Uma revolução de cravos
Camila Vitorino, natural de Setúbal, com 26 anos, 1,76 m e
uma beleza morena estonteante, foi a representante de Portugal no concurso Miss
Universo 2025, que teve lugar na Tailândia na semana passada. Num dos desfiles,
Camila apresentou um vestido adornado com cravos vermelhos, em homenagem,
segundo ela, a Celeste Caeiro.
Celeste Caeiro foi quem, na manhã de 25 de Abril, distribuiu
cravos pelos soldados que subiam o Carmo para cercar Marcello Caetano. Esse
gesto simples tornou-se inadvertidamente num símbolo de liberdade e da própria
revolução. Há dias, quando a minha filha mais nova me pediu sugestões para um
trabalho escolar sobre grandes mulheres que mudaram a História falei-lhe
precisamente desta mulher, tantas vezes esquecida e anónima, que num gesto “inteiro
e limpo” deu um nome à mais poética das revoluções.
Também na última semana tive o prazer de acompanhar, em
parte, um colóquio, em boa hora promovido pela Biblioteca Pública de Ponta
Delgada, sobre 1975, reunindo os arquipélagos da Macaronésia na reflexão
histórica sobre a sua independência e autonomia. Nesta iniciativa amplamente
louvável, ainda que demasiado centrada no famoso 6 de Junho, ficou evidente a
dor profunda e ainda muito viva que lateja nos que participaram nos
acontecimentos daquele ano. O país, e os Açores, continuam marcados por
divisões ideológicas que atravessam famílias e memórias, com o peso de uma
cicatriz que teima em não sarar. Feridas essas que são ainda mais visíveis por
estes dias nas divisões a que assistimos nessa polémica espúria do 25 de
Novembro, que reacende confrontos que esperaríamos ultrapassados. A Revolução
dos Cravos, celebrada pela imprensa estrangeira como “a revolução cavalheiresca”,
conseguiu evitar um banho de sangue, mas que deixou atrás de si um rasto de mágoas.
O fim do regime, as arbitrariedades do PREC, tanto de um lado como do outro,
continuam a ecoar em memórias vividas ou herdadas. 50 anos depois o país
continua a tropeçar nas suas próprias sombras.
Ora, um dos momentos mais pungentes do colóquio foi o diálogo entre António José de Almeida, filho do carismático e apaixonado líder da FLA, e Joana Borges Coutinho, neta do Governador Civil de então, que se demitiu a 6 de Junho, pressionado pela grande manifestação popular, impulsionada pela lavoura, junto ao Palácio da Conceição, episódio que continua a gerar interpretações tão distintas como emoções intensas. Este encontro, entre descendentes de lados opostos, num gesto raro de concórdia num tempo de divisionismos, demonstra que é possível, afinal, aproximar-nos através da escuta e do reconhecimento mútuo e, quem sabe até, sarar essas feridas.
Infelizmente, o falhanço das comemorações dos 50 anos do 25
de Abril, marcadas por desinteresse e revisionismo, evidencia que permanecemos
presos às divisões do passado. E também nos Açores, os 50 anos da Autonomia
parecem encaminhar-se para mais uma oportunidade perdida, mais vocacionada para
alimentar dissidências do que para promover encontros como o protagonizado pelo
Tó Zé e a Joana.
Porque, no fundo, apesar de tudo o que nos separou e ainda
separa, continua a existir um sonho comum que nos une no desejo do melhor para
a nossa terra. Esse sonho está inscrito na alegria pura dos cravos vermelhos,
símbolo de uma liberdade que deveria unir-nos. Num momento em que tantos se
esforçam por acentuar divisões, foi também esse o significado do gesto de Camila
Vitorino ao usar o seu vestido, recordar-nos que o essencial é aquilo que nos
une e não aquilo que nos separa.
Num tempo em que tantos se esforçam por reacender fronteiras
invisíveis, talvez devêssemos parar um instante e escutar de novo o silêncio desses
pequenos grandes gestos. A flor de Celeste, o sorriso de Camila, a
reconciliação improvável de dois filhos e netos de lados opostos.
Para os mais curiosos, foi a Miss México quem ganhou o
título. Mas a história que realmente nos importa vestia cravos vermelhos.

