Sento-me para escrever sobre ele e a mera ideia de o fazer deixa-me perplexo. O que dizer? Como? Para quê?... e vem-me à memória a figura do Onzeneiro, esse arquétipo do usurário, agiota, imaginado da pena de Gil Vicente, feito para representar a ambição e a ganância no Auto da Barca do Inferno. Pode parecer contraditório, Cavaco quis ser tudo menos ambicioso ou culpado de ganância. Homem frugal, de parcas posses, embrenhado na mitomania da sua própria abnegação. Mas Cavaco é, sempre, o seu pior inimigo. Tal como o Onzeneiro. Na tentativa, vã, de ludibriar os outros acaba por revelar dolorosamente a condição plena da sua miséria. O homem que se reclamava de não ser politico fez política durante 40 anos. O funcionário financeiro, burocrático e cumpridor é, afinal, um intriguista e conspirador pérfido. O exemplo de estadista é, sabemo-lo agora, pela sua própria mão, apenas, um mero fofoqueiro rancoroso e deseducado. Todos os políticos, tal como nós, são humanos, prenhes de atributos e cravejados de imperfeições, mas o que se espera dos que elegemos é que cumpram o desígnio de sobrelevar as qualidades e minimizar os defeitos. São muitos os que o ensejam, poucos o conseguem. No fim, resta-nos uma certeza, todos temos, como o Onzeneiro, um lugar na barca.
in Açoriano Oriental