quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Speakers' Corner 54

As vencedoras e os vencidos

Os cenários pós-eleitorais são sempre férteis em elações, conjeturas, explicações e narrativas. Os americanos até têm um nome próprio para os profissionais que se dedicam a esta arte específica da comunicação política: os chamados spin doctors. Que é como quem diz, especialistas em dar a volta aos resultados.

Estas últimas eleições autárquicas, em particular aqui nos Açores, foram ricas em exercícios de contorcionismo verbal, sobretudo por parte dos líderes dos grandes partidos e, de forma bastante contundente, do candidato do PSD à Câmara de Ponta Delgada, todos prontos a clamar para si vitórias, mesmo que fossem vitórias de Pirro, como foi o caso.

Cada um, à sua maneira, cantou vitória, reclamando para si e para os seus os louros de mais votos, mais mandatos, uma percentagem que sobe aqui, uma freguesia ganha acolá. É o habitual nestas ocasiões, mas nem sempre é o mais justo, muito menos o mais verdadeiro.

No meu entender, o facto mais relevante destas eleições é, sem dúvida (ainda mais do que o alarme falso do CHEGA!...), a extraordinária vitória das mulheres. Nunca os Açores tiveram tantas mulheres a liderar autarquias, numa demonstração clara de uma evolução sísmica na política regional. Fátima Amorim, Ana Brum, Catarina Manito, Elisabete Nóia, Catarina Cabeceiras, Vânia Ferreira, Bárbara Chaves e Graça Melo, esta última com uma vitória tão retumbante quanto surpreendente. E, se juntarmos a isto as prestações inesperadas de Sónia Nicolau e de Lurdes Alfinete, uma tirando a maioria a Pedro Nascimento Cabral na maior autarquia dos Açores, e a outra ficando a uns escassos trezentos e poucos votos de virar a Ribeira Grande, temos uma demonstração vibrante de que foram, sem sombra de dúvida, as mulheres as grandes vencedoras desta noite eleitoral.

No campo dos derrotados, e ao contrário do que quiseram fazer parecer nos seus discursos de circunstância, José Manuel Bolieiro, Francisco César, Paulo Estêvão, José Pacheco e Pedro Nascimento Cabral saem da noite de domingo com mais razões de preocupação do que de regozijo. Por mais que o líder do PSD e do Governo queira cantar vitória, não consegue uma vitória robusta que lhe dê lastro para sobreviver às tempestades que aí vêm, nomeadamente as da SATA, da bancarrota e de um orçamento regional com mais austeridade do que o da Troika. Paulo Estêvão sofre uma derrota envergonhante no seu pequeno feudo particular, agravada pelas suspeitas que recaem sobre o seu candidato. José Pacheco ficou longe do que pretendia, ou sequer do que se esperava e, apesar de garantir a eleição para vereador em Ponta Delgada, não consegue, nem nas freguesias, as vitórias que lhe vaticinavam os observadores.

Por último, Francisco César vê o partido resvalar ainda mais no seu processo descendente que, apesar de ter mais votos do que o PSD, se traduziu na perda de câmaras, freguesias e mandatos, com a vergonha maior de ficar em terceiro lugar, atrás de Sónia Nicolau, em Ponta Delgada. Onde, aliás, seria importante que os dirigentes da secção concelhia do partido tirassem as devidas ilações da péssima condução de todo este processo.

Em Ponta Delgada, Pedro Nascimento Cabral perde dois vereadores, fica empatado com Sónia Nicolau e sofre uma queda impressionante de quase quatro mil votos. Fica agora dependente de difíceis negociações para conseguir aprovar o seu programa, tarefa árdua para alguém que já demonstrou não ter feitio para grandes diálogos.

Espero sinceramente que, neste cenário difícil que se avizinha, tanto na Câmara de Ponta Delgada como na Região, não venha a ser o PS de Francisco César a dar a mão aos desmandos de um PSD que, em conjunto, pode reivindicar os dúbios títulos de pior presidente de câmara e pior governo regional de sempre. Nem mesmo com a desculpa esfarrapada da “estabilidade”, porque a estabilidade é o refúgio dos fracos, e os Açores pedem lideranças fortes para navegar tempos de tempestades…

 

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Speakers' Corner 53

A celebração de uma identidade

Por um curioso alinhamento de datas, o país e a região vivem por estes anos uma inusitada sequência de efemérides e celebrações. Dos 50 anos do 25 de Abril, aos 600 anos do descobrimento dos Açores, passando pelos 50 anos da Autonomia Regional, e mesmo a coincidência de Ponta Delgada Capital da Cultura que acontece no próximo ano, entre 2024 e 2027, o país e a região vivem um momento ímpar de celebração da consciência coletiva que nos devia mobilizar a todos como sociedade.

Infelizmente, hoje a ideia de celebração identitária tornou-se numa espécie de anátema social. A minha geração, em particular, foi educada, em grande medida, para desconfiar da ideia de pátria. O Estado Novo apropriou-se de tal forma do nacionalismo que, depois da Revolução, o país pareceu precisar de se purgar daquela sombra do patriotismo que pairava sobre a nação como um xaile negro e opressivo. O orgulho nacional, a simples evocação da glória pátria, tornou-se suspeito, uma relíquia ideológica de um tempo de hinos, fardas, União Nacional e censura. O amor à pátria passou a soar a fascismo e a própria palavra “Portugal” foi, por muito tempo, pronunciada com embaraço, quase com constrangimento, numa surdina envergonhada só levemente aceite nas vitórias da Seleção Nacional e nos golos do Ronaldo.

A história dos últimos cinquenta anos é também a história dessa tensão entre um Portugal ensimesmado e fechado sobre si mesmo e outro, cosmopolita, aberto ao mundo e à Europa. A democracia procurou libertar-se do velho país salazarento, rural e beato, que erguia estátuas ao sacrifício e à obediência, louvando a pobreza e a grandeza do Império, trazendo para o centro da vida coletiva a ideia de um país global. Foi a Europália de 1991, a Lisboa Capital da Cultura em 1994, a Expo 98, o Euro 2004, toda uma galeria de grandes eventos internacionais que pretendiam projetar o país para o exterior, modernizando-o. Mas, ao fazê-lo, o país acabou também por perder algo de essencial e de interior, o sentido de comunidade, o sentimento de pertença, a capacidade de celebrar em conjunto os feitos e a história sem medo de parecer antiquado ou, pior ainda, conservador.

As grandes datas nacionais foram-se tornando quase incómodas. O 5 de Outubro, como vimos nestes dias, tornou-se tóxico. O 10 de Junho transformou-se num ritual sem alma, deslocado das populações, onde nem já Camões se destaca como poeta agregador das massas. Os desfiles do 25 de Abril dividem mais do que unem, com a descida da Avenida seccionada em trupes de cada identidade sectária, com os liberais a fecharem o cortejo ao estilo carro-vassoura das diferenças políticas. As comemorações oficiais tendem a ser tratadas como obrigações protocolares, com tanto de bocejo como de pompa, ou, então, meras oportunidades para ajustes de contas ideológicas com o passado. A esquerda teme parecer nacionalista; a direita fá-lo muitas vezes de forma caricatural e nostálgica, incapaz de se renovar. O resultado é que o país perdeu a capacidade de se rever ao espelho e de se aceitar em si mesmo, com as suas glórias e os seus erros, inteiro, em vez de compartimentado e envergonhado, numa paralisação autodesvalorizante que o faz fugir de si próprio.

Talvez seja por isso que as comemorações dos cinquenta anos do 25 de Abril, que poderiam e deveriam ter sido uma afirmação serena da nossa maturidade democrática, acabaram reduzidas a um eco dos traumas do passado. Entre o revisionismo e a saudade, entre a retórica da “liberdade conquistada” e o ressentimento do “25 de Novembro”, o país parece reviver a infância das suas divisões, incapaz de transformar a memória em projeto. Incapaz de sarar as feridas passadas, unindo-se num ideal comum de liberdade e democracia. Em vez disso, caímos no fosso do revanchismo revisionista, agitando ainda as velhas bandeiras da revolução contra a reação. Como se ser de Abril não fosse, afinal, ser de Portugal e vice-versa.

Até porque celebrar o passado não tem de ser um processo regressivo, feito de traumas e restituições. Pelo contrário. Celebrar é um gesto profundamente afirmativo. É reconhecer que há uma história comum, um percurso que nos precede e uma continuidade que nos sustenta. Não se trata de glorificar o passado, mas de o compreender como parte viva de quem somos e que nos transporta, com segurança, para o futuro. Celebrar é afirmar uma identidade que não precisa de ser nacionalista para ser cultural, cívica ou simplesmente nossa, individual e humana.

Há um equívoco de fundo na ideia de que o passado é um túmulo amaldiçoado de que é preciso fugir ou esquecer. O nacionalismo é uma ideologia; o sentimento de pertença, não. Um povo sem laços é apenas uma soma de indivíduos. E uma comunidade que não celebra as suas datas é uma comunidade que esquece o seu próprio caminho. A memória coletiva precisa de rituais, de símbolos e de encontros. São esses momentos, por mais cerimoniosos ou até artificiais que pareçam, que alimentam a consciência de que pertencemos a algo maior do que nós próprios.

Em 2027, os Açores celebrarão 600 anos do seu descobrimento. É uma data que poderia (e deveria) ser mais do que uma efeméride histórica: é uma oportunidade para pensar o arquipélago como um projeto comum. Porque, na verdade, a ideia de arquipélago nunca esteve totalmente consolidada. Ainda hoje, como não me canso de escrever, persiste uma visão fragmentada, quase insular, da própria autonomia, uma soma de ilhas, mais do que uma consciência coletiva de Açores.

Celebrar os 600 anos não seria apenas recordar a chegada dos primeiros navegadores; seria pensar o que significa hoje viver num território atlântico e europeu. Seria um exercício de imaginação cívica, uma oportunidade de revisitar a história para projetar o futuro. Um futuro que, para os Açores, tem tudo a ganhar em reforçar a sua ideia de conjunto e de verdadeira comunidade arquipelágica na sua circunstância de ponte entre dois mundos.

Essas celebrações poderiam ser um momento de reencontro: entre a história e o presente, entre o local e o universal. Através da cultura, da arte, da ciência, da reflexão crítica e não apenas de discursos ou cerimónias protocolares, com mais ou menos concertos e sopas do Espírito Santo, poder-se-ia afirmar uma nova forma de pertença. Uma pertença aberta, moderna, consciente da sua complexidade e das suas tensões e que abarcasse todas as ilhas desde o Corvo a Santa Maria numa verdadeira Açorianidade.

Os Açores são, afinal, um microcosmo perfeito do dilema português: entre o orgulho de existir e o receio de o declarar. Tal como o país continental, o arquipélago vive entre a vontade de se afirmar e o medo de parecer retrógrado; entre a necessidade de celebrar e o pudor de o fazer. Mas não há nada de reacionário em querer celebrar o que somos. Reacionário é desistir de nos pensarmos, é omitir essa permanente tensão de existir.

Talvez o maior legado dos cinquenta anos do 25 de Abril pudesse ser precisamente este: libertar o amor à pátria da sombra do Estado Novo e devolvê-lo à cidadania democrática. Reconciliar-nos com a ideia de que um país pode orgulhar-se de si sem se fechar, que uma ilha pode celebrar a sua história sem se isolar, que um povo pode ter símbolos sem ser escravo deles.

No próximo ano celebraremos também os 50 anos da Autonomia. Ao que se sabe, pouco ou nada está ainda pensado para esse momento fundacional da nossa contemporaneidade insular. Talvez, nos gabinetes bafientos, algum técnico superior esteja incumbido de organizar o protocolo da celebração, dos discursos, das precedências e das comendas. A nós chega-nos pouco ou quase nada do que deveria ser a celebração do nosso aniversário coletivo enquanto entidade arquipelágica, autonómica, insular, europeia e atlântica. Talvez ainda vamos a tempo.

Talvez ainda vamos também a tempo de celebrar convenientemente esse estatuto de Capital da Cultura, mesmo que os financiamentos se percam nas gavetas das insolvências governativas, que os protagonismos políticos e artísticos tentem cooptar esses gestos simbólicos, retirando-lhes a essência popular e criativa que um momento como este deveria ter. Tal como, aliás, estava previsto na sua génese: um evento agregador da pluralidade insular, fazendo de Ponta Delgada não a capital, no sentido mais retrógrado do termo, mas o epicentro, motor e centralizador da multiplicidade e diversidade insular. Uma cidade feita desses nove bairros, na feliz formulação do Nuno Costa Santos, que se revisitam e se dão a conhecer em conjunto.

Celebrar, celebrarmo-nos, não tem de ser um frete ou um embaraço. Celebrarmo-nos, a nós, como povo, arquipélago e identidade, é antes uma afirmação viva dessa Açorianidade literária que Nemésio cunhou fará agora cem anos e que hoje não vale mais do que um envergonhado prémio literário de dois mil e quinhentos euros.

Perdemo-nos tanto na espuma do presente que nos esquecemos de celebrar o passado e de ambicionar o futuro.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Speakers' Corner 52

O Grand Tour micaelense e o futuro do turismo regional

Sábado passado assinalou-se o Dia Mundial do Turismo, este ano dedicado ao tema “Turismo e Transformação Sustentável”, salientando o poder transformador desta indústria como agente positivo de mudança, tanto nos territórios como nas comunidades.

A ideia de turismo, alicerçada no conceito romântico do Grand Tour, é relativamente recente. Os seus primórdios recuam aos conceitos de lazer e de tempo livre, uma conquista civilizacional do final do século XVIII, generalizada na burguesia do século XIX. O lazer nasce da Revolução Industrial e é precisamente a máquina a vapor que impulsionará a deslocação das elites burguesas pelos territórios europeus e além-fronteiras.

Contrariamente ao que se possa pensar, os Açores não ficaram à margem deste movimento. A sua centralidade geográfica, as paisagens, as gentes, os produtos e, no caso específico de São Miguel, as termas de águas férreas, cedo despertaram o interesse de viajantes de ambos os lados do Atlântico.

Não é necessário ser especialista na matéria, nem recorrer às obras de autores como Ricardo Madruga da Costa ou Fátima Sequeira Dias, ainda que essenciais, para compreender a antiguidade e o potencial turístico das ilhas. Basta folhear o magnífico tomo de Maria das Mercês Pacheco, Viajantes nos Açores: o olhar estrangeiro sobre as ilhas desde o século XVI, da editora Artes e Letras, para sentir a antiguidade desse fascínio insular feito de vulcões, navegações e do sortilégio das suas gentes, que fazem do turismo nos Açores uma história já com bastante mais de 100 anos.

Em 1899, São Miguel foi pioneira no país com a criação da Sociedade Propagadora de Notícias Michaelenses. A instituição dedicava-se à promoção externa da ilha através de boletins, guias e informação turística, contando com figuras como Ernesto do Canto e Eugénio do Canto e Castro como seus principais dinamizadores.

No ano de 1924 ganhou notoriedade a Viagem dos Intelectuais, promovida por José Bruno Carreiro através do Correio dos Açores, que trouxe ao arquipélago notáveis da cultura e do jornalismo nacional, que puderam conhecer in loco o seu imenso potencial turístico.

Em julho de 1933 surge a Socidedade Terra Nostra, fundada por Augusto Arruda, Agnelo Casimiro e Francisco Bicudo, e enriquecida pelo talento artístico do Eng. Manuel António de Vasconcelos. Este audacioso projeto viria a consolidar o Vale das Furnas como epicentro turístico da ilha e que, um par de anos depois, Vasco Bensaúde transformaria no grupo que até hoje enverga o estandarte da excelência do destino Açores. Uma empreitada que, pela sua ousadia, muito merecia que se lhe fizesse a verdadeira história até como legado para as gerações futuras.

Poucos anos mais tarde, alguns destes protagonistas estariam também na fundação da SATA, companhia criada com a visão estratégica de ligar os Açores ao mundo e vice-versa. Hoje, infelizmente, a empresa atravessa uma fase de agonia precipitada, com consequências imprevisíveis para a sustentabilidade turística do destino.

A partir dos anos 1970 e 1980, com a chegada dos aviões a jato e profundas mudanças políticas e sociais, o turismo açoriano entrou numa espécie de hiato evolutivo. Ao qual não foi alheio o conservadorismo da época, cujo “mota-amarelismo” via nesta indústria progressista e inclusiva uma ameaça à estabilidade de um certo atavismo e sectarismo insular avesso a muitas modernidades.

Já no nosso tempo, o contributo de figuras como Albano Cymbron e os seus “suecos” e passeios pedestres, Serge Viallelle e a observação de cetáceos, Duarte Ponte e Luís Bensaúde com os seus hotéis, para referir apenas alguns no meio de muitos, aliados à liberalização do espaço aéreo, fizeram explodir a indústria turística na região, tornando-a incontornável no desenvolvimento do arquipélago.

O próprio Governo Regional reconhece isso mesmo: em comunicado pelo Dia Mundial do Turismo, apontou que o setor já contribui para mais de 1.000 milhões de euros de riqueza anual, representando cerca de 20% do VAB regional, 17% do PIB e 17% do emprego. Números que atestam a centralidade incontornável do turismo no futuro desta região.

Contudo, é precisamente essa relevância que nos deve levar a uma reflexão séria e descomplexada sobre o presente e o futuro do turismo nos Açores. Para isso é essencial fugir tanto das propagandas laudatórias como dos pessimismos retrógrados que veem no turismo uma doença perturbadora da placidez ilhoa.

Apesar do crescimento constante nos indicadores, há sinais cada vez mais preocupantes no retrato mais abrangente do sector, que nos deviam inquietar e ponderar. Desde logo, a ausência de linhas orientadoras claras e de planeamento estratégico fragiliza o crescimento sustentado de uma atividade essencial para o nosso desenvolvimento. Falta uma visão definida sobre que destino queremos ser e que metas queremos atingir, o que deixa o setor, já de si sensível a choques externos, ainda mais vulnerável às flutuações do mercado e, em especial, dos humores das companhias aéreas. Planos sucessivamente suspensos e estratégias elegantemente desenhadas, mas nunca efetivamente aplicadas, potenciam uma espécie de caos organizado que gera deriva em vez de rumo.

Outro problema premente é a falta de uma identidade. Tardamos em compreendermo-nos como um agregado de diferentes partes e em promover-nos como tal, potenciando diferenças, em lugar de, bairrista e artificialmente, promover gateways que na verdade se canibalizam umas às outras. Por outro lado, a hegemonia de uma imagem de “destino de natureza pura” negligencia dimensões como a história, a gastronomia, o património e as especificidades culturais distintas de cada ilha, elementos fundamentais para afirmar os Açores, no seu todo, como destino europeu e atlântico de referência, em particular em mercados como o norte-americano, tão ávido de história como de natureza.

A sazonalidade constitui igualmente um desafio central. No verão IATA (final de março a final de outubro), a região dispõe de cerca de 1,16 milhões de lugares em aviões, de acordo com os dados que é possível obter, número que desce drasticamente no inverno para apenas 350 mil. Este perigosíssimo desequilíbrio estrutural põe em causa a rentabilidade do setor e trava o seu crescimento pondo em risco empresas, postos de trabalho e investimentos.

Acresce o incremento exponencial da oferta e a saturação de alojamento: nos últimos dez anos, a capacidade aumentou mais de 600%, enquanto os hóspedes cresceram apenas 130% e as dormidas 200%. Este desfasamento revela um setor desequilibrado e altamente vulnerável, apesar do discurso da “sustentabilidade” que tanto agrada aos atores políticos.

Por último temos um claro desfasamento entre a oferta de infraestruturas e a procura turística, naquilo que é uma clara desqualificação do destino causando pressão sobre o território, a qualidade de vida dos locais e a própria experiência dos visitantes. Um destino como o nosso, não pode conviver com o fecho do Ilhéu a banhos ou a poluição na praia do Monte Verde.

Combater a sazonalidade, criar metas equilibradas de crescimento e alinhar oferta e procura são hoje os principais desafios para este sector. Uma política focada apenas no curto prazo, nos investimentos imediatos e estatísticas homólogas, conduzirá inevitavelmente à massificação e descaracterização de um destino que sempre se construiu mais pela ambição dos que cá vivem do que pela cobiça dos que nos visitam.

Já para nem falar no velho e gasto tema da promoção, que não se faz sozinha, nem pode nunca deixar de se fazer, sempre, continuada e apaixonadamente.

No distante ano de 1933, o Dr. Agnelo Casimiro escrevia na revista Insula:

Turismo! Palavra mágica, que de há tempos vem eletrisando as classes micaelenses num justificado anseio de progresso regional. Podem e devem (…) aspirar com razão e sem receio a esta poderosa fonte de desenvolvimento local aquelas terras que, como a formosa ilha de Sam Miguel, encerram tantas maravilhas panorâmicas e tamanha riqueza hidrológica, gozando ainda de uma situação geográfica privilegiada, a meio caminho no imenso Atlântico, entre o Novo e Velho Mundo. (…) O que nos falta, pois? Apenas isto: preparação e propaganda. Todos o sabem também.”

Quase cem anos volvidos, este anseio em forma de aviso desse ilustre vulto do séc. XX micaelense mantém-se inusitadamente vivo e até mesmo com uma estranha e perturbadora atualidade, quando tantas e tantas vezes seguimos falhando na preparação e na qualificação do destino e negligenciando a importância da sua promoção cuidada e permanente.

Ao invés, seguimos ao sabor do vento. Infelizmente, mais da tempestade do que da bonança.

 

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Speakers' Corner 51

Finançocracia Inc.

Na última semana, os meios de comunicação social efervesceram com o cancelamento do programa Jimmy Kimmel Live!, da televisão ABC, apresentado pelo comediante norte-americano.

Os comentários giraram em torno da censura institucional, da ingerência política e das crises da democracia e da liberdade de expressão. Alimentando a pergunta: que fazer para salvar a democracia?

Os principais estudos recentes sobre esta temática abordam desde reformas institucionais e defesa da verdade até ações individuais de cidadania responsável. Entre os destaques dos últimos anos, há livros, relatórios e manuais que propõem saídas concretas perante a crescente ameaça de autoritarismo e erosão democrática. Anne Applebaum, uma das mais vocais defensoras do Ocidente democrático, examina, nos seus livros Autocracy, Inc. e Twilight of Democracy: The Seductive Lure of Authoritarianism, como as autocracias globais cooperam para minar democracias, defendendo a necessidade de estratégias conjuntas para proteção das instituições democráticas e mostrando como, na ascensão do autoritarismo contemporâneo, muitos antigos defensores da democracia foram seduzidos por regimes antidemocráticos.

A literatura recente concorda que salvar a democracia não se restringe a ajustes institucionais: requer cultura democrática, práticas quotidianas de tolerância, persuasão e renovação dos laços sociais. Os trabalhos académicos sublinham ainda a importância das alianças transnacionais e do combate estratégico à desinformação digital. Mas talvez o compromisso maior seja o de reconquistar a confiança dos cidadãos nos políticos, nas instituições e na própria democracia como regime de tolerância, liberdade e justiça para todos.

Mais do que temer os extremistas ou populistas de ambos os lados, talvez a melhor forma de reconquistar essa confiança seja através da transparência e, sobretudo, da justiça social. Um dos problemas mais graves com que vivemos é a forma como, desde 2008, com a crise financeira global, os sistemas políticos se subjugaram ao capitalismo selvagem das grandes instituições financeiras. Salvámos a Banca, mas, com isso, destruímos a Democracia.

Quando olhamos para o cancelamento de um talk show como o de Jimmy Kimmel, corremos a culpar Donald Trump e o seu pendor autoritário, mas esquecemos outros protagonistas, que permanecem na sombra, como Larry Fink ou Peter Thiel.

A cadeia de televisão ABC é detida pela Disney, que, por sua vez, é controlada em grande parte por gigantescos fundos financeiros como a BlackRock, a Vanguard e a State Street. Para se ter uma ideia: estas três empresas gerem, em conjunto, mais de 25 triliões de dólares em ativos, que vão desde a indústria de armamento à farmacêutica, do setor financeiro aos media e ao entretenimento. Para comparação, o valor global das economias do G7 está estimado em 58 triliões.

Independentemente das razões mais profundas para este afunilar das liberdades civis, e do poder da oligarquia financeira global sobre as nossas instituições, com tentáculos que vão da alta finança à indústria, à política e aos media, a verdade é que episódios como este, ou como os que envolveram outros apresentadores de Late Night, como Stephen Colbert, fazem temer pela saúde da democracia americana e, por extensão, das democracias ocidentais.

Talvez fosse bom, antes de culparmos Donald Trump por todos os males do nosso tempo, pensarmos no papel que estes fundos têm nas partes mais banais das nossas vidas e na forma como influenciam as decisões das empresas em que são acionistas: desde a comida que comemos, aos medicamentos que tomamos, aos créditos bancários que nos esmagam e, finalmente, aos programas de televisão que assistimos.

Trump ou Ursula von der Leyen são a face visível de um sistema global enfermo e corrompido. Mas quem verdadeiramente puxa os cordelinhos deste teatro de fantoches são figuras como Fink, Thiel e a mão invisível dos mercados. É contra eles que teremos de lutar para salvar a democracia.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Speakers' Corner 50

Balas não cantam baladas

“Bella Ciao” é uma antiga balada revolucionária italiana, nascida entre as camponesas dos campos de arroz do norte de Itália, no final do século XIX. Mais tarde foi retomada pelos partisans da Segunda Guerra Mundial, tornando-se hino da resistência antifascista. Nos anos 60 ganhou nova voz nos movimentos estudantis e, já no nosso tempo, regressou à cultura popular através da série da Netflix La Casa de Papel. A canção, que fala de liberdade, sacrifício e esperança, atravessa gerações como símbolo de uma utopia humanista feita de resistência, solidariedade e luta por uma vida melhor.

Na passada quarta-feira, dia 10, no campus da Universidade do Utah, o influenciador da direita radical Charlie Kirk, de 31 anos, foi abatido a tiro por um atirador furtivo que disparou a 183 metros de distância a partir do telhado de um prédio. A bala atingiu-o na carótida. O alegado autor, Tyler Robinson, de 22 anos, terá inscrito nas balas, entre outras mensagens ligadas ao movimento de esquerda radical Antifa, as palavras “Bella Ciao”.

Kirk era conhecido pelas suas posições misóginas e hostis aos direitos das minorias. A sua retórica conservadora e divisionista alimentava confrontos no espaço público, muitas vezes incitando ao ódio e à intolerância. Por cruel ironia acabou vítima do mesmo porte de armas que sempre defendeu.

Pouco se sabe, ainda, sobre as motivações do atirador. Ao que parece, Robinson era próximo da causa LGBTQ+ e, alegadamente, de uma certa esquerda radical antifascista. Mas, o essencial, neste momento, é compreender que vivemos num tempo em que os extremismos, sejam à direita ou à esquerda, já não se limitam a debater ideias. Empunham armas, impõem-se pela violência e destroem, com a sua intolerância, o espaço público, que deveria ser a casa comum das nossas democracias.

Mais chocante do que o atentado em si, um assassinato fútil e frio, cometido a céu aberto, é a polarização que tomou conta do debate mediático. Populismos de ambos os lados trocam acusações e hesitam na condenação clara e necessária do sucedido. Multiplicam-se tentativas de justificar o injustificável, como se alguma morte pudesse ser legitimada por razões ideológicas.

Num regime aberto e liberal, toda a violência deve ser condenada. A liberdade de opinião e de expressão tem de ser preservada, mesmo para quem pretende negá-la aos outros. O facto de Kirk defender o silenciamento de minorias não legitima que fosse condenado à morte por alguém que se via como parte dessas minorias. A bala que o matou não foi justiça. Foi intolerância, e prova da doença que corrói a democracia e destrói a liberdade.

Os Estados Unidos carregam infelizmente uma longa tradição de violência política. De Lincoln a Martin Luther King, dos irmãos Kennedy a Harvey Milk. Mais grave do que acrescentar mais um nome a essa trágica lista de óbitos é perceber como chegámos a um ponto em que radicalismo e intolerância substituem o debate pelo insulto e o diálogo pelas armas. Quando a morte se torna argumento político, é a democracia que deixa de respirar e a liberdade que morre por dentro.

No seu célebre “paradoxo da tolerância”, o filósofo britânico nascido em Viena, Karl Popper, alertava para a necessidade de as democracias liberais limitarem o discurso de ódio e as narrativas extremistas como única forma de se protegerem da intolerância. Mas esta teoria contem, dentro de si, um dilema. Até que ponto a luta contra o discurso de ódio não reproduz os mecanismos autoritários que procura evitar, conduzindo, em última instância, a gestos como o de Tyler Robinson?

A liberdade estará sempre em risco quando as armas da intolerância são empunhadas em seu nome. Não são as balas que garantem a democracia ou nos protegem dos extremismos, sejam de esquerda ou de direita. É precisamente a coragem de dizer não à linguagem das balas.

Porque as balas não cantam “Bella Ciao”. Apenas calam a voz da Liberdade.

 

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Speakers' Corner 49

O fim do Contrato Social

Nos últimos dias, o conceito de responsabilidade política tem estado nas bocas do país, a reboque, perdoem-me a ironia, da tragédia do Elevador da Glória. O próprio Presidente da República, sempre pronto a disparar comentários políticos, veio a terreiro referir-se ao tema, indicando explicitamente o escrutínio popular expresso no voto das próximas eleições autárquicas como forma imediata de assacar responsabilidades políticas ao autarca de Lisboa, Carlos Moedas.

Este, por seu lado, tentou esgrimir os argumentos da fuga ou da coragem política para justificar o injustificável, recorrendo a terminologias abjetas e inqualificáveis para classificar os adversários políticos e usando exemplos indecorosos ao evocar figuras que já não estão entre nós para se defender. Foi o caso de Jorge Coelho e da famosa Ponte Hintze Ribeiro, mais conhecida pela tragédia de Entre-os-Rios.

No meio desta cacofonia, talvez seja importante regressar ao que antecede a responsabilidade política, nomeadamente, o famoso Contrato Social. Só assim se percebe como, nos nossos dias, se confunde ética individual com escrutínio, este com responsabilidade política e, finalmente, com moral pública.

O Contrato Social teve origem no final do século XVIII, com os contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau, que teorizaram sobre a aliança entre governo e população, consubstanciada num pacto entre as partes. Apesar das diferenças entre eles, uma ideia era comum: os indivíduos organizam-se em sociedade estabelecendo regras e acordos para garantir direitos, deveres e um convívio pacífico sob a autoridade de um poder político legítimo. Tratava-se de um pacto em que as pessoas abriam mão de parte da sua liberdade em troca da proteção e segurança oferecidas pelo Estado.

Os direitos e deveres individuais eram definidos a partir desse pacto, que estabelecia regras e limites ao poder do governante. Cada pessoa renunciava parcialmente à sua liberdade natural para garantir a sobrevivência coletiva e direitos civis. A autoridade do Estado emanava desse consentimento dos governados, sendo legítima apenas enquanto respeitasse os termos do pacto. O Contrato Social fundamenta a ideia de responsabilidade política e a obrigação do governante de prestar contas à sociedade, servindo de base teórica à legitimidade do poder político e da organização das sociedades modernas.

Compreender estas raízes é essencial para perceber o princípio do bem comum e o próprio exercício de cargos públicos, em que os governantes devem estar ao serviço dos cidadãos. A tragédia que vivemos hoje, visível nos incêndios, na falência do SNS, numa justiça que não funciona, num sistema de ensino caduco e depauperado, num elevador que cai, ou até mesmo numa SATA em colapso, no Ilhéu que fecha a banhos ou na Praia do Monte Verde, é que os governantes deixaram de garantir o bem comum, a tal proteção e segurança do Estado, e passaram a cuidar apenas do seu interesse pessoal. Os partidos políticos deixaram de ser plataformas ideológicas de alternativa governativa e tornaram-se máquinas de disputar eleições, cujo único objetivo é a sobrevivência dos seus dirigentes.

Mais grave ainda é transformar eleições em plebiscitos sobre a responsabilidade política, ou a ausência dela, dos candidatos. Com isso, legitima-se a sua própria infidelidade ao princípio maior da responsabilidade moral dos governantes: a honra e o cumprimento estrito dos termos do Contrato Social. Bloco a bloco, esse contrato vai-se esboroando a cada tragédia, a cada incêndio, a cada política pública falhada, num acumular de incumprimentos que termina na dissolução da premissa essencial de um Estado de Direito: a confiança dos cidadãos nos governantes e no próprio Estado.

Jorge Coelho não se demitiu por ter lido qualquer relatório, mas porque tinha consciência moral do seu papel enquanto governante. Ao contrário de Carlos Moedas, e outros como ele, que não se demite, exatamente, porque não tem um pingo de moral ou mesmo de consciência.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Speakers' Corner 48

“Bombãs” e outras torturas medievais

Perdoem-me os tradicionalistas e os conservadores, os guardiões dos rituais seculares e das memórias antigas, mas o uso e o abuso de foguetes, roqueiras e “bombãs” nas festas populares das nossas ilhas tornou-se absolutamente insuportável.

O plácido verão açoriano, outrora pautado pela serenidade própria do isolamento insular, transformou-se numa opressiva sucessão de petardos que rebentam a toda a hora, meses a fio e nos momentos mais improváveis, por cima das nossas cabeças, num festival ensurdecedor digno de um cenário de guerra terceiro-mundista. Desde a Páscoa e o Santo Cristo, passando pelas coroações do Espírito Santo, até ao último santo de freguesia, lá nos idos de Setembro, a ilha inteira parece mergulhada num estardalhaço de pólvora e estrondo. Não há manhã, tarde ou noite em que o ar não seja rasgado por sucessivas e ritmadas explosões que nada anunciam, a não ser a paciência a desfazer-se de quem vive nas redondezas do rebentamento. Há casos, como é o meu, em que o lançamento dos ditos é feito sempre do mesmo lugar, paredes meias com o remanso do lar, invadindo-nos o silêncio com a força de um pontapé nos tímpanos.

Se outrora se compreendia a função prática dos foguetes, sinalizar a festa a longas distâncias, anunciar uma procissão ou marcar a saída de um cortejo, hoje, na era das telecomunicações, o ribombar súbito e ensurdecedor destes estampidos não passa de uma forma arcaica e torturante de nos enlouquecer.

Seria bom, se não for pedir muito, que alguém com assento nas Irmandades, nas Comissões Fabriqueiras, na Santa Casa ou na Casa do Povo nos explicasse o porquê de, em pleno século XXI, ainda andarmos a usar este método medieval de comunicação. Há alguma explicação plausível para esse trovão invasivo e arcaico que irrompe repetidamente pelas nossas vidas com a violência de uma bomba, nas horas mais esdrúxulas e inconvenientes? E haverá alguma alma amiga, ligada à pirotecnia, que me esclareça a dúvida sobre a potência da pólvora que, à medida que perco o cabelo, a visão e a audição, parece ser cada vez mais forte e perturbadoramente sonora?

Já para não falar no impacto ambiental. Em nome da tradição, lançam-se indiscriminadamente para o ar cartuchos de plástico com pólvora, sem olhar às consequências, caindo depois aleatoriamente no mar, nos campos ou mesmo nos telhados das casas, sem controlo, vistoria ou sombra de regulamento que nos valha.

Não se trata de acabar com a festa, mas de perceber que a festa não precisa de ser estrondosa para ser genuína. E até há alternativas, com luzes, lasers, música e pirotecnia silenciosa, que já se fazem noutras partes do mundo. Mas, por cá, insiste-se no medievalismo, como se a devoção tivesse de ser medida pelo número de decibéis que emite e pela pólvora que consome.

Depois há a questão das horas. Se antes havia uma lógica que se percebia e uma cadência que estruturava o anúncio da festa, agora reina a anarquia do barulho. Rebenta-se às oito, às oito e meia, às dez, às onze, às quatro da tarde, às seis, às dez da noite, à meia-noite ou até mais tarde. Tudo ao sabor da devoção do mordomo ou do grau de alcoolemia do “tio Joaquim”, que, de beata em riste, se entretém a atiçar os foguetes sem olhar a hora, a vizinhança ou a Lei do Ruído.

Na eterna dicotomia entre progressistas e conservadores, Chesterton lembrava que “a tradição é a democracia dos mortos”. É verdade que o mundo não pode ser feito apenas de inovação, e há tradições que merecem ser preservadas. Mas certas tradições, sobretudo aquelas que perderam o sentido e se mantêm apenas por inércia, não são mais do que um incómodo disfarçado de devoção. As festas são lugares de encontro e de comunidade. Mas este estrépito ensurdecedor dos foguetes e “bombãs” já não une nem informa, apenas mói e cansa.

Talvez esteja na hora de deixarmos os mortos em paz e oferecermos aos vivos um verão menos parecido com uma guerra de trincheira.