quarta-feira, 30 de julho de 2025

Speakers' Corner 43

A heteronímia do lugar

É comum, na indústria do turismo, ensaiarem-se diversas explanações sobre a identidade dos destinos, procurando identificar com exatidão matemática as características únicas de cada lugar, a cultura, a história, as marcas do território e as idiossincrasias locais, com o objetivo de determinar a sua capacidade de atrair e fidelizar visitantes.

Nas últimas décadas, a massificação tornou-se um dos fatores mais determinantes na evolução dessas teorias. Fenómenos como a gentrificação, a desertificação e, sobretudo, a artificialização infiltram-se na identidade dos lugares, adulterando-a ou, como alguns defendem, destruindo-a. É como se os destinos passassem por uma espécie de crise de identidade, tanto do ponto de vista endógeno, na percepção que os residentes têm do seu território, como exógeno, refletindo as expetativas e fantasias de quem o visita. Uma espécie de bipolaridade beligerante entre a identidade vivida e a identidade experimentada.

No fundo, é como se o turismo se tornasse um fenómeno autofágico, consumindo-se a si próprio na sua voracidade financeira, muitas vezes dando origem à construção de uma ficção, uma heteronímia do lugar.

O lugar que o residente conhece e vive todos os dias já não é bem o mesmo que o turista visita. E o turista, por sua vez, procura algo que talvez nunca tenha existido. Uma fantasia de pureza, um postal ilustrado com cheiro a lava e sabor a mar. O destino passa então a viver uma dupla (ou tripla) personalidade: é ao mesmo tempo o que é, o que o turista deseja que seja e o que as agências de marketing juram que ele será. As dinâmicas entre turistas e residentes e os efeitos dessas relações, tanto imediatos como a médio e longo prazo, provocam uma multiplicidade de identidades que quase se consomem a si próprias. Ao ponto de já ninguém saber, com segurança, o que o lugar efetivamente é.

Esta confusão, estas personalidades sobrepostas, produzem uma nova forma de pressão sobre o território. Uma pressão que precisa de ser pensada, planeada e trabalhada se quisermos alcançar a tão proclamada sustentabilidade que tanto encanta os discursos políticos e as apresentações das agências de comunicação. E não se trata apenas de preservar o ambiente, controlar fluxos ou compilar planos diretores com números de camas e dormidas, ou estratégias de marketing com slogans sensacionais. Nem de estatísticas, tantas vezes cegas, que acumulam visitantes, mas ignoram experiências, alicerçadas numa visão estanque do destino, em vez de numa abordagem integrada, até holística, do que um território turístico e habitado pode e deve ser.

Trata-se, acima de tudo, de reconhecer essa identidade heteronímica do lugar: sendo autêntico e verdadeiro, mas também múltiplo e contraditório. Entre a vivência do residente e a ânsia do visitante, emerge uma realidade híbrida, simultaneamente genuína e desejada, com tanto de real como de ficcional. É nesta tensão que se constroem os destinos turísticos duradouros: os que sabem equilibrar, em simultâneo, a qualidade de vida de quem os habita e a qualidade da experiência de quem os visita.

Esse é o verdadeiro desafio da sustentabilidade turística: reforçar e potenciar esses dois eixos paralelos e indissociáveis. Porque, sem equilíbrio entre quem vive e quem visita, o destino colapsa. Porque, sem identidade, pouco restará para conhecer além da banal artificialização de um lugar perdido entre pragas de infestantes, águas poluídas, acessibilidades deficientes, expetativas frustradas e uma crescente hostilidade dos locais perante os visitantes.

Os Açores ainda vão a tempo de evitar os erros de um desenvolvimento turístico guiado pelo desordenamento e pela cobiça. Mas, para isso, é necessário que todos encarem esta atividade como mais do que uma nova galinha dos ovos de ouro, ou um inimigo a abater. E sim como um verdadeiro pilar de desenvolvimento futuro, capaz não só de gerar riqueza, mas, acima de tudo, de a redistribuir.

 

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