Balas não cantam baladas
“Bella Ciao” é uma antiga balada revolucionária italiana,
nascida entre as camponesas dos campos de arroz do norte de Itália, no final do
século XIX. Mais tarde foi retomada pelos partisans da Segunda Guerra Mundial,
tornando-se hino da resistência antifascista. Nos anos 60 ganhou nova voz nos
movimentos estudantis e, já no nosso tempo, regressou à cultura popular através
da série da Netflix La Casa de Papel. A canção, que fala de liberdade,
sacrifício e esperança, atravessa gerações como símbolo de uma utopia humanista
feita de resistência, solidariedade e luta por uma vida melhor.
Na passada quarta-feira, dia 10, no campus da Universidade
do Utah, o influenciador da direita radical Charlie Kirk, de 31 anos, foi
abatido a tiro por um atirador furtivo que disparou a 183 metros de distância a
partir do telhado de um prédio. A bala atingiu-o na carótida. O alegado autor,
Tyler Robinson, de 22 anos, terá inscrito nas balas, entre outras mensagens
ligadas ao movimento de esquerda radical Antifa, as palavras “Bella Ciao”.
Kirk era conhecido pelas suas posições misóginas e hostis
aos direitos das minorias. A sua retórica conservadora e divisionista
alimentava confrontos no espaço público, muitas vezes incitando ao ódio e à
intolerância. Por cruel ironia acabou vítima do mesmo porte de armas que sempre
defendeu.
Pouco se sabe, ainda, sobre as motivações do atirador. Ao
que parece, Robinson era próximo da causa LGBTQ+ e, alegadamente, de uma certa
esquerda radical antifascista. Mas, o essencial, neste momento, é compreender
que vivemos num tempo em que os extremismos, sejam à direita ou à esquerda, já
não se limitam a debater ideias. Empunham armas, impõem-se pela violência e
destroem, com a sua intolerância, o espaço público, que deveria ser a casa
comum das nossas democracias.
Mais chocante do que o atentado em si, um assassinato fútil
e frio, cometido a céu aberto, é a polarização que tomou conta do debate
mediático. Populismos de ambos os lados trocam acusações e hesitam na
condenação clara e necessária do sucedido. Multiplicam-se tentativas de
justificar o injustificável, como se alguma morte pudesse ser legitimada por
razões ideológicas.
Num regime aberto e liberal, toda a violência deve ser
condenada. A liberdade de opinião e de expressão tem de ser preservada, mesmo
para quem pretende negá-la aos outros. O facto de Kirk defender o silenciamento
de minorias não legitima que fosse condenado à morte por alguém que se via como
parte dessas minorias. A bala que o matou não foi justiça. Foi intolerância, e
prova da doença que corrói a democracia e destrói a liberdade.
Os Estados Unidos carregam infelizmente uma longa tradição
de violência política. De Lincoln a Martin Luther King, dos irmãos Kennedy a
Harvey Milk. Mais grave do que acrescentar mais um nome a essa trágica lista de
óbitos é perceber como chegámos a um ponto em que radicalismo e intolerância
substituem o debate pelo insulto e o diálogo pelas armas. Quando a morte se
torna argumento político, é a democracia que deixa de respirar e a liberdade
que morre por dentro.
No seu célebre “paradoxo da tolerância”, o filósofo
britânico nascido em Viena, Karl Popper, alertava para a necessidade de as
democracias liberais limitarem o discurso de ódio e as narrativas extremistas
como única forma de se protegerem da intolerância. Mas esta teoria contem,
dentro de si, um dilema. Até que ponto a luta contra o discurso de ódio não
reproduz os mecanismos autoritários que procura evitar, conduzindo, em última
instância, a gestos como o de Tyler Robinson?
A liberdade estará sempre em risco quando as armas da
intolerância são empunhadas em seu nome. Não são as balas que garantem a
democracia ou nos protegem dos extremismos, sejam de esquerda ou de direita. É precisamente
a coragem de dizer não à linguagem das balas.
Porque as balas não cantam “Bella Ciao”. Apenas calam a voz da
Liberdade.
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