quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Speakers' Corner 1

 Ser ou não ser

Vivemos tempos conturbados em que o mundo no seu peso inabalável parece querer cair sobre nós de forma final e absoluta. Mal saído da loucura pandémica, para muitos uma luta que ainda não terminou, o mundo soçobrou sob o peso da guerra. Desde as estepes ucranianas ao eternamente bélico médio-oriente, onde o mais antigo conflito religioso e territorial do mundo continua a fazer-nos pôr em causa a nossa fé na humanidade. Na velha Europa, vivemos uma espécie de sensação de estertor final de uma longa época de paz e prosperidade, no ar paira um leve odor a declínio e queda do império, do sonho e do projeto europeu, cujo Brexit foi já o primeiro frémito, o primeiro chilrear do canário na mina. Uma profunda crise de confiança nas instituições democráticas, um titubeante e cada vez mais desigual desígnio económico e uma gravíssima crise humanitária colocam a União Europeia, outrora um farol global de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, na beira do precipício da irrelevância e da autodestruição. 

Edward Gibbon, o grande historiador britânico do século dezoito, identificou cinco grandes marcas do declínio do Império Romano: a desigualdade entre ricos e pobres; a dependência da sociedade e da economia face ao Estado; a desproporção entre a exteriorização da riqueza e a criação da mesma; a arte que se torna cada vez mais sensacionalista e aberrante; e uma sociedade cada vez mais dominada pela obsessão com o sexo. Olhando a civilização ocidental hoje não podemos deixar de pensar o quão embrenhados estamos nestes essenciais alertas de Gibbon. A Europa e a América, outrora a grande pátria do liberalismo esclarecido, agitam-se num turbilhão de crise económica e financeira, falência do Estado Social, desigualdade aberrante entre o 1% mais rico e a cada vez maior maioria de pobres e remediados e, por todo o lado, da comunicação social aos meios académicos, da arte ao entretenimento, o vírus woke que tudo contamina com a sua arrogância discriminatória e perversidade autoritária, como uma espécie de fatalíssimo e imparável covid intelectual. Em Portugal, 50 anos depois de Abril, cuja celebração inexplicável e escandalosamente passou quase como despercebida na torrente mediática e política, os dois principais partidos democráticos vivem a farsa pueril do orçamento, a extrema-direita, populista e demagógica, encavalita-se nos copiosos falhanços da partidocracia que capturou o país, onde um almirante autoritário, inventado no calor do pânico pandémico pelos próprios políticos, se arroga agora o plano de substituir no mais alto cargo da nação um pobre e envergonhado professor de direito caído em desgraça pela sua própria vaidade e maquiavélica sede de conspiração. Nos Açores, a política está refém dos caprichos bairristas e da incompetência verborrenta, por um lado, e do fatalismo hereditário de uma longa e meticulosamente planeada carreira política, por outro, e nem o clima nestes ofegantes e intermináveis dias seguidos de sudoeste nos deixa vir à tona para respirar, como que infinitamente submergidos na omnipresença transpirante do bafo. 

Vasco Pulido Valente, um dos mais lúcidos e icónicos intelectuais portugueses do virar do milénio, costumava escrever que “o mundo está perigoso”. Olhando este cenário mais ou menos dantesco que configura o ar do nosso tempo, um certo pessimismo realista levar-nos-ia a citar VPV com o mesmo presciente aviso. Mas, talvez, exatamente por isso, valha a pena antes, perante os infortúnios do mundo, clamar por uma defesa firme e intransigente dos valores da Liberdade e da Democracia. Perante as múltiplas atribulações do destino importa erguermo-nos, fazer ouvir a nossa voz e lutar. Citando Hamlet, na mais significativa parte do famoso solilóquio “ser ou não ser”, é mais nobre pegar em armas contra o mar das dificuldade e opondo-nos a elas pôr-lhes fim do que, perante grandes adversidades, dormir, sonhar – morrer.

Publicado na edição n.º 22408 de 09/10/2024 do Açoriano Oriental

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