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quinta-feira, 22 de maio de 2025

Speakers' Corner 33

Combater o Chega, ouvir as pessoas

Os resultados de domingo foram um abalo telúrico na nossa democracia, que se vê a braços com um tsunami populista e reacionário como nunca se tinha visto em 50 anos. De facto, de todas as consequências do escrutínio, a avalanche do Chega, transformado na terceira, ou possivelmente na segunda força política nacional (à hora em que escrevo, faltam apurar os deputados da emigração, que podem dar mais dois mandatos ao Chega…), é o principal facto político destas eleições, mais até do que a carnificina no PS, embora ambas estejam, creio eu, relacionadas. Para lá do tripartidarismo, do populismo, do spinumvivismo e da derrota da esquerda, o que me parece mais relevante realçar nestas eleições é a vitória do antissistemismo.

Arrisco um exemplo local para avançar uma explicação para este crescimento assustador do Chega, que mais não é do que a consubstanciação do voto antissistema. Nos últimos dias, tenho participado em diversas reuniões sobre a questão do Ilhéu. Numa delas, com responsáveis locais dos dois principais partidos, levantava-se a questão do aproveitamento eleitoral do fecho do Ilhéu a banhos. Do lado do PSD, parecia medrar a ideia de que o partido teria vantagem eleitoral autárquica com o Ilhéu fechado, como forma de capitalizar na campanha. Do lado do PS, agitava-se a narrativa de que a culpa do fecho do Ilhéu era do Governo, logo, seria o PSD a ser penalizado.

A uns e a outros tentei, sem sucesso, alertar que o único partido que poderia tirar proveito político de um escândalo como o fecho do Ilhéu era o Chega, devido ao descrédito das pessoas face a dois partidos com responsabilidades repartidas e incapazes de resolver um problema que é de todos. Como era expectável, o Chega ganhou em Vila Franca. A principal razão para o crescimento do Chega é o cansaço, a zanga dos eleitores com os dois partidos que construíram a democracia - PS e PSD - e que, na mente das pessoas, são os verdadeiros responsáveis por aquilo que sentem ser o estado calamitoso do país, sem esperança, sem oportunidades e sem futuro. E é bem provável que as pessoas tenham razão. Aqui chegados (perdoem o trocadilho) o combate ao Chega faz-se na refundação democrática dos partidos do centro e, neste caso em especial, do PS, sob o risco de se matar a esquerda moderada em Portugal.

Menos de três anos depois de uma maioria absoluta com mais de 2 milhões de votos, o PS caiu para 1 milhão e quatrocentos mil votos e apenas 58 deputados. Nos Açores, o cenário é tão ou mais preocupante. De 4 deputados passou para apenas 1. Com a agravante de ficar praticamente empatado com o Chega no círculo regional e escandalosamente ultrapassado na ilha de São Miguel. Estes são resultados dos quais o partido não pode fugir. É uma mensagem claríssima que lhe está a ser dada pelos eleitores, e nem toda a falsa coragem do mundo pode fazer esquecer este fortíssimo cartão vermelho. A nível nacional, o partido soube reconhecer esta hecatombe; a nível regional, e citando as palavras de Sérgio Sousa Pinto na própria noite das eleições: se o PS não acabar com esta direção, esta direção acaba com o partido.

Se tivermos de encontrar uma justificação para estes resultados, ela está na falta de ligação entre os eleitores e o PS e o PSD. O Chega é um voto de protesto contra dois partidos que parecem ter capturado a democracia, colocando-a ao serviço dos seus interesses pessoais e não do povo ou do país. Não é à toa que a AD não teve maioria, que foi o Chega que o povo elegeu para bloquear a governação e será no Chega que votará quando este PSD voltar a falhar com o país. Se prosseguirmos neste caminho, em breve o partido do protesto tornar-se-á no partido de governo, levado em ombros por todos aqueles que se recusam a reconhecer as suas responsabilidades nesta deriva dos eleitores do centro rumo ao precipício populista e ao caos que nos olha desde o fundo desse abismo.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Speakers' Corner 17

O Arruda Arrenegado

Reza a história que Mateus Pedro d’Arruda, o Arrenegado, terá nascido nesta cidade de Ponta Delgada, nas últimas décadas do século dezassete, sendo o primeiro dos “Arrenegados da Rua do Lameiro”, assim descritos nos livros de contas do mosteiro de Santo André, a quem pagavam foro fixo anual de 480 réis por uso de vinhas e outras terras que faziam parte da doação de dito convento e que estes trabalhavam. Estes Arrudas foram família burguesa abastada deste burgo pontadelgadense, sendo seu neto José Joaquim d’Arruda detentor do primeiro estabelecimento de carruagens desta cidade, sito à rua João de Deus, onde hoje fica a rua António Joaquim Nunes da Silva, traseira ao Teatro Micaelense.

Consta que o desditoso cognome vinha de um tal António Álvarez, avô paterno de Mateus Pedro, dito escravo branco ao serviço do licenciado António Pereira Botelho, que por ser mouro cativo, capturado, ao que se diz, de uma das muitas incursões que os piratas magrebinos usavam fazer às ilhas deste arquipélago e que, por ter renegado a sua fé e se convertido, ganhou o famigerado epíteto de “o Arrenegado”, pelo qual os seus descendentes seriam reconhecidos até bem dentro do século passado.

Na última semana, ganhou fama o deputado Arruda, do Chega!, que não consta seja da família, espécie de personagem picaresca de um qualquer pantera cor de rosa dos tapetes rolantes da Groundforce, por grotesca razão do furto de bagagem alheia na sempre entediante sala de recolha do aeroporto Humberto Delgado. E, ato continuo, por ter sido ele mesmo arrenegado pelo seu próprio partido, numa impressionante demonstração de mortal encarpado à retaguarda de hipocrisia política.

Pouco mais haverá a dizer, de tal forma o absurdo do episódio já foi escalpelizado pelos tribunais mediáticos e pelo júri das redes sociais, sobre esta súbita notoriedade do deputado Arruda. Mas talvez seja bom refletirmos um pouco sobre a questão da representação política e a forma desabrida como tanto jornalistas, como comentadores e até, pasme-se, outros seus colegas deputados, se aproveitaram das malas abafadas do deputado Arruda para afrontar a fraca qualidade dos nossos eleitos, fazendo por passar a ideia de que se trata de fenómeno tão recente quanto preocupante. E, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tentando afastar-se do deputado Arruda, ostracizando-o.

Basta regressar a Calisto Elói, austero e conservador fidalgo transmontano, corrompido pela luxúria da capital lisboeta, figura central do pouco celebrado e muito esquecido “A Queda de um Anjo”, grande romance de Camilo Castelo Branco, para perceber como já nos idos de oitocentos tanto o Parlamento, como Lisboa no seu todo, eram chão fértil para a corrupção e a caricatura. Não que eu queira fazer do deputado Arruda um anjo, longe disso.

O que a história ensina é que os parlamentos são espelhos das sociedades de onde emergem e enfermam dos mesmos vícios e virtudes daqueles que se dizem representar. E talvez seja exatamente aí, na origem e caráter dos nossos eleitos que nos devamos concentrar. Na nossa democracia já tivemos um pouco de tudo, desde gravadores surripiados, a autarcas condenados e reeleitos, até primeiros-ministros indiciados. A arte do furto é uma espécie de disciplina obrigatória do nosso curriculum parlamentar. Ao que parece, ao deputado Arruda só lhe falhou o engenho de não se deixar apanhar na arte de larapiar. A realidade é que entre os dramas do deputado Arruda, com a sua insana bagagem, e os múltiplos Calistos Elóis que pululam pela política nacional, cujo talento principal é escapulirem-se melhor aos registos videográficos da ladroagem pública, pouca diferença haverá. E é precisamente isso que urge contrariar, essa ideia cristalizada de que na política são todos iguais ao mais recente Arruda, o Arrenegado. É caso para dizer, merecíamos políticos melhores, na origem, no caráter, na postura e na linguagem e, principalmente, no tipo de bagagem que transportam consigo. Porque, em boa verdade, a política somos todos nós…  

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Speakers' Corner 11

Glifosato mental

Na semana passada foi amplamente noticiado o diploma do CHEGA! repondo a autorização do uso do glifosato na região. Banido, ou de uso limitado, em países como França, Bélgica, Holanda e Alemanha, e com milhares de processos em tribunal nos EUA por alegadamente “poder” causar cancro, o herbicida da Monsanto, que estava proibido nos Açores desde 2020, por proposta do BE com voto favorável da então maioria PS, volta agora a ver autorizada a sua utilização, “em circunstâncias especiais” (o que quer que isso seja), por proposta do partido de André Ventura, com os votos favoráveis da coligação CDS/PPM/PPD e do deputado da IL.

Desenvolvido nos anos 70 e comercializado com o nome RoundUp, o glifosato, cujo principal composto químico é o fosfonometil, foi usado como herbicida de largo espectro para queimar as ervas daninhas em culturas intensivas de grande dimensão como o milho, o algodão e a soja. A ação do glifosato dá-se através das folhas de plantas em crescimento, secando-as e impedindo o seu desenvolvimento, não prevenindo ou controlando o seu aparecimento, o que obriga a uma utilização regular e intensiva do produto. A utilização em larga escala de glifosato levou mesmo a Monsanto a desenvolver sementes geneticamente modificadas de culturas como soja e milho capazes de resistir ao glifosato, naquilo a que chamava de RoundUp Ready, numa clara e lucrativa estratégia de capitalismo circular, desenvolvendo em simultâneo a doença e a cura no mesmo recibo e fatura. A acessibilidade do herbicida levou depois a que o glifosato se disseminasse em usos domésticos, em pequenos jardins, e de forma exponencial em espaços públicos, por autarquias e governos, no “controlo” de ervas daninhas e outras invasoras, um pouco por todo o mundo.

A partir de final dos anos 90, a Monsanto tornou-se alvo de milhares de ações judiciais, tanto por publicidade enganosa, o produto era comercializado como sendo seguro e biodegradável, como por responsabilidade civil, em alegações  de que o RoundUp era na verdade cancerígeno. Inclusive, em 2015, um relatório da Organização Mundial de Saúde referia, embora envergonhadamente, que o glifosato era “provavelmente cancerígeno em humanos”. Em Agosto de 2018, menos de um mês após ser adquirida pela Bayer, um dos mais mediáticos casos contra a Monsanto, envolvendo o RoundUp, teve a sua sentença revelada num tribunal de São Francisco, tendo um júri condenado a empresa a pagar uma indemnização de 289 Milhões de dólares a Dwayne Johnson, um jardineiro de uma escola pública da cidade, acometido com um terminal linfoma. Um dos advogados nesse célebre e mediático caso foi nem mais nem menos do que Robert Kennedy Jr., tido então como um herói das causas ambientais e hoje visto por alguns media e parte da esquerda sanitária como um perigosíssimo “chalupa”.

O que sabemos hoje é que o glifosato é um produto arcaico e ultrapassado, e apesar da Monsanto e da Bayer, com os seus poderosos lobbys, continuarem a negar as alegações, o uso sistémico do glifosato, até pela sua ineficácia na prevenção, nomeadamente em espaços públicos, contem riscos consideráveis e suficientes para que seja previdente a sua não utilização, ademais em zonas públicas. Os Açores têm problemas sérios com espécies infestantes e, pela sua dimensão e particularidade insular, precisam de abordagens corajosas e determinadas para a proteção e gestão da sua paisagem e dos seus espaços públicos. A reintrodução do glifosato, num destino que não se cansa de dizer sustentável, é apenas preguiça (ou será lobby?) e revela uma espécie de arcaísmo mental e facilitismo, de quem é incapaz de compreender como o mundo hoje requer soluções inteligentes e consensualizadas, mesmo quando sejam mais difíceis ou dispendiosas. Aprovar ou revogar leis é mais ou menos fácil. Há por ai até uma petição a correr que se pode assinar. Mais difícil é revogar os glifosatos mentais de alguns dos ocupantes do nosso parlamento.