moldados, pela sua mão, do barro da terra, tal como Deus fará na
tradição judaica.
No fundo o que aqui me importa assinalar é a profunda e relevante
importância da mulher, do chamado Divino Feminino, na nossa cultura e de como
essas primeiras mulheres, fossem reais ou imaginadas, eram seres livres e
poderosos e iguais em importância e estatuto ao próprio homem, sendo na
progressiva sedentarização das sociedades e sedimentação dos dogmas da Religião
e da Igreja, que são, na verdade, formulações políticas e económicas, que essa
relevância vai ser posta em causa e que a relação da mulher com o homem vai
sofrer a adulteração, e uso a palavra propositadamente, que conhecemos hoje.
Regressemos então ao Jardim do Éden e ao livro do Génesis
que, recordo, de acordo com Harold Bloom, foi muito certamente, primeiramente,
escrito por uma mulher. Depois de Deus, Jeová, ter criado o céu e a terra, Jeová
deu forma a um homem do barro da terra e soprou-lhe o vento da vida pelas narinas
e o homem tornou-se carne. A seguir Jeová plantou um jardim. Da terra cresceram
as árvores boas de se ver e boas de se comer e nesse jardim estavam duas
árvores, a árvore da vida e a árvore do bem e do mal, mais especificamente a árvore
do “conhecimento” do bem e do mal, da qual o homem não se deve aproximar
nem comer o seu fruto. Então, percebendo que não era bom o homem estar sozinho Jeová
criará os animas da terra e os pássaros do ar e os seus nomes ser-lhe-ão dados
pelo homem, mas entre eles não se encontrava o parceiro do homem. Então Jeová
coloca o homem num sono profundo e retira-lhe uma costela e dessa costela dá
forma à mulher e coloca-a ao lado do homem. “Este é osso do meu osso, carne
da minha carne” diz o homem “mulher lhe chamarei, do homem ela foi
separada. Tal como o homem se separa da sua mãe e do seu pai e se une à sua
esposa; eles são uma só carne”. São, portanto, iguais, homem e mulher, e de
se conhecerem, atenção ao termo, conhecer carnalmente neste caso, Eva, a mãe de
todos os homens, conceberá, tal como Jeová havia concebido, Caim e depois Abel.
É importante perceber e realçar que o conhecimento entre o homem e a mulher é também
o conhecimento entre o bem e o mal. O resto da história penso que saberão, mas
o que me interessa destacar aqui é que neste texto original, em hebraico, homem
e mulher são em tudo iguais, carne da mesma carne e são tão criadores como Jeová,
no conhecimento que completam um do outro. O Homem deu nome a todas as criaturas
da terra e é da ligação entre o homem e a mulher, Adão e Eva, que nasce toda a Humanidade.
Homem e Mulher, juntos.
Se olharmos a História ainda noutra perspetiva, a da
História como o relato dos grandes acontecimentos e personalidades, a ideia da
importância e da relevância da mulher ao longo do tempo, da História e da
Literatura, atravessa toda a nossa Cultura Ocidental, e não só. Os primeiros
poemas clássicos, a Ilíada e a Odisseia, nascem por causa de mulheres. O rapto
de Helena, filha de Zeus, a mais bela mulher da terra, por Páris príncipe de
Troia, despoletando uma sangrenta guerra, está na génese da Ilíada. Já a
Odisseia relata-nos as atribulações de Ulisses, na sua viagem de regresso a
Ítaca e, principalmente, de regresso aos braços da sua amada esposa Penélope
que se mantém sempre fiel a Ulisses afastando todos os pretendentes com sábios
estratagemas. A primeira, Helena, símbolo da beleza e da determinação. A
segunda, Penélope, caracterizada como astuta e inteligente. Atributos que devem
ser lidos como uma visão enaltecida do feminino, longe do que poderíamos supor
ser uma visão desdenhável ou aviltante da mulher e da sua importância na
história e na sociedade.
No Antigo Egipto, Hatshepsut, esposa de Tutmós II, foi designada
faraó após a morte do marido, tendo governado o Egipto por quase vinte anos,
cerca de mil e quinhentos anos antes de Cristo. Talvez uns duzentos anos mais
tarde, na 18ª dinastia, Nefertiti governou ao lado do seu marido Akenaton e
acredita-se que tenha sido faraó após a morte deste e até à maioridade do seu
filho Tutankhamnon. E, obviamente, Cleópatra, a última imperatriz do império Ptolemaico,
educada pelo filosofo Filóstrato, que falava oito línguas e foi amante de Marco
António, e seduziu Júlio Cesar, e que ficou na História não só pela sua beleza,
mas principalmente pela sua astúcia e inteligência.
No livro dos Juízes, do Antigo Testamento, encontramos Debora,
Juíza, que libertou o povo de Israel do jugo de Canaã. Na Grécia Antiga, uma
sociedade reconhecidamente misógina e esclavagista, temos ainda assim algumas mulheres
que se destacaram, desde logo a grande poetisa Safo de Lesbos, ou as pitonisas,
sacerdotisas do oráculo de Delfos, que gozavam de amplo estatuto e reverência. Artemísia
de Cária, rainha de Halicarnasso, que comandou a armada persa de Xerxes na
batalha de Salamina. E, Platão, na sua República, advoga uma igualdade plena
entre homens e mulheres na organização do estado. Mais tarde, já na nossa era,
Hypatia de Alexandria, enorme matemática, astrónoma, filósofa, será assassinada
por cristãos fanáticos no ano de 417.
No Oriente, também, a mulher se destaca como elemento proeminente
da história e das sociedades. Cadija Alcora, primeira mulher de Maomé, grande
comerciante e mulher de destaque na sociedade da altura, apelidada da “mãe dos
crentes”. Ou Aisha, terceira mulher de
Maomé, guerreira e libertadora dos Sunitas. E, também, Fátima, filha do
profeta, poetisa, a dos nove nomes, “a sincera”, “a abençoada”, “a casta”, “a
pura”, “a contente”, “a agradável”, “a falada por anjos”, “a radiante”, o que
dá bem conta da sua importância, e esposa de Ali Ibne Abi Talibe, primo de
Maomé e primeiro Iman dos Xiitas. Ou, mais a Oriente, Yeshe Tsogyal, a mãe do Budismo
tibetano, que viveu entre os anos 757 e 817 e que ficou conhecida como “a
imperatriz do Lago do Conhecimento”. E mais para lá, no Oriente do Oriente, na
mitologia da criação japonesa, cinco pares de deuses, masculinos e femininos,
irmãos e irmãs, maridos e mulheres, que por sua vez convocaram Izanami e
Izanagi, Mulher e Homem, que dão origem ao arquipélago do Japão, onde entre os
anos 600 e 770 da nossa era o “país do sol nascente” viria a ter uma sucessão
de cerca de 7 imperatrizes.
O que pretendo assinalar com estes exemplos de mulheres transcendentes,
no sentido em que se superaram a si mesmas e à sua condição de mulheres, numa História
dita de homens, e de mitologias predominantemente mistas, que convocam tanto o
feminino como o masculino, é que muitas vezes a narrativa mais fácil, ou aquela
que nos é acometida, não é a verdadeira, não é a real. Muitas vezes os factos
desmentem a própria História. Isto não quer dizer que a História, e as
sociedades, não sejam muitas vezes patriarcais, nem que, pelo facto de algumas
sociedades terem sido comprovadamente matriarcais, não haja uma tentativa,
principalmente da História mais recente, de masculinizar, por assim dizer, o
caminho da história humana, talvez por isso mesmo seja tão importante hoje,
relembrar e celebrar estes exemplos femininos que se sublimaram imprimindo os
seus nomes e exemplos nos cânones e no curso da vida e da história humana, para
não cairmos em extremismos básicos, ignorantes e muitas vezes cegos e violentos.
E esses exemplos continuam ao longo do tempo. Lívia Drusila,
mulher de Augusto primeiro imperador de Roma. Ou Agripina, mãe de Calígula. Teodora,
mulher de Justiniano e Imperatriz do Imperio Bizantino. Leonor de Aquitânia,
que viu o seu casamento com Luis VII de França anulado pelo Papa para se casar
com Henrique II de Inglaterra, de cujo casamento viria a nascer o grande
Ricardo o Coração de Leão. A inesquecível Joana d’Arc padroeira da França, heroína
e mártir da Guerra dos Cem Anos. Outra Joana, Johanna Ferrour, líder da revolta
dos camponeses da Inglaterra feudal. Ou Isabel a Católica, Rainha de Castela e
Leão, obreira da última reconquista aos mouros e madrinha das conquistas dos
novos mundos de Cristóvão Colombo. E a lista poderia ser interminável seguindo infinitas
cronologias onde sempre, junto, não por detrás, par a par com os grandes reis,
com os grandes líderes, se impuseram, igualmente, a força e a influência de
grandes, enormes, mulheres. Ou, como bem expressou o comediante americano Jim
Carrey – “por detrás de cada grande homem há uma mulher a revirar os olhos”…
E em Portugal? Portugal é desde logo uma nação “mariana”. E
já iremos a Maria, mas desde a sua fundação que Afonso Henriques consagrará
Portugal à Virgem Maria e ao Culto Mariano. Afonso Henriques que, aliás, faz
construir um país em revolta edipiana contra a sua mãe, Dona Teresa, na batalha
de São Mamede, que havia sucedido, como viúva, ao seu marido, o Conde D. Henrique
no governo do então condado portucalense e que alguns historiadores consideram
hoje ser mesmo a primeira Rainha de Portugal. E esta história nacional far-se-á
numa sucessão de grandes mulheres, muitas vezes injustamente esquecidas ou subvalorizadas.
A rainha Santa Isabel, mulher de D Dinis, a do milagre das rosas. Dona Inês de
Castro, rainha do coração de D. Pedro. Brites de Almeida a Padeira de
Aljubarrota. Dona Filipa de Lencastre a mãe da ínclita geração. A nossa Brianda
Pereira, heroína da Batalha da Salga. D Maria I, que embora viesse a ficar
conhecida como a Louca, foi efetivamente a primeira rainha portuguesa e ficou
na História como arqui-inimiga do absolutista Marquês de Pombal, tendo esse
sido mesmo um dos seus primeiros atos no seu reinado, a destituição do Marquês,
por causa do processo dos Távoras. E Dona Maria II, filha de D Pedro IV, líder
dos Liberais, padroeira do teatro nacional e, entre outros dignos feitos, mãe
de 11 filhos em 16 anos.
Não querendo ser acusado de ligeireza, ou de excessivo
desembaraço na corrida contra o tempo da história, deixando de fora tantas outras
notáveis mulheres, como a Marquesa de Alorna e D Carlota Joaquina, Beatriz
Angelo ou Florbela Espanca, Ana de Castro Osório e Maria Melena Vieira da
Silva, ou Sophia e Agustina, seria impossível referir todas, permitam que
destaque, por fim, nestes 50 anos do 25 de Abril, 4 mulheres, ou talvez 5, sem
as quais a revolução, se não impossível, certamente seria outra. A primeira é,
a nossa, Natália Correia, incansável lutadora pela liberdade que, com a coragem
que a caracterizava, apadrinhou a edição de um livro, escrito a três mãos, por
três mulheres, igualmente corajosas, chamado as “Novas Cartas Portuguesas” e
que seria alvo de um mediático processo judicial que consolidaria o desgaste e
a erosão do regime, fruto da vil censura a que foi sujeito. Maria Velho da
Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno são as 3 Marias que completam
com Natália este quase matriarcado da revolução portuguesa, revolução essa que
também não seria possível sem a participação de uma quinta mulher, ou uma supra-mulher,
o sagrado feminino se quisermos, representado pelas mães, as irmãs e as mulheres
dos quase 800 mil soldados portugueses mobilizados no ultramar, entre 1961 e
1974, e cuja relevância na constituição do quadro mental que levaria à
sublevação militar dos Capitães de Abril não está ainda devidamente estudada e valorizada.
Ou seja, o que é que podemos inferir destes destaques que
vos apresento? Essencialmente que o progresso da Humanidade, e tenhamos em
conta que Humanidade é um substantivo feminino, seria impossível sem a ação de homens
e de mulheres e que é do seu acontecer conjunto que essa mesma evolução se
constrói. Homem e Mulher, masculino e feminino, estão no centro da roda e do
movimento do devir humano e são inseparáveis desse mesmo movimento, desse
conhecimento. Dai que a questão da igualdade, que não é necessariamente
igualitarismo, entre homens e mulheres, ou da sua emancipação, seja tanto uma
construção como uma constrição moderna e essencialmente materialista, ou até
mesmo uma castração, alicerçada numa visão utilitária da história, feita na
conquista de direitos, na posse, por oposição à visão humanista, feita de aspirações,
ambições e capacidades. A Humanidade é, no fundo, o conjunto, o equilíbrio se
quisermos, das forças, das energias, das oposições e das interligações, entre o
masculino e o feminino. E os grandes desafios, como o individualismo, a vertigem
da quantificação e da informação, a ditadura do instante e do presente, ou a
chamada erosão do género, que se colocam hoje à Humanidade, colocam-se em igual
medida a homens e mulheres e só poderão ser superados pela inclusão, integração
e o equilibro entre essas duas forças, sendo que, em alguns casos, as mulheres,
enquanto portadoras gestacionais da própria vida, enquanto protetoras,
cuidadoras da vida, estarão até talvez mais bem preparadas para os ajudar a superar.
Se bem que, ao mesmo tempo, outros haverá em que a deturpação contemporânea do
feminino, tido já não como proteção, mas como posse, a linha ténue entre
proteção e possessividade na maternidade, por exemplo, é um problema largamente
identificado na psicologia, poderá levar a um agudizar desses mesmo desafios e
dessas crises.
Aqui gostaria de regressar, por breves instantes, a dois
ícones fundamentais da caracterização da feminilidade e que comportam dentro de
si e nas suas nuances muita da essência do Arquétipo Feminino e daquilo que é
hoje esta luta pela sua representação – Maria e Maria Madalena. E que, como já
referi, explicam também, na medida em que foram sendo manipuladas politicamente
pela religião, o ponto em que estamos hoje na dita “guerra dos sexos”.
Maria carrega desde logo dois princípios fundamentais do
feminino; a pureza, na ausência de pecado, a castidade, e o da maternidade, na
forma da dedicação ao filho. Maria, a Virgem Maria, imaculada pelo conhecimento
carnal, é a escolhida por Deus para ser a mãe do Filho de Deus na Terra e para
ser a sua educadora e cuidadora e Maria, a Maria cristã, é assim o símbolo da
separação entre o Homem e Deus e, principalmente, entre Homem e Mulher. Maria
não precisa de “conhecer” o Homem para gerar o descendente de Deus. Uma luta infinita
que ocupara a Igreja durante quase dois mil anos até o dogma da imaculada
conceição ser solenemente consagrado pela bula Ineffabilis Deus pelo
papa Pio IX em 1854. Curiosamente, mais ou menos ao mesmo tempo em que o
socialista libertário, e humanista, francês François Fourier andará a inventar
a própria palavra “feminismo” nas suas críticas diretas ao cristianismo
e ao dogma do pecado original. Fourrier escreverá que: “O progresso social e
as mudanças do período histórico ocorrem em proporção ao avanço das mulheres em
direção à liberdade, e o declínio social ocorre como resultado da diminuição da
liberdade das mulheres.”
Intrinsecamente ligada a Maria e à História do feminino está
outra mulher relacionada com Cristo, mas substancialmente menosprezada ou mesmo
censurada, que é Maria Madalena. Se Maria é pureza e castidade, Madalena será
pecado e, acima de tudo, sexualidade. E é como pecado, na sequência de Lilith,
que será tida pela hierarquia da Igreja ao longo dos séculos, ao ponto do seu Evangelho
ser considerado apócrifo. Ironicamente, ou talvez não, aquela que é tida, pela
própria Bíblia, como a mais devota e significativa discípula de Jesus é-lhe
retirada a condição de apóstolo, e do seu Evangelho, onde se lê, a palavra de Jesus
destruindo um dos dogmas fundamentais da doutrina cristã, a inexistência de
pecado, a Igreja tudo fará para que não seja lido e, palavra iniciática,
conhecido. Porque o pecado é a origem da culpa e se a lei é uma forma de
organização a culpa é uma forma de controlo. E importa lembrar que o pecado
original é precisamente o fruto do conhecimento do bem e do mal, que o Salvador,
Jesus, diz-nos Maria Madalena no seu Evangelho, quanto questionado por Pedro: “Uma
vez que nos explicaste tudo, diz-nos ainda mais isto: o que é o pecado do
mundo?” O Salvador responde: “Não existe pecado. Mas sois vós que
cometeis o pecado quando fazeis o que é semelhante à natureza do adultério, que
se chama «pecado».”
É assim, muito por via do dogma religioso que a opressão
política do feminino se vai instituir no pensamento e na sociedade patriarcal como
forma de controlo da propriedade. Tornando-se, com a Revolução Industrial e com
a introdução da mulher nas forças produtivas, num instrumento também de opressão
do proletariado pelo poder do capital. E, chegamos assim aos dias de hoje, onde
se questiona qual o papel da mulher, qual a sua representatividade nos lugares
de poder e se criam quotas e exceções para assegurar descriminações positivas
no acesso da mulher e do género, já entendido como para lá do feminino, numa endoutrinação
woke, nos diversos setores da sociedade.
Uma questão fundamental aqui a ter em conta é a questão da interdependência,
ou da “alteridade”, de certa forma, em que homem e mulher são vistos
como sendo já totalmente independentes um do outro e não como interdependentes
entre si. Ou seja, nas sociedades contemporâneas o lugar do homem e da mulher, o
lugar do feminino e do masculino, não se interrelacionam entre si e afirmam-se
quase por oposição um ao outro e já não cuidando um do outro, um aspeto
fundamental, que o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, felizmente um jovem
e asiático, embora homem, caracteriza como “a sociedade do cansaço” onde
a constante procura do sucesso individual nos priva do encontro necessário e imprescindível
com o outro, “A pessoa sente-se livre nas relações de amor e amizade. Não é
a ausência de laços, mas os próprios laços que nos libertam. Liberdade é uma
palavra que diz respeito às relações por excelência. Sem apego não há
liberdade.” Apego esse que, diria eu, é não mais do que o encontro com o
outro, cuja forma primeira é a do conhecimento entre o masculino e o feminino, de
homem e de mulher. Atenção que com isto não estou a fazer qualquer juízo de
valor sobre outras formas de alteridade, nem de censura da projeção de outras
formas de relacionamento, para lá do binómio homem e mulher, estou apenas a
salientar que a recusa ou a imposição do género sobre a existência, da condição
sexual sobre a individual, levará em última instância, na minha opinião, à própria
destruição do género, à destruição da essencialidade do feminino e, por maioria
de razão, também, do masculino e com isso talvez até da própria condição do Ser
Humano.
Do ponto de vista da política e da questão da
representatividade das mulheres na política a ideia de que, por um lado elas
estão sub-representadas ou, por outro lado de que elas estariam melhor
capacitadas para a atividade política encerra, na minha perspetiva, um problema
essencial que é a perda da liberdade. A limitação da escolha individual, sendo
que numa sociedade totalmente livre homens e mulheres devem estar onde
desejarem e puderem estar. Ao procurar libertar a mulher a sociedade estará a,
de certa forma, oprimi-la para ocupar um lugar que lhe é imposto e não
escolhido por si. E a liberdade é a aspiração última do humano.
Como procurei demonstrar atrás, a participação das mulheres
na História não se fez com predeterminações, mas com desígnios individuais. O
papel das mulheres na política foi feito das suas próprias escolhas pessoais. Eleanor
Roosevelt, Rosa Parks, Indira Ghandi, Golda Meir, Benazir Butho ou Maria de Lurdes
Pintasilgo são mulheres que se afirmaram politicamente e na política sem quotas
ou ações afirmativas, apenas pela sua vontade e força pessoal e individual. Da
mesma forma, outros exemplos haveria para se contestar a ideia ilusória de que
por se ser mulher se estaria mais apto para exercer cargos de decisão ou
governação, como creio que os exemplos recentes de frieza e de autoritarismo de
mulheres como Jacinta Arden, primeira-ministra da Nova Zelândia durante a
pandemia, ou Christine Lagarde à frente dos destinos financeiros do Mundo e da
Europa, ou a Sra. Von Der Leyen, que recentemente fez aprovar a “economia de
guerra europeia” e a diretiva europeia de serviços digitais e os seus limites à
liberdade de expressão, de certa forma demonstram sobejamente. Homens e mulheres
carregam dentro de si qualidades e defeitos. São igualmente marcados pelo
conhecimento do bem e do mal e, como todos sabemos, por exemplo, não é a
condição de mãe que faz automaticamente uma boa mãe, mas antes a prática do bem
que nos faz bons pais ou boas mães. E, que nos faz, essencialmente, humanos.
De certa forma o feminismo hoje, tal como outras formas de
reivindicação de género, de raça, ou de afirmação de escolhas ou visões
sociais, tornaram-se uma forma contraditória de constrangimento individual, de
aprisionamento de liberdades e das potencialidades e das escolhas de cada um,
quase como se uma infinita e cega busca da liberdade se fechasse afinal num
ciclo de clausura e de fanatismo em que a cegueira do dogma volta enfim a
restringir e censurar aquilo que buscava libertar.
Talvez o maior desafio do nosso tempo seja a reconquista
dessa primordialidade do feminino e do masculino, entendidos como equilíbrio
entre si mesmos, e expressões puras da liberdade individual. Da identidade do
Humano. Uma sociedade que não procure a erosão dos sentidos ou dos géneros, mas
a afirmação da diferença como aceitação da individualidade e, nela, da
humanidade. Uma sociedade não de conceitos pré-estabelecidos, ou preconceitos instituídos,
mas de indivíduos livres, que se conhecem na e pela sua diferença. Uma sociedade
enfim do amor, da paixão, do prazer, da ligação entre pessoas, entre homens e mulheres,
de todos os géneros. Uma sociedade de pessoas. Porque não há nada mais
importante, ou poético, na vida do que a liberdade de Ser. E, como nos disse
Antero nas suas “Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século
XIX”: “O Universo aspira (…) à liberdade, mas só no espírito humano a
realiza. É por isso que a história é especialmente o teatro da liberdade”.
A História da Humanidade é, então, uma história de aspiração
pela liberdade, uma liberdade tanto individual como, por vezes, uma liberdade
coletiva, mas uma liberdade que é essencialmente alicerçada na relação entre
Mulher e Homem. Nas suas conquistas e nos seus sacrifícios, na sua disputa como
no seu amor, no seu devir conjunto e eterno. A libertação da mulher, tal como a
do homem, no sentido uno do Humano, far-se-á da sua interligação, da sua
comunhão, liberta de quaisquer amarras e constrangimentos, mesmo aqueles que se
afirmam como libertadores, na tentativa de alcançar o conhecimento e uma ideia
de Humanidade Plena.
Termino com este belo e seminal poema de Maria Teresa Horta:
“Sou feita de muitos
nós
desobediência e meio-dia
Sou aquela que negou
aquilo
que os outros queriam
Disse não à minha sina
de destino preparado
recusei as ordens escusas
preferi a liberdade
e vivo deste meu lado”.
Muito obrigado.
Vila Franca do Campo, março de 2024.