ao jeito da blogosfera circa 2003
Meu Muito Querido Amigo
Apesar da montanha russa emocional dos meus últimos dias, não posso deixar de te transmitir o meu profundo pesar, para não dizer incómodo, ao ler o teu post sobre
o IVA dos espectáculos.
A frase brutal de que os “
espectáculos são mera alienação” atingiu-me como um bloco de cimento em cheio no estômago. De um amante de livros para outro, não posso acreditar que realmente penses assim e só compreendo tal
boutade pela ditadura do efeito sensacionalista do post e da ânsia de contraditório.
A verdade, meu querido amigo, é que a humanidade seria infinitamente mais triste e pobre sem a representação, a música, o bailado, etc., etc., etc. Por maior que seja o nosso amor aos livros, quão lastimável seria uma existência apenas feita de fólios e pergaminhos, que bolor monástico nos governaria os espíritos num mundo de prateleiras, bibliotecas e traça.
A suprema execução da literatura é a sua representação diária. Mais, sem drama, sem humor ou ritmo é impossível a existência de verdadeira literatura. Nem os melhores dos ensaístas viveram sem a representação dos seus actos.
Desde a mais clássica antiguidade, desde Homero, o primeiro, múltiplo, contador de histórias que “
os espectáculos” foram elementos fundamentais para a realização da existência, para a concretização do significado da vida. Sófocles, Shakespeare, Beckett, fizeram do teatro a condensação suprema do significado da alma. Pensar num mundo sem música, sem ópera, sem a consagração plural e universal do espírito humano através do ritmo e do compasso e da história dos seres é abdicar da probabilidade do humano.
A realização da arte é feita pela sua partilha, do autor ao público e de público em público pela sua representação, reduzir isso a um fenómeno individual, solitário, vazio e triste é abdicar do seu poder redentor. Por mais imprescindível que seja a leitura.
E já nem vou falar do valor do cinema, 7ª (número mágico) Arte que a mim tanto me ensinou e que é uma arte pública por excelência.
Perdoa-me Nuno, mas pensar que a vivência e a experiência da arte são fenómenos menores perante a possibilidade do estudo dos cânones é abdicar em absoluto do que mais profundamente nos faz humanos - a necessidade de partilhar a experiência do conhecimento. Não me interessa sequer se é o Quim Barreiros ou o Stockhausen, uma sociedade sem a possibilidade de fruir universalmente da cultura é uma sociedade imperfeita.
É por isso que a visão economicista não está em quem contesta esta medida idiota e inculta de subir o IVA às artes performativas como se fossem luxos taxáveis ao mais alto percentil, o
economicês bárbaro está em quem acha que a arte só existe nos pergaminhos, esquecendo tudo o que de arte é feito em vida.
Abraço amigo, na esperança, de certo partilhada, de dias melhores.