quarta-feira, 30 de abril de 2025

Speakers' Corner 30

O grande apagão e a globalização do lucro

Amanhã é Dia do Trabalhador. A data, instituída no âmbito da segunda Internacional Socialista, assinala a Greve de Chicago, quando, no dia 1 de maio de 1886, um grupo de trabalhadores de diferentes fábricas dessa cidade americana se uniram numa grande greve geral para reivindicar melhores condições de trabalho, em especial a segurança e a redução da jornada de trabalho que, na altura, era de 17 horas diárias. Organizadas durante vários dias, as manifestações viriam a descambar em confrontos. No dia 3, os grevistas da McCormick Company, reunidos em protesto na Haymarket Square, entraram em luta com a polícia e os “detetives” da Agência Pinkerton, contratados pelos patrões para aplacar os grevistas, resultando em dois mortos, despoletando uma sequência de dias de conflitos, entre bombas, motins e manifestações, terminando num processo judicial que levaria à condenação à morte de quatro dirigentes anarquistas. Uma luta que haveria de marcar o movimento sindical mundial nas décadas seguintes.

Em 1889, no congresso da segunda Internacional Socialista, criada por Friedrich Engels, o 1º de Maio foi instituído como Dia Mundial do Trabalhador e, também, o 8 de Março, proposto como Dia Internacional da Mulher, numa afirmação da verdadeira fraternidade dos movimentos progressistas a nível global. É importante notar, dentro do contexto histórico do final do sec. XIX e do início do sec. XX, onde o choque entre impérios dominava a política mundial, que foi uma organização de trabalhadores a imaginar e propor uma grande união internacional, que extravasava as fronteiras nacionais ou patrióticas, fundamentada nos valores humanistas e representando os interesses de todos os trabalhadores do mundo. Isto muito antes do Tratado das Nações, que só viria a unir o mundo em 1945, no rescaldo do extermínio da Segunda Guerra Mundial.

Ao longo das décadas seguintes e até aos dias de hoje, no permanente conflito entre forças conservadoras e progressistas, na velha luta entre capital e trabalho, não deixa de ser irónico que, no contexto atual, tenha sido a globalização do lucro a estabelecer-se como hegemónica a nível mundial e a luta dos trabalhadores seja vista hoje como um movimento anacrónico e esquecido no pó dos cadafalsos da história. Hoje, é a própria Internacional Socialista, cujo hino apelava a uma “terra sem amos”, que vive amordaçada no peso da ditadura do capital, capturados os partidos pela opressão do financiamento. E são organizações dúbias como o World Economic Forum, do inefável Sr. Schwab, que comandam as políticas internacionais e as interdependências entre países. Também não deixa de ser simbólico que o novo líder desta organização de representantes não eleitos dos maiores interesses económicos globais seja um senhor chamado Peter Brabeck-Letmathe, ex-CEO da Nestlé, que ficou famoso por sugerir que a água não era um direito universal, mas antes uma commodity, privatizável e comerciável, na incessante prossecução do lucro das grandes corporações internacionais. A globalização e o internacionalismo, alicerçados no primado da pessoa humana e nos direitos dos cidadãos, cujos valores foram reacendidos pelas lutas das duas internacionais socialistas, foram vencidos pela internacionalização do lucro e da avareza do comércio global. O recente apagão ibérico, a que assistimos não sem alguma dose de choque e pavor, foi disso um bom exemplo, com um bem essencial à vida contemporânea, a energia elétrica, refém dos interesses corporativos de uma empresa detida a mais de 80% por grandes multinacionais estrangeiras e operando sem controlo, ou segurança, no liberalizado mercado ibérico da energia.

Einstein, ele próprio um socialista, dizia que três grandes forças dominavam o mundo: a estupidez, o medo e a ganância. A realidade deu-lhe mais uma vez razão - na estupidez, no medo e, principalmente, na insaciável ganância do capitalismo global.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

A Sociedade Terra Nostra e os seus promotores

Deu nota recente a comunicação social do nonagésimo quinto aniversário da abertura do Hotel Terra Nostra. Na informação veiculada refere-se que o Hotel Terra Nostra foi “idealizado”, cito, por Vasco Bensaude, e que, o mesmo “Naquela freguesia remota, em 1935, […] fez nascer um hotel de luxo”. Longe de querer rebater tais informações ou sequer contestar o relevante papel de Vasco Bensaude no desenvolvimento da ilha e da região e, em particular, do turismo açoriano, a factualidade do expresso é equivoca e merecedora de esclarecimento.

A constituição da Sociedade Terra Nostra, promotora do turismo na ilha de São Miguel, data de 1933, tendo como sócios fundadores o Dr. Lúcio Agnelo Casimiro (1879-1951), o Dr. Augusto Rebelo Arruda (1888-1964) e o Dr. Francisco Bicudo de Medeiros (1893-1972), que, unidos na sua visão de uma ilha mais próspera e moderna, tanto económica como socialmente, constituíram essa Sociedade, já com os objetivos claros de tornar o vale das Furnas num centro turístico local e, assim, projetar a ilha de São Miguel nacional e internacionalmente.

É disso prova indesmentível a reabertura do Casino das Furnas, em Agosto de 1933, e a grande Exposição Comercial, Industrial e Agrícola, aí realizada em Setembro do mesmo ano, da qual a imprensa coeva deu ampla nota, e cujo “week end”, promovido pela Sociedade Terra Nostra, com jantares, bailes e ofertas exclusivas de alojamento, no então Hotel Atlântico, que ficou conhecida como a “semana dos nove dias”, foi um pioneiríssimo evento de promoção das Furnas e da Ilha de São Miguel enquanto potenciais destinos turísticos.

Ainda no final de 1933, os sócios fundadores abrem à subscrição pública, na ordem mínima dos 1.000$00, as quotas da empresa, não só como forma de angariar verbas para as suas iniciativas e investimentos futuros, mas como forma de galvanizar a sociedade micaelense para as oportunidades desta nova e promissora indústria. Data dessa altura a entrada de Albano da Ponte, Francisco Faria e Maia e Luís Bernardo Athayde no capital da Sociedade, importantes figuras da comunidade micaelense de então que, com a sua visão e cultura, muito contribuíram para o engrandecimento da empresa.

Desde a sua fundação, que a Sociedade Terra Nostra pretendia concretizar relevantes investimentos, não só na promoção turística da ilha de São Miguel, mas, também, na infraestruturação da sua oferta turística. Como o “Bureau de Turismo”, a Pensão Terra Nostra e a Casa Regional, a reabilitação do Hotel Atlântico em Hotel Terra Nostra, em conjunto com a aquisição do Parque Terra Nostra, antigo Jardim do Tanque do Marquês da Praia e Monforte, e a sua ligação ao Casino e, mesmo, a construção do Campo de Golfe, na Achada das Furnas, cujo projeto fora encomendado ao reputado arquiteto escocês Mackensie Ross.

É a ambição e a grandeza de tais investimentos que leva às negociações entre a Sociedade Terra Nostra, nomeadamente do seu sócio fundador Augusto Arruda, com Vasco Bensaude, que tinham já uma relação antiga como empreendedores e de colaboração mútua e de amizade, para a entrada deste último como investidor e sócio na Sociedade Terra Nostra. Desiderato que se viria a formalizar em novembro de 1933.

Nada, do anteriormente exposto, minimiza ou contraria a importância de Vasco Bensaude como investidor e empreendedor no desenvolvimento da Sociedade Terra Nostra e, consequentemente, no desenvolvimento da indústria do turismo nas Furnas, em São Miguel ou nos Açores. Mas, representaria uma injustiça histórica omitir o papel fundamental de alguém como Augusto Arruda, político, advogado e empresário, fundador também da SATA, na constituição, idealização e promoção da Sociedade Terra Nostra, em si, e dos seus mais visionários e significativos projetos, como são o caso do Hotel Terra Nostra das Furnas ou do Hotel Terra Nostra de Santa Maria, ou outras iniciativas que, ao longos das décadas subsequentes, cimentaram a região como destino turístico de excelência no imaginário nacional e internacional.

Por último, importa também destacar a instrumental participação do então jovem artista Manuel António Vasconcelos que, com a sua visão modernista e experiência dos maiores centros urbanos continentais, como Paris e Bruxelas, imprimiu aos investimentos da Sociedade Terra Nostra, o seu visual característico, marcado pela estética art déco, e que cimentaram definitivamente o sucesso e a relevância desses mesmos empreendimentos, até aos dias de hoje.

Endereçando as devidas felicitações, e votos de sucessos futuros, ao Grupo Bensaude, não poderia, no entanto, em boa consciência, deixar que tão relevantes omissões fossem passadas em claro quanto ao nascimento e desenvolvimento da Sociedade Terra Nostra, enquanto parte integrante, não só da história de um grupo económico específico e dos muitos que para tal contribuíram, mas como parte essencial da nossa história comum como comunidade, como ilha e como região.

Pedro Arruda, Vila Franca do Campo, 17 de Abril de 2025.

 

Speakers' Corner 29

Abril e a exaltação do afeto

Resisto a escrever sobre o Papa. Não tenho fé, não sou crente, uma estante alta e gasta de pensamento separa-me da sua figura. No entanto, consigo reconhecer-lhe a inteligência e o carisma. O culto do afeto, a peculiaridade do humor e uma omnipresente preocupação pela fraternidade, que fazia de Bergoglio, fã confesso do San Lorenzo, o clube do Bairro de Boedo, em Buenos Aires, essencialmente um Homem e muito mais do que o representante de Deus na Terra. Este Papa era um agente da Igualdade e da Fraternidade entre os homens, valores que, esses sim, sou capaz de compreender, não só com a luz da razão, mas, também, com as emoções de um coração que sente.

Neste tempo de desagregação, em que um pressentimento de fim emana pelo ar da história, contaminando com a premonição da decadência e a previsão do desastre, o desenrolar dos acontecimentos humanos, como se toda a nossa civilização se preparasse para colapsar, líderes como Jorge Bergoglio, mesmo na Igreja Católica, uma instituição com mais de dois mil anos de contradições, são uma réstia de esperança num mundo em erupção negativa, afundando-se sob o peso da sua própria autodestruição. Talvez pressentindo esse simbolismo é que escolheu chamar-se Francisco, como São Francisco de Assis, que amou toda a Criação e a quem Dante apelidou de a “luz que brilhou sobe o mundo”.

Bergoglio trazia consigo, no fundo, essa ligação premente e efetiva ao humano, às fragilidades e às perplexidades da vida, com as suas naturais incongruências e debilidades. Os pobres, os incompreendidos, os que são diferentes, os que fogem, os que erram e os que são selvaticamente oprimidos pela violência incontida da guerra, do capitalismo selvagem ou da pura e simples falta de empatia contemporânea. Esse, talvez, seja o seu maior ensinamento – a mão que busca o outro, que ampara e oferece o afeto.

Na próxima sexta-feira assinalam-se os 51 anos do 25 de Abril, a Revolução dos Cravos, que procurou trazer a paz e a liberdade, a democracia e a prosperidade, a um país refém de quarenta e dois anos de uma ditadura do Estado Novo, em guerra consigo mesmo e ostracizado aos olhos do mundo. Abril era, em muitos aspetos, essa promessa de empatia, de respeito pelas liberdades, direitos e garantias dos cidadãos, iguais perante a lei e o Estado. Cinquenta e um anos depois perguntamo-nos se se cumpriu Abril? Se logramos alcançar essa sociedade justa e equitativa? Que criasse oportunidades e riqueza, que fosse redistributiva e equilibrada, que mitigasse a pobreza, não acabando com os ricos, mas acabando com os pobres, como assinalou Olof Palm?

De certa forma, olhando hoje o país, há uma sensação de derrota, de algo que falhou, tal como, de certa forma, falharam as próprias celebrações dos 50 anos de Abril, mais ou menos dispersas e envergonhadas, incapazes de galvanizar o país na exaltação dos seus valores. O país falhou na justiça, falhou na prosperidade, falhou no respeito e na equidade. E falhou, essencialmente, na assunção da responsabilidade política. E é isso que explica os Montenegros e os Escárias da vida. É isso que alimenta os Venturas e os Almirantes, como aves de rapina sobrevoando cadáveres, à espera de se lambuzarem na necrose da nossa débil democracia com as suas sombras de renovados autoritarismos pairando sobre o nosso futuro.

Abril fez-se para acabar com a guerra, com os privilégios e os unanimismos. Hoje, cinquenta anos passados, temos um candidato a presidente da república que despiu a farda, mas incentiva a militarização do país e que anseia por uma nova ordem de resignada complacência. Temos uma nova casta de privilegiados políticos que se julgam acima da lei e que usam a própria democracia para legitimar os seus desmandos éticos. E a censura e o pensamento único deram lugar à opressão mediática do sensacionalismo, do unanimismo do politicamente correto e essa ensurdecedora zoeira do caos televisivo da excessiva polarização e que saliva na ausência de afeto.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Speakers' Corner 28

O Território do Vazio

Nemésio, na sua busca pela açorianidade, identificou três tipos de açorianos – o picaroto, o terceirense e o micaelense. Sobre este último, pintou-o segurando o cabo da enxada e lavrando a terra “já penetrável ao tubérculo”. Nesta identificação telúrica das gentes açorianas há uma espécie de paradoxo insular, rodeado de mar por todos os lados o açoriano, em particular o micaelense, vira as costas ao oceano e faz-se senhor da terra, enraizando-se cada vez mais no interior da ilha e olhando o mar com distância e, muitas das vezes, temor.

A ligação do açoriano com o mar foi sempre relativamente ambígua. A condição insular obriga a um relacionamento estreito com o oceano, mas este mar, o inclemente Atlântico, onde nos situamos, castiga e enclausura. Nos Açores, posto de abastecimento nos cruzamentos entre oceanos e continentes, o mar foi sempre território de medos e angústias. De lá vinham os piratas e as tempestades, cemitério vivo de batalhas e de naufrágios e, ao longo do tempo, porta de saída de gentes rumo ao distante mundo da emigração. Mesmo a pesca, ou a cabotagem, foram sempre de subsistência ou de oportunidade, remetidas ao gueto de pequenas comunidades, tantas vezes segregadas e marginais.  

Até muito recentemente, o litoral, praias, poças e portinhos, eram lugar de baldio e atrevimento, largados à selvagem voracidade da juventude ou à ousadia da necessidade dos que aí buscavam amparo para a fome. A ideia do mar, ou desse espaço que o separa da terra, como lugar de prazer, de conforto e de alegria é extraordinariamente recente. Os Areais de Santa Bárbara são disso um exemplo, salvos por surfistas e ambientalistas da avidez dos saqueadores de areia. E é isso que explica o impressionante abandono a que tantos outros lugares, de igual ou maior potencial, foram sucessivamente deixados, ao longo de décadas, até o declínio e a ruína se apoderar de muitos deles, tal como agora, tragicamente aconteceu, no Porto de Santa Iria.

Bem sei que é injusto generalizar e que se tornou repetitivo colocar a todos nessa categoria demagógica de “os políticos”, mas o problema é que as situações são tantas e tão recorrentes, de todos os partidos, que não se consegue não utilizar esse epiteto, hoje tão depreciativo, para classificar toda uma classe de responsáveis públicos pela desgraça que se nos acometeu. O velho Porto de Santa Iria, é um dos mais belos e singulares lugares destas ilhas. Uma localização única, com uma história riquíssima. Os problemas de erosão, ou de manutenção, são conhecidos há décadas, por várias gerações de políticos, de ambos os lados do espectro partidário, com dezenas de promessas e de projetos, milhões de investimentos anunciados e o resultado foi a sua destruição, e, agora, com um novo rol de promessas e datas num caderno de encargos que inevitavelmente já não vai ser o mesmo.

Nos Açores, como as ribeiras que correm para o mar, despejam-se rios de dinheiro em coisas inúteis, em projetos horrendos, de interesse duvidoso, e sistematicamente negligencia-se o que é realmente relevante e significativo para a transformação de uma identidade e para a tão propalada sustentabilidade do arquipélago. Pegando apenas em São Miguel, a praia do Monte Verde, o Ilhéu, a Piscina das Feteiras, o Lombo Gordo, a Amora e o Degredo… e tantos outros lugares perdidos nesse “território do vazio”, como lhe chamou o historiador Alain Corbin, que é a orla marítima e o litoral.

São estes acontecimentos, tão tragicamente repetidos, que me levam a acreditar que os políticos são insensíveis à beleza, que, com o tempo, se tornam impermeáveis ao encanto dos lugares, da sua história e do legado do que nos rodeia e os devia, em absoluto, preocupar e ocupar. Talvez o que choque mais neste abandono frio e insensível do que nos é próximo e essencial não sejam as promessas incumpridas ou a farsa da sustentabilidade, mas essa ditadura demolidora do desleixo, do abandono e da simples falta de gosto.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Speakers' Corner 27

O ultraconservadorismo ambiental

Sábado último, um grupo de cidadãos assinou neste jornal um texto elogiando a interdição a banhos do Ilhéu de Vila Franca do Campo. Começando com uma exclamação de “Excelentes notícias!”, os autores do artigo reclamam a “devolução”, do Ilhéu, à sua “verdadeira função: um santuário natural.” Propondo que o uso balnear seria prejudicial para a biodiversidade deste “monumento geológico” e sugerindo “novas” formas de relação com o Ilhéu, “através de visitas guiadas conscientes”, escutar os silêncios, interpretação ambiental e programas de monitorização da biodiversidade marinha e terrestre do Ilhéu.

Pondo de lado alguma excitação negativa, que parece querer ver num problema de saúde-publica uma oportunidade proibicionista, há dois aspetos nesta visão ultraconservadora do ambientalismo que gostava de assinalar, pelo que, a meu ver, sinalizam de uma ideia distorcida do que são os Açores, por um lado, e do que deveria ser a preservação ambiental, por outro.

Começando por este último aspeto, existe uma corrente de pensamento que vê na interdição do acesso e da fruição da natureza o caminho para a conservação ambiental. Limite de acessos, capacidades de carga, interdições, épocas de defeso e todo um outro tipo de obstáculos à interação entre o homem e a natureza. Quase como se o estatuto de monumento, ou reserva natural fosse uma espécie de fronteira militarizada entre os bárbaros humanos, destruidores e incivilizados, e a virginal e impoluta natureza intacta das nossas nove ilhas atlânticas. Thoreau, escritor e ensaísta americano, um dos pais do transcendentalismo e ávido naturalista, escreveu, em “Walden”, um manifesto sobre a comunhão com a natureza, que buscamos a natureza para viver deliberadamente, “para afrontar apenas os factos essenciais da vida”, para aprender o que temos para ensinar, “e não, quando morrer, descobrir que não havia vivido”. Por oposição àquilo que Thoreau considerava serem as vidas de “silencioso desespero” da maioria dos homens. Precisamente, a melhor forma de proteger a natureza é educando as pessoas para sua vital importância e isso só é possível através da fruição dos seus espaços e ambientes e não se pode proteger o meio natural afastando as pessoas dele. Conservação é uma coisa, interdição é outra.

Por outro lado, a ideia errónea de que os Açores são um grande santuário natural intacto e puro é não só falsa como potencialmente perigosa. Toda a história destas ilhas é uma de interação entre homem e natureza. A virada das terras, os cultivos, a introdução de espécies, os Açores são esse moldar da natureza pelo homem e, por sua vez, da construção do homem pela natureza que o rodeia, tantas vezes castigando, outras acolhendo e nutrindo, com a sua opulência e abundância. E o Ilhéu da Vila, proteção e ancoradouro natural desde os inícios do povoamento, representa um exemplo singular dessa relação simbiótica e de interdependência entre o humano e o natural. Até 1942 a Vila Franca foi, por causa do seu Ilhéu, ancoradouro privilegiado da ilha, inclusive no interior do Ilhéu, o que levou ao rasgar de um canal de acesso logo no séc. XVI. Esta relevância levou mesmo à elaboração de um projeto para a construção de um ou mais molhes de ligação entre o Ilhéu e a ilha, para a criação de um grande porto oceânico, o que originou a criação da Companhia do Abrigo Marítimo do Ilheo de Vila Franca do Campo, da qual até a rainha D. Amélia e o rei D Fernando foram subscritores de ações. Ao longo dos séculos, o Ilhéu foi terra de cultivos, de vinha e pastoreio e, em 1933, zona de banhos e veraneio com a construção de uma casa de apoio pelo seu então proprietário António Botelho da Câmara Velho de Melo Cabral. Desde sempre o Ilhéu é parte fundamental da vivência micaelense e fonte perene dessa ligação entre homem, mar e natureza. Elogiar a sua interdição, mesmo que por ultraconservadorismo ambiental, é rejeitar a verdadeira natureza da vida insular.

 

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Speakers' Corner 26

Réquiem por um Ilhéu

Se tivéssemos de elaborar uma checklist de meia dúzia de postais turísticos dos Açores, certamente o Ilhéu de Vila Franca seria um deles. Preso, como uma lua, à gravidade da ilha, o Ilhéu da Vila completa a paisagem e o horizonte da costa sul de São Miguel, encantando-nos com a sua majestade vulcânica.

E se, para quem nos visita, o Ilhéu é fonte de atração e curiosidade, para quem aqui vive ou cresceu, o Ilhéu é memória e parte intrínseca de uma identidade. Os banhos, as viagens no Cruzeiro do Ilhéu, o velho mestre Mané Cafua, os dias inteiros passados em bronzeada placidez, encontrando a melhor curva da rocha para nos deitarmos, os saltos das pedras para os mais afoitos, os caminhos, os picnics, as melancias, explorar as golas, passar debaixo do pontão na maré vazia, a viagem em torno do Ilhéu no último barco do dia na luz cálida do entardecer. O Ilhéu é, para locais e visitantes, uma parte fundamental da experiência micaelense, tal como o pôr-do-sol dos Mosteiros ou as águas quentes das Furnas.

Um verão sem Ilhéu é como a Terceira sem Angra, o Faial sem o Pico, São Jorge sem Fajãs, ou as Flores sem o Poço da Ribeira do Ferreiro, como tão mediaticamente se discutiu nos últimos tempos. É por isso que a notícia da interdição de banhos no Ilhéu na próxima época balnear merecia um verdadeiro sobressalto cívico da população micaelense e açoriana, tanto pelo que o Ilhéu representa para a vivência da ilha, como pelo que significa para a imagem do arquipélago, tão hipocritamente enlaçado no embrulho falso da sustentabilidadezinha, mas, acima de tudo, pelo que demonstra de incúria, inépcia e irresponsabilidade das políticas públicas e dos seus executores.

O problema está identificado, a Lei é do conhecimento de todos, tiveram anos para estudar e atacar a situação, juntos, autarquia e governo, porém, deixaram-no chegar a este ponto, privando-nos de um património público, jogando agora ao passa culpas costumeiro da responsabilidade do outro e da interpretação legal, num cinismo sem-vergonha e que envergonha. Desde 2016 que o Ilhéu recebeu as primeiras notas negativas sobre a qualidade da água, de novo em 2018, com classificação de Aceitável, o penúltimo numa escala de 4 níveis entre o Mau e o Excelente, e sucessivamente desde 2020, incluído 24, a classificação do Ilhéu foi, sempre, Má. Com a singular nota de ridículo, por parte dos responsáveis, de culpar as gaivotas pelo acumular de níveis perigosos de E. Coli. no interior das águas da piscina natural do Ilhéu.

É sabido que as obras invisíveis são aquelas que os políticos mais detestam, então se feitas debaixo do chão são ainda mais odiosas. Não há nada como uma boa rotunda, um pavilhão multiusos que ninguém use, ou um bom metro cúbico de betão na orla marítima para fazer a alegria de um autarca ou de um governante. O bom e útil saneamento básico é coisa para ingénuos. Não dá votos, dizem eles, quando agora, perante os impactos negativos, a crítica legítima e o poder a fugir-lhes pelas palmas das mãos, se contorcem em desculpas esfarrapadas e cambalhotas legais. Tiveram anos para construir uma ETAR e, pelo menos 5 anos, para resolver o problema do emissário submarino, impedindo este desfecho. Construíram restaurantes, fizeram festivais e betonaram praias pitorescas com obras monumentais. Por seu lado, o governo, entretido a comprar certificados e selos ambientais, fez comissões que assistiram, impávidas e serenas, sem fiscalizar, multar, ou até apoiar financeiramente a solução do problema. Citando Joni Mitchell, pavimentaram o paraíso para construir um parque de estacionamento. Aqui foi pior, transformaram o paraíso numa fossa a céu aberto. Agora todos sacodem a água do capote, quando na verdade estavam a ver se o mar levava o que não souberam, ou não quiseram, resolver. Mas, numa terra onde tudo vai parar à ribeira e da ribeira para o mar, o mar, na sua sabedoria, tudo devolve, para os desmascarar.