quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Speakers' Corner 8

O Fado do Embuçado

Portugal é prenhe de messianismo. Desde a sua incepção que o país se constrói na ideia de uma graça divina que longe se estenderá pela sua história. Tão longe que ainda hoje o povo se ajoelha na prece do seu “embuçado”. A lista é interminável e tem em D. Sebastião, o Encoberto, a expressão máxima dessa ideia messiânica que atravessa a nossa história, seguindo pelos séculos, em saltos políticos e filosóficos, contaminando o raciocínio das elites e o espírito do povo. E mesmo pela república dentro, até à democracia, as figuras messiânicas foram sempre pródigas na convulsiva e angustiada política portuguesa, numa linhagem que, de Afonso Henriques a Salazar, marca a neblina nacional pela ânsia de um Quinto Império. Salazar, e o seu principal propagandista, António Ferro, foram, aliás, os mais instrumentais elementos na construção deste Portugal contemporâneo, submergido no caldeirão denso do saudosismo, numa espécie de revisionismo histórico nacionalista e antimarxista, que continua hoje tão em voga, como se viu nessa equivoca e extemporânea sessão solene do 25 de Novembro, a que assistimos anteontem.

Vem este longo intróito a propósito das notícias veiculadas esta semana sobre a presuntiva candidatura presidencial de S. Exa. o Chefe de Estado Maior da Armada, Almirante Gouveia e Melo, ou, como ficou conhecido aquando da sua projeção para a fama, o Capitão Iglo da ditadura pandémica. Despenseiro logístico da panaceia vacinal feito novo messias da grandeza pátria, emergindo das águas do anonimato militar para os holofotes do circo político-mediático na velocidade de duas inoculações. Mas, o que me interessa realçar nesta putativa candidatura, não é a suposta incógnita bruma ideológica em que vem envolvida a personagem (para mim o autoritarismo do protocandidato é claro…), mas é precisamente a dinâmica das reações políticas à intenção do Sr. Almirante, imbuídas na sua quase totalidade por um revisionismo descarado e, diria eu, insultuoso.

É que Gouveia e Melo é uma invenção do Costismo, uma ideologia política impregnada pelo maquiavelismo clássico de que os fins justificam os meios. No auge da pandemia, o Costismo não se coibiu de fazer mão dos mais básicos instintos e armas do populismo, nomeadamente a instrumentalização da autoridade militar, para imposição de uma ordem arbitrária, eminentemente inconstitucional e ostensivamente ditatorial, alicerçada no medo, em que um comandante de submarinos, de porte arrogante e traje de combate, qual Eanes em cima do carro, funcionou como instrumento exemplar da estratégia comunicacional de um governo permanentemente em campanha eleitoral. Ainda hoje, ninguém me convence que não foi um qualquer Luís Paixão Martins que se lembrou de colocar à frente do COPCON do Infarmed um militar garboso e embarbado. É por isso que é particularmente cómico, para não dizer patético, assistir hoje aos porta-vozes do regime zurzirem no Almirante com todos os clichés do arrivismo eleitoral: o militar oportunista;  o populista antissistema; o fascista útil e outras lamentações do género quando foram eles próprios quem, não só inventou o “monstro” de que agora se acobardam, como criou o caldo de cultura que permite que hoje, 50 anos depois das promessas de Abril, o descrédito das pessoas perante um estado falhado seja tal, que um novo embuçado conquiste mais de 20% de aprovação do eleitorado.

Nos meus tempos de petiz, num Portugal mais simples, João Ferreira Rosa, um perigoso reacionário, cantava num lirismo particular o “Fado do Embuçado”, que todos entendiam como um hino a D. Sebastião. O poema, escrito por Gabriel Oliveira, conhecido, ironicamente, como Gabriel Marujo, e musicado pelo guitarrista José Marques Piscalarete, era, afinal, uma homenagem ao Rei D. Carlos que, consta, gostava de fados. Pode ser que o Almirante faça deste fado o seu fado, para grande mal do nosso fado coletivo…

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Speakers' Corner 7

Pelo buraco de Alice

Qualquer empresário sabe que o Governo Regional está numa lastimável situação financeira. São as dívidas aos fornecedores, os atrasos nos pagamentos, as linhas de apoio desertas e as comparticipações por pagar. Por outro lado, sucedem-se as notícias que dão conta dos aumentos da dívida da região, que já atinge uns impressionantes 3.2 mil milhões de euros. O Banco de Fomento que coloca a Secretaria das Finanças em Tribunal. E dos atrasos do PRR, então, já nem se fala. Aqui há umas semanas o Expresso fazia eco de fontes que davam nota da possibilidade da Região estar à beira de um “resgate”. A confirmação desse descalabro acaba por vir na forma de um apoio extraordinário em sede de Orçamento de Estado no valor de 75 milhões de euros para amortização da dívida, a que o PSD chama de “justa e adequada compensação” e o PS classifica, mais uma vez, de “resgate”, na esperança que seja esse eminente apocalipse financeiro a fazer tremer o governo de Bolieiro.

Na esteira das recentes eleições americanas, muito se tem falado sobre as motivações eleitorais e, principalmente, do impacto das questões económicas na orientação de voto dos eleitores. Colocando muitos analistas o ónus da derrota de Kamala Harris nas consequências da crise inflacionária na vida dos americanos, resumindo a teoria na velha e célebre expressão de James Carville, assessor político de Bill Clinton, que sentenciou: “é a economia, estúpido!”

Nos Açores, onde o peso da administração pública na economia ronda os 32% é difícil perceber os impactos reais da situação financeira na intenção de voto dos seus cerca de 34 mil funcionários públicos, cerca de um terço da população empregada. Mas, desconfio que enquanto continuarem a cair todos os meses os ordenados nas contas e o Turismo continue a fazer verter pequenos acrescentos ao seu rendimento o impacto será reduzido ou nulo. Para mal dos nossos pecados, o grande motivador eleitoral nos Açores é o recrutamento laboral nessa mesma administração pública, muito mais do que as percentagens do endividamento ou as curvas negativas do défice.

No mês passado, o PS-Açores realizou o seu congresso num Teatro Micaelense com meia casa e a tentativa de projetar o seu novo líder para o topo das preferências do eleitorado. Num episódio muito pouco comentado, mas elucidativo, Pedro Nuno Santos, no seu discurso, dirigindo-se a Francisco César, referiu a sua já longa carreira política conjunta, de mais de vinte anos, e a sua cumplicidade e amizade, o que é normal e apreciável, mas logo a seguir foi mais longe ao dizer que “nós sabíamos que este dia ia chegar”, cito, referindo-se à circunstância de serem ambos líderes nacional e regional do partido socialista, o que, isso sim, revela uma certa maneira de estar e de ver a política que tem tudo para ser condenável. Presos na sua própria mitomania, os dois jovens lideres como que caíram pelo buraco de Alice e perderam a noção da realidade, vivendo nesse devaneio sonhador de quem acha que está predestinado ao céu por direito próprio.

Há um lugar comum que diz que nos Açores não se ganha eleições, são os outros que as perdem. Esta nova sofreguidão dos socialistas açorianos com a dívida da Região mostra bem por onde acham que Bolieiro poderá vir a sentir mais dificuldades. Mas esta esperança, este pensamento mágico, labora em dois equívocos. O primeiro, como agora ficou provado com esta esmola orçamental, é que Montenegro nunca deixará cair Bolieiro e tão depressa Pedro Nuno não substituirá Montenegro. A segunda, e muitas vezes esquecida, e que James Carville repetia sempre depois de gritar pela economia, é que o que os eleitores pedem é mudança, e, como se vê pela incapacidade de constituir uma candidatura a Ponta Delgada, essa mudança, por pior que sejam os social-democratas, este PS não consegue pelos vistos corporizar.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Speakers' Corner 6

Porque perderam os Democratas

Muitas foram as reações a que assistimos, um pouco pelo mundo, à surpreendente vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas. Surpresa, choque, até mesmo, em alguns casos, pavor, perante o regresso à Casa Branca da alaranjada e iconoclástica celebridade americana, foram alguns dos mais comuns registos, tanto por parte de políticos como de comentadores, do lado esquerdo da barricada, nos dois lados do Atlântico. No campo Democrata, o grosso das respostas foram no mesmo sentido da campanha, uma visceral e contundente repulsa perante tudo aquilo que Trump representa, literalmente, um novo fascismo, englobando no epiteto tanto a criatura como os seus apoiantes

Em Portugal, no dia a seguir às eleições a líder parlamentar do Partido Socialista, Alexandra Leitão, foi ao ponto de publicar na rede social X um desabafo em que classificava o resultado como a vitória do ódio. “Venceu o ódio, a violência, o totalitarismo, a boçalidade, o racismo e a misoginia. (…) Venceu a indecência!” Escreveu. Este tipo de reações, mais ou menos gástricas, à eleição de Trump, embora compreensíveis, revelam, no entanto, um padrão mais complexo e, diria eu, perigoso, que é o alheamento dos diretórios partidários da esquerda global relativamente ao que são as legitimas aspirações dos eleitores e, mais grave, àquilo que eles próprios contribuíram para este tipo de desfecho, e o que isso significa para a própria saúde da democracia no seu todo.

Por alguma razão, a esquerda não consegue compreender o quão drasticamente se afastou do seu eleitorado e como as pessoas se sentem rejeitadas e abandonadas por aqueles cuja obrigação era protegê-las. E, de como décadas de subserviência ao  grande capital, ou, mais recente, a deriva para um segmento urbano, dito intelectual e woke, levaram a que a classe trabalhadora olhasse para o outro lado da barricada em busca de quem lhes resolva os problemas. Bernie Sanders, velho e empedernido socialista, foi o primeiro a colocar o dedo nesta ferida, assinalando precisamente este alheamento do partido democrata face àquilo que era o seu verdadeiro eleitorado – a “working class” americana, que luta no dia-a-dia para chegar ao fim do mês. Basicamente, o partido deixou de ouvir, defender e representar as suas bases.

Talvez o aspeto mais revelador desta oligarquia do diretório partidário seja a própria forma de designação dos candidatos. Primeiro com uma insistência absurda em Joe Biden, octogenário, impopular e decadente. E, a sua substituição, tardia, sombria e autoritária, por Kamala, numa usurpação incompreensível do procedimento enraizado de primárias. Os barões do Partido Democrata dispuseram a seu belo prazer das opções do partido, com o resultado desastroso que agora se conhece.

Enquanto a América real se preocupava com a economia, a emigração e os impactos e consequências da pandemia, a esquerda liberal e socialista perdia o seu tempo em preleções incoerentes sobre franjas sociais ou a pura e simples demonização, e mesmo insulto, dos seus adversários. Recordemos que Biden chegou a classificar de “lixo”(!) os apoiantes de Trump, tal como Alexandra Leitão os adjetiva de indecentes, numa arrogância e superioridade moral e intelectual que é a antítese de tudo o que deveria ser a Esquerda.

Esta incapacidade de estabelecer pontes, de ouvir o eleitorado e de se aproximar da realidade concreta das vidas dos cidadãos, desviando-se do centro e polarizando ainda mais o ambiente político é, como se vê, uma receita para a desgraça. Lá, como cá, inclusive até nestas pequenas ilhas no centro do lago, é na aproximação dos partidos às pessoas, sabendo escutar as bases, saindo das pequenas bolhas dos grupos de amigos, ou dos vídeos do TikTok, que se constroem alternativas, que se estreitam laços com críticos e opositores, e que, ao final do dia, se ganham eleições. Em democracia, não há vencedores pré-designados, nem sequer vitórias morais. Em democracia, quem manda é o povo, mesmo quando não concordamos com ele.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Speakers' Corner 5

Da Democracia na América

À hora em que o leitor olhar este jornal provavelmente já saberá quem foi o vencedor das eleições americanas, ou então, talvez não. À hora em que escrevo, mais de 240 milhões de eleitores registados para votar já terão feito ouvir a sua escolha na maior democracia do mundo. Se o resultado pode parecer problemático e imprevisível, há já uma certeza que podemos tirar deste processo eleitoral: a América está irreconciliavelmente dividida. E estas eleições apenas ajudaram a cavar ainda mais esse fosso de apartamento entre essas duas américas.

No entanto, já em 1835, um jovem aristocrata francês alertava para os perigos que ameaçavam a jovem democracia americana. “O despotismo de uma fação não deve ser menos temido do que o despotismo de um indivíduo” escreveu Alexis de Tocqueville no seu “Da Democracia na América”, alertando-nos para o que considerava ser a perigosa tendência para a “tirania da maioria”. Como assistimos agora, nestas eleições em que o insulto e as bandeiras do medo, agitadas à exaustão por ambas as partes, com acusações estridentes como “lixo” e “Hitler”, são o denominador comum dos slogans políticos. Muito pouco, na verdade, se quisermos ser isentos e independentes, distingue atualmente a praxis eleitoral de Republicanos e Democratas.

No final dos anos 90, dois políticos de esquerda, Tony Blair e Bill Clinton, nos dois lados do grande lago Atlântico, deram forma a uma teoria política a que se designou chamar de “Terceira Via”. O “centrismo radical”, como lhe chamou Anthony Giddens. Vindos da ressaca de Thatcher e Reagan, os dois líderes da grande social-democracia ocidental procuraram fazer a síntese entre o estado social e a economia de mercado como forma de, para além de conquistarem o poder, o poderem manter. Quase trinta anos passados, o que a Terceira Via fez ao centro-esquerda mundial foi desmembrá-lo e descaracterizá-lo, despindo-o das suas mais profundas ideologias e princípios, em prol de uma frenética obsessão com o politicamente correto e, em última instância, da fixação permanente das máquinas partidárias na mera vitória eleitoral.

Ao longo do tempo, a cedência ao capitalismo mais selvagem, levou a um afastamento dos eleitores do centro, que deixaram de ver as suas aspirações acarinhadas pelos partidos de centro-esquerda, e foi isso, também, que levou ao surgimento de agendas cada vez mais radicais e extremistas, com os nacionalismos xenófobos, de um lado, e os wokismos de género, do outro. Se associarmos a isto as consequências devastadoras de duas crises dramáticas no espaço de uma geração – financeira em 2008 e pandémica em 2020 – temos o caldo perfeito para o mundo bipolar em que vivemos hoje.

Independentemente das nossas opiniões sobre Trump e Kamala, eles próprios já não representando bem a natureza de Republicanos ou Democratas, um episódio em particular torna-se paradigmático para a compreensão destas eleições e da crise que atravessa a América. Robert Kennedy Jr, sobrinho de John e filho de Bobby, foi candidato democrata às primarias do seu partido e, depois de escorraçado pela máquina partidária democrata, candidato independente, até, finalmente, e em desespero de causa, declarar o seu apoio a Trump. O movimento criado por Kennedy apresenta-se hoje com uma plataforma designada Make America Healthy Again, apostado em combater os lobbys financeiros das grandes companhias farmacêuticas começando, precisamente, no ponto nevrálgico da questão: a saúde. Tornar a América saudável outra vez. Nada podia ser mais de esquerda do que isto, mas é Trump, o proto-tirano, quem parece querer abraçar este movimento. Enquanto Kamala, e os democratas, tirando a questão do aborto, que defende, e bem, propõe políticas monetaristas que, ao final do dia, apenas perpetuam as desigualdades de um sistema baseado na gestão, não da saúde, mas, do negócio da doença. Como bem alertou Tocqueville, triste América que se divide entre duas formas de tirania.