quarta-feira, 9 de julho de 2025

Speakers' Corner 40

A pornografia da dor

Ao contrário do que se diz, o Kama Sutra não é um tratado sobre sexo, mas uma dissertação sobre o amor e a sua prática como forma de alcançar o Dharma, a vida virtuosa, um dos objetivos últimos do hinduísmo. No Ocidente, o Kama Sutra, particularmente nas suas versões ilustradas, foi transformado num catálogo de sugestões sexuais, quase um manual visual de posições de um yoga tântrico e orgiástico. Esse olhar redutor e primário, tão típico da nova visão ocidental, despiu o texto das suas dimensões morais, pedagógicas, culturais, sociológicas e espirituais. Kama Sutra passou a ser sinónimo de sexo e não de amor ou, sequer, de erotismo.

Octavio Paz, o grande poeta e ensaísta mexicano, dizia que o “erotismo é a sexualidade transfigurada”. Uma representação artística e metafórica do gesto carnal, tantas vezes instintivo e animal. O erotismo, ao contrário da pornografia, contém, sugere, invoca o implícito. Vive daquilo que oculta mais do que daquilo que revela. Já a pornografia explicita, massifica, empola e embrutece. Onde o erotismo sublima, a pornografia desvirtua.

No nosso mundo hipermediatizado, na Infocracia de Byung-Chul Han, a realidade tornou-se, ela própria, pornografia. A linguagem perdeu a sua capacidade metafórica para se tornar instrumento de literalidade e, acima de tudo, de brutalidade. E a imagem, saturada, repetitiva, omnipresente e descartável, desprendeu-se da sensibilidade da luz e da criação de atmosfera. Tornou-se uma competição permanente pela atenção e, principalmente, pela excitação do espectador.

No espetáculo mediático, tudo se mede em audiência e a audiência é poder. Nessa luta constante pela atenção, a surpresa, o choque e o excesso são o alimento da voracidade. É nesse combate feroz pela curiosidade do observador que o ciclo noticioso e político se transforma, cada vez mais, em pornografia.

No meio do caos global, num mundo onde os nossos sentimentos se tornaram impermeáveis ao genocídio, é a morte súbita e sem sentido de um jovem atleta que ainda nos comove. Que ainda nos interpela, profundamente, no nosso sentimento de irrelevância e na percepção da fragilidade da existência. Já não é a guerra, nem o extermínio, nem o bombardeamento de civis e hospitais, em ataques à distância perpetrados por drones como em ficções, retransmitidos nos infinitos ecrãs que nos rodeiam em imagens de videojogo, que nos impressiona.

E a imparável máquina mediática sorve e amplifica esse drama. Espreme-o em ciclos infindáveis de comentários, diretos, alertas, análises, numa exposição pornográfica do que é mais privado e pessoal: a morte. Uma pornografia da dor, numa permanente obsessão pelo conteúdo e o seu consumo, que se torna vício e compulsão. A dor real, privada, íntima, é convertida em espetáculo porno. O sofrimento alheio serve o consumo imediato. A comoção é transformada em produto. E, nessa lógica perversa, os próprios protagonistas da tragédia, são arrastados para a exposição pública da sua perda. O luto deixa de ser um processo e torna-se conteúdo comercializável.

Da mesma forma, os políticos procuram o choque que atrai e agudiza a desconfiança. E a política, por sua vez, alimenta-se do mesmo mecanismo. Procura o embate. Amplifica o ódio e a desconfiança. Usa a provocação como afrodisíaco mediático. Usa a baixeza como forma de atração, alimentando o ciclo mediático com o mesmo apelo pornográfico. A mesma banalização do mal. A enumeração de nomes de crianças, supostamente estranhas, ímpias, estrangeiras ao “puro” corpo nacional, serve apenas o excesso, a barbárie, a comercialização do mal como mercadoria política, numa bolsa de valores insaciável de obscenidade e, fatidicamente, de prostituição emocional.

Tal como a pornografia transforma o corpo erotizado em mercadoria sexual, também a política e os media transformam o amor em pornografia, alimentando-se, numa sofreguidão sem fim, do ódio e da dor para sustentar a permanente luxúria do bordel mediático.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Speakers' Corner 39

O partido do povo no mundo dos ricos

Dois acontecimentos distantes e aparentemente desligados entre si tiveram lugar no último fim de semana, um em Lisboa, outro em Veneza. À primeira vista, nada os une, mas, olhando com atenção, talvez revelem duas faces do mesmo dilema: a crise geral do capitalismo democrático.

Em Lisboa, o Partido Socialista ratificou, com mais de 95% de aprovação, a sucessão da sua liderança, entronizando José Luís Carneiro como secretário-geral. Num dos momentos mais difíceis da sua história, o homem de Baião, que muitos veem como um líder de transição, alcança o lugar mais alto do partido e a ambição, legítima, embora remota, de se tornar primeiro-ministro de Portugal.

Depois de oito anos no Governo e de uma estrondosa derrota eleitoral, o PS vê-se confrontado com uma crise quase existencial. Este momento de inflexão em que o partido se encontra tem várias explicações, e pode ser escalpelizado a diferentes níveis. Mas talvez a mais profunda de todas tenha a ver com o descrédito dos cidadãos nas instituições e, bem ou mal, na corporização do PS como símbolo dessa descrença. Ao fim de cinquenta anos de democracia, as pessoas perderam a confiança no Estado. E o PS e o PSD, talvez sobretudo o PS, representam, aos olhos de muitos, essa mesma desconfiança e a sua inefável decadência.

Mas a crise das democracias é também uma crise do capitalismo democrático, que podemos recuar até aos tempos de Tony Blair e a chamada “terceira via”. A forma como os partidos da social-democracia, ou do socialismo democrático, se deixaram capturar pela ditadura do capital e dos interesses e como essa captura degenerou em fenómenos de corrupção e de delapidação do Estado. A história dos últimos 20 anos é feita de crises sucessivas e dramáticas que impactaram profundamente as vidas dos cidadãos e, simultaneamente, o próprio sistema político das democracias ocidentais, reiteradamente assoladas por casos obscenos de corrupção.

O desafio de José Luís Carneiro, e de todo o Partido Socialista, mais do que a Habitação, a Imigração, a Economia ou o seu papel na oposição, é reconquistar a confiança dos eleitores, afastando-se da imagem enquistada de um partido de conluios, esquemas, compadrios e corrupção, refastelado na manjedoura do Estado, em serviço mais de si do que dos cidadãos.

É aqui que se encontra, na minha opinião, o ponto de contacto com esse outro evento marcante destes dias: o casamento do multimilionário Jeff Bezos, em Veneza. O luxo faustoso e o esbanjamento desavergonhado representam exatamente essa desconexão da realidade e o desfasamento do mundo face às enormes desigualdades que o assolam. Não é a riqueza em si, nem a sua ostentação obscena, que choca, não há qualquer novidade nisso. De Nero a tocar a sua lira, a Maria Antonieta e os seus brioches, a história está marcada pela insensibilidade dos ricos face às desigualdades do mundo. O que verdadeiramente impressiona é a forma como a nossa sociedade se tornou subserviente ao capital e à sua ostentação fútil.

A essência de qualquer movimento progressista está ancorada nos valores humanistas de fraternidade, igualdade e solidariedade. O âmago do socialismo democrático é a busca de um mundo de oportunidades iguais, não no sentido de uma igualdade comunista, niveladora, com cidadãos separados entre a casta dos trabalhadores e os dirigentes do politburo, mas sim de uma solidariedade liberal que vise a criação e redistribuição de riqueza rumo a uma vida melhor para todos.

A encruzilhada que o PS enfrenta é a de voltar a ser, verdadeiramente, o partido dos que menos têm, em vez de parecer mais empenhado em não incomodar os que têm tudo. Se quiser recuperar a sua alma, o partido terá de romper com esta amarga complacência e lembrar-se de que nasceu para transformar a realidade e não para se pôr ao serviço dos que, como Jeff Bezos, se julgam donos dela.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Speakers' Corner 38

A via da conciliação

No ano de 327 a.C., na antiga Báctria, hoje parte do Afeganistão, Alexandre, o Grande, desposou a bela Roxana, filha de um nobre persa. O gesto, mais do que político ou romântico, foi a afirmação de uma ideia poderosa: a de conciliação. Alexandre, educado por Aristóteles e considerado o maior estratega militar da história, não se limitou a conquistar territórios e a derrotar exércitos, procurou unir culturas, numa fusão entre múltiplas nações, línguas, etnias e raças, num império de simbiose, não de supremacia.

Dois mil e trezentos anos depois, o mundo parece ter esquecido a lição de Alexandre. A recente escalada de tensão no Médio Oriente, com o surpreendente, embora previsível, ataque aéreo americano ao Irão, utilizando, mais uma vez, as valências de gasolineira no centro do Atlântico da Base das Lajes, revela até que ponto a diplomacia e o diálogo cederam ao estrépito das bombas e à retórica da destruição.

O Ocidente olha para o Irão quase exclusivamente através do véu da teocracia islâmica xiita. Há, no entanto, um erro profundo nessa visão redutora e obscurecida. Ignoramos que o Irão não é apenas um regime, é uma civilização com mais de quatro milénios. Herdeira da antiga Pérsia, berço de avanços intelectuais, artísticos e políticos que moldaram muito do que hoje consideramos pilares da modernidade e da nossa própria civilização, desde a ideia de unidade política territorial à administração pública, da tolerância religiosa à poesia mística.

Reduzir esta complexidade à figura dos aiatolás ou a um inimigo geopolítico é não só injusto e limitado, é profundamente perigoso. Ao ignorarmos o valor histórico e cultural de um povo, abrimos caminho à sua desumanização. E esse é sempre o primeiro passo para a barbárie. Com a agravante de que, numa guerra pela superioridade, aqueles que não temem a morte serão os primeiros a prevalecer.

A atual política externa americana, marcada pelas decisões erráticas e egocêntricas de Trump, alimenta esta lógica maniqueísta e belicista. Desprezando o contexto, confundindo força com liderança, misturando castigo com solução, gerando apenas vazio. E é nesse vazio que se alimentam o ressentimento e o radicalismo, numa avalanche de consequências imprevisíveis.

O que fará a China? Fará cair a sua força militar sobre Taiwan? Putin terá aqui a porta aberta para acelerar ainda mais os seus intentos de domínio territorial sobre a Ucrânia e, quem sabe, sobre o Báltico? E como reagirão a Índia e o Paquistão, ambos potências nucleares? Está a Europa preparada para o recrudescer do horror do terrorismo? E o que fará o Irão, não hoje, mas no futuro?

No TikTok, imagens de rituais xiitas de homens a bater no peito em honra do martírio de Hussein Ibn Ali na batalha de Carbala, em 680 d.C., tornaram-se virais. Para o nosso olhar ocidental, é um espetáculo incompreensível. Mas para milhões de crentes, é a expressão de uma memória coletiva fundada na dor e na resistência, onde o conceito de sacrifício é o elemento fundacional da sua própria visão da vida. Não entender isso é não entender a alma da nação xiita e a identidade do atual Irão, país moldado por essa ideia de martírio. Combater essa visão com mísseis e bombas GBU-57 é como tentar apagar um fogo com gasolina.

O Ocidente, enquanto entidade política e civilizacional, baseada na democracia liberal, no primado da vida humana e nas liberdades individuais, não se deve vergar aos totalitarismos. Mas também não se pode impor ao resto do mundo pela via da destruição. Num tempo em que os líderes mundiais parecem obcecados com o poder e a conquista pela obliteração do outro, talvez valesse a pena lembrar que as civilizações não se constroem com mísseis, mas com ideias. O futuro ergue-se com palavras, não com bombas. Como Alexandre demonstrou ao unir-se a Roxana. E que a via da conciliação é o único caminho que pode evitar que o mundo, mais uma vez, tropece na sua própria arrogância.

 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Speakers' Corner 37

A Vertigem do Fim

Vivemos tempos perturbados. Um pouco por todo o mundo, a loucura impõe-se devastadoramente sobre a vida das pessoas. O ódio tomou conta dos areópagos políticos. O declínio moral, institucional e até humano parece ser o único caminho à nossa frente, como uma frenética avalanche desmoronando-se sobre a montanha das nossas vidas.

Abrimos os jornais, os poucos de nós que ainda os leem, ou percorremos mecanicamente os infinitos canais de notícias, e somos assoberbados por inacreditáveis parangonas, excitações várias, constantes alertas noticiosos e comentários facciosos, num interminável caleidoscópio de embriagada alucinação.

A Europa, outrora um projeto civilizacional de paz e prosperidade, submete-se agora ao desvario da economia de guerra. Passámos do pacote da PAC para o míssil PAC-3. Os discursos políticos fazem-se em torno do medo, da ameaça, da necessidade de se estar “preparado” para um inimigo imposto, mas nunca da urgência de se estar lúcido ou do imperativo de se ser justo.

Israel, sob a liderança de um governo extremista e ultraortodoxo, bombardeia a teocracia iraniana num conflito de consequências inimagináveis. O Médio Oriente volta a arder, como se alguma vez tivesse deixado de arder, e o mundo, que já deixou de se espantar, assiste em silêncio cínico ao genocídio e à obliteração cega e mútua de eternos e inquebrantáveis inimigos. E somos todos cúmplices nessa incapacidade de regressar à raiz da alma, como apelou Rumi.

Em Espanha, um dos últimos redutos da esquerda na Europa, Sánchez estremece com escândalos sucessivos que envolvem corrupção, misoginia e jogos de poder rasteiros. Uma democracia em erosão, onde as instituições vão perdendo credibilidade a cada nova gravação escondida que vem a público.

Por cá, em Portugal, a violência verbal saltou das redes sociais e dos discursos políticos para as ruas, transformando-se em violência real, palpável, física. Sob o disfarce do populismo, a intolerância fascista voltou a ganhar espaço e, o que é mais grave e paradoxal, aceitação. Relativiza-se o inaceitável, desculpam-se os que afrontam os direitos mais básicos, comparando o incomparável. E, no Brasil como cá, transforma-se o humor em crime, a sátira em insulto, a crítica em perseguição, em democracias corroídas pelo ácido do partidarismo.

Na América, outrora terra dos livres, desfilam paradas militares como nos regimes totalitários. Trump e Putin parecem hoje dois lados de uma mesma moeda, uma moeda cujo câmbio será sempre negativo. O sonho do Ocidente morreu. E talvez o mais inquietante seja justamente isso: o colapso da ideia de futuro. O cansaço do mundo é palpável, na linguagem e nos atos do dia a dia. A banalidade do mal, como assinalou de forma clarividente Hannah Arendt.

Na nossa pequenina realidade insular, percebemos agora, ou fingimos que só agora percebemos, que o Hospital Modular não passou de um esquema de contornos pouco claros, onde as decisões foram, no mínimo, erráticas, dúbias e precipitadas. A política tornou-se uma sucessão de gestos apressados e de anúncios vazios, feitos mais para encenação mediática do que para a resolução efetiva de problemas. A IA tomou conta das palavras, tal como o TikTok tomou conta das narrativas. Ao mesmo tempo, o drama subterrâneo das drogas sintéticas alastra pelas ruas, pelas casas, pelas famílias, como um vírus tóxico que se insinua na pele da sociedade.

Até o tempo parece conspirar com este mal-estar difuso: os nevoeiros de São João molham-nos até à alma, com a sua morrinha húmida e silenciosa. Há um clima de fim que paira no ar, um cansaço acumulado, um suspiro abafado, uma sensação de que tudo o que poderia ser feito já não será. Vivemos cercados por ruínas, algumas visíveis, outras escuras e interiores. O que nos resta é não perder a capacidade de espanto. A pulsão de resistência.

Talvez este não seja ainda o fim. Mas é, indiscutivelmente, o início dessa vertigem.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Speakers' Corner 36

História de um país sem rumo

Quem calcorreia hoje as ruas de Ponta Delgada, descendo da Machado dos Santos à António José d’Almeida, rumo à Matriz, dificilmente saberá quem foram esses expoentes do republicanismo que dão nome a duas das mais importantes artérias do nosso burgo. Machado Santos, vice-almirante, herói do 5 de Outubro, foi um perpétuo revolucionário, tido como o “pai da República”. António José d’Almeida, médico e opositor da monarquia, ficou conhecido por um manifesto publicado em Coimbra, na sua juventude, intitulado Bragança, o Último, que o levou à prisão e ao estatuto de herói republicano. Mais tarde viria a ser Presidente da República, entre 1919 e 1923. Ambos maçons, como muitos republicanos da época, simbolizam o espírito de um tempo dividido entre a agitação contestatária e a aspiração progressista. A Primeira República foi um imensamente agitado período de transição entre uma monarquia de setecentos anos e uma ditadura, que duraria quarenta e oito, e que pretendia vir repor uma certa organização e esteio a um país desgovernado. Nesses curtos 16 anos, Portugal teve 45 governos e 8 presidentes.

Se um futuro historiador olhar o país daqui a 100 anos, reconhecerá certamente as mesmas tendências, as mesmas aspirações populares incumpridas e os desmandos políticos de elites conspiracionistas. Provavelmente calcorreará ruas com nomes como Costa ou Montenegro, nomes que, como tantos outros, cairão também no esquecimento. A história, como dizia Mark Twain, não se repete, mas rima. E há, neste tempo que vivemos, uma impressão forte de fim de regime. Cinquenta anos após Abril, o país parece soçobrar sob o peso do que ficou por cumprir.

Dos famosos três D’s que Medeiros Ferreira levou ao Congresso Democrático de Aveiro, em 1973, e que Melo Antunes transportaria para o programa do MFA, a descolonização redundou num desastre, a democratização sucumbiu ao poder do capitalismo partidário, e o desenvolvimento coloca Portugal entre os países da UE com maior desigualdade na distribuição da riqueza. Só Bulgária, Roménia, Letónia e Lituânia nos ultrapassam nesse triste ranking do índice de Gini.

Se há ilação a tirar das últimas eleições, é a de que existe um descontentamento generalizado no país, um povo descrente e cansado e uma classe política incapaz de se regenerar e de incutir esperança nos eleitores. O mesmo historiador futuro, ou uma cartomante de agora, dirá, e com razão, que o momento é propício a sebastianismos, a líderes salvíficos que, acoberto de um manto de nada, como um nevoeiro diáfano, se apresentam como portadores da ordem, do bom-senso e do progresso, mesmo que falso e mentiroso e empacotado em insultos e alarvidades.

Quando o centro ruir, a democracia ruirá com ele. Muito provavelmente, o país elegerá um ex-almirante de fama vacinal para o cargo de mais alto magistrado da Nação. Um primeiro-ministro pouco transparente e de passado duvidoso cairá em desgraça num escândalo judicial envolvendo empresas e favores. Montenegro cairá, e o PPD cairá com ele. E, depois disso, um líder populista e demagogo poderá ascender ao poder, erguido em promessas doces e inebriantes de autoridade, limpeza e patriotismo. O velho e reconhecido “pôr ordem nisto”, ou o salazarento “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”. A direita será toda ela populista, com tudo o que isso traz de reacionarismo e nacionalismo bacoco. O Almirante, então, dirá que o país precisa de estabilidade e dará o seu magnânimo aval a uma coligação entre Ventura e um qualquer Passos Coelho da vida. A esquerda, órfã e desorientada, será remetida a uma oposição triste e prolongada. E Portugal mergulhará, de novo, numa bem-comportada e resignada noite autoritária com o Almirante ao leme, de fato assertoado e barba grisalha, sabe-se lá com que rumo.

Oxalá me engane. Porque se não irei acabar os meus dias na frente de um qualquer pelotão de fuzilamento por delito de opinião e tráfico de liberdade de expressão.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Speakers' Corner 35

Crónica de um desastre anunciado

À hora em que escrevo, estes são os factos conhecidos: Sónia Nicolau, ex-militante socialista e candidata independente à Câmara Municipal de Ponta Delgada, terá sido contactada pela vice-presidente do Partido Socialista dos Açores e secretária-coordenadora do partido em São Miguel, Cristina Calisto, com uma proposta de coligação liderada pelo PS, na qual a candidata independente ocuparia o segundo lugar.

De acordo com um comunicado, Sónia Nicolau submeteu essa proposta à consideração dos seus apoiantes, que a rejeitaram por unanimidade.

Em declarações à Antena 1 Açores, Cristina Calisto assume o contacto, mas nega tratar-se de uma proposta formal de coligação, muito menos em nome do partido, afirmando que se tratou apenas de uma manobra exploratória, feita a título pessoal e individual, para aferir da sensibilidade de Sónia Nicolau perante a eventualidade de uma coligação.

Após um processo muito atabalhoado de escolha de candidatos, o PS parece incapaz de se alinhar numa estratégia coerente, ou sequer num rumo definido. Primeiro, geriu desastrosamente o dossier Sónia Nicolau, hostilizando e até vilipendiando uma militante e ex-deputada, de forma imprópria para um partido livre e democrático. Depois, Isabel Rodrigues, que no papel parecia ser uma escolha qualificada e aceitável, revelou-se um nado-morto, ausente, titubeante, dir-se-ia mesmo, desistente.

Depois da hecatombe eleitoral de maio último, o PS corre para apanhar os cacos de um partido em estado catatónico, sob ameaça de uma eutanásia eleitoral nas autárquicas que se aproximam. Mas nem o desespero de quem vê chegar o fim de uma era explica tantos erros, tanta incapacidade estratégica e tamanha inabilidade política.

Já o escrevi antes: Pedro Nascimento Cabral é um mau presidente. Errático, autoritário, sem visão. Bastaria a gestão do Mercado da Graça para lhe negar a reeleição. Mas há mais. A candidatura a Capital Europeia da Cultura, o seu triste desfecho, e a atual designação como Capital Nacional da Cultura 2026, mergulhada numa deriva populista, sem programa e à distância, a meros seis meses do início, são igualmente reveladores de um mandato vazio e desperdiçado.

Este era o momento ideal para o PS reconquistar a Câmara de Ponta Delgada, que não lidera desde 1989, quando a conquistou numa coligação encabeçada pelo centrista Mário Machado. Mas uma mistura de jactância com muita incompetência, desde os líderes da concelhia aos secretários de ilha, alguns dos quais optaram por paragens mais arejadas e pecuniosas, enquanto outros parecem agora enveredar por verdadeiras incursões kamikaze, feitas a título pessoal no campo adversário, até ao silêncio conspiratório do líder máximo, tudo contribui para que o PS se atire a um precipício eleitoral de difícil recuperação.

Sejamos claros: o líder do partido devia estar nos Açores a tempo inteiro e assumi-los como a sua prioridade. Devia, ele próprio, ser o candidato à principal câmara municipal da região.

Hostilizar Sónia Nicolau foi um erro. Oferecer-lhe o 2º lugar foi outro. Insistir em Isabel Rodrigues é um 3º erro. Não se compreende, aliás, como é que esta ainda se mantém na corrida, depois de ter sido publicamente menorizada pela sua própria secretária-coordenadora de ilha, que claramente não acredita nas hipóteses reais da sua candidata vencer esta eleição.

Neste momento, a única solução com dignidade para o PS-Açores é: (1) apoiar Sónia Nicolau. Esse, aliás, devia ser o caminho em todas as freguesias e concelhos das nove ilhas. Abrir o partido aos eleitores com humildade, proximidade e com candidatos reais, com efetiva presença e capacidade de trabalho no terreno; ou (2) sair da corrida, apelando aos seus militantes e simpatizantes para que colaborem num amplo movimento de cidadãos capaz de derrotar Pedro Nascimento Cabral que, enquanto isso, sorrindo impávido no conforto do seu gabinete aveludado, vai-se fazendo de morto como melhor forma de garantir a sua reeleição.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Speakers' Corner 34

A gloriosa derrota

O Benfica sofreu, domingo passado, uma derrota épica. Uma daquelas derrotas de proporções bíblicas, que ficam para a história, que atravessam gerações e se eternizam na memória coletiva dos que amam o clube e choram por aquela camisola. No final do jogo, as lágrimas de Di María eram as lágrimas de todos nós, adeptos sofredores, ajoelhados no chão em frente aos sofás, partilhando a mesma mágoa, a mesma dor funda e inexplicável do desaire final, na exaltação plena do falhanço absoluto.

De todos os desportos, o futebol é o que mais espelha a vida, como no amor ou na guerra, nele convivem, lado a lado, a glória mais suprema e a ruína mais devastadora. E talvez seja o único capaz de conferir à derrota um valor redentor, uma dimensão única de ensinamento e catarse coletiva. Perder, sobretudo perder daquela forma, dramática e castigadora, é uma experiência misteriosamente profunda e transformadora.

No futebol nada acontece por acaso e um jogo como a final da Taça, tem um histórico por trás, é o último jogo da época, já depois do campeonato resolvido, e este ano, essa resolução tinha ela própria uma história, um drama subjacente, como numa peça shakespeariana, em que múltiplas camadas de emoções e personalidades se imiscuem no tecido da trama trazendo consigo um peso trágico.

Três semanas antes, jogara-se o chamado “jogo do século”, um Benfica vs. Sporting onde o empate soube ao gosto amargo da cicuta. Na última jornada, os encarnados caíram na Pedreira e o Sporting impôs-se frente ao Guimarães. O campeonato ficou entregue, e os benfiquistas, com a resignação dos condenados, viram a sua equipa morrer na praia, como uma onda que se desfaz em som e espuma sobre a areia fina. O campeonato foi, este ano, um sonho recorrente, feito com frémitos equivalentes de êxtase e de pesadelo.

Ali chegados, na tarde quente do Jamor, a final da Taça parecia a última oportunidade de redenção para este Benfica. Uma réstia de esperança para uma equipa intimamente vencida. Aursnes e Di María, os dois jogadores mais marcantes da equipa, um pela magia, o outro pela sua ubíqua versatilidade, começavam no banco. No rosto de ambos adivinhava-se a gravidade do instante, no seu semblante pesado esse sentimento de impossibilidade perante o jogo e o adversário.

Mas o Benfica agigantou-se. Subjugou o campeão nacional com um futebol assertivo e inteligente, dominou o meio-campo, recuperou bolas, impôs ritmo. Ao intervalo, liderava no campeonato da honra, mesmo, como todos viram, contra um adversário que jogava com o reforço escondido do vídeo-árbitro.

No início da segunda parte, chegou o golo. Um remate impossível de Kökçü, de fora da área, a bola a beijar levemente a relva antes de entrar, imparável, no ângulo inferior junto ao poste. Um golo sublime. Logo a seguir, Bruma fez o segundo, anulado por interpretativa falta de Carreras no início da jogada. E depois veio a meia hora de sofrimento, com Bruno Lage a tentar segurar o magro resultado e o Sporting a sobrelevar-se.

Até que, Renato Sanches, o mais controverso dos jogadores deste plantel, numa corrida desesperada contra um inultrapassável Gyökeres faz penálti no minuto 90+10. Nesse instante, as luzes apagaram e a história do jogo ficou escrita. Já não interessavam os erros do árbitro, as agressões absurdas, que um vídeo-árbitro que tudo viu aqui deixou escapar, os golos, as substituições desesperadas, os minutos passavam pesados e castigadores sobre uma equipa em drama consigo própria e um adversário que mesmo sendo menor se suplantou como poucas vezes nas últimas décadas, numa vitória que ficará, também, para a sua história.

Mas, como sempre sucede no futebol, as derrotas são tão importantes como as vitórias. As derrotas são a argamassa que sustenta os pilares da glória e é das lágrimas, como as de Di Maria, que se alimenta o sonho que faz um clube, como o Benfica, ser eterno.

P.S. infelizmente, a política não é como o futebol. Ou será?