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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Speakers' Corner 45

O Desafio Arquipelágico

Ao fim de quase trinta anos a viver nos Açores e mais de vinte como filho de açorianos no continente estou convicto de que o maior desafio que estas ilhas enfrentam, ainda hoje, é o desafio arquipelágico.

Não se trata apenas de afirmar a tão glosada e tantas vezes mal interpretada “açorianidade”, mas de construir uma verdadeira identidade arquipelágica. Una, coesa e realmente interdependente entre si. O grande desafio destas ilhas é conquistar a consciência de um arquipélago que se reconheça como tal, feito das suas nove partes, mas unido na certeza de uma realidade comum, partilhada por todos, entre o mar e a terra, e de um povo moldado na dicotomia entre os dois.

Desde os primeiros povoamentos que estas nove ilhas se mantêm de costas voltadas umas para as outras. Hoje, continuam a perder-se em bairrismos fúteis e disputas estéreis. Basta ver como as decisões políticas, seja de que natureza forem, ainda se fazem, tantas vezes, à medida da pressão local e não de uma visão arquipelágica sobre as ilhas.

E mesmo na diáspora, o açoriano só é “açoriano” para fora. Por dentro, mantém a marca indelével da sua ilha e, dentro dela, da sua freguesia. Como dizia, creio que, Daniel de Sá, pode-se tirar o homem da freguesia, mas não se consegue tirar a freguesia de dentro do homem.

Este apego telúrico, íntimo e inexpugnável, é talvez o traço mais pungente do ser açoriano. Talvez até, junto com a religiosidade, seja o mais premente. Mas, mesmo nessa religiosidade, o traço comum fragmenta-se em mil formas. Até no que poderia ser a mais unificadora das tradições, o culto do Espírito Santo, somos uma manta de retalhos. As sopas das Flores não são as mesmas que as de Santa Maria ou as da Terceira.

Ao longo dos séculos, esta fragmentação foi reforçada por divisões administrativas e políticas. No tempo das donatarias, a lógica era de feudo; mais tarde, os distritos acentuaram rivalidades, criando uma geografia mental onde “ilha vizinha” passou a ser “concorrente” e não “parceira”. Já na autonomia, a tripartição entre ilhas e cidades ecoa, de certa forma, as três pessoas do Espírito Santo, distintas, mas que raramente funcionam em verdadeira comunhão.

O grande desafio autonómico de 1976, que em breve comemoraremos (esperemos que de forma séria e não apenas celebratória e politicamente esvaziada), era e continua a ser a construção de uma verdadeira consciência de união arquipelágica. Olhando para o que foi feito nestes quase cinquenta anos, fica a sensação de que falhámos em criar um património identitário conjunto. Continuamos sem uma relação filial entre nove ilhas tão distintas e distantes, mas necessariamente dependentes umas das outras.

Se tivesse de assinalar os verdadeiros motores desse movimento eles seriam, não as formulações políticas, mas a SATA, a Universidade dos Açores e, fundamentalmente, a RTP-Açores. Cada uma, à sua maneira, fizeram mais pela ideia de Açores do que meio século de autonomia. A companhia aérea, ligando as ilhas e estas ao exterior. A universidade, dando-lhes lastro cultural, científico e diplomático, até. E a RTP-Açores, talvez a mais importante de todas, pelo conhecimento real que permitiu entre as ilhas dando-se os açorianos a conhecer entre si através dos ecrãs da televisão.

A identidade constrói-se com esse conhecimento mútuo, com partilha de sensibilidades e afectos, com o acto simples, mas poderoso, de mostrar a um açoriano do Corvo a realidade de outro em Santa Maria. E, nestes cinquenta anos, que agora se celebram, talvez tenha sido a RTP-Açores, mais do que ninguém, a conseguir esse abraço arquipelágico. Num território que vive de costas voltadas, é a televisão quem, com imagens e palavras, aproxima o que a geografia e a história tantas vezes separam.

Resta-nos esperar que talvez um dia essa união não dependa só das ondas hertzianas, mas das ondas reais de cooperação e reconhecimento mútuo e que nos viremos todos, finalmente, de frente uns para os outros.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Speakers' Corner 43

A heteronímia do lugar

É comum, na indústria do turismo, ensaiarem-se diversas explanações sobre a identidade dos destinos, procurando identificar com exatidão matemática as características únicas de cada lugar, a cultura, a história, as marcas do território e as idiossincrasias locais, com o objetivo de determinar a sua capacidade de atrair e fidelizar visitantes.

Nas últimas décadas, a massificação tornou-se um dos fatores mais determinantes na evolução dessas teorias. Fenómenos como a gentrificação, a desertificação e, sobretudo, a artificialização infiltram-se na identidade dos lugares, adulterando-a ou, como alguns defendem, destruindo-a. É como se os destinos passassem por uma espécie de crise de identidade, tanto do ponto de vista endógeno, na percepção que os residentes têm do seu território, como exógeno, refletindo as expetativas e fantasias de quem o visita. Uma espécie de bipolaridade beligerante entre a identidade vivida e a identidade experimentada.

No fundo, é como se o turismo se tornasse um fenómeno autofágico, consumindo-se a si próprio na sua voracidade financeira, muitas vezes dando origem à construção de uma ficção, uma heteronímia do lugar.

O lugar que o residente conhece e vive todos os dias já não é bem o mesmo que o turista visita. E o turista, por sua vez, procura algo que talvez nunca tenha existido. Uma fantasia de pureza, um postal ilustrado com cheiro a lava e sabor a mar. O destino passa então a viver uma dupla (ou tripla) personalidade: é ao mesmo tempo o que é, o que o turista deseja que seja e o que as agências de marketing juram que ele será. As dinâmicas entre turistas e residentes e os efeitos dessas relações, tanto imediatos como a médio e longo prazo, provocam uma multiplicidade de identidades que quase se consomem a si próprias. Ao ponto de já ninguém saber, com segurança, o que o lugar efetivamente é.

Esta confusão, estas personalidades sobrepostas, produzem uma nova forma de pressão sobre o território. Uma pressão que precisa de ser pensada, planeada e trabalhada se quisermos alcançar a tão proclamada sustentabilidade que tanto encanta os discursos políticos e as apresentações das agências de comunicação. E não se trata apenas de preservar o ambiente, controlar fluxos ou compilar planos diretores com números de camas e dormidas, ou estratégias de marketing com slogans sensacionais. Nem de estatísticas, tantas vezes cegas, que acumulam visitantes, mas ignoram experiências, alicerçadas numa visão estanque do destino, em vez de numa abordagem integrada, até holística, do que um território turístico e habitado pode e deve ser.

Trata-se, acima de tudo, de reconhecer essa identidade heteronímica do lugar: sendo autêntico e verdadeiro, mas também múltiplo e contraditório. Entre a vivência do residente e a ânsia do visitante, emerge uma realidade híbrida, simultaneamente genuína e desejada, com tanto de real como de ficcional. É nesta tensão que se constroem os destinos turísticos duradouros: os que sabem equilibrar, em simultâneo, a qualidade de vida de quem os habita e a qualidade da experiência de quem os visita.

Esse é o verdadeiro desafio da sustentabilidade turística: reforçar e potenciar esses dois eixos paralelos e indissociáveis. Porque, sem equilíbrio entre quem vive e quem visita, o destino colapsa. Porque, sem identidade, pouco restará para conhecer além da banal artificialização de um lugar perdido entre pragas de infestantes, águas poluídas, acessibilidades deficientes, expetativas frustradas e uma crescente hostilidade dos locais perante os visitantes.

Os Açores ainda vão a tempo de evitar os erros de um desenvolvimento turístico guiado pelo desordenamento e pela cobiça. Mas, para isso, é necessário que todos encarem esta atividade como mais do que uma nova galinha dos ovos de ouro, ou um inimigo a abater. E sim como um verdadeiro pilar de desenvolvimento futuro, capaz não só de gerar riqueza, mas, acima de tudo, de a redistribuir.

 

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Speakers' Corner 28

O Território do Vazio

Nemésio, na sua busca pela açorianidade, identificou três tipos de açorianos – o picaroto, o terceirense e o micaelense. Sobre este último, pintou-o segurando o cabo da enxada e lavrando a terra “já penetrável ao tubérculo”. Nesta identificação telúrica das gentes açorianas há uma espécie de paradoxo insular, rodeado de mar por todos os lados o açoriano, em particular o micaelense, vira as costas ao oceano e faz-se senhor da terra, enraizando-se cada vez mais no interior da ilha e olhando o mar com distância e, muitas das vezes, temor.

A ligação do açoriano com o mar foi sempre relativamente ambígua. A condição insular obriga a um relacionamento estreito com o oceano, mas este mar, o inclemente Atlântico, onde nos situamos, castiga e enclausura. Nos Açores, posto de abastecimento nos cruzamentos entre oceanos e continentes, o mar foi sempre território de medos e angústias. De lá vinham os piratas e as tempestades, cemitério vivo de batalhas e de naufrágios e, ao longo do tempo, porta de saída de gentes rumo ao distante mundo da emigração. Mesmo a pesca, ou a cabotagem, foram sempre de subsistência ou de oportunidade, remetidas ao gueto de pequenas comunidades, tantas vezes segregadas e marginais.  

Até muito recentemente, o litoral, praias, poças e portinhos, eram lugar de baldio e atrevimento, largados à selvagem voracidade da juventude ou à ousadia da necessidade dos que aí buscavam amparo para a fome. A ideia do mar, ou desse espaço que o separa da terra, como lugar de prazer, de conforto e de alegria é extraordinariamente recente. Os Areais de Santa Bárbara são disso um exemplo, salvos por surfistas e ambientalistas da avidez dos saqueadores de areia. E é isso que explica o impressionante abandono a que tantos outros lugares, de igual ou maior potencial, foram sucessivamente deixados, ao longo de décadas, até o declínio e a ruína se apoderar de muitos deles, tal como agora, tragicamente aconteceu, no Porto de Santa Iria.

Bem sei que é injusto generalizar e que se tornou repetitivo colocar a todos nessa categoria demagógica de “os políticos”, mas o problema é que as situações são tantas e tão recorrentes, de todos os partidos, que não se consegue não utilizar esse epiteto, hoje tão depreciativo, para classificar toda uma classe de responsáveis públicos pela desgraça que se nos acometeu. O velho Porto de Santa Iria, é um dos mais belos e singulares lugares destas ilhas. Uma localização única, com uma história riquíssima. Os problemas de erosão, ou de manutenção, são conhecidos há décadas, por várias gerações de políticos, de ambos os lados do espectro partidário, com dezenas de promessas e de projetos, milhões de investimentos anunciados e o resultado foi a sua destruição, e, agora, com um novo rol de promessas e datas num caderno de encargos que inevitavelmente já não vai ser o mesmo.

Nos Açores, como as ribeiras que correm para o mar, despejam-se rios de dinheiro em coisas inúteis, em projetos horrendos, de interesse duvidoso, e sistematicamente negligencia-se o que é realmente relevante e significativo para a transformação de uma identidade e para a tão propalada sustentabilidade do arquipélago. Pegando apenas em São Miguel, a praia do Monte Verde, o Ilhéu, a Piscina das Feteiras, o Lombo Gordo, a Amora e o Degredo… e tantos outros lugares perdidos nesse “território do vazio”, como lhe chamou o historiador Alain Corbin, que é a orla marítima e o litoral.

São estes acontecimentos, tão tragicamente repetidos, que me levam a acreditar que os políticos são insensíveis à beleza, que, com o tempo, se tornam impermeáveis ao encanto dos lugares, da sua história e do legado do que nos rodeia e os devia, em absoluto, preocupar e ocupar. Talvez o que choque mais neste abandono frio e insensível do que nos é próximo e essencial não sejam as promessas incumpridas ou a farsa da sustentabilidade, mas essa ditadura demolidora do desleixo, do abandono e da simples falta de gosto.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Speakers' Corner 27

O ultraconservadorismo ambiental

Sábado último, um grupo de cidadãos assinou neste jornal um texto elogiando a interdição a banhos do Ilhéu de Vila Franca do Campo. Começando com uma exclamação de “Excelentes notícias!”, os autores do artigo reclamam a “devolução”, do Ilhéu, à sua “verdadeira função: um santuário natural.” Propondo que o uso balnear seria prejudicial para a biodiversidade deste “monumento geológico” e sugerindo “novas” formas de relação com o Ilhéu, “através de visitas guiadas conscientes”, escutar os silêncios, interpretação ambiental e programas de monitorização da biodiversidade marinha e terrestre do Ilhéu.

Pondo de lado alguma excitação negativa, que parece querer ver num problema de saúde-publica uma oportunidade proibicionista, há dois aspetos nesta visão ultraconservadora do ambientalismo que gostava de assinalar, pelo que, a meu ver, sinalizam de uma ideia distorcida do que são os Açores, por um lado, e do que deveria ser a preservação ambiental, por outro.

Começando por este último aspeto, existe uma corrente de pensamento que vê na interdição do acesso e da fruição da natureza o caminho para a conservação ambiental. Limite de acessos, capacidades de carga, interdições, épocas de defeso e todo um outro tipo de obstáculos à interação entre o homem e a natureza. Quase como se o estatuto de monumento, ou reserva natural fosse uma espécie de fronteira militarizada entre os bárbaros humanos, destruidores e incivilizados, e a virginal e impoluta natureza intacta das nossas nove ilhas atlânticas. Thoreau, escritor e ensaísta americano, um dos pais do transcendentalismo e ávido naturalista, escreveu, em “Walden”, um manifesto sobre a comunhão com a natureza, que buscamos a natureza para viver deliberadamente, “para afrontar apenas os factos essenciais da vida”, para aprender o que temos para ensinar, “e não, quando morrer, descobrir que não havia vivido”. Por oposição àquilo que Thoreau considerava serem as vidas de “silencioso desespero” da maioria dos homens. Precisamente, a melhor forma de proteger a natureza é educando as pessoas para sua vital importância e isso só é possível através da fruição dos seus espaços e ambientes e não se pode proteger o meio natural afastando as pessoas dele. Conservação é uma coisa, interdição é outra.

Por outro lado, a ideia errónea de que os Açores são um grande santuário natural intacto e puro é não só falsa como potencialmente perigosa. Toda a história destas ilhas é uma de interação entre homem e natureza. A virada das terras, os cultivos, a introdução de espécies, os Açores são esse moldar da natureza pelo homem e, por sua vez, da construção do homem pela natureza que o rodeia, tantas vezes castigando, outras acolhendo e nutrindo, com a sua opulência e abundância. E o Ilhéu da Vila, proteção e ancoradouro natural desde os inícios do povoamento, representa um exemplo singular dessa relação simbiótica e de interdependência entre o humano e o natural. Até 1942 a Vila Franca foi, por causa do seu Ilhéu, ancoradouro privilegiado da ilha, inclusive no interior do Ilhéu, o que levou ao rasgar de um canal de acesso logo no séc. XVI. Esta relevância levou mesmo à elaboração de um projeto para a construção de um ou mais molhes de ligação entre o Ilhéu e a ilha, para a criação de um grande porto oceânico, o que originou a criação da Companhia do Abrigo Marítimo do Ilheo de Vila Franca do Campo, da qual até a rainha D. Amélia e o rei D Fernando foram subscritores de ações. Ao longo dos séculos, o Ilhéu foi terra de cultivos, de vinha e pastoreio e, em 1933, zona de banhos e veraneio com a construção de uma casa de apoio pelo seu então proprietário António Botelho da Câmara Velho de Melo Cabral. Desde sempre o Ilhéu é parte fundamental da vivência micaelense e fonte perene dessa ligação entre homem, mar e natureza. Elogiar a sua interdição, mesmo que por ultraconservadorismo ambiental, é rejeitar a verdadeira natureza da vida insular.

 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Speakers' Corner 20

Natureza intacta e outros mitos

Por estes dias, a pacata ilha das Flores tem sido abalada por uma inusitada intempérie. Desta feita, a razão de tal rara fama são já não as intermitências meteorológicas, mas as adversidades paisagísticas e territoriais. Este furacão tem várias incidências, algumas do foro sociológico, outras jurídico, mas duas dessas questões, em particular no que concerne ao âmago da uma certa ideia de Açores, são suficientemente significativas para permitirem uma análise mais teórica, ou mesmo filosófica, se quisermos, e uma atenção que se devia expandir e generalizar às restantes ilhas.

Pelo que foi tornado público, um casal estrangeiro radicado na ilha terá vindo a adquirir uma série de terrenos privados nas imediações e acessos ao famoso Poço da Ribeira do Ferreiro. Recentemente, esses novos proprietários do local terão vindo a desenvolver uma série de trabalhos de desmatamento e limpeza do coberto vegetal, tentando restituir a paisagem ao seu uso passado. Das diferentes reações que se têm feito ouvir, primeiro nas redes sociais e depois na pantalha televisiva, as principais preocupações da população, para além de um receio de privatização do acesso ao espaço, prendem-se com a adulteração do cenário natural e a índole jurídica da posse de um cartaz turístico regional, numa dicotomia público-privada aparentemente de difícil resolução num arquipélago onde praticamente tudo é, ou já foi, privado.

A ideia da natureza pura, ou intacta, com que os Açores se têm promovido ao longo dos tempos radica num infeliz desconhecimento da história e num logro comercial baseado no mito da virgindade da nossa paisagem. Os Açores são, na verdade, um caso de estudo de uma paisagem toda ela humanizada por seiscentos anos de trabalho da mão do homem. A chegada dos primeiros povoadores é marcada, desde logo, por aquilo que ficou conhecido como a “virada das terras”, um infinitamente laborioso processo de remoção dos mantos vegetais de floresta Laurissilva autóctone e da lava, por forma a se obterem extensões de terra arável e passível ao cultivo. Este rendilhado de muros de pedra seca e terra de cultivo, do cereal à vinha, ou a atual pastagem, aqui e ali pontilhada de hortênsias e conteiras ou matas de criptomérias, espécies todas elas importadas, construído com suor ao longo dos tempos, são aquilo que hoje marca e distingue a paisagem açoriana e não podiam estar mais distantes dessa ideia romântica de natureza intacta.

O que este episódio nos devia levar a debater é precisamente que paisagem somos ou queremos ter e que território queremos promover para o estrangeiro, seja por via do turismo, seja por via do repovoamento das ilhas com populações, vegetais ou humanas, forasteiras, algo que, também, sempre caracterizou as nossas ilhas. Veja-se, por exemplo, o caso paradigmático de Thomas Hickling e o seu deslumbrante e icónico Jardim Terra-Nostra.

Por outro lado, a colaboração, ou a falta dela, entre público e privado, na gestão do território, na utilização da paisagem e na promoção de modelos de desenvolvimento para as ilhas também nos devia inquietar. A verdade é que os poderes públicos, sejam autárquicos ou autonómicos, têm-se pautado por um impressionante desleixo face ao ambiente e à paisagem, na grande maioria dos casos, do qual o mais latente talvez seja a tentativa e inexplicável abandono da reflorestação e arranjo paisagístico da bacia hidrográfica das Furnas. Se há coisa que os sucessivos governos nunca souberam fazer é preservar e desenvolver o património seja ele natural, construído ou a mistura dos dois. Basta ver o exemplo da paupérrima e cronicamente suborçamentada rede regional de museus, ou um mirabolante projeto de miradouro para a cumeeira da Lagoa do Fogo, para perceber como o Estado é mau gestor da coisa pública. Se esta interessantíssima polémica nos trouxesse reflexão contextualizada, extensível às nove ilhas do arquipélago, sobre uma ideia de futuro para os Açores, já não seria mal empregue…

 

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Para uma História do Surf (e do Bodyboard) nos Açores

Apontamentos e Memórias 

Quem, há vinte ou trinta anos atrás, poderia imaginar que, um dia, seria possível? Para os mais antigos, como eu, aquele é e será sempre o “Pico da Ganza”. Aquele cantinho, aquele morro, aquelas ondas, eram uma espécie de refúgio escondido aonde acedíamos sob risco da própria pele, perseguidos por cães de fila, os pneus dos carros furados e rendeiros furiosos perseguindo-nos como se fossemos invasores. Só chegar ao “Pico da Ganza” já era uma realização plena da rebeldia e da inquietação punk do surf nos anos 80 e 90. O risco, o estar fora da lei, não olhar a meios, ou a ameaças, para cumprir o chamamento das ondas, das boas ondas. Uma quase libertinagem aquática e oceânica movida pelo prazer dos tubos e de deslizar naquelas ondas isoladas e desconhecidas.

Naquele tempo os Açores eram uma entidade inexistente no universo mundial do Surf. Não havia fotógrafos. As revistas chegavam com meses de atraso. As fotografias eram todas do Havai, da Califórnia, do Brasil ou de França. Os destinos eram todos distantes e exóticos, a Austrália, a Indonésia, nem sequer as Fiji, ou o Taiti, eram ainda conhecidas. Agora, o distante e exótico somos nós. E, o nosso velho “Pico da Ganza” é cartaz promocional de uma marca de pranchas de Bodyboard, com distribuição planetária. Aquilo com que nós sonhávamos, há tantos anos atrás, olhando as fotografias de outros mares e outras ondas, em oceanos diferentes do nosso, hoje, algum miúdo igual ao que fomos então, sonha ser surfista, ali, dentro de um tubo, no “Pico da Ganza”. Quem, então, haveria de dizer…

Por isso, a pergunta, então, que fica por fazer é esta: como foi possível esta evolução de 180 graus, num curto espaço de 20 anos? Como, numa região historicamente virada de costas para o mar, os desportos de ondas, Surf e Bodyboard, conseguiram esta projeção e esta relevância no seio da sociedade açoriana, influenciando decisões políticas e fazendo parte do dia-a-dia de tantas famílias e da própria sociedade açoriana e captando o interesse e a atenção do mundo do Surf um pouco por todo o globo?

Dizem-nos, os compêndios e os manuais de historiografia, que o tempo das gerações é medido em décadas. 25 anos, sensivelmente, é a duração e a mudança entre cada geração. Porém, nesta história que aqui me interessa contar o tempo mede-se em verões e as gerações mudam em dias de praia, de sol e de ondas. Em períodos de swell, ritmos de ondulação, manobras, histórias e experiências. Tudo aquilo que compõe uma vida, no fundo, que é feita de instantes e singularidades, como o primeiro take-off, o primeiro drop, o primeiro tubo, a primeira vez naquela onda inóspita e nunca antes surfada.

Não existem registos escritos sobre os primórdios longínquos do surf nos Açores. Não tivemos um Capitão Cook, nem havia aqui um outro tipo de polinésios, que escrevesse nas crónicas a agitação das ondas nas praias, baías e enseadas destas ilhas atlânticas nos idos de quinhentos. O Surf, aqui, é um fenómeno moderno e é, essencialmente, um filho da baleação. Embora ainda não esteja comprovado, por um estudo aprofundado, de fontes coevas, é seguro dizer-se que o Surf, ou essa ideia e gesto de correr vagas com auxílio de um objeto de madeira, terá, possivelmente, aportado aos Açores, Madeira e Cabo Verde, pela mão dos baleeiros do séc. XIX.

Começando a partir dos anos 30 do séc. XIX, e ao longo de toda a época de ouro da baleação americana, os grandes navios baleeiros partiam da costa este dos EUA, nomeadamente dos portos de Nantucket e New Bedford, em grandes viagens anuais de circum-navegação, que os levavam a cruzar o Atlântico e o Pacífico, em busca de caçar os grandes cetáceos e na procura de óleo, gordura e espermacete. Nessas viagens, era frequente a recolha de marinheiros originários das ilhas tendo, assim, muitos açorianos, madeirenses e cabo-verdianos chegado ao Havai levados nessas longas rotas da baleação. De igual forma, muitos americanos se fixaram nos Açores como agentes de navegação, dos quais o exemplo maior e mais significativo é, sem dúvida, a família Dabney, que se sediou na Horta.

No final do século dezanove, entre 1878 e 1887, dá-se uma grande leva de emigração açoriana e madeirense para o Havai. Famílias inteiras são contratadas pela Hawaiian Sugar Planters Association para trabalharem nos campos de cana-de-açúcar, muitos deles levando mulheres e filhos e fixando-se permanentemente nesse arquipélago do pacífico. Estima-se que neste período cerca de 10 500 portugueses se fixaram nas ilhas havaianas, até cerca de 11% da população do Havai, pelo ano de 1910, ser de ascendência portuguesa. Os portugueses, apelidados de “Pukiki” pelos nativos havaianos, levaram consigo várias tradições que, ainda hoje, se mantêm e fazem parte da cultura popular do Havai, como as “malassadas” ou o culto do “Espírito Santo”, ainda hoje celebrado, no início de maio, em vários pontos dessas ilhas do Pacífico.

O nosso cavaquinho, um instrumento originário do Minho e historicamente muito popular entre os marinheiros, por ser maneirinho e fácil de transportar, é o pai do famoso Ukelele havaiano e é seguro dizer-se que terá chegado ao Havai, precisamente, pela mão dos marinheiros portugueses das escunas baleeiras de novecentos. É, aliás, esta correlação de causas e efeitos que nos permite dizer que esses mesmos marinheiros terão tido contacto com a prática do surf no Havai, nesse tempo, e que poderão, talvez, ter trazido a mesma para as ilhas atlânticas.

Nos anos 80 do século passado era costume ver miúdos a apanhar ondas, carreiras, em pranchas improvisadas de esferovite ou em pequenas canoas, quase caixas, feitas de madeira ou de lata, no centro da baía de Rabo de Peixe. Ao que tudo indica, e pelo que era relatado pelos próprios, essa era uma prática passada entre gerações, anterior mesmo aos primeiros surfistas das ilhas. Esses relatos permitem pressupor que entre os homens do mar haveria esse conhecimento e essa tradição do divertimento nas ondas com recurso a algum tipo de “pranchas”, um conhecimento passado ao longo dos tempos, de geração em geração. Não é, portanto, inverosímil pressupor que este estreito contacto entre os povos dos dois arquipélagos, dos dois maiores oceanos, tenha levado a trocas culturais e que algum emigrante açoriano possa ter trazido, de volta, essa tradição havaiana de correr vagas de mar com o auxílio de uma prancha.

Também é possível especular que as duas grandes guerras mundiais terão trazido surfistas aos Açores. O Surf moderno tem a sua primeira expansão após os jogos olímpicos de 1912, com as tournées mundiais do campeão olímpico de natação, o havaiano Duke Kahanamoku, que popularizou o desporto, por vários países, fazendo demonstrações documentadas de surf na Califórnia, na Austrália e no norte da Europa. Durante a 1ª guerra mundial, a marinha dos EUA teve uma importante base militar na cidade de Ponta Delgada, entre 1917 e 1919, Naval Base 13 – Mid-Atlantic Naval Base Ponta Delgada, com o seu comando naval na antiga residência do Cônsul Hickling, também ele um americano radicado nos Açores, na freguesia de São Pedro, comandada pelo Almirante Herbert Owar Dunn.    

Natural de Rhode Island, Dunn era amante dos desportos náuticos, nomeadamente da vela, e podemos imaginar os marinheiros americanos a disfrutarem, nos seus momentos de lazer, das praias e das ondas das Milícias e do Pópulo, em pranchas de madeira improvisadas.

O mesmo poderá ter ocorrido durante a segunda guerra mundial, nas ilhas de Santa Maria, entre 1941 e 1945, período em que o Governo Português assinou um acordo de cedência militar, com o Governo americano, visando a cedência do aeroporto para missões de defesa do esforço de guerra dos aliados, e Terceira, na Base das Lajes, a partir de 1943, com varias centenas de militares e aviadores americanos ai estacionados, muitos deles originários da Califórnia, onde, por essa altura, o Surf era já um desporto popular e em franco crescimento.

Nos quarenta anos que mediaram entre a segunda guerra mundial e os anos oitenta o Surf nas ilhas terá sido uma atividade maioritariamente de turistas e de alguns, muito poucos, entusiastas. Velejadores e marinheiros terão certamente trazido pranchas e experimentado as ondas açorianas. Rusty Miller, o famoso e reputado surfista californiano, cruzou o Atlântico nos anos 50, num navio-escola, e passou nos Açores, embora, de acordo com o seu próprio relato, não tenha aqui surfado, mas outros como ele poderão tê-lo feito. Pedro Martins de Lima o “primeiro” surfista português, viajava regularmente aos Açores na mesma altura, para velejar, fazer caça submarina e, quem sabe, apanhar ondas com o seu amigo Leo Weitzenbaur. E, claro, temos a história épica do Carlos “Garoupa” Medeiros que, no final dos anos 40, construiu, ele próprio, uma prancha de madeira de criptoméria, inspirado pelos filmes de Hollywood do Cine-teatro Vilafranquense e surfando, solitário, as inchas no baixio sob o olhar atento e imponente do Ilhéu de Vila Franca do Campo.

Ao contrário do que se poderia pensar o conceito de lazer é extraordinariamente recente na história da humanidade. A ideia de tempo livre só entrou no léxico civilizacional há sensivelmente cento e cinquenta anos com o advento da revolução industrial e a libertação da força de trabalho. Até lá as atividades humanas, para além de comer e dormir, eram ocupadas em funções ditas reprodutivas como caçar, cultivar, transformar, comerciar, aprender, entre outras ocupações estritamente funcionais e utilitárias. Não fazer nenhum é uma conquista moderna, aliás, inscrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu Artigo 24, em 1948, se bem que, e infelizmente, tenha muito pouco de realmente universal.

Da mesma forma, o ato de desfrutar da orla marítima, de gozar a praia, o oceano e as ondas, também só entrou nos hábitos sociais do mundo ocidental no virar do século dezanove para o século vinte. “As Praias de Portugal, guia do banhista e viajante”, de Ramalho Ortigão, teve a sua primeira edição em 1876 e seguia a então moderníssima tendência de incentivar a descoberta e usufruto da vida à beira-mar como fonte de saúde, de bem-estar e de saudável ocupação do tempo livre. Ir a banhos, como então se dizia, era para Ramalho Ortigão algo tão chique e moderno como é para nos hoje comer sushi por encomenda entregue pelo estafeta da Glovo.

Tirando o Havai e outras ilhas do Pacífico, a ideia de tirar prazer de uma atividade no mar era absolutamente estranha para todo o Ocidente. O mar era local de faina, de gesta e de labor, ou aventura. O oceano era mais um local de perigo do que de conforto, ou de alegria. O Adamastor em oposição à Ilha dos Amores que era, como o próprio nome indica, uma ilha. Terra firme e segura e luxuriante. Só no século XX o ocidente descobriu o encanto e o chamamento das ondas e a arte de ser levado por elas, ou de se levar com elas.

A minha primeira onda foi na praia do CDS, na Costa da Caparica, algures pela primavera/verão de 82 ou 83, numa prancha Suntalon do Rodrigo Carmona. Lembro-me dessa carreirinha como se fosse hoje, em linha reta desde o outside até arrojar, como um cetáceo, na areia. A paixão, que logo se transformou em vício, foi instantânea e levou a que numa Nauticampo, poucos meses depois, os meus pais me comprassem uma Atunas, azul com quilhas aparafusadas e gráficos coloridos no deck.

Comparativamente, a Atunas era um míssil ao lado da Suntalon. Com os seus rails curvos, crescent tail e nose curto, ao lado do formato charuto das Suntalon, a minha Atunas fazia-me acreditar ser um exímio corredor de vagas. No entanto, ambas eram iguais na tortura cutânea. Os decks picotados e as horas infindáveis que passávamos na água provocavam chagas profundas e dolorosas nos nossos peitos imberbes e infantis. Aqueles primeiros verões, imersos em felicidade e água salgada, foram o meu ato iniciático na religião das ondas. Para alguém, como eu, que não acredita em Deus o mar tornou-se, desde então, na minha única fé.

Um ou dois anos depois uma apendicite aguda levou-me ao bloco operatório do Hospital Santa Maria, o resultado foi a remoção do apêndice e, a minha mãe, pesarosa, ofereceu-me, em jeito de recompensa, uma Morey Boogie Mach 7-7 e um fato O’Neill, um short-john, denominado O’No, que era lindo de morrer, azul-marinho e verde-água, mas perfeitamente inútil nas águas geladas das praias do litoral de Lisboa, não que isso me preocupasse, que a vontade e a excitação de estar na água era tanta que o frio era uma coisa que não se me assistia. Para além do Rodrigo, também fazia parte desse grupo das primeiras surfadas o atual Ministro da Cultura, o Pedro Adão e Silva, os dois bodyboarders arrependidos que cedo, como São Pedro fez a Jesus, renegaram as suas pranchas, o Pedro tinha uma BZ stinger, se não me engano, e abraçaram o Surf, que era uma forma mais exigente, mais endinheirada e mais amiga das miúdas, de apanhar ondas. Eu, provavelmente por ser mais remediado, ou mais preguiçoso, deixei-me ficar pela arte dos el rolos e dos 360…

E depois, metem-se as férias, nos Açores, nos fluorescentes anos 80…

De todas as coisas que o 25 de Abril de 74 deu a Portugal, e foram muitas, e foram importantes, talvez a menos óbvia seja dizer que lhe deu a primeira verdadeira geração de surfistas nacionais. Se bem que, se tivermos em conta aquilo que o Surf representa de liberdade e afirmação pessoal, então, até fará sentido a ligação à Revolução dos Cravos. Até à revolução a evolução do Surf em território continental fez-se muito à imagem do que foi a sua evolução nas ilhas, ou se calhar até em menor escala e a um ritmo mais lento do que nas ilhas, vivendo da influência de viajantes, turistas e outros nómadas, hippies dos anos 60 e 70, na sua maioria americanos e australianos, com o ocasional francês, que corriam a costa portuguesa em busca de um sentido para a vida e no entretanto, enquanto o destino não aparecia, iam apanhando umas ondas. Eram esses viajantes que iam deixando, aqui e ali, umas pranchas, alguns ensinamentos e muitos sonhos nas cabeças dos poucos jovens surfistas portugueses.

Com o 25 de Abril, e acima de tudo com a partida para o Brasil de um número significativo de crianças e jovens, fugidos com as famílias às incógnitas do PREC, e ainda mais com o regresso desses jovens a Portugal cheios do sal, do samba e do espírito de Ipanema, é que nasceu, em pleno, o Surf em Portugal. De igual modo, nas ilhas, é esse contacto com o exterior, com a América, também com o Brasil e principalmente com o continente, Lisboa nomeadamente, que se dá a génese do Surf no arquipélago. São miúdos cujas famílias tinham contacto direto com o exterior que vão trazer não só os materiais, pranchas, fatos e outro tipo de equipamento, mas a cultura e o espírito do Surf para os Açores.

Partindo do início dos anos 80, quando eu comecei a surfar, aqui em São Miguel já havia uma meia dúzia de surfistas. O Carlos Gouveia, mais conhecido como “Perna”, um terceirense naturalizado micaelense, que surfava todos os tipos de mar com a mesma bonomia e que conseguia a coisa espantosa de ter uma namorada, mais tarde sua mulher, que aguentava horas e horas, sentada no carro, a ler, à espera dele enquanto ele surfava Rabo de Peixe clássico. Para quem conheça ou consiga imaginar o largo em frente à igreja de Rabo de Peixe em meados dos anos oitenta percebe que este é em si mesmo um feito digno de registo. O “Perna” tinha um irmão que por brincadeira apelidamos de “Braço”. O Marco Sousa e o Armindo, dois homens da vela que por isso, julgo eu, se aproximaram do Surf. O Marco depois foi também parapentista e sempre que me via, fosse onde fosse, perguntava “o que é que fazes aqui”, como se ficasse sempre espantado de me ver. Foi com o Marco e o Armindo que surfamos, pela primeira vez, nos areais de Santa Bárbara, que na altura era uma praia sem areia fruto da apanha ilegal de areia para a construção civil. Estes eram os mais velhos, por terem sensivelmente mais 10 anos do que nós.

Fazem ainda parte desta primeira geração, se assim lhes podemos chamar, o Henrique Areias. Os irmãos "Violante" Pedro e o Manuel Medeiros. O Paulo “Sagão” Ramos. O Francisco Cabral de Melo. O Paulinho “Picuruta” Santos. O Rigoberto Oliveira. O Miguel Read. Bruno Brum. Guy Costa. O Rui Horta Santos. E, o João Carlos Fraga, no Faial e o João Monjardino, na Terceira.

Depois, havia os da nossa idade. O Zé Albergaria, os irmãos Valdemar, Pedro e “Valdinho” Bettencourt d'Oliveira. O Pedro Neves. Luis Paiva. O Joao Brilhante e o Miguel “Fru”. O Paulo “Gadelha” e os “Romis”. O Zé e o Valdinho eram dois talentos natos, com uma habilidade e uma queda natural para apanhar e deslizar nas ondas e um estilo, no Surf o estilo é tudo, sem precedentes e é preciso ter em conta que nessa altura não havia filmes, nem spots na TV ou vídeos do YouTube. Não havia comparação nem orientação. Aprendíamos observando as revistas, imaginando o antes e o depois dos movimentos fixados no milésimo de segundo da fotografia. No final dos anos 80 os “valdinhos” foram, inclusive, ao Havai e trouxeram consigo de volta pranchas do Eric Arakawa, se não me engano, uma espécie de Fórmula 1 das ondas, naquele tempo.

No Bodyboard formou-se naquela altura um pequeno grupo, quase um gang, de miúdos apaixonados e havidos por apanhar ondas, onde eu me incluía quando aterrava, “o português”, na ilha, nas férias, e do qual faziam parte o André Almeida e Sousa, o Diogo Cymbron e o Bernardo Rodrigues. O Bernardo era, ainda é, aquele tipo de pessoa que é bom em tudo o que faz. Surfava melhor que nós todos, tocava guitarra, tinha boas notas e um sucesso absolutamente invejável com as raparigas, tudo coisas que nos deixava a todos a querer ser como o Bernardo. O André ficou conhecido como o “Selvagem”, o Diogo era o “Punk Rural” e a mim foi-me dada, pelo Zé “Minhoca”, a sensacional alcunha do “Pavarotti”, ou parvaroti como a minha avó Leonor gostava, ironicamente, de dizer. Paralelamente, havia o Pedro Machado, o Alvarinho e os irmãos Moniz, Joao e o seu irmão mais novo o Vasquinho, que era, também, um enorme talento natural, com um estilo de dropknee que, provavelmente, na altura, em Portugal, seria apenas comparável ao do malogrado Ricardo Horta. Uns anos mais tarde, surgiu também, o grupo dos Sousa Lima, que carregavam consigo, em doses iguais, o entusiasmo e os materiais topo de gama.

Esta é a primeira geração de surfistas a sério em São Miguel e foram estes que tornaram a imagem dos corredores de vagas algo habitual nas praias da costa sul, desde a Ribeira Quente aos Mosteiros e desbravaram, com coragem, inconsciência e muita ousadia os principais spots da costa norte - Rabo de Peixe, Areais, Monte Verde e Sta. Iria, que eram, naquele tempo, ao que se cingia o North Shore micaelense.

Este foi um tempo e uma história feita de criatividade, adolescência, bravura, asneiras, pranchas, fatos, carros inesquecíveis, viagens marcantes, escaldões, boiões de Nívea, escapadas às escondidas dos pais e dos avós, copos, festas, finos na Cascata, socos no Cheers, amassos no Pópulos e não, ninguém metia wax no cabelo, os cabelos louros e descolorados eram só dos dias inteiros passados na praia debaixo do sol….

A história da evolução do Surf moderno está intimamente ligada à evolução das tecnologias e da própria globalização. Em “The World in The Curl: An Unconventional History of Surfing”, Peter Westwick e Peter Neushul explicam bem como a invenção e o desenvolvimento de novos materiais compósitos e o acesso e liberalização de meios de deslocação no planeta, com o advento dos aviões a jato, tiveram um papel fundamental na disseminação do Surf pelo globo.

O desenvolvimento das espumas de poliuretano, fruto do esforço científico da segunda guerra, é um elemento fulcral na expansão da indústria do Surf. As espumas de poliuretano, inventadas por Otto Bayer, tiveram um papel fundamental na indústria aeronáutica do tempo da guerra, sendo que muitos dos principais centros de desenvolvimento da força aérea americana ficavam precisamente na Califórnia. Após a guerra, muitos destes engenheiros enveredaram por outros voos associando o seu conhecimento científico e de engenharia ao uso desses mesmos materiais na construção e multiplicação de pranchas.

É esta relativa facilidade na produção de equipamentos para a prática de Surf que vai permitir a sua democratização, embora este nunca tenha sido um desporto barato. Em 1971, Tom Morey, engendrou, na sua garagem no Havai, o primeiro protótipo da prancha de bodyboard a que chamou de Boogie Board, em homenagem ao Boogie Woogie, um estilo de blues do qual Tom era particularmente fã. Daí nasceu a sua marca Morey Boogie que, em 1977, vendeu à gigante fabricante de brinquedos Mattel, tornando-se o bodyboard tão ou mais popular que a Barbie e o Ken.

O acesso a materiais é fundamental para o desenvolvimento do Surf. Sem pranchas e fatos não há Surf ou Bodyboard, só bodysurf. As surf shops, nos anos oitenta, eram inexistentes nos Açores e raras em Portugal. Em Ponta Delgada a MAP uma loja de material náutico e de pesca, do Honorato, era onde, lá de quando em vez, se conseguia comprar um fato ou uns pés de pato, depois a Jamé passou a ter também algum material técnico para além do habitual surf wear, mas a maioria do material vinha de fora, principalmente dos EUA, ou do continente, dada a facilidade de muitos jovens açorianos contactarem familiares emigrados na América e pedir para enviarem, fatos e pranchas. Em Lisboa, o cenário não era muito melhor com meia dúzia de lojas espalhadas pela Costa da Caparica e no eixo linha Cascais. Esta escassez de material fazia com que as pranchas durassem anos e fossem sendo remendadas e reparadas consoante o uso e a necessidade. O mesmo com os fatos, feitos daquilo que à luz da tecnologia moderna era não polietileno fino e maleável, como o que temos hoje, mas um quase couro, duro e ressequido. Uma técnica comum para ajudar a vestir os fatos era o uso de sacos de plástico, ou meias, para melhor fazer deslizar os membros do corpo para dentro daquelas autênticas armaduras de borracha. E pazadas de creme Nívea, no pescoço e outras zonas da anatomia onde o neopreno ressequido tinha tendência a queimar a pele, como alcatrão seco, depois de horas e horas de fato vestido.

No campo das pranchas de bodyboard para além da 7-7 e da BZ Stinger, dois clássicos absolutos da altura, havia outras pranchas que despertavam a cobiça da miudagem. Turbo e Wave Rebel eram duas outras marcas que dominavam o mercado e também a Génesis, do visionário brasileiro Marcus Kal Kung. Por cá o Bernardo surfava com uma Mach 20, o modelo mais futurista da Morey, com as suas quilhas retrateis e o deck em vinil, com gráficos ao melhor estilo cyber disco dos anos 80, uma espécie de hit do Giorgio Moroder em formato prancha de bodyboard. Olhando para a prancha hoje parece um tanque de guerra, mas como ela andava e como ele a fazia andar…

O meu único encosto relativo com o mundo da “prozada”, patrocínios, marcas e campeonatos foi quando o meu tio João Augusto, ligado ao negócio da importação de alimentos para pássaros, recebeu uma proposta para representar em Portugal uma marca sul africana de waveskis, a Wave Warrior, que por sinal, na altura, estava a lançar uma gama de pranchas de bodyboard com slicks em fibra. Uma novidade absoluta no mercado, mas um flop tanto técnico como comercial. Sendo o único “surfista” da família, fui chamado para ser consultor e atleta da marca, uma aventura que foi tão rápida e curta, como fracassada.

Que eu tenha conhecimento só houve dois shapers, dignos desse nome, na ilha de São Miguel, o João Brilhante, uma das mais singulares e marcantes personagens do Surf açoriano e o Dário Correia. Claro que havia alguns curiosos e inspirados e corajosos aspirantes a shapers como os irmãos Mário e Jorge e as suas Crystal Voyagers, que, ao que sei, se auto exilaram na paradisíaca Caldeira da Fajã do Santo Cristo, e consta que o Francisco Cabral de Melo também se terá aventurado no fabrico de pranchas. Mas, nada sequer comparável aos sucessos comerciais de marcas como a Semente ou a Pólen, os dois grandes gigantes do Surf nacional nos anos 80 e 90.

Ser surfista, naquele tempo, era tratar bem do material, saber estimar e cuidar e ser vintage antes do tempo…

Rastejantes, sapos, pensos higiénicos, lombas, boogies, moreyboogies, etc., etc., eram muitos os epítetos que marcavam a “má” relação entre surfistas e bodyboarders ao longo dos loucos anos 80 e 90. O estigma era tão grande que, na verdade, a grande maioria da malta da minha geração, que começou a apanhar ondas de Bodyboard, mais tarde ou mais cedo, a certa altura da vida, passaram a fazer Surf e alguns deles hoje fazem paddle que é a versão gondoleira dos desportos de ondas, algo que só comprova que nem todas as evoluções são no sentido positivo, mas adiante.

O ponto central aqui é que o Bodyboard era tanto do ponto de vista financeiro como desportivo mais acessível do que o Surf. Por metade do preço era possível comprar uma prancha de Bodyboard e, com metade da chatice, era possível começar a curtir, verdadeiramente desfrutar, umas ondas. Como costumávamos dizer o Bodyboard era mais fácil de aprender, mas mais difícil de evoluir, enquanto no Surf a curva evolutiva era ao contrário, era mais difícil de pôr em pé, mas ir em frente, todos iam…

Ao contrário do que acontecia no continente onde a clivagem entre surfistas e “rastejantes” era mais profunda, com atritos e inimizades constantes, em muito potenciadas pelo crowd, que era já muito em praias como as da Costa ou da Linha, nos Açores, o número reduzido de gente no mar e o facto de sermos todos basicamente primos uns dos outros levava a uma mais saudável convivência entre os subgrupos de surfistas. Aliás, a única separação, a haver alguma, era entre betos e alternativos e os mistos, mais conhecidos como betos-alternativos. Embora, uma amiga minha do liceu D Pedro V tivesse a teoria que todos os surfistas eram betos e gostavam de INXS… mas já estou a fugir do tema.

Como já referi, o primeiro grupo de bodyboarders, a sério, de São Miguel era composto pelo Bernardo, o Diogo, o André, eu, quando vinha nas férias, e a inolvidável Guilhermina. A Guilhermina era o Volvo GL do pai do Bernardo que nos levava pelas estradas, ruas e canadas da ilha, as vezes em contramão, em busca de ondas, cervejas, miúdas e juventude. Os carros, aliás, são uma parte importante desta história. Para além da GL do Bernardo, havia a Renault 4L dos Albergarias, um dos, se não o mais marcante surf vehicle da ilha, durante aqueles anos, e que, para além de literalmente voar, tinha uma aparelhagem que valia mais do que o carro todo e com um bom gosto musical de fazer inveja a qualquer rádio alternativa britânica. Havia, também, um Opel Corsa, dos pais do Diogo, que eu espatifei uma vez à saída de um bar porque me apetecia pão quente às tantas da noite, mas também já estou a fugir do tema…

Antes dos carros, havia os sapatos e as boleias. Antes de alguém ter a carta, fazíamos todos cerca de um a quatro anos de diferença de idades, mas não se notava, andávamos a pé ou à boleia. Da Fajã de Baixo até ao Pópulo ainda eram um par de quilómetros que de manhã, à ida, ainda se faziam facilmente, ao fim do dia era telefonar a pedir boleia aos pais, mães e avós. Depois havia as boleias, às escondidas, para a Ribeira Grande, em carrinhas de caixa aberta de lavradores ou camiões das obras na estrada da Ribeira Grande antiga.

Nesta altura o Bernardo e o Vasquinho eram os melhores talentos na água. Logo depois surgiu uma nova geração, uns cinco anos mais novos do que nós e a quem passamos a ser nós a dar boleia, onde se destacavam o Serginho, o Ricardo “Caveira”, o Miguili, o Ivo Batista, que era tão bom na água como na grande área, e um miúdo franzino e sempre sorridente chamado Ricardo Moura. Estes putos entraram na água e no mundo do bodyboard açoriano lançando aéreos e el rolos e dando-nos calças a nós todos. E, o Moura, não fora o azar de um tímpano, poderia ter muito bem sido um dos melhores bodyboarders nacionais, quem ficou a ganhar com isso foram os rallies. O único defeito dos miúdos era gostarem de Offspring…

Logo a seguir vem uma outra leva, cheia de talento e, gosto eu de pensar, com a enorme vantagem de terem malta na água para observar, coisa que nós não tínhamos tido, a nossa foi uma aprendizagem de instinto, cassetes VHS mil vezes rebobinadas, com uns clips do Eurosport que misturavam windsurf, com Bodyboard, com Surf, e as revistas emprestadas, recortadas e mil vezes folheadas, fujo outra vez… esta segunda leva tinha o Bruno “animal”, o Corvelo, o Rijo e o Pedrim Correia, que hoje é patrocinado pela Pride, que acabou de lançar uma prancha, que só por ter uma foto do “Pico da Ganza” no slick devia, também, ter o nome dele estampado no deck.

Apesar de tudo, nos Açores, Surf e Bodyboard sempre conviveram e sempre se incentivaram um ao outro, a união faz a força e ainda bem que assim foi…

Costumo dizer que só é local quem nunca viajou. Viajar é uma parte fundamental da vivência do Surf. A ideia e a prática da viagem está, até, na génese do Surf moderno, com essa autêntica viagem de peregrinação de Duke Kahanamoku, em redor do mundo, ofertando a dádiva da arte de correr ondas aos pagãos e aos não iniciados.

Procurar ondas, na praia ao lado, naquela baía do outro lado da falésia, percorrer a costa, ou sonhar com costas distantes, em outros continentes e ilhas paradisíacas, é, também, ser surfista. Desde o filme “Endless Summer” do John Severson, estreado em 1966, que essa mística do “search”, da procura, está impressa no mais íntimo de cada surfista, de cada um de nós, aqueles que se deixaram tomar pela ânsia de conquistar a magia das ondas.

Também aqui, nestas ilhas atlânticas, a História do Surf é feita de viagens, desde os baleeiros, aos velejadores, passando por militares estacionados ou peregrinos desterrados, ou aqueles a quem eu chamo os expatriados. Até as viagens entre as ilhas ou dentro das ilhas experimentando e mapeando novos spots, novas ondas e emoções, são também uma forma de se ser verdadeiramente surfista.

O conceito dos expatriados é fundamental para compreender a evolução do Surf nos Açores. Estou a falar dos continentais que nos anos 80 e 90, por razões relacionadas com o Surf, ou não, escolhem os Açores para viver, trazendo consigo desde logo as pranchas e o hábito não sazonal de surfar. Assim de repente recordo dois nomes: o Pires dos Santos e o José Maria Pyrrait.

O João Luis Pires dos Santos era um verdadeiro profeta das ondas, alguém que dedicou a sua vida, de uma forma radical e quase monástica, a uma certa ideia e conceção das ondas e do Surf, não como um desporto, ou uma atividade de lazer, mas como uma religião. Uma quase maçonaria das vagas, com rituais de iniciação, cerimoniais secretos e conhecimentos ocultos. A paixão que tinha pelo mar e a sua visão do Surf deixou não só uma marca profunda como um legado, principalmente na ilha Terceira, mas não só, que vai para além da célebre COCOVAMA, a Confraria dos Corredores de Vagas de Mar, e que perdurará no tempo. Embora num plano muito diferente do meu, tivemos até algumas polémicas, o João Luís foi alguém que me marcou pessoalmente, pela sua cultura e desenvoltura, e que merecia uma mais justa homenagem e celebração por tudo aquilo que fez pelo Surf nos Açores.

Mas, não deixa de ser irónico como muitas vezes são estes mesmos expatriados os mais acérrimos defensores do localismo como se quisessem defender a sua pátria adotiva dos erros cometidos nas suas pátrias de origem…

O Pyrrait era outro estilo, grande, sonoro, aberto e aventureiro. O Pyrrait tornou-se açoriano pela razão mais sincera de todas, o amor. Amor as ondas, à liberdade de as viver, e amor a uma açoriana. Anos mais tarde o Pyrrait recebia-nos, a mim e ao André, em Ribeira D’Ilhas, sempre com a sua alegria e cervejas Budweiser estupidamente geladas. O Pyrrait foi também, se não estou em erro, o fotógrafo da primeira e famosa surf trip da SurfPortugal ao Açores, que se tornou lendária pela forma como alicerçou, ainda mais, na mente dos açorianos, essa ideia de que os surfistas eram uma espécie James Deans das ondas, jovens rebeldes sem causa e salvação…

A lista dos expatriados é longa e diversa, uns vieram e partiram, outros ficaram, alguns regressam, de tempos a tempos. O Hugo Valente é um de muitos professores que começaram carreira e assentaram nos Açores. A Joana Cadete e o João Silvestre. O Duarte Filipe, pai do Jácome Correia. O Marco Costa, pai da Azores Atlantic Surfers. O Zé Seabra, que, para além de ter dado início à primeira verdadeira escola de Surf de São Miguel, fora de outros projetos mais de âmbito social, como o do Luís Melo no Clube K e Clube Naval de Rabo de Peixe, ou do João Brilhante com os miúdos de São Roque, o Seabra, dizia eu, foi um desbravador de picos e alguém que nos fez a todos olhar com outros olhos para o potencial de lugares que eram, até a sua coragem e experiência o mostrar possível, vistos como insurfáveis. Uma das minhas primeiras incursões na Fajã do Araújo, algures no início dos anos 2000, foi com o Zé e o Valente, numa surfada da qual nunca na minha vida me esquecerei.

São muitos, e não é possível, nesta lista de memórias pessoais falar de todos. Hoje, talvez, dois dos mais relevantes, por razões opostas, obviamente, mas igualmente importantes, pela natureza do seu trabalho e da sua marca no panorama do Surf açoriano, são o Rodrigo Heredia, campeão europeu, profissional do Surf e das competições, que alavancou o desenvolvimento do Surf como produto turístico. E, o João Rei, artista, designer e profissional do amor pela pureza e pela alma do Surf, que importa todos os dias a candura e o espírito sulista de Sagres para estas nossas ilhas de bruma.

Eu próprio, sou de certa maneira um expatriado. Açoriano em Lisboa e Português nos Açores. Nascido de famílias micaelenses, que vinha cá nas férias, e que acertei residência permanente na ilha em 1998.

Estes são só alguns exemplos da importância destes expatriados e das viagens na construção de um universo de Surf nas ilhas, tal como as muitas viagens pontuais de surfistas estrangeiros e de revistas, como a viagem dos irmãos Greg e Rusty Long às Flores, na perseguição de um swell gigante no atlântico. E tantas outras, de revistas como a Surfing, a Surf Session e, claro, as muitas que a SurfPortugal fez ao longo dos anos.

Ainda no âmbito das viagens duas em particular. Em 1990 ou 91 um grupo gigantesco de micaelenses embarcou na fragata em Ponta Delgada rumo à Maré de Agosto. Entre eles iam um grupo substancial de surfistas e bodyboarders que, por especial alinhamento dos astros, ou sorte se quiserem, apanhou algumas das melhores e maiores inchas das últimas décadas. Instalados em tendas no forte da Praia Formosa passamos uma semana de surf, música e enamoramento só possível quando se tem 15 ou 16 anos. O swell estava tão bom que até as esquerdas, do lado este da praia, funcionaram e alguns de nós optaram por essa onda para fugir ao crowd e lançar o olho atrevido às miúdas que iam para aí fazer topless. Surfamos até não conseguir mais, comemos cachorros-quentes e latas de atum, bebemos cervejas com os Repórter Estrábico, engatamos miúdas ao som dos Trovante, e fugimos a correr com rolos de papel higiénico na mão dos donos das casas que tinham o azar de ter os portões a dar para a ribeira onde por alguma razão alguém achou que era o melhor substituto de uma casa de banho. Um grupo ficou numa tenda gigante do Diogo Cymbrn que se tornou uma espécie de quartel-general e centro de convívio todas as noites. E ficaram célebres os gemidos do Diogo, a sofrer de dores nos pés das feridas dos pés de pato, enquanto dormia com o Bernardo ao lado. Eu, o André e o João Henrique ficamos numa outra tenda, mínima, que não dava para os três, mas não fazia mal porque o João Henrique praticamente nunca dormiu lá que tinha sempre outra companhia. O João não surfava e acabou, infelizmente, como tantos outros, por se perder nesse universo infernal do consumo de drogas. Nessa viagem iam também um grupo de surfistas do continente, com o João Antas, o Miguel Fortes e, julgo eu, se a memória não me atraiçoa, os irmãos Villas-Boas. Numa onda o João Antas abriu a cabeça nas pedras, ou com a prancha, e foi ao centro de saúde suturar o escalpe para uma horas depois estar de novo na água.

Pela mesma altura, eu o Bernardo e o Diogo fomos, na pior surf trip de sempre, de expedição à ilha Terceira na esperança mal prevista de apanhar ondas em Santa Catarina não sabendo que era Verão e o Surf, como todos sabemos, é um desporto de Inverno. Dessa viagem ficam as memórias da Twins, das noites dormidas no quartel dos bombeiros e uma senhora no parque de campismo de Porto Martins ao ver-me limpar o doce de amora cujo frasco se tinha partido dentro da mochila com os dedos e a língua gritar em sobressalto e sotaque fundo da ilha: “wuei pá nã mames nos dedos que te podes cortjá…

Em 1998, quando acabei o curso, numa espécie de contrato de compra e venda com os meus pais, fui 6 meses de pranchas e mochilas as costas para os EUA e o México, na procura de viver em pleno esse sonho do Endless Summer e foi onde acabei por decidir vir viver para os Açores e onde, ainda hoje, de certa maneira, procuro ainda viver esse sonho…

O que penso que fica deste caminho é a noção de que, ao contrário de locais como a Califórnia, a Austrália, de certa forma o Brasil e o Norte de França, que desde os anos 40 viam o Surf a crescer exponencialmente, nos Açores, e até mesmo em Portugal continental, a primeira grande geração de surfistas surge no final dos anos 70, início de 80. E isso leva-me a um outro conceito importante, que é o de retorno. É no final dos anos 90, no virar do milénio, quando esta geração (a geração conhecida como do Portugal Radical) tinha acabado os cursos e regressa aos Açores, para continuar a sua vida, trabalhar, constituir família, essas coisas sérias e adultas, que se dá o primeiro grande boom, a verdadeira ignição, daquilo a que podemos chamar uma cultura de Surf na região. E, é quando podemos, com segurança, afirmar que o Surf se assume como um motor de desenvolvimento económico e social no seio da sociedade açoriana.

Ainda esta manhã, o António Benjamim, um dos sócios da surf shop Espaço Azul, me dizia que a loja fará no próximo ano 20 anos. Esta longevidade, ou como se diz em História Económica, esta sustentabilidade do mercado, só é possível porque existe desde então para cá uma comunidade, um grupo coeso e sustentado, de clientes que permite a manutenção do negócio. Não que alguma vez eles irão ficar ricos à conta disso, mas, e isto é importante, poderão certamente deixar o negócio à próxima geração.

A melhor figura para ilustrar aquilo que foram os últimos vinte e tal anos do Surf nos Açores é, inquestionavelmente, o Luis Melo. O Luís representa esse crescimento, essa evolução segura e constante que o Surf tem tido nas ilhas. Eu e o Luís coincidimos temporalmente no regresso aos Açores, ali no final dos anos 90. Nesse tempo ainda éramos meia dúzia os que surfavam regularmente e, no Inverno, não eram poucas as vezes que chegávamos aos Areais, Monte Verde ou Rabo de Peixe, dois metrões clássico off-shore e ficávamos no carro sentados à espera meia hora, uma hora, a ver se chegava mais alguém para não surfarmos sozinhos. Uma noite, no Forno, fui ter com o Luís e trocamos números de telemóvel, sim já havia telemóveis, e combinamos avisar sempre que fôssemos ao mar, foi assim, isso e o facto de eu ter ficado sem carta de condução durante um ano por o medidor de alcoolemia estar avariado…, que nos tornamos companheiros de ondas e de projetos ligados às ondas durante mais de uma década. Para além de ser uma excelente pessoa, com uma retidão e uma honestidade absolutas, que muitos confundem com altivez ou antipatia, o Luís tem uma extraordinária qualidade, a disciplina. É essa forma de estar na vida que faz do Luís não só um ótimo parceiro na água, algumas das melhores e maiores ondas que já surfei foram com ele, como um ótimo organizador e colaborador em tantos projetos como provas, campeonatos, associações e um sem número de programas. O Luís é não só o homem dos mil desportos, como o homem das múltiplas atividades. Para além de ter promovido duas escolinhas de Surf, vários campeonatos amadores e o primeiro programa de TV regional dedicado aos desportos radicais, o Alta Pressão, com a Joana Cadete e realizado pelo Bruno Correia e o Alexandre Jesus, o Luís, fruto também de ser um professor de educação física considerado por todos, trouxe para o Surf uma imagem de respeitabilidade que até então pura e simplesmente não existia.

Nos anos 2000 o associativismo ligado ao Surf era inexistente ou, na melhor das hipóteses, comatoso, nos Açores. Quando em 2008 o Rodrigo Heredia imagina trazer os campeonatos nacionais e mundiais para São Miguel, a única associação local era a recentemente ressuscitada ASSM, Associação de Surf de São Miguel, que era presidida pelo João Brilhante. Nesse momento gerou-se uma discussão, que passados todos estes anos pode parecer obtusa e disparatada, entre duas fações, ou duas ideias antagónicas do caminho que o Surf devia seguir em São Miguel e nos Açores. Por um lado, uma conceção mais conservadora e protecionista, se quisermos, que entendia que as ondas açorianas deviam ser resguardadas da massificação mediática e turística, restringindo os eventos e os campeonatos e privilegiando os locais, representada pelo João Brilhante. Do outro lado, uma ideia de que era preciso apanhar rapidamente o comboio do progresso e orientá-lo no sentido dos melhores interesses dos locais, mas não só, se não a coisa ia rebentar, como rebentou, e a malta ia ficar a ver passar o comboio, basicamente vinham os de fora fazer a festa e lançar os foguetes, para os políticos aplaudirem, e nós ficávamos a apanhar as canas. Eu, o Luís, o Vasco Medeiros e um grupo de outros malucos estávamos desse lado da barricada e foi assim que nasceu a USBA, União de Surfista e Bodyboarders dos Açores. A única agremiação de desportos de ondas que juntou surfistas e bodyboarders e não teve medo de o colocar no nome até hoje em todo o país e, creio eu, no mundo. A USBA consumiu 8 anos das nossas vidas e apesar de todos os erros e disparates, pessoalmente perdi muito dinheiro com a USBA, fomos responsáveis, junto com o Rodrigo, é certo, que era ele o detentor da licença da ASP para realizar os campeonatos e os governos só queriam era patrocinar campeonatos mundiais, mas fomos responsáveis por uma série de iniciativas que, estou certo, permitiram não só solidificar as bases da nossa comunidade de amantes dos desportos de ondas, como projetar os Açores como destino de Surf no mundo todo, mas mais importante de tudo, julgo eu, sedimentou na sociedade açoriana uma imagem do Surf e dos surfistas, nos antípodas dos hippies junkies de antigamente, mas de pessoas normais que apenas sofriam com uma paixão maluca por essa coisa louca de apanhar ondas.

Para mim, pessoalmente, ter trazido aos Açores os campeonatos nacionais e mundiais de Surf e Bodyboard, o Mundial da IBA em Santa Catarina, feito em parceria com a AST, Associação de Surf da Terceira, com o Carlos Leal à frente, uma das melhores pessoas com que tive o privilégio de me cruzar na vida, e o Paulinho Costa, uma lenda do Bodyboard nacional, ter podido trazer o Mike Stewart aos Açores e apertar a mão ao Tom Curren, entre tantas outras iniciativas maiores e mais pequenas, cursos de juízes, palestras, conferências, é algo que trarei para sempre comigo, no meu íntimo, com a certeza que é fruto, também, desse trabalho que muito do que existe hoje continua, e continuará no futuro, para outras gerações, e que os desportos de ondas e os locais onde os mesmos são praticados nunca mais serão tratados como, por exemplo, os Areais foram no passado.

E, é essa caminhada, desde ser estaleiro de construção civil para ser hoje cartaz de candidatura a Reserva Mundial de Surf, que os Areais representam, que, para mim, marca uma história absolutamente singular de como no espaço de uma geração, com uma conjugação de vontades, se consegue mudar um local, uma comunidade e apontar para um futuro melhor para todos nós…

Há pouco mais de 20 anos atrás, a praia dos Areais de Sta. Bárbara era, literalmente, um estaleiro de construção civil. Abandonada, negligenciada, deixada pelas autoridades públicas à mercê da rapina e da selvajaria de empreiteiros, rendeiros e proprietários, toda aquela linha de costa, desde Santana à Ribeira Seca, ou mesmo até ao Palheiro e às Piscinas da Ribeira Grande, abarcando o Monte Verde, era uma zona de ninguém. Ou, de quase ninguém.

Um dado histórico e sociológico que temos que compreender é que a sociedade e a cultura açoriana foram sempre pouco atreitas ao mar, receosa e temente do oceano. A construção da história açoriana fez-se ao longo dos seus quinhentos anos de ligação e de exploração da terra. Até as igrejas, na sua maioria, estão viradas de costas para o mar. O mar era de onde vinham os piratas, as tempestades e outro tipo de ameaças. Era da terra que vinha a riqueza e o mar era mais porta de saída do que de entrada dessas riquezas. Mesmo as pequenas comunidades piscatórias eram frágeis e ostracizadas, vivendo numa economia mais de subsistência do que de exportação. Os homens da baleia estavam na verdade em terra, trabalhando as vinhas e os campos quando ao longe se avistavam os bufos das baleias e se lançavam roqueiras e correrias até aos botes. E, a descoberta do mar e da orla marítima como lugar de lazer é uma conquista contemporânea, é um fenómeno recente e já nosso, dos nossos pais e não muito mais longe do que isso.

Este, para mim, é que é um dos aspetos fundamentais desta história. Este verdadeiro conto de Cinderella que leva a que um lugar sujo e abandonado seja hoje uma praia limpa, a maior parte das vezes, vigiada, protegida, com restaurantes, balneários, estacionamento, hotéis, resorts, vídeos no YouTube, cartaz de promoção turística, cenário publicitário, ex-libris de uma cidade e com surfistas na água o ano inteiro.

Apesar dos Açores terem tido contacto com o Surf desde meados do século XIX e serem certamente dos primeiros lugares do país a contar com esporádicos surfistas desde o dealbar do século XX, é só após a revolução que a orla marítima vai ganhar relevância no contexto da sociedade portuguesa e açoriana e é só com a geração do Portugal Radical que os desportos de ondas vão, lenta mas afirmativamente, ganhar peso e lastro como interlocutores respeitados no xadrez social e político.

Não estou com isto a dizer que foram os surfistas que salvaram os Areais, não foram, tanto não que o mesmo, por exemplo, não foi possível fazer com Rabo de Peixe, foram as regras de Bruxelas e as oscilações económicas que moldaram a economia no sentido de ser cada vez menos rentável extrair areia daquele local. Mas, foram certamente, também, os surfistas que dignificaram aquele local e contribuíram para que o mesmo fosse visto pelos políticos de outra maneira. E nós estávamos lá e lembro-me bem das primeiras conversas com o Ricardo Silva, na altura Presidente da Câmara Municipal, e com o Fernando Monteiro, arquiteto responsável pelo projeto, sobre a construção de um estacionamento e de um apoio de praia nos Areais e isso passou-se há pouco mais de 20 anos.

Costuma-se dizer que a única voz que os políticos realmente ouvem, e não é por vontade, é por obrigação, é a das urnas. Quando um político olha para um grupo de pessoas não vê indivíduos, nem cidadãos, vê votos. E isso, neste caso concreto, nesta história, é o elemento mais importante. A coisa mais importante na História do Surf nos Açores não foram as ondas, que as há e muitas e de qualidade, felizmente, não foram as pranchas, os fatos e os materiais mais ou menos baratos e acessíveis, não foram os dirigentes e as associações, ou os eventos com mais ou menos projeção mediática. A coisa mais importante foram os surfistas, fomos nós. Médicos, advogados, engenheiros, professores, empresários, carpinteiros, músicos, artistas, surfistas a tempo inteiro, fomos nós, foi haver gente na água o ano todo tornando natural e apetecível aos olhos dos outros, dos que nos olham de terra, a existência daqueles locais, daqueles pedaços de costa esquecidos e negligenciados durante tantos anos, décadas, e levando a um lento, mas progressivo e já não reversível virar das mentalidades açorianas de frente para o mar.

O André “Galinha”, o Sérgio Aparício, o “Xolim”, o Serginho e todos os miúdos e graúdos e turistas que nestes anos tem experimentado o batismo das ondas. O Pedro e o Almeida. Todos os putos que entraram num campeonato, o Jácome e o Nicolau, o Xico Benjamim e o Peter Helión, o Pedrim e o Rijo, o Miguel Reis, o Luís, o Afri, o Hélder, o “Tricky”. As miúdas, todas as raparigas e mulheres que se redescobriram no mar e na liberdade das ondas, uma espécie de nova emancipação no oceano. O João e o Gui e mais todos os pais e filhos e netos que vão juntos ao mar, seja de semana ou no fim-de-semana, seja na Maia ou no Baixio da Vila, nos Areais ou na Fajã do Araújo, seja em merrecas, espumas, meio-metrinho ou dois metrões, do flat ao gigante e os vagalhões do Marco Medeiros em Santana ou na Viola. A História do Surf e do Bodyboard nos Açores é feita dos seus surfistas e bodyboarders, tantos e ao mesmo tempo tão poucos, que ao longo destas últimas duas décadas conquistaram para si e deram a ganhar aos açorianos essa dádiva pura da natureza que são esses pedaços de magia em que a terra se enamora do mar em ondas…

Para quem, como eu, assistiu a essa viagem e percorreu esse caminho não deixa de ser fabuloso perceber aonde chegámos. Ainda há muito para andar, tanto para fazer. A luta pela preservação do oceano e pela defesa da orla marítima não se faz com fotos bonitas e estátuas de bronze ou slogans e prémios de belo efeito, mas de medidas concretas, obras, mesmo aquelas que ficam debaixo do chão e não dão votos, organização, planeamento e priorização de investimentos. Mas, quantos mais surfistas houver e mais empenhados eles forem, de fim-de-semana ou do ano todo, pros ou paparucos, de verão ou de inverno, maior e melhor será o futuro do Surf nos Açores. Aloha…

Vila Franca do Campo, Maio de 2022


terça-feira, 25 de maio de 2021

Os testes PCR e ratinhos de laboratório

 


Abordemos, então, a questão dos testes. Mas, antes, duas notas prévias. Em primeiro lugar, o necessário desmentido do rótulo de negacionista. Não que me chocasse sê-lo, mas porque não nego a existência do vírus, nem entro em cabalas e teorias de conspiração sobre a sua origem e os lucros que gerou e em proveito de quem. Embora, quanto mais avançamos neste pesadelo pandémico, mais me sinta tentado a fazê-lo. O que nego, sim, é esta pseudociência que se impôs sobre as nossas vidas e que pretende comandar o mundo com a régua e o esquadro dos esquemas de Excel e Power Point, esquecendo que o mundo é feito de pessoas e a vida composta por emoções. E, acima de tudo, esquecendo que a ciência só o é se for questionada e questionável. Para os doutos gurus da Saúde Pública a sociedade é uma abstração estatística, convertida em números e equações, sem a condição essencial do sentimento. Para os matemáticos da epidemiologia a sua verdade é 100% infalível e as nossas vidas não passam de linhas num gráfico e casas decimais num eterno e incomensurável RT. Depois, não me arrogo o estatuto de especialista, nem alardeio uma verdade única e apenas faço uso do meu direito a olhar as coisas e a pensar o mundo, colocando perguntas e questionando a narrativa oficial do medo, do autoritarismo e da Verdade Suprema Pandémica com que, Governos, Comunicação Social e os ditos “especialistas”, nos querem dominar.

De acordo com o CDC americano, “uma epidemia refere-se a um aumento, por vezes súbito, do número de casos de uma doença acima do que é normalmente espectável numa população numa determinada zona”. Em paralelo a esta definição é importante ter em conta aquilo a que o CDC chama, também, de “linha de base” ou nível endémico de doença, que é o nível expectável de doença, num determinado grupo, sem qualquer tipo de intervenção externa, uma vez que os vírus que causam doenças respiratórias são hoje relativamente comuns.

Rudolf Virchow, um eminente médico alemão do séc. XIX, postulou que uma epidemia é “um fenómeno social que tem alguns aspetos médicos.” Esta perspetiva, dir-se-ia, quase sociológica do fenómeno de alastramento de uma doença é fundamental, não só para a sua compreensão, mas, essencialmente, para a sua defesa. O caminho mais rápido para destruir um vírus é através do seu hospedeiro. Posto de uma forma muito simples a abordagem epidemiológica à doença é o encarceramento dos hospedeiros limitando ou impedindo, assim, a sua propagação. O único, perdoem-me o eufemismo, problema desta abordagem é que os hospedeiros somos todos nós. Chegamos, então, à questão dos testes. Perante a óbvia impossibilidade de encarcerar toda a população, e por mais que eles o desejassem, os epidemiologistas recorrem à testagem para, entre outros aspetos, como por exemplo a avaliação da já infame taxa de incidência, isolar potenciais portadores do vírus, reduzindo assim o risco da sua disseminação. Os hoje famosos RT-PCR são testes desenhados para detetar material genético de um organismo específico, no caso o vírus SARS-CoV-2. Só que, e mais uma vez recorro ao eufemismo, há dois problemas fundamentais com os RT-PCR, a sua sensibilidade, ou seja, a capacidade de detetar, e especificidade, a capacidade de detetar aquilo que queremos que detete. Ora, são os próprios laboratórios que admitem que a sensibilidade de um PCR é de 83% e a especificidade rondará os 97%. Num estudo anterior ao Covid-19, feito pelo Governo Inglês, a taxa de falsos positivos do RT-PCR foi estimada em 2,3% com um desvio padrão de 0,8% a 4%.

E aqui chegamos ao caso açoriano. A estratégia, de combate à pandemia, do Sr. Tato Clélio assenta, basicamente, na simples e simplista contabilidade dos testes positivos para estabelecer diferentes níveis de risco, não importando para nada, e isto não é um pormenor despiciendo num arquipélago com 9 universos de amostragem distintos, nem o número de testes realizado, nem o número de internamentos, outra questão fundamental. O número de testes realizado por ilha é um aspeto fundamental, desde logo pela probabilidade e capacidade de deteção de casos positivos, e depois por causa do chamado “limite de prevalência”. Com uma prevalência baixa a probabilidade de falsos positivos sobe exponencialmente. É exatamente por isto, que vários organismos médicos internacionais aconselham a verificação dos testes por uma contra-análise como, também, e principalmente, a avaliação clínica, ou diagnóstico, dos positivos de forma a determinar, com exatidão, se são, de facto, positivos para infeção por SARS-CoV-2, em lugar de serem, como muitas vezes são, assintomáticos ou meros portadores de carga viral residual. E é aqui, que a questão dos internamentos se torna fundamental, para determinar a existência, ou não, de uma epidemia na região.

Desde o final janeiro que a percentagem de testes positivos na região tem sido sistematicamente abaixo dos 4%, mesmo abaixo de 3%, tirando um dia na vaga de abril. Ao mesmo tempo, o número de internamentos não ultrapassa os 5 a 10, tendo tido um máximo de 20 em abril e, mesmo assim, longe do pico de 28 em janeiro. Com base nesta informação há várias questões que se colocam: Não deveria a DRS informar, com transparência e clareza, o número de testes realizados por ilha e o contexto epidemiológico (sintomatologia, contato próximo, etc.) desses testes? Tendo em conta o número extremamente reduzido de positivos (nos últimos 10 dias foram feitos uma média de 1800 testes por dia, que resultaram numa média de 22, 1,2%, casos positivos) não deveriam os mesmos ser sujeitos a contra-análise sistemática? Sabendo-se que os casos positivos, dando de barato que são de facto positivos, são maioritariamente em faixas etárias mais jovens e de menor risco, não deveria este facto ser tido em linha de conta na ponderação da situação? Sabendo-se que os internamentos se mantêm totalmente estabilizados desde o início da pandemia não deveria este critério ser utilizado para definição dos níveis de risco? Ao que acresce os cataclísmicos e, esses sim, mensuráveis em euros de dívidas, moratórias e falências e insolvências, efeitos dos confinamentos na economia. E, também, a condenação trágica de toda uma geração aos efeitos devastadores nas suas aprendizagens e sociabilização. Não deveria, isto sim, ser a base da estratégia de luta contra os efeitos da pandemia?

É que, talvez assim, o Sr. Tato Clélio, e os restantes responsáveis políticos, tivessem uma epifania, e descobrissem que, afinal, não existe nenhuma epidemia na região, havendo sim um vírus, talvez já quase endémico, abaixo da "linha de base", que provoca uma doença grave, mas que, infeliz ou felizmente, tem grupos de risco bem definidos e delimitados por idade e comorbilidade, e nos poupassem, a todos nós, aos efeitos arrasadores desta loucura pandémica. Bem sei que isso significaria a perda de emprego do Sr. Tato, e de holofote mediático do Sr. Clélio. Mas, para nós todos, era um descanso merecido das agruras destes tempos, repletos de cega insensibilidade e vil autoritarismo, e um retorno aos ritmos plácidos de uma certa e ansiada normalidade, já para não falar, do remeter para um qualquer rodapé da história os desmandos do Sr. Tato Clélio que, com a sua vaidade televisiva, insiste em tratar a ilha de São Miguel como uma imensa experiência de teoria epidemiológica em que cada um de nós é um misero ratinho de laboratório que, em nome da vida, deixámos de viver…


sexta-feira, 21 de maio de 2021

Da Saúde Pública e do propósito de salvar vidas

 


Vivemos, quase há um ano e meio, mergulhados nesta tempestade pandémica e temos as nossas vidas subjugadas à autoridade dos critérios epidemiológicos dos especialistas em Saúde Pública. Passado todo este tempo, continuamos, em grande medida, a abordar o vírus SARS-CoV-2 como se fosse um vírus desconhecido e, com isso, estamos lentamente a destruir os alicerces mais profundos da nossa vida em comunidade, agudizando o fosso entre classes sociais e criando clivagens e desigualdades que perdurarão no tempo, muito para lá do termino desta pandemia.

Embora o conceito de Saúde Pública só tenha ganho notoriedade nestes últimos tempos, Portugal tem uma longa tradição nesta disciplina médica. Um dos seus pais foi o médico iluminista Ribeiro Sanches, natural de Penamacor, companheiro de Diderot, Voltaire, Rousseau, entre outros, na Encyclopédie, que foi um conselheiro fundamental do Marquês de Pombal na reconstrução da cidade de Lisboa, após 1755. Mais recentemente, o médico Arnaldo Sampaio, pai do ex-Presidente da República Jorge Sampaio, lançou as bases de uma Saúde Pública que, nas suas próprias palavras, era a ciência “da preservação integral da saúde do Homem”, com ênfase, diria eu, na palavra Integral e no H grande da palavra Homem. Nesta pandemia, não têm sido poucos os especialistas que têm alertado para a necessidade de abordagens de Saúde Pública que atentem à baixa perigosidade e capital sazonalidade do vírus, como o Dr. Jorge Torgal; para a importância de perspetivar a pandemia lançando mão de outras ciências, como a psicologia, a sociologia, a economia, percebendo-se o papel fulcral que os diferentes agregados familiares e populacionais desempenham na sua propagação, como tem defendido o insuspeito Dr. Francisco George, na esteira do que o próprio denomina como Nova Saúde Pública; ou, ainda, o papel fundamental que, em Saúde Pública, as estratégias de comunicação desempenham na cativação e cooperação das populações com os procedimentos clínicos e medidas a implementar, como explica o Dr. Constantino Sakellarides.

Infelizmente, nos Açores, todo este conhecimento parece ser letra morta às mãos de uma visão estatística e semafórica da pandemia, que olha para as ilhas, e para os 19 concelhos, como se fossem compartimentos estanques e fixamente delineados em quadros de Excel e gráficos de Power Point. Uma Saúde Pública em que as pessoas são meros transportadores do Vírus, uma espécie de Ubers da contaminação. Ou, o pior de tudo, que usa como principal utensílio de sustentação das suas decisões e estratégias, os níveis de incidência da contaminação, que se alicerçam em algo tão falível e cientificamente questionável como são os testes RT-PCR, que detetam a presença de matéria viral e não a sua capacidade real de infeção. Mas não entremos, por agora, por aí.

O que importa realçar, neste momento, é que a estratégia de combate à pandemia nos Açores procura, pura e simplesmente, tal como em março de 2020, conter a disseminação do vírus e concentra-se, apenas, no resultado positivo de um teste que não determina se a pessoa está ou não com a doença. Esta estratégia não tem em linha de conta todos os avanços científicos já feitos na análise de grupos de risco, a sua demografia, taxas de letalidade, contaminação por assintomáticos, sazonalidade, transmissibilidade, vacinação e, não menos importante, as devastadoras consequências socias e económicas que o combate à pandemia têm tido. Ao fim de um ano e meio de pandemia importaria perceber que o sofrimento das crianças, dos jovens, das famílias, dos trabalhadores e dos empresários é tão merecedor de atenção como o dos pacientes Covid. A proporcionalidade é, afinal, uma das matrizes do Estado de Direito.

A questão dos Direitos Fundamentais é, efectivamente, algo extremamente importante de se ater em maio de 2021. Como bem explica Henrique Pereira dos Santos, “a Liberdade não é um pormenor, é uma questão central que deve ser ponderada ao mesmo nível que outros fatores no momento da tomada de decisão.” Os sucessivos ataques à Constituição, ou à própria Lei de Bases da Saúde, que garantem o direito ao trabalho e ao lazer, passando-se de um Estado de Emergência para um verdadeiro Estado de Permanência, são uma inaceitável inversão do Contrato Social e do Estado de Direito, em que são os Cidadãos que são colocados ao serviço do Estado e não, como deveria ser, o Estado a servir os Cidadãos. É neste ponto, e pegando no caso da ilha de São Miguel, não por qualquer bairrismo espúrio, mas porque não deve ser tratado de forma igual coisas que são na verdade diferentes, que importa questionar o Governo Regional dos Açores sobre a razoabilidade e a proporcionalidade das suas opções. Sabendo-se que esta é a ilha com maior capacidade hospitalar instalada, aliás o próprio Secretário da Saúde afirmou que o Plano de Contingência do HDES tinha previstas até 80 camas para tratamento Covid, não é compreensível, nem económica ou socialmente aceitável, que se tenha, de ânimo leve, optado por forçar um confinamento generalizado a toda a ilha apenas porque o número de casos ativos subia, enquanto o número de internados nunca ultrapassou os 20. Não é admissível que seja a população da ilha de São Miguel a ser chamada a proteger um débil Serviço Regional de Saúde, quando é obrigação do Governo garantir que é o HDES, e o SRS no seu todo, que está devidamente capacitado para salvar a população da ilha e, por maioria de razão, dos Açores.

A tudo isto acresce aquele que é hoje o maior problema desta pandemia: a grave questão dos prejuízos na educação e das consequências psicológicas, nas crianças e jovens e nas suas famílias, que levam por junto já quase seis meses sem ensino presencial, e a destruição de largos sectores da economia, com particular acuidade na cultura, no lazer, na promoção da saúde física e no bem-estar e, finalmente, no Turismo. Se há uma linha da frente da pandemia, para usar a metáfora bélica tão na moda na boca dos políticos, ela é composta, hoje, por estas centenas de pessoas anónimas que sofrem as agruras da falta de trabalho e de receitas ao mesmo tempo que, esse mesmo Estado, lhes impõe o cumprimento de todas a suas despesas e obrigações, principalmente para com o próprio Estado. Ao contrário daquilo que é a narrativa demagógica dos Governos, as ajudas anunciadas são insuficientes, são burocráticas e na maioria dos casos não chegam efetivamente às pessoas. Mais de 20 dias depois de um populista anúncio de injeção de 2 milhões de euros, do programa Apoiar.pt, que numa avaliação por alto, do número de candidaturas, significaria pouco mais de 1000€ por empresa, a realidade é que esse dinheiro não chegou ainda ao terreno.

É por isso que, neste momento, se afigura como fundamental rever as estratégias de combate à pandemia e os critérios a ela aplicados. Desde logo, importaria utilizar como fator de ponderação principal o número de internamentos, em lugar da taxa de incidência de 100/100 mil. Em vez de se colocar todo o ónus do combate à pandemia nos cidadãos, é ao Estado que compete assegurar os meios de combate ao vírus e à doença de Covid 19, protegendo os grupos de risco, assegurando as condições de tratamento dos casos mais graves e incrementando a vacinação da população. Ao mesmo tempo, e por outro lado, seria imprescindível instituir instrumentos eficazes e diretos de ajuda às famílias, às empresas e aos trabalhadores, que permitam salvar a economia e preparando, desde já, um Plano de Recuperação Económica da Ilha de São Miguel. Sob o risco de, não o fazendo, estarmos a hipotecar o futuro e a condenar-nos, a todos, indiscriminadamente, desde o reformado, ao empresário, passando por funcionários públicos e demais trabalhadores, a décadas de austeridade e sofrimento, a que a gravíssima crise económica que iremos certamente viver obrigará. A perda de criação de riqueza na ilha de São Miguel, o aumento de desemprego associado, e o consequente desequilíbrio da balança contributiva, são os componentes inflamáveis de um cocktail explosivo de depressão económica, instabilidade social e pobreza, que farão da crise de 2008 uma brincadeira de crianças ao pé do verdadeiro tsunami que aí vem.

É urgente que os políticos sintam mais e quantifiquem menos, que tenham verdadeiramente noção das agruras de quem sofre e se compadeçam com as milhares de vidas que, nesta pandemia, perderam a sua Vida. Insistir neste mesmo caminho, que faz das pessoas meros números numa estatística, e da vida um simples relatório clínico, é salvar “vidas” até não haver mais vidas para salvar.


sexta-feira, 30 de abril de 2021

A violência doméstica do Sr. Tato Clélio

Ao fim de um ano inteiro de vírus, há uma coisa que é já perfeitamente clara: o vírus não se combate assim. A opção governativa pelo confinamento, a grande clausura populacional, tem uma comorbilidade maior que a pandemia e uma taxa de letalidade infinitamente superior do que a Covid-19, já para não falar nesse importante pormenor de que afecta todas as faixas etárias de forma cega e despótica. Nos Açores, a Covid matou 30 pessoas, em 4893 casos positivos diagnosticados. Uma extraordinária taxa de letalidade de 0,6%. Se extrapolarmos para o cômputo geral da população a Covid matou 0,01% de açorianos. Uma notícia desta semana dava conta que os óbitos oficialmente contabilizados como sendo com Covid-19 representavam, imagine-se, 0,9% de todos os óbitos ocorridos na região, num total de 2439, um amento de 7,4% relativamente ao ano anterior. É importante fixar estes números porque o que estas estatísticas nos dizem é que, de facto, se morreu mais em 2020, embora pouco para uma pandemia, mas não foi de Covid, houve mais cerca de 7% de mortes de outras causas que não o maléfico vírus. Se invertermos os números descobrimos que a taxa de sobreviventes à Covid na região é de aproximadamente, preparem-se, 99%. Dir-me-ão alguns que estes números se devem às políticas governativas que tem contido os contágios e permitido que os hospitais consigam lidar com os casos que desaguam nas urgências e enfermarias e dir-me-ão também que os sacrifícios que são pedidos à generalidade da população são necessários perante tão devastadora maleita. Mas, pergunto eu, será legitimo que para debelar um vírus com uma taxa de letalidade de 1% se destrua toda uma economia? Se arruíne a infância e a adolescência de 10% da população? Que se dizime a escolaridade e o futuro de toda uma geração? Que se isole e condene os últimos anos de vida de toda uma outra geração de idosos? Que se condene ao calvário das dívidas à banca centenas de empresas? Que se exproprie o direito ao trabalho de milhares de empresários e trabalhadores? Tudo para proteger, não as pessoas, mas os hospitais? Será moralmente aceitável que se destruam sociedades inteiras porque os Sistemas de Saúde não foram capacitados para aguentar uma pandemia? Em Março do ano passado até se poderia aceitar que sim, mas agora a resposta é impreterivelmente não! E, já nem vale a pena falar da desmesura daquilo a que eufemisticamente se chama de “apoios” do Estado, da sua infinda burocracia e diminuta grandeza face ao enorme cataclismo provocado pela ditadura sanitária. O que neste momento está verdadeiramente em causa é que ao fim de mais de um ano de pandemia o Estado, os governos e os políticos de turno, continuam a colocar o ónus da culpa nas pessoas e a não conseguir assumir os seus próprios erros e fraquezas. O que é verdadeiramente chocante e inaceitável é que continuamos a ser nós, os cidadãos, os malcomportados, os infeciosos, em vez de serem os políticos, que não conseguem produzir e distribuir as vacinas, que deixaram hospitais de campanha vazios, que não aumentaram a capacidade dos hospitais e não souberam ou quiseram proteger as pessoas, a assumir as suas debilidades e a pagar pelos seus erros. Esta absurda inversão da ordem democrática e do Estado de Direito teve o seu mais caricato e odioso episódio ontem, protagonizado pelo nosso Sr. Tato Clélio. Visivelmente perturbado pela gargalhada televisiva da semana anterior o Sr. Tato Clélio, depois de uma lamentável e auto-congratulatória masturbação pública à mão de PowerPoint decidiu apontar armas aos órgãos de comunicação social e à forma como são feitas notícias sobre a pandemia, lamentando-se por a imprensa regional não lhe ajudar na disseminação da boa propaganda covídica, aquela que leva a cidadãos respeitadores e obedientes e não à insurreição cidadã. No mundo do Sr. Tato Clélio não é ele que manda fechar escolas e restaurantes, é o vírus. O tal vírus que mata 1% dos infetados. No mundo do Sr. Tato Clélio todos devíamos estar respeitosamente sossegadinhos em casa para que ele possa desenhar curvas descendentes nos seus graficosinhos de PowerPoint e vangloriar-se de conter uma pestilenta pandemia. No mundo do Sr. Tato Clélio não é por culpa dele que as cidades ficam desertas, as crianças perdem o contacto com os amigos e a desenvoltura da escola, e as empresas vão à falência, tudo ao arrepio daquilo que o próprio anunciou que iria fazer quando aqui chegou, em novembro, qual Jorge Jesus da pandemia. O Sr.Tato Clélio é realmente um exemplo clássico do abusador, num caso de violência doméstica, que pede perdão por bater na vítima e que ainda lhe diz que só lhe bate por culpa desta e para seu bem. Malvados micaelenses que o transformam num esbirro, logo ele que é um querido e só quer salvar-nos de nós próprios. O problema é que nós, todos nós, estamo-nos a comportar de facto como vítimas, levamos e pedimos desculpa, incapazes de nos levantar e dizer basta a esta despótica, desconexa e inaceitável violência que são as decisões e medidas da Autoridade de Saúde do Sr. Tato Clélio. Mas, em toda esta desgraça há uma coisa que convém nunca esquecer. É que, nesta parábola da violência doméstica, o Sr. Tato Clélio é apenas o cinto, a mão que brande o cinto tem um nome e chama-se Governo Regional do Açores e o seu presidente é José Manuel Bolieiro.