quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Café Royal VIII

Cavaco

Sento-me para escrever sobre ele e a mera ideia de o fazer deixa-me perplexo. O que dizer? Como? Para quê?... e vem-me à memória a figura do Onzeneiro, esse arquétipo do usurário, agiota, imaginado da pena de Gil Vicente, feito para representar a ambição e a ganância no Auto da Barca do Inferno. Pode parecer contraditório, Cavaco quis ser tudo menos ambicioso ou culpado de ganância. Homem frugal, de parcas posses, embrenhado na mitomania da sua própria abnegação. Mas Cavaco é, sempre, o seu pior inimigo. Tal como o Onzeneiro. Na tentativa, vã, de ludibriar os outros acaba por revelar dolorosamente a condição plena da sua miséria. O homem que se reclamava de não ser politico fez política durante 40 anos. O funcionário financeiro, burocrático e cumpridor é, afinal, um intriguista e conspirador pérfido. O exemplo de estadista é, sabemo-lo agora, pela sua própria mão, apenas, um mero fofoqueiro rancoroso e deseducado. Todos os políticos, tal como nós, são humanos, prenhes de atributos e cravejados de imperfeições, mas o que se espera dos que elegemos é que cumpram o desígnio de sobrelevar as qualidades e minimizar os defeitos. São muitos os que o ensejam, poucos o conseguem. No fim, resta-nos uma certeza, todos temos, como o Onzeneiro, um lugar na barca.

in Açoriano Oriental

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Café Royal VII

O nosso Mar

Somos ilhas, nascidas do mar, ancoradas no meio do oceano. Porém, ao longo de quinhentos anos, viramos sempre as costas a esse mar. Somos povo arreigado à solidez da terra e, salvo honrosas excepções, receoso da inconstante agitação das águas. Do mar vinham piratas e invasores, dominadores e cobradores de impostos. O mar era caminho para exportação de bens e de jovens, via para escoar os produtos da abundância da terra e as nossas melhores esperanças. O mar foi tempestades, perigos e outros horrores. Até as nossas igrejas foram erguidas de costas voltadas para o mar. Hoje, essa infinidade de riquezas é cobiçada por todos e o que para outras nações é ouro é para nós uma envergonhada prebenda. A orla marítima, as ondas, os recursos marinhos, a história, todo o imenso mar dos Açores é uma enorme mina, literalmente. E nós, acabrunhados em cima desse maná, deixamo-nos usurpar desse colossal activo. Inquieta pensar o que será mais obsceno, se a nossa incapacidade de tomar o leme a esse processo de aproveitamento das potencialidades do nosso mar ou o facto dessa prospeção estar a ser feita em burocrático e duvidoso segredo no mercado livre dos gabinetes governamentais.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Café Royal VI

O Sistema

Na Roménia a corrupção é despenalizada, no Brasil estatizada. A Europa vive anestesiada, a América Latina bloqueada. África engatilha e o Ártico descongela. Putin manda, Trump tweeta. A Inglaterra Brexita, a Alemanha hesita. O país eutanasia e a ilha incinera. Imaginar o futuro é como olhar pelo cano de um caleidoscópio… mas, se olharmos para trás talvez consigamos ver a origem deste tempo. Recuemos, por exemplo, à queda do Muro. Essa simbólica debacle do modelo maniqueísta de dois blocos, duas ideologias, duas perfeitamente claras e irredutíveis visões da condição humana e da organização social. O fim, à marretada, dessa “pax” fria arremessou-nos, inadvertidamente, para o caos da superficialidade política. Por todo o mundo, jovens políticos, vazios de projecto e enfeitiçados pela ideia da imortalidade das democracias (ou talvez deles próprios), imaginaram várias terceiras vias com o único fito de conquistar o poder e perpetuá-lo em curtos ciclos de quatro anos. Mais de 30 anos passados não há uma ideologia, um valor ético, que sobreviva. Tudo vale, desde que se garanta a reeleição e se perpetue o sistema. Hoje, pressente-se no ar que é esse próprio sistema que vulcanicamente se prepara para desmoronar…

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Café Royal V

Amassar o pão

Portugal é um país esquizofrénico e a política portuguesa, então, é um autêntico manicómio. O mais recente delírio foi a novela da TSU. Não querendo remoer muito mais sobre o tema, duas notas marcantes importam registar. 1º - o que de simbólico, na incapacidade de entendimento entre as forças políticas, o episódio revela. E, se da direita não se esperaria outra posição, da parte do PS e dos que habitam à sua esquerda chegam sinais iguais ou piores. Negociar a política salarial tendo como moeda de troca o sistema de prestações sociais é um erro de palmatória, mas a incapacidade da esquerda dialogar sobre os problemas crónicos do nosso sistema económico não augura nada de bom para o futuro da governabilidade, com ou sem geringonça. 2º - Portugal é um país pouco produtivo, essencialmente pobre, e onde os salários médios nos deviam envergonhar a todos, mas é igualmente verdade que o país, em particular políticos e patrões, é incapaz de gerar condições efectivas para o desenvolvimento da economia e a criação de riqueza que possa ser verdadeiramente distributiva. Nunca foi tão apropriado o chavão de que “em casa onde não há pão, todos brigam e ninguém tem razão.” Assim vamos indo na hilariante padaria portuguesa.

in Açoriano Oriental