A heteronímia do lugar
É comum, na indústria do turismo, ensaiarem-se diversas
explanações sobre a identidade dos destinos, procurando identificar com
exatidão matemática as características únicas de cada lugar, a cultura, a
história, as marcas do território e as idiossincrasias locais, com o objetivo
de determinar a sua capacidade de atrair e fidelizar visitantes.
Nas últimas décadas, a massificação tornou-se um dos fatores
mais determinantes na evolução dessas teorias. Fenómenos como a gentrificação,
a desertificação e, sobretudo, a artificialização infiltram-se na identidade
dos lugares, adulterando-a ou, como alguns defendem, destruindo-a. É como se os
destinos passassem por uma espécie de crise de identidade, tanto do ponto de
vista endógeno, na percepção que os residentes têm do seu território, como
exógeno, refletindo as expetativas e fantasias de quem o visita. Uma espécie de
bipolaridade beligerante entre a identidade vivida e a identidade
experimentada.
No fundo, é como se o turismo se tornasse um fenómeno
autofágico, consumindo-se a si próprio na sua voracidade financeira, muitas
vezes dando origem à construção de uma ficção, uma heteronímia do lugar.
O lugar que o residente conhece e vive todos os dias já não
é bem o mesmo que o turista visita. E o turista, por sua vez, procura algo que
talvez nunca tenha existido. Uma fantasia de pureza, um postal ilustrado com
cheiro a lava e sabor a mar. O destino passa então a viver uma dupla (ou
tripla) personalidade: é ao mesmo tempo o que é, o que o turista deseja que
seja e o que as agências de marketing juram que ele será. As dinâmicas entre
turistas e residentes e os efeitos dessas relações, tanto imediatos como a
médio e longo prazo, provocam uma multiplicidade de identidades que quase se
consomem a si próprias. Ao ponto de já ninguém saber, com segurança, o que o
lugar efetivamente é.
Esta confusão, estas personalidades sobrepostas, produzem
uma nova forma de pressão sobre o território. Uma pressão que precisa de ser
pensada, planeada e trabalhada se quisermos alcançar a tão proclamada
sustentabilidade que tanto encanta os discursos políticos e as apresentações das
agências de comunicação. E não se trata apenas de preservar o ambiente,
controlar fluxos ou compilar planos diretores com números de camas e dormidas,
ou estratégias de marketing com slogans sensacionais. Nem de estatísticas,
tantas vezes cegas, que acumulam visitantes, mas ignoram experiências,
alicerçadas numa visão estanque do destino, em vez de numa abordagem integrada,
até holística, do que um território turístico e habitado pode e deve ser.
Trata-se, acima de tudo, de reconhecer essa identidade
heteronímica do lugar: sendo autêntico e verdadeiro, mas também múltiplo e
contraditório. Entre a vivência do residente e a ânsia do visitante, emerge uma
realidade híbrida, simultaneamente genuína e desejada, com tanto de real como
de ficcional. É nesta tensão que se constroem os destinos turísticos
duradouros: os que sabem equilibrar, em simultâneo, a qualidade de vida de quem
os habita e a qualidade da experiência de quem os visita.
Esse é o verdadeiro desafio da sustentabilidade turística:
reforçar e potenciar esses dois eixos paralelos e indissociáveis. Porque, sem
equilíbrio entre quem vive e quem visita, o destino colapsa. Porque, sem
identidade, pouco restará para conhecer além da banal artificialização de um
lugar perdido entre pragas de infestantes, águas poluídas, acessibilidades
deficientes, expetativas frustradas e uma crescente hostilidade dos locais
perante os visitantes.
Os Açores ainda vão a tempo de evitar os erros de um
desenvolvimento turístico guiado pelo desordenamento e pela cobiça. Mas, para
isso, é necessário que todos encarem esta atividade como mais do que uma nova
galinha dos ovos de ouro, ou um inimigo a abater. E sim como um verdadeiro
pilar de desenvolvimento futuro, capaz não só de gerar riqueza, mas, acima de
tudo, de a redistribuir.
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