quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Speakers' Corner 7

Pelo buraco de Alice

Qualquer empresário sabe que o Governo Regional está numa lastimável situação financeira. São as dívidas aos fornecedores, os atrasos nos pagamentos, as linhas de apoio desertas e as comparticipações por pagar. Por outro lado, sucedem-se as notícias que dão conta dos aumentos da dívida da região, que já atinge uns impressionantes 3.2 mil milhões de euros. O Banco de Fomento que coloca a Secretaria das Finanças em Tribunal. E dos atrasos do PRR, então, já nem se fala. Aqui há umas semanas o Expresso fazia eco de fontes que davam nota da possibilidade da Região estar à beira de um “resgate”. A confirmação desse descalabro acaba por vir na forma de um apoio extraordinário em sede de Orçamento de Estado no valor de 75 milhões de euros para amortização da dívida, a que o PSD chama de “justa e adequada compensação” e o PS classifica, mais uma vez, de “resgate”, na esperança que seja esse eminente apocalipse financeiro a fazer tremer o governo de Bolieiro.

Na esteira das recentes eleições americanas, muito se tem falado sobre as motivações eleitorais e, principalmente, do impacto das questões económicas na orientação de voto dos eleitores. Colocando muitos analistas o ónus da derrota de Kamala Harris nas consequências da crise inflacionária na vida dos americanos, resumindo a teoria na velha e célebre expressão de James Carville, assessor político de Bill Clinton, que sentenciou: “é a economia, estúpido!”

Nos Açores, onde o peso da administração pública na economia ronda os 32% é difícil perceber os impactos reais da situação financeira na intenção de voto dos seus cerca de 34 mil funcionários públicos, cerca de um terço da população empregada. Mas, desconfio que enquanto continuarem a cair todos os meses os ordenados nas contas e o Turismo continue a fazer verter pequenos acrescentos ao seu rendimento o impacto será reduzido ou nulo. Para mal dos nossos pecados, o grande motivador eleitoral nos Açores é o recrutamento laboral nessa mesma administração pública, muito mais do que as percentagens do endividamento ou as curvas negativas do défice.

No mês passado, o PS-Açores realizou o seu congresso num Teatro Micaelense com meia casa e a tentativa de projetar o seu novo líder para o topo das preferências do eleitorado. Num episódio muito pouco comentado, mas elucidativo, Pedro Nuno Santos, no seu discurso, dirigindo-se a Francisco César, referiu a sua já longa carreira política conjunta, de mais de vinte anos, e a sua cumplicidade e amizade, o que é normal e apreciável, mas logo a seguir foi mais longe ao dizer que “nós sabíamos que este dia ia chegar”, cito, referindo-se à circunstância de serem ambos líderes nacional e regional do partido socialista, o que, isso sim, revela uma certa maneira de estar e de ver a política que tem tudo para ser condenável. Presos na sua própria mitomania, os dois jovens lideres como que caíram pelo buraco de Alice e perderam a noção da realidade, vivendo nesse devaneio sonhador de quem acha que está predestinado ao céu por direito próprio.

Há um lugar comum que diz que nos Açores não se ganha eleições, são os outros que as perdem. Esta nova sofreguidão dos socialistas açorianos com a dívida da Região mostra bem por onde acham que Bolieiro poderá vir a sentir mais dificuldades. Mas esta esperança, este pensamento mágico, labora em dois equívocos. O primeiro, como agora ficou provado com esta esmola orçamental, é que Montenegro nunca deixará cair Bolieiro e tão depressa Pedro Nuno não substituirá Montenegro. A segunda, e muitas vezes esquecida, e que James Carville repetia sempre depois de gritar pela economia, é que o que os eleitores pedem é mudança, e, como se vê pela incapacidade de constituir uma candidatura a Ponta Delgada, essa mudança, por pior que sejam os social-democratas, este PS não consegue pelos vistos corporizar.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Speakers' Corner 6

Porque perderam os Democratas

Muitas foram as reações a que assistimos, um pouco pelo mundo, à surpreendente vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas. Surpresa, choque, até mesmo, em alguns casos, pavor, perante o regresso à Casa Branca da alaranjada e iconoclástica celebridade americana, foram alguns dos mais comuns registos, tanto por parte de políticos como de comentadores, do lado esquerdo da barricada, nos dois lados do Atlântico. No campo Democrata, o grosso das respostas foram no mesmo sentido da campanha, uma visceral e contundente repulsa perante tudo aquilo que Trump representa, literalmente, um novo fascismo, englobando no epiteto tanto a criatura como os seus apoiantes

Em Portugal, no dia a seguir às eleições a líder parlamentar do Partido Socialista, Alexandra Leitão, foi ao ponto de publicar na rede social X um desabafo em que classificava o resultado como a vitória do ódio. “Venceu o ódio, a violência, o totalitarismo, a boçalidade, o racismo e a misoginia. (…) Venceu a indecência!” Escreveu. Este tipo de reações, mais ou menos gástricas, à eleição de Trump, embora compreensíveis, revelam, no entanto, um padrão mais complexo e, diria eu, perigoso, que é o alheamento dos diretórios partidários da esquerda global relativamente ao que são as legitimas aspirações dos eleitores e, mais grave, àquilo que eles próprios contribuíram para este tipo de desfecho, e o que isso significa para a própria saúde da democracia no seu todo.

Por alguma razão, a esquerda não consegue compreender o quão drasticamente se afastou do seu eleitorado e como as pessoas se sentem rejeitadas e abandonadas por aqueles cuja obrigação era protegê-las. E, de como décadas de subserviência ao  grande capital, ou, mais recente, a deriva para um segmento urbano, dito intelectual e woke, levaram a que a classe trabalhadora olhasse para o outro lado da barricada em busca de quem lhes resolva os problemas. Bernie Sanders, velho e empedernido socialista, foi o primeiro a colocar o dedo nesta ferida, assinalando precisamente este alheamento do partido democrata face àquilo que era o seu verdadeiro eleitorado – a “working class” americana, que luta no dia-a-dia para chegar ao fim do mês. Basicamente, o partido deixou de ouvir, defender e representar as suas bases.

Talvez o aspeto mais revelador desta oligarquia do diretório partidário seja a própria forma de designação dos candidatos. Primeiro com uma insistência absurda em Joe Biden, octogenário, impopular e decadente. E, a sua substituição, tardia, sombria e autoritária, por Kamala, numa usurpação incompreensível do procedimento enraizado de primárias. Os barões do Partido Democrata dispuseram a seu belo prazer das opções do partido, com o resultado desastroso que agora se conhece.

Enquanto a América real se preocupava com a economia, a emigração e os impactos e consequências da pandemia, a esquerda liberal e socialista perdia o seu tempo em preleções incoerentes sobre franjas sociais ou a pura e simples demonização, e mesmo insulto, dos seus adversários. Recordemos que Biden chegou a classificar de “lixo”(!) os apoiantes de Trump, tal como Alexandra Leitão os adjetiva de indecentes, numa arrogância e superioridade moral e intelectual que é a antítese de tudo o que deveria ser a Esquerda.

Esta incapacidade de estabelecer pontes, de ouvir o eleitorado e de se aproximar da realidade concreta das vidas dos cidadãos, desviando-se do centro e polarizando ainda mais o ambiente político é, como se vê, uma receita para a desgraça. Lá, como cá, inclusive até nestas pequenas ilhas no centro do lago, é na aproximação dos partidos às pessoas, sabendo escutar as bases, saindo das pequenas bolhas dos grupos de amigos, ou dos vídeos do TikTok, que se constroem alternativas, que se estreitam laços com críticos e opositores, e que, ao final do dia, se ganham eleições. Em democracia, não há vencedores pré-designados, nem sequer vitórias morais. Em democracia, quem manda é o povo, mesmo quando não concordamos com ele.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Speakers' Corner 5

Da Democracia na América

À hora em que o leitor olhar este jornal provavelmente já saberá quem foi o vencedor das eleições americanas, ou então, talvez não. À hora em que escrevo, mais de 240 milhões de eleitores registados para votar já terão feito ouvir a sua escolha na maior democracia do mundo. Se o resultado pode parecer problemático e imprevisível, há já uma certeza que podemos tirar deste processo eleitoral: a América está irreconciliavelmente dividida. E estas eleições apenas ajudaram a cavar ainda mais esse fosso de apartamento entre essas duas américas.

No entanto, já em 1835, um jovem aristocrata francês alertava para os perigos que ameaçavam a jovem democracia americana. “O despotismo de uma fação não deve ser menos temido do que o despotismo de um indivíduo” escreveu Alexis de Tocqueville no seu “Da Democracia na América”, alertando-nos para o que considerava ser a perigosa tendência para a “tirania da maioria”. Como assistimos agora, nestas eleições em que o insulto e as bandeiras do medo, agitadas à exaustão por ambas as partes, com acusações estridentes como “lixo” e “Hitler”, são o denominador comum dos slogans políticos. Muito pouco, na verdade, se quisermos ser isentos e independentes, distingue atualmente a praxis eleitoral de Republicanos e Democratas.

No final dos anos 90, dois políticos de esquerda, Tony Blair e Bill Clinton, nos dois lados do grande lago Atlântico, deram forma a uma teoria política a que se designou chamar de “Terceira Via”. O “centrismo radical”, como lhe chamou Anthony Giddens. Vindos da ressaca de Thatcher e Reagan, os dois líderes da grande social-democracia ocidental procuraram fazer a síntese entre o estado social e a economia de mercado como forma de, para além de conquistarem o poder, o poderem manter. Quase trinta anos passados, o que a Terceira Via fez ao centro-esquerda mundial foi desmembrá-lo e descaracterizá-lo, despindo-o das suas mais profundas ideologias e princípios, em prol de uma frenética obsessão com o politicamente correto e, em última instância, da fixação permanente das máquinas partidárias na mera vitória eleitoral.

Ao longo do tempo, a cedência ao capitalismo mais selvagem, levou a um afastamento dos eleitores do centro, que deixaram de ver as suas aspirações acarinhadas pelos partidos de centro-esquerda, e foi isso, também, que levou ao surgimento de agendas cada vez mais radicais e extremistas, com os nacionalismos xenófobos, de um lado, e os wokismos de género, do outro. Se associarmos a isto as consequências devastadoras de duas crises dramáticas no espaço de uma geração – financeira em 2008 e pandémica em 2020 – temos o caldo perfeito para o mundo bipolar em que vivemos hoje.

Independentemente das nossas opiniões sobre Trump e Kamala, eles próprios já não representando bem a natureza de Republicanos ou Democratas, um episódio em particular torna-se paradigmático para a compreensão destas eleições e da crise que atravessa a América. Robert Kennedy Jr, sobrinho de John e filho de Bobby, foi candidato democrata às primarias do seu partido e, depois de escorraçado pela máquina partidária democrata, candidato independente, até, finalmente, e em desespero de causa, declarar o seu apoio a Trump. O movimento criado por Kennedy apresenta-se hoje com uma plataforma designada Make America Healthy Again, apostado em combater os lobbys financeiros das grandes companhias farmacêuticas começando, precisamente, no ponto nevrálgico da questão: a saúde. Tornar a América saudável outra vez. Nada podia ser mais de esquerda do que isto, mas é Trump, o proto-tirano, quem parece querer abraçar este movimento. Enquanto Kamala, e os democratas, tirando a questão do aborto, que defende, e bem, propõe políticas monetaristas que, ao final do dia, apenas perpetuam as desigualdades de um sistema baseado na gestão, não da saúde, mas, do negócio da doença. Como bem alertou Tocqueville, triste América que se divide entre duas formas de tirania.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Speakers' Corner 4

A Pedra Filosofal

O passado fim-de-semana foi pródigo em fenómenos partidários na região. Em Ponta Delgada, os sociais-democratas reuniram-se em congresso. Uma concentração pujante, impregnada pelo odor inebriante do poder, que teve inclusive direito a destacados convidados de honra. Luís Montenegro, Miguel Albuquerque e, a coqueluche juvenil da social-democracia lusa, o Tom Riddle do centro-direita, o delfim Sebastião Bugalho. Ex enfant terrible do comentário político e hoje bem-instalado deputado europeu. Por seu turno, o Partido Socialista, reuniu timidamente a sua comissão regional, num pequeno auditório na singela e pitoresca Vila Franca do Campo. Nestes dois encontros, uma nota comum perpassa um pouco pelo tom dos discursos e da coreografia política: a obsessão com o “novo”. De um lado e do outro, este parece ser o foco principal de toda a acção político-partidária, o culto e a fixação na renovação e na juventude. O PS-Açores, até, adotou como slogan “um novo futuro” e fez anunciar que tinha renovado em mais de 81% o seu secretariado regional.  

Na velha ciência alquímica, uma das mais ambicionadas quimeras era a descoberta da “pedra filosofal”, uma substância mágica capaz de transformar outros metais em ouro e que era tida, também, como o elixir da eterna juventude, capaz de dar ao seu detentor a imortalidade. Atualmente, a vida política contemporânea parece estar tomada dessa febre, dessa embriagante pulsão pela longevidade e a eterna juventude, expressa na permanente procura de mudança e, paradoxalmente, de perpetuação no poder. Mesmo os partidos ditos mais conservadores parecem acometidos dessa ânsia marxista dos “amanhãs que cantam” e das jovens promessas. Como se o passado fosse um incandescente inferno de calamidades do qual precisam, a todo o custo, de se distanciar.

Não me interpretem mal. Eu sou progressista e acredito no valor da mudança. O triste não é mudar de ideias; triste é não ter ideias para mudar, como dizia o Barão de Itáraré. Mas, é precisamente aqui, no campo das ideias, que este culto partidário da renovação permanente me inquieta. Exatamente porque não são as ideias que eles querem mudar, nem os métodos, nem mesmo alguns cancros metastisados que pululam pelos vasos sanguíneos partidários como cadáveres ambulantes, na forma de longas e inexpugnáveis carreiras políticas. O foco único da mudança autofágica dos partidos são os nomes, as caras e, aqui e ali, um ou outro currículo útil.  O foco da atividade partidária não está nas políticas e nas soluções e na reconquista da confiança política dos cidadãos, mas na saltitante e permanente dança de cadeiras dos seus protagonistas, sejam eles novos-velhos ou falsos novos.

O que a política partidária, elemento fundamental da democracia, precisa urgentemente não é de caras novas, mas de novas soluções e outras e melhores formas de exercer a própria política. Novos métodos e novas estratégias para, dito de uma forma muito simples, resolver os problemas dos cidadãos. De que é que serve renovar em 80% um órgão dirigente se os discursos, as práticas e as ideias são as mesmas de sempre? Se as palavras são as de antigamente, se até o tom e a forma é o mesmo que o antepassado, mimeticamente estudado ao espelho do quarto de banho de hotel, para que servem essas fictícias renovação e juventude?  Destruíram o SNS. A escola pública está um caos. As finanças regionais no precipício de uma bancarrota. Mas são jovens e são novos. O que se percebe deste excitado agitar de rostos e de falsa juventude, ou mesmo desse renovar de listas inteiras de nomes de dirigentes, é que o que estes partidos verdadeiramente procuram é essa mítica “pedra filosofal” que lhes conceda não a mocidade mas a eternidade no poder. Como tristes e cansados Nicolas Flamel, descendentes de uma prática política velha e gasta que, afinal, já pouco ou nada tem para nos oferecer.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Speakers' Corner 3

O Gambito de Rainha de Montenegro

Nesta acirrada e intensa partida do xadrez político pátrio, em que nos vemos mergulhados cotidianamente, numa vertigem quase caleidoscópica, os dois grandes-mestres da arte do fianqueto partidário digladiam-se, em avanços e recuos táticos, sobre o tabuleiro da vida do cidadão comum, pondo e dispondo dos peões, que somos todos nós, como se só o Rei fosse importante para o resultado final, que é a sua manutenção e perpetuação no poder.

Quais Karpov e Kasparov do grande centrão político, Montenegro e Pedro Nuno Santos, afinam jogadas e calibram movimentos, em sucessões de ataques e defesas, numa partida disputada à melhor de três. Depois de um empate com cedência na primeira partida eleitoral, Montenegro saiu vencedor deste segundo round, com um Gambito de Rainha inesperado e sensacional, sacrificando dois peões fiscais para encurralar Nuno Santos num xeque-mate orçamental. Salvaguardado na extensão do calendário eleitoral e com Nuno Santos remetido à sua defesa para lamber as feridas de um péssimo arranque, Montenegro partiu para a terceira e derradeira partida com um ataque pela sua direita, fazendo subir, em simultâneo, o Cavalo da agenda securitária e o Bispo do anti-wokismo de género, materializado no anúncio bombástico da revisão dos currículos da pobre disciplina de Cidadania.

Num tempo em que ainda se estudavam Humanidades, antes desta febre utilitarista e algorítmica das últimas décadas, em que os miúdos todos tem de ser engenheiros computacionais, talhados para grandes carreiras nas consultoras da alta finança, a cidadania era algo que se aprendia nos livros, na História e na Filosofia, lendo os clássicos, e, principalmente, na vida na rua, dentro da família e das coletividades. Era na literatura e no dia-a-dia que se aprendia as normas e os vocabulários da convivência, da tolerância, do respeito e, essencialmente, da vida em comunidade. Hoje, numa sociedade deslaçada e hiperdigitalizada, é suposto ser a escola a educar as crianças sobre as mais básicas e fundamentais regras da República e do Estado de Direito Democrático: a Igualdade e o primado da Lei.

Mas antes de nos perdermos no frenesim mediático, a discutir a frívola dicotomia entre conservadorismos bacocos e progressismos woke, talvez fosse bom ponderarmos sobre como nos desviámos, enquanto comunidades políticas, da velha máxima de que uma verdadeira Democracia é a governação da maioria com respeito pelas minorias, e não uma permanente e opressiva ditadura das mais excêntricas e diminutas minorias, sejam elas do Grupo 1143 e do inefável Juiz Fonseca e Castro, da extrema-direita, de um lado, ou os wokismos alfanuméricos dos Diogos Faros desta vida, da extrema-esquerda, do outro. Talvez fosse bom refletirmos sobre como a política deixou de ser uma disputa entre diferentes ideologias económicas e sociais para ser um combate constante entre ideologias de género, agendas populistas e memes das redes sociais transformados em chavões atrativos na boca salivante dos influencers do slogan eleitoral.

O objetivo desta nova jogada de Montenegro é claro: enquanto estivermos a discutir o “retirar de amarras ideológicas” da Cidadania, ou o “combate sem tréguas à criminalidade”, seja lá o que isso for, ninguém vai ter tempo para perguntar sobre o maior aumento das cativações de sempre, o pífio investimento público previsto ou as miseráveis previsões de crescimento económico que o ministro Miranda Sarmento levou acabrunhadamente a Bruxelas, uns rastejantes 1,7%. O problema é que, ao criar esta cortina de fumo demagógica e populista de mais polícias na rua e menos sexo nas salas de aula, cedendo calculadamente aos encantos do discurso de André Ventura, Montenegro faz tombar perigosamente o PPD para o seu estibordo, correndo o sério risco de fazer adornar o barco de vez para os braços do Chega. É que fazer política com as armas dos outros é, acima de tudo, dar-lhes razão. E entre o original e a cópia, o povo vai sempre preferir o original.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Speakers' Corner 2

 “À Espera de Godot”

Samuel Beckett, poeta, romancista e dramaturgo irlandês, um dos mais importantes escritores do Séc. XX, escreveu que “nada é mais real do que o nada”. Em “À Espera de Godot”, a sua peça mais famosa, duas personagens, Vladimir e Estragon, estão parados na beira de uma estrada, ao centro de um cenário nu, onde apenas uma árvore pontua o vazio, o nada. Os dois esperam alguém, ou algo, chamado Godot. Enquanto esperam, Vladimir e Estragon, conversam sobre a vida, a passagem do tempo, a existência, numa espécie de melancolia resignada. São duas personagens num diálogo onde nada acontece e onde, aparentemente, nada se diz. Ao longo da peça apenas mais três personagens surgem no enredo. Pozzo, Lucky e um jovem rapaz que, no final, nos revela que Godot, afinal, não virá. “À Espera de Godot”, na sua despida contenção cénica e narrativa, é considerada pelos críticos um dos momentos altos do chamado “teatro do absurdo

Nas últimas semanas, talvez meses, o país tem estado ansiosamente em suspenso à espera do seu Godot. E, Pedro Nuno Santos e Luis Montenegro, como Vladimir e Estragon, conversam, numa espécie de penoso e cínico teatro do absurdo, sobre esse Godot da nossa existência que dá pelo nome de Orçamento de Estado. Há dias, os jornais davam corpo a uma dessas conversas entre estes dois protagonistas, com uma imagem paradigmática dessa encenação em que se transformou a nossa vida política. Numa das salas de São Bento, Montenegro e Pedro Nuno Santos, surgem sentados lado a lado, os corpos tensos no limiar dos assentos, as mãos juntas sobre os joelhos fletidos, as pontas dos dedos tocando-se num triângulo invertido, os dois emulando a postura um do outro, numa perfeita e ensaiada coreografia, como se, de facto, a única coisa que os distinguisse fosse esses míseros 1% de diferença no corte do IRC. No palco permanente da política espetáculo, a pose, a mímica dos protagonistas, tornaram-se o centro de toda a comunicação. Na polaroid do instante já nada distingue estes dois atores profissionais da dramaturgia política, perdidos no cenário do seu próprio vazio, onde o nada se tornou tudo. Num diálogo absurdo, os dois personagens trocam falas sobre o IRS para jovens, jovens até aos 35 anos(!), em breve deixará de haver adultos, seremos todos jovens indefinidamente até, um dia, acordarmos idosos sem direito a pensões. E lançam frases sobre um corte no IRC, num país onde quase 40% das empresas não pagam IRC. Subitamente, no meio desta discussão vazia, André Ventura, qual Pozzo, entra em cena agitando o caos no marasmo expectante dos dois personagens principais.

Entre um Primeiro-ministro gelatinoso, tremelicando entre linhas vermelhas, um líder da oposição acossado e titubeante, apelando, imagine-se, de dedo em riste, a uma espécie de unidade sindical da livre opinião partidária, e num país onde, com os serviços do Estado a desmoronarem perante os nossos olhos a cada dia que passa, o OE tem um peso de 40% do PIB e a rubrica do investimento é de uns miseráveis 3,5%, quem ganha é sempre o populista, o demagógico e o antissistema, mesmo que consigo apenas traga uma sucessão de mentiras. Porque, no final do dia, na frieza dos números e no vazio da narrativa, como o rapaz de Godot, o que o cidadão comum quer é que lhe resolvam os problemas básicos, coisas tão simples como a confiança nas instituições e não ter um país em que a corrupção surja no topo das preocupações das pessoas, emprego e habitação, uma administração pública eficiente, com hospitais a funcionar, uma justiça que não seja uma calamidade pública, com interrogatórios judiciais emitidos em prime time da TV, uma economia em que a TSU não pese 35% sobre o salário real, e escolas com professores, auxiliares e, já que é para ter computadores, que ao menos os ponham a tempo e horas nas mãos dos alunos…


 

 

 

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Speakers' Corner 1

 Ser ou não ser

Vivemos tempos conturbados em que o mundo no seu peso inabalável parece querer cair sobre nós de forma final e absoluta. Mal saído da loucura pandémica, para muitos uma luta que ainda não terminou, o mundo soçobrou sob o peso da guerra. Desde as estepes ucranianas ao eternamente bélico médio-oriente, onde o mais antigo conflito religioso e territorial do mundo continua a fazer-nos pôr em causa a nossa fé na humanidade. Na velha Europa, vivemos uma espécie de sensação de estertor final de uma longa época de paz e prosperidade, no ar paira um leve odor a declínio e queda do império, do sonho e do projeto europeu, cujo Brexit foi já o primeiro frémito, o primeiro chilrear do canário na mina. Uma profunda crise de confiança nas instituições democráticas, um titubeante e cada vez mais desigual desígnio económico e uma gravíssima crise humanitária colocam a União Europeia, outrora um farol global de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, na beira do precipício da irrelevância e da autodestruição. 

Edward Gibbon, o grande historiador britânico do século dezoito, identificou cinco grandes marcas do declínio do Império Romano: a desigualdade entre ricos e pobres; a dependência da sociedade e da economia face ao Estado; a desproporção entre a exteriorização da riqueza e a criação da mesma; a arte que se torna cada vez mais sensacionalista e aberrante; e uma sociedade cada vez mais dominada pela obsessão com o sexo. Olhando a civilização ocidental hoje não podemos deixar de pensar o quão embrenhados estamos nestes essenciais alertas de Gibbon. A Europa e a América, outrora a grande pátria do liberalismo esclarecido, agitam-se num turbilhão de crise económica e financeira, falência do Estado Social, desigualdade aberrante entre o 1% mais rico e a cada vez maior maioria de pobres e remediados e, por todo o lado, da comunicação social aos meios académicos, da arte ao entretenimento, o vírus woke que tudo contamina com a sua arrogância discriminatória e perversidade autoritária, como uma espécie de fatalíssimo e imparável covid intelectual. Em Portugal, 50 anos depois de Abril, cuja celebração inexplicável e escandalosamente passou quase como despercebida na torrente mediática e política, os dois principais partidos democráticos vivem a farsa pueril do orçamento, a extrema-direita, populista e demagógica, encavalita-se nos copiosos falhanços da partidocracia que capturou o país, onde um almirante autoritário, inventado no calor do pânico pandémico pelos próprios políticos, se arroga agora o plano de substituir no mais alto cargo da nação um pobre e envergonhado professor de direito caído em desgraça pela sua própria vaidade e maquiavélica sede de conspiração. Nos Açores, a política está refém dos caprichos bairristas e da incompetência verborrenta, por um lado, e do fatalismo hereditário de uma longa e meticulosamente planeada carreira política, por outro, e nem o clima nestes ofegantes e intermináveis dias seguidos de sudoeste nos deixa vir à tona para respirar, como que infinitamente submergidos na omnipresença transpirante do bafo. 

Vasco Pulido Valente, um dos mais lúcidos e icónicos intelectuais portugueses do virar do milénio, costumava escrever que “o mundo está perigoso”. Olhando este cenário mais ou menos dantesco que configura o ar do nosso tempo, um certo pessimismo realista levar-nos-ia a citar VPV com o mesmo presciente aviso. Mas, talvez, exatamente por isso, valha a pena antes, perante os infortúnios do mundo, clamar por uma defesa firme e intransigente dos valores da Liberdade e da Democracia. Perante as múltiplas atribulações do destino importa erguermo-nos, fazer ouvir a nossa voz e lutar. Citando Hamlet, na mais significativa parte do famoso solilóquio “ser ou não ser”, é mais nobre pegar em armas contra o mar das dificuldade e opondo-nos a elas pôr-lhes fim do que, perante grandes adversidades, dormir, sonhar – morrer.

Publicado na edição n.º 22408 de 09/10/2024 do Açoriano Oriental