O Grand Tour micaelense e o futuro do turismo regional
Sábado passado assinalou-se o Dia Mundial do Turismo, este
ano dedicado ao tema “Turismo e Transformação Sustentável”, salientando
o poder transformador desta indústria como agente positivo de mudança, tanto
nos territórios como nas comunidades.
A ideia de turismo, alicerçada no conceito romântico do Grand
Tour, é relativamente recente. Os seus primórdios recuam aos conceitos de
lazer e de tempo livre, uma conquista civilizacional do final do século XVIII,
generalizada na burguesia do século XIX. O lazer nasce da Revolução Industrial
e é precisamente a máquina a vapor que impulsionará a deslocação das elites
burguesas pelos territórios europeus e além-fronteiras.
Contrariamente ao que se possa pensar, os Açores não ficaram
à margem deste movimento. A sua centralidade geográfica, as paisagens, as
gentes, os produtos e, no caso específico de São Miguel, as termas de águas
férreas, cedo despertaram o interesse de viajantes de ambos os lados do
Atlântico.
Não é necessário ser especialista na matéria, nem recorrer
às obras de autores como Ricardo Madruga da Costa ou Fátima Sequeira Dias, ainda
que essenciais, para compreender a antiguidade e o potencial turístico das
ilhas. Basta folhear o magnífico tomo de Maria das Mercês Pacheco, Viajantes
nos Açores: o olhar estrangeiro sobre as ilhas desde o século XVI, da
editora Artes e Letras, para sentir a antiguidade desse fascínio insular feito
de vulcões, navegações e do sortilégio das suas gentes, que fazem do turismo
nos Açores uma história já com bastante mais de 100 anos.
Em 1899, São Miguel foi pioneira no país com a criação da Sociedade
Propagadora de Notícias Michaelenses. A instituição dedicava-se à promoção
externa da ilha através de boletins, guias e informação turística, contando com
figuras como Ernesto do Canto e Eugénio do Canto e Castro como seus principais
dinamizadores.
No ano de 1924 ganhou notoriedade a Viagem dos
Intelectuais, promovida por José Bruno Carreiro através do Correio dos
Açores, que trouxe ao arquipélago notáveis da cultura e do jornalismo
nacional, que puderam conhecer in loco o seu imenso potencial turístico.
Em julho de 1933 surge a Socidedade Terra Nostra,
fundada por Augusto Arruda, Agnelo Casimiro e Francisco Bicudo, e enriquecida
pelo talento artístico do Eng. Manuel António de Vasconcelos. Este audacioso projeto
viria a consolidar o Vale das Furnas como epicentro turístico da ilha e que, um
par de anos depois, Vasco Bensaúde transformaria no grupo que até hoje enverga
o estandarte da excelência do destino Açores. Uma empreitada que, pela sua
ousadia, muito merecia que se lhe fizesse a verdadeira história até como legado
para as gerações futuras.
Poucos anos mais tarde, alguns destes protagonistas estariam
também na fundação da SATA, companhia criada com a visão estratégica de ligar
os Açores ao mundo e vice-versa. Hoje, infelizmente, a empresa atravessa uma
fase de agonia precipitada, com consequências imprevisíveis para a
sustentabilidade turística do destino.
A partir dos anos 1970 e 1980, com a chegada dos aviões a
jato e profundas mudanças políticas e sociais, o turismo açoriano entrou numa
espécie de hiato evolutivo. Ao qual não foi alheio o conservadorismo da época,
cujo “mota-amarelismo” via nesta indústria progressista e inclusiva uma ameaça
à estabilidade de um certo atavismo e sectarismo insular avesso a muitas
modernidades.
Já no nosso tempo, o contributo de figuras como Albano
Cymbron e os seus “suecos” e passeios pedestres, Serge Viallelle e a observação
de cetáceos, Duarte Ponte e Luís Bensaúde com os seus hotéis, para referir
apenas alguns no meio de muitos, aliados à liberalização do espaço aéreo, fizeram
explodir a indústria turística na região, tornando-a incontornável no
desenvolvimento do arquipélago.
O próprio Governo Regional reconhece isso mesmo: em
comunicado pelo Dia Mundial do Turismo, apontou que o setor já contribui para
mais de 1.000 milhões de euros de riqueza anual, representando cerca de 20% do
VAB regional, 17% do PIB e 17% do emprego. Números que atestam a centralidade incontornável
do turismo no futuro desta região.
Contudo, é precisamente essa relevância que nos deve levar a
uma reflexão séria e descomplexada sobre o presente e o futuro do turismo nos
Açores. Para isso é essencial fugir tanto das propagandas laudatórias como dos
pessimismos retrógrados que veem no turismo uma doença perturbadora da placidez
ilhoa.
Apesar do crescimento constante nos indicadores, há sinais cada
vez mais preocupantes no retrato mais abrangente do sector, que nos deviam
inquietar e ponderar. Desde logo, a ausência de linhas orientadoras claras e
de planeamento estratégico fragiliza o crescimento sustentado de uma
atividade essencial para o nosso desenvolvimento. Falta uma visão definida
sobre que destino queremos ser e que metas queremos atingir, o que deixa o
setor, já de si sensível a choques externos, ainda mais vulnerável às flutuações
do mercado e, em especial, dos humores das companhias aéreas. Planos
sucessivamente suspensos e estratégias elegantemente desenhadas, mas nunca efetivamente
aplicadas, potenciam uma espécie de caos organizado que gera deriva em vez de
rumo.
Outro problema premente é a falta de uma identidade. Tardamos
em compreendermo-nos como um agregado de diferentes partes e em promover-nos
como tal, potenciando diferenças, em lugar de, bairrista e artificialmente,
promover gateways que na verdade se canibalizam umas às outras. Por
outro lado, a hegemonia de uma imagem de “destino de natureza pura” negligencia
dimensões como a história, a gastronomia, o património e as especificidades
culturais distintas de cada ilha, elementos fundamentais para afirmar os Açores,
no seu todo, como destino europeu e atlântico de referência, em particular em
mercados como o norte-americano, tão ávido de história como de natureza.
A sazonalidade constitui igualmente um desafio
central. No verão IATA (final de março a final de outubro), a região dispõe de
cerca de 1,16 milhões de lugares em aviões, de acordo com os dados que é
possível obter, número que desce drasticamente no inverno para apenas 350 mil.
Este perigosíssimo desequilíbrio estrutural põe em causa a rentabilidade do
setor e trava o seu crescimento pondo em risco empresas, postos de trabalho e
investimentos.
Acresce o incremento exponencial da oferta e a saturação de
alojamento: nos últimos dez anos, a capacidade aumentou mais de 600%,
enquanto os hóspedes cresceram apenas 130% e as dormidas 200%. Este
desfasamento revela um setor desequilibrado e altamente vulnerável, apesar do
discurso da “sustentabilidade” que tanto agrada aos atores políticos.
Por último temos um claro desfasamento entre a oferta de
infraestruturas e a procura turística, naquilo que é uma clara
desqualificação do destino causando pressão sobre o território, a qualidade de
vida dos locais e a própria experiência dos visitantes. Um destino como o
nosso, não pode conviver com o fecho do Ilhéu a banhos ou a poluição na praia
do Monte Verde.
Combater a sazonalidade, criar metas equilibradas de
crescimento e alinhar oferta e procura são hoje os principais desafios para
este sector. Uma política focada apenas no curto prazo, nos investimentos
imediatos e estatísticas homólogas, conduzirá inevitavelmente à massificação e
descaracterização de um destino que sempre se construiu mais pela ambição dos
que cá vivem do que pela cobiça dos que nos visitam.
Já para nem falar no velho e gasto tema da promoção, que não
se faz sozinha, nem pode nunca deixar de se fazer, sempre, continuada e
apaixonadamente.
No distante ano de 1933, o Dr. Agnelo Casimiro escrevia na
revista Insula:
“Turismo! Palavra mágica, que de há tempos vem
eletrisando as classes micaelenses num justificado anseio de progresso
regional. Podem e devem (…) aspirar com razão e sem receio a esta poderosa
fonte de desenvolvimento local aquelas terras que, como a formosa ilha de Sam
Miguel, encerram tantas maravilhas panorâmicas e tamanha riqueza hidrológica,
gozando ainda de uma situação geográfica privilegiada, a meio caminho no imenso
Atlântico, entre o Novo e Velho Mundo. (…) O que nos falta, pois? Apenas isto: preparação
e propaganda. Todos o sabem também.”
Quase cem anos volvidos, este anseio em forma de aviso desse
ilustre vulto do séc. XX micaelense mantém-se inusitadamente vivo e até mesmo
com uma estranha e perturbadora atualidade, quando tantas e tantas vezes
seguimos falhando na preparação e na qualificação do destino e negligenciando a
importância da sua promoção cuidada e permanente.
Ao invés, seguimos ao sabor do vento. Infelizmente, mais da
tempestade do que da bonança.
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