quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Speakers' Corner 61

Uma abstenção passivo-agressiva

De acordo com os dados mais recentes, a execução financeira das verbas do PRR estava, no país, reportada a novembro último, na ordem dos 45%, e na região, segundo dados do 1.º trimestre de 2025, nuns envergonhados 37%. Convém lembrar que, impreterivelmente, todos os contratos do PRR terão de estar finalizados até agosto de 2026 e a sua execução financeira concluída até dezembro do mesmo ano, ou seja, dentro dos próximos 12 meses.

Este pacote financeiro mastodôntico de mais de 22 mil milhões de euros a nível nacional e 725 milhões para a região, criado pela União Europeia na esteira da calamidade pandémica, que primeiro foi bazuca e depois vitamina, corre afinal o risco de se tornar um pífio “Viagra” de contrafação, cujo efeito real na economia promete ficar dolorosamente aquém dos seus objetivos iniciais.

Ainda esta semana, Pedro Dominguinhos, presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR, chamou a atenção para as crónicas dificuldades nacionais de planeamento e para os riscos de a execução do plano vir a afetar de forma muito negativa setores essenciais como a educação e a saúde. Também na região, o Conselho Económico e Social dos Açores tem repetido alertas para os atrasos e dificuldades na execução dos envelopes financeiros, recomendando “particular atenção sobre estes dados, para que a execução do PRR não se revele mais um problema, em vez da solução de alto impacto inicialmente prevista”.

Na semana passada, no debate final da proposta de Plano e Orçamento da Região, Berto Messias, novo líder parlamentar do Partido Socialista, depois de fazer duras críticas ao Governo Regional, várias delas amplamente legítimas, sobretudo no que toca à execução dos fundos europeus, acabou por justificar a abstenção do seu partido com a necessidade de a região não desperdiçar “um único euro” do PRR e do Açores 2030.

Ora, o problema é a profunda incoerência entre o discurso e o voto e os seus efeitos reais na vida política regional. A percepção dominante entre a opinião pública e a publicada é a de que existe um descalabro evidente na governação. A situação financeira aproxima-se perigosamente de uma pré-catástrofe, e o Governo não demonstra capacidade para inverter o rumo. A SATA, a dívida, o turismo em queda precipitada, compõem o cenário claro de uma bomba-relógio económico-financeira prestes a explodir nas mãos do açoriano comum, para quem o PRR e o Açores 2030 são mais miragens do que vantagens.

Perante isto, o principal partido da oposição parece mais preocupado com a sua própria sobrevivência do que com a subsistência da região. Num tempo em que se discursa abundantemente sobre a “credibilização” dos agentes políticos, sobre a necessidade de combater os populismos e a polarização, o PS-Açores optou pela velha arte do calculismo eleitoral de criticar com convicção para, logo a seguir, viabilizar a governação.

E é precisamente aqui que se revela a fratura mais profunda da nossa vida política regional que, tal como a nacional, tem sacrificado a ideologia e a coerência à tática e ao cálculo. Critica-se o Governo com veemência discursiva para, instantes depois, lhe segurar a escada na esperança de não se perder o lugar. Esta duplicidade, embrulhada em justificações piedosas, corrói o próprio conceito de serviço público e, o mais grave, aprofunda o descrédito dos cidadãos perante os políticos.

Os partidos perderam a noção de que existem para servir e lutar pelas ideias que dizem representar. Em vez disso, movem-se numa coreografia permanente de estratégias, sondagens, lugares a distribuir e equilíbrios internos a manter, num xadrez onde o povo serve mais de peão do que de razão de ser. E enquanto esta cultura política persistir, o que está verdadeiramente em risco não é apenas a execução do PRR, e dos milhões que a UE nos acena como uma cenoura encantada, mas a própria possibilidade de fazer da política um ato de coragem, responsabilidade e verdade.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Speakers' Corner 60

Uma revolução de cravos

Camila Vitorino, natural de Setúbal, com 26 anos, 1,76 m e uma beleza morena estonteante, foi a representante de Portugal no concurso Miss Universo 2025, que teve lugar na Tailândia na semana passada. Num dos desfiles, Camila apresentou um vestido adornado com cravos vermelhos, em homenagem, segundo ela, a Celeste Caeiro.

Celeste Caeiro foi quem, na manhã de 25 de Abril, distribuiu cravos pelos soldados que subiam o Carmo para cercar Marcello Caetano. Esse gesto simples tornou-se inadvertidamente num símbolo de liberdade e da própria revolução. Há dias, quando a minha filha mais nova me pediu sugestões para um trabalho escolar sobre grandes mulheres que mudaram a História falei-lhe precisamente desta mulher, tantas vezes esquecida e anónima, que num gesto “inteiro e limpo” deu um nome à mais poética das revoluções.

Também na última semana tive o prazer de acompanhar, em parte, um colóquio, em boa hora promovido pela Biblioteca Pública de Ponta Delgada, sobre 1975, reunindo os arquipélagos da Macaronésia na reflexão histórica sobre a sua independência e autonomia. Nesta iniciativa amplamente louvável, ainda que demasiado centrada no famoso 6 de Junho, ficou evidente a dor profunda e ainda muito viva que lateja nos que participaram nos acontecimentos daquele ano. O país, e os Açores, continuam marcados por divisões ideológicas que atravessam famílias e memórias, com o peso de uma cicatriz que teima em não sarar. Feridas essas que são ainda mais visíveis por estes dias nas divisões a que assistimos nessa polémica espúria do 25 de Novembro, que reacende confrontos que esperaríamos ultrapassados. A Revolução dos Cravos, celebrada pela imprensa estrangeira como “a revolução cavalheiresca”, conseguiu evitar um banho de sangue, mas que deixou atrás de si um rasto de mágoas. O fim do regime, as arbitrariedades do PREC, tanto de um lado como do outro, continuam a ecoar em memórias vividas ou herdadas. 50 anos depois o país continua a tropeçar nas suas próprias sombras.

Ora, um dos momentos mais pungentes do colóquio foi o diálogo entre António José de Almeida, filho do carismático e apaixonado líder da FLA, e Joana Borges Coutinho, neta do Governador Civil de então, que se demitiu a 6 de Junho, pressionado pela grande manifestação popular, impulsionada pela lavoura, junto ao Palácio da Conceição, episódio que continua a gerar interpretações tão distintas como emoções intensas. Este encontro, entre descendentes de lados opostos, num gesto raro de concórdia num tempo de divisionismos, demonstra que é possível, afinal, aproximar-nos através da escuta e do reconhecimento mútuo e, quem sabe até, sarar essas feridas.

Infelizmente, o falhanço das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, marcadas por desinteresse e revisionismo, evidencia que permanecemos presos às divisões do passado. E também nos Açores, os 50 anos da Autonomia parecem encaminhar-se para mais uma oportunidade perdida, mais vocacionada para alimentar dissidências do que para promover encontros como o protagonizado pelo Tó Zé e a Joana.

Porque, no fundo, apesar de tudo o que nos separou e ainda separa, continua a existir um sonho comum que nos une no desejo do melhor para a nossa terra. Esse sonho está inscrito na alegria pura dos cravos vermelhos, símbolo de uma liberdade que deveria unir-nos. Num momento em que tantos se esforçam por acentuar divisões, foi também esse o significado do gesto de Camila Vitorino ao usar o seu vestido, recordar-nos que o essencial é aquilo que nos une e não aquilo que nos separa.

Num tempo em que tantos se esforçam por reacender fronteiras invisíveis, talvez devêssemos parar um instante e escutar de novo o silêncio desses pequenos grandes gestos. A flor de Celeste, o sorriso de Camila, a reconciliação improvável de dois filhos e netos de lados opostos.

Para os mais curiosos, foi a Miss México quem ganhou o título. Mas a história que realmente nos importa vestia cravos vermelhos.

 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Speakers' Corner 59

O Candidato Vieira

Nos anos 90, Lisboa fervilhava com uma pulsão indefinida feita em partes iguais de restos do pós-Estado Novo e grandes aspirações europeias, pelo meio, drogas, contracultura, angústia adolescente e uma inocente convicção de que o mundo era a nossa ostra. Antes do Lux, essa catedral do hedonismo urbano, a noite lisboeta era feita de Bananas, Alcântara Mar e do sempre ubíquo Bairro Alto, onde, entre o Estádio, o Frágil, o Mahjong e “As Primas”, numa peregrinação pagã regada a Sagres, B52’s e uma vaidade exacerbada que nos fazia sentir parte de uma qualquer vanguarda cultural, mesmo que muitos de nós, como era o meu caso, ainda vivêssemos em casa dos pais, a nossa ânsia de mundo era engolida a tragos sôfregos de desejo e má poesia.

De vez em quando a cidade estremecia com raves clandestinas em armazéns devolutos em Xabregas, concertos de bandas sem nome e uma vaga sensação de que estávamos a assistir ao nascimento de um novo mundo. Tudo isto num fervor pré-Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura, o momento em que acreditámos colectivamente que a modernidade finalmente tinha chegado a Portugal.

De entre esses fenómenos alternativos que pontuavam por uma Lisboa em busca de si própria destacava-se o cabaret circense dos Irmãos Catita, projeto paralelo do artista plástico Manuel João Vieira, famoso pelos seus Ena Pá 2000 e um talento raro para cantar atrocidades com a ternura de um urso panda com excesso de álcool no sangue. O público, feito maioritariamente por uma juventude à deriva, reconhecia-se na sua ironia corrosiva e na sua recusa sistemática de levar o país a sério, uma qualidade que, infelizmente, o país não soube retribuir.

Três décadas depois, o nome de Manuel João salta agora para a ribalta política, desta vez incarnando o seu perene Candidato Vieira. Com boné de comandante da TAP, gravata demasiado grande e um ar de meliante do Caís do Sodré, o nosso velho Yorick da contemporaneidade nacional invadiu o espaço público com a sua ironia impiedosa. O espanto foi tal que alguns comentadores chegaram a perguntar quem era aquela criatura distópica e o porque desse tempo de antena num teatro político que se finge de sério, mas que tantas vezes é apenas trágico-cómico.

Portugal, de facto, não cultiva o humor. A nossa política muito menos, habituada como está ao cinzentismo burocrático dos gabinetes e da retórica parlamentar. Ao contrário do Reino Unido, onde um tal Lord Buckethead se candidatou defendendo a venda de Nigel Farage às peças e concursos de fato de banho nos debates políticos. Ou o Brasil, onde o palhaço Tiririca foi eleito com o slogan “pior do que tá não fica”.

Talvez seja por isso que tenha escandalizado tanto a proposta de canalizar vinho para todas as casas, proibir as doenças por decreto ou extinguir o Ministério da Educação. Não por serem absurdas, mas porque expõem a verdadeira natureza desta campanha, uma eleição presidencial feita num deserto emocional, vazio de carisma, empatia e visão, mesmo com os seus 8 candidatos e 28 debates televisivos para nos convencer a votar neles. O mais alto cargo da nação parece nivelado por baixo, já não há estadistas ou políticos que se possa apreciar e sem que alguém se apresente como alternativa concreta ao presidente cessante, ele próprio o mais básico dos nossos Presidentes da República, mesmo mais que Cavaco Silva, espécie de espantalho cívico, feito de lata, palha e ausência de coração.

O esvaziamento da nossa classe política, reduzida em apenas uma geração ao estridente Ventura, o abominável Almirante, o inócuo, invisível, Seguro e o mini-Marcelo que é Marques Mendes, criou o terreno perfeito para que o Candidato Vieira surja como uma lufada de ar fresco no bafio sonolento da nossa tristeza nacional. E se o país se assusta com ele, talvez o problema não esteja no humor. Talvez esteja no facto de a realidade ser agora tão absurda que a sátira já nem parece sátira, mas um espelho vivo da nossa desgraça.

 

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Speakers' Corner 58

A (des)comunicação social

Na última semana, o CIVISA elevou para V3 o nível de alerta do vulcão de Santa Bárbara, na ilha Terceira, devido ao aumento da atividade sismovulcânica que se encontra com índices acima dos níveis de referência, em resultado de um processo de intrusão magmática em profundidade. Este recrudescimento do nível de alerta levou a uma súbita excitação dos meios de comunicação social, colocando os Açores no spotlight das notícias de última hora. As tragédias são bons captores de audiência e nada como o prenúncio de uma desgraça para alimentar a sede de sangue dos media. Veja-se, a propósito, como a SATA, na sua longa e agonizada tragédia, alimenta as manchetes dos suplementos de economia.

O episódio mais revelador desta onda noticiosa foi a sucessão de imagens erradas divulgadas pelos principais órgãos de comunicação social nacionais. A Terceira surgiu ilustrada pelas Sete Cidades, e o vulcão de Santa Bárbara foi confundido com a Praia de Santa Bárbara, na Ribeira Grande, em São Miguel, entre outras cómicas representações da iconografia do arquipélago. Este desconhecimento básico da geografia insular é recorrente e não seria particularmente grave se não revelasse algo bem mais profundo: o estado de erosão e degradação daquele que deveria ser um pilar essencial da democracia e do estado de direito, aliás reconhecido enquanto quarto poder – a imprensa livre.

O que assistimos hoje, nesta era da “pós-verdade”, é uma corrosão clara dos principais mediadores entre a informação e o público. Com os órgãos de comunicação social transformados eles próprios em agentes de desinformação. Onde antes existiam redações estruturadas, com editores experientes e revisão rigorosa, encontramos hoje equipas reduzidas, pressionadas por interesses financeiros e dependentes de jornalistas mal preparados e mal remunerados.

Esta degradação não é apenas um problema corporativo. Tornou-se uma ameaça à própria qualidade do debate público. Quando a informação é frágil ou manipulada, abre-se caminho à legitimação de discursos populistas, autoritários e emocionalmente inflamados, que prosperam num ambiente onde o espírito crítico é substituído pelo impacto imediato e baseado na mentira.

O problema torna-se mais inquietante quando são os próprios agentes políticos a controlar a mensagem através das suas estruturas de comunicação. Partidos, organizações e governos criam aparelhos internos que interferem diretamente no ecossistema informativo, moldando agendas e percepções. O Governo de Luís Montenegro, o mesmo que pôs em causa o trabalho da comunicação social no caso Spinumviva, anunciou recentemente a criação da Secretaria-geral Adjunta para a Comunicação Institucional. Trata-se de uma nova central comunicacional, liderada por um antigo jornalista, destinada a profissionalizar a comunicação governamental e a reforçar a presença do Executivo nos media e nas plataformas digitais.

O discurso oficial apresenta esta estrutura como mera racionalização da comunicação pública. Na prática, como bem sabemos na Região, desde os tempos do velho GACS, estas centrais funcionam como máquinas de propaganda institucional, produzindo conteúdos embalados e prontos a publicar, capazes de inundar redações enfraquecidas com narrativas favoráveis ao poder político.

A isto soma-se um novo e determinante risco. Os motores de busca e os sistemas de IA consomem e replicam exatamente o conteúdo que lhes é fornecido. Se esse conteúdo é gerado por aparelhos de comunicação política ou por redações descuidadas, baseado em erros, enviesamentos ou manipulações, a desinformação e a mentira multiplicam-se em espiral. Criamos assim um espaço público onde a fronteira entre facto e invenção se torna praticamente imperceptível. Já não se trata apenas de pós-verdade. É a pós-realidade, um lugar onde a ilusão e a mentira se tornam mais convincentes do que o próprio mundo real.

 

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Speakers' Corner 57

O futuro da esquerda

O tema da refundação da esquerda democrática tem sido amplamente debatido, nos últimos anos, um pouco por todo o mundo ocidental. A ameaça do populismo, da extrema-direita e a deriva demagógica e polarizadora de certos extremismos “woke” colocaram sob enorme pressão os partidos tradicionalmente socialistas ou social-democratas.

Nos Estados Unidos da América, o bipartidarismo funcionou, durante décadas, como uma espécie de tampão ao crescimento de franjas radicais, tanto à esquerda como à direita. Se, por um lado, os movimentos sindicais e, por outro, os radicais evangélicos sempre foram protagonistas relevantes do processo político americano, o espírito “catch-all” de Republicanos e Democratas permitiu, durante muito tempo, controlar a influência desses sectores mais extremados.

Na Europa, mais plural e, em boa medida, mais confusa, o processo sempre foi mais colorido, para não dizer caótico, com uma profusão de pequenos partidos sectoriais dedicados a bandeiras ideológicas específicas. Do ambientalismo aos direitos laborais, passando mais recentemente pelas questões identitárias e de género, numa fragmentação do espaço político tradicional.

A sobrevivência dos partidos moderados do “grande centrão” assentou historicamente na manutenção de um equilíbrio delicado entre as forças nem sempre consensuais da economia de mercado e os valores do Estado Social. Poderíamos recuar a Tony Blair e à sua “Terceira Via” para assinalar o início do fim desse consenso, mas a queda decisiva da social-democracia dá-se, em grande medida, em 2008, com o colapso do Lehman Brothers e o célebre mantra do “too big to fail”.

Obama e diversos líderes europeus, ao salvarem a banca enquanto deixavam vastas camadas da população afundar-se, destruíram os frágeis alicerces desse equilíbrio, abrindo a porta ao avanço de populistas e extremistas de ambos os lados. A dupla experiência traumática da grande crise financeira e do abalo social provocado pela COVID gerou uma sensação de orfandade política e ideológica numa maioria que se viu privada daquilo que é o fulcro da democracia: a esperança num futuro melhor. Acabando por tombar nos braços do voto de protesto radical.

À hora em que escrevo, cerca de 12 milhões de eleitores nova-iorquinos dirigem-se às urnas para eleger o seu novo Mayor, numa eleição já descrita como a mais importante do século nesta cidade fundamental do imaginário político e económico americano. Surpreendentemente, o front-runner é Zohran Mamdani, até há pouco tempo um desconhecido jovem político de origem islâmica, assumidamente socialista.

Numa cidade onde perto de 17% da população vive abaixo do limiar da pobreza e que enfrenta desafios gigantescos nas áreas sociais essenciais, como habitação, educação, mobilidade e infraestruturas, Mamdani construiu uma candidatura alavancada por um carisma invulgar. Desafiou o establishment democrata ao derrotar um dos seus barões locais, Andrew Cuomo, e combinou uma intensa presença no terreno, feita de ações porta a porta e encontros comunitários, com uma comunicação digital eficaz. As suas propostas, frequentemente rotuladas de “radicais”, incluem o congelamento das rendas, transportes públicos gratuitos, taxação da riqueza e supermercados municipais com preços regulados.

Independentemente do resultado, Mamdani deixa claro que a refundação da esquerda democrática exige um retorno às suas bases fundadoras: o primado da pessoa humana, a defesa intransigente da dignidade social e o combate frontal à ditadura do capital que molda, hoje, grande parte das nossas vidas.

Na cidade que viu nascer Wall Street e os seus “vampiros” talvez seja precisamente o resgate da democracia social das mãos de um capitalismo cada vez mais selvagem que possa, ainda, salvar o futuro das sociedades democráticas e, com elas, do próprio socialismo.

 

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Speakers' Corner 56

Da falência à estabilidade cúmplice

O estado de quase calamidade pública da dívida regional atingiu um ponto tal que a situação se tornou digna de notícia de abertura dos telejornais nacionais. Há poucos dias, o telejornal da SIC abriu com os números dantescos deste descalabro financeiro. A dívida pública regional aumentou uns assustadores 42% em apenas quatro anos, atingindo já mais de 3.400 milhões de euros.

Destes, mais de mil milhões são da responsabilidade do atual governo regional, liderado por José Manuel Bolieiro, sustentado pela coligação PSD/CDS/PPM, com o beneplácito parlamentar do Chega e, ao que parece, surrealisticamente, também do PS-A. Mas já lá iremos.

De acordo com os especialistas, esta dívida per capita significa que cada um de nós, pobres cidadãos contribuintes, deve cerca de 14 mil euros. Um peso difícil de compreender, face ao nível dos nossos impostos e aos saldos das nossas contas bancárias. A medo, fui verificar, mas, ao que parece, são responsabilidades futuras. Não digam nada às minhas filhas, coitadas, que ainda não sabem.

Mas as más notícias não se ficam por aqui. O défice orçamental ultrapassa os 165 milhões de euros. As necessidades de financiamento da administração pública regional foram, no último ano, superiores a 247 milhões. A dívida a fornecedores já ultrapassa os 400 milhões, e o rating da Região teima em manter-se estagnado nos BBB, ou seja, as agências internacionais de avaliação financeira classificam o risco de incumprimento da Região como moderado, em contraciclo com a Madeira e a República.

A dívida da SATA já atinge os 400 milhões, e a da Portos dos Açores ronda os 270 milhões. Se juntarmos a isto o aumento do custo de vida e uma inflação que se mantém acima dos 2%, estamos perante um quadro de pré-bancarrota que nos devia preocupar a todos, todos os dias, várias vezes ao dia.

O cenário é de tal ordem que só mesmo uma revisão em alta da Lei de Finanças Regionais poderá permitir salvar a economia regional, o que, na prática, equivaleria a uma espécie de resgate financeiro, embora sem a mão pesada de uma Troika continental a pôr ordem nos nossos desmandos.

Desmandos esses que já inspiram epítetos pouco lisonjeiros. Um querido amigo, por sinal de direita, chama jocosa, mas certeiramente, ao secretário das Finanças o “Freitas das contas mal feitas”. E, nos meios empresariais, já se ouve dizer à boca pequena: “Volta Sérgio Ávila, que estás perdoado”. Porque havia dívida, é certo, mas ao menos havia dinheiro, numa espécie de indulgência retroativa a uma das figuras mais profundamente associadas ao descalabro da governação socialista. Agora, pelo contrário, há dívida, mas não há dinheiro, com muitos pequenos e médios empresários ainda à espera de receber os apoios da era Covid.

É precisamente este cenário que me leva à estratégia, ou à falta dela, do Partido Socialista. Perante esta demonstração de total incompetência e falta de horizonte do pior governo regional de sempre, o PS-Açores, pela voz do seu líder, dá a entender que está não só disponível para viabilizar o Orçamento Regional, como disposto a conceder uma espécie de livre-trânsito ao governo de Bolieiro até 2029, ao afirmar que o PS-A pretende uma longa reavaliação de “três anos sem eleições”, para, nas suas palavras, “se dar a conhecer”.

Num momento em que o Partido Socialista se devia afirmar como a única alternativa sólida de poder, dizendo “presente” neste momento crítico da vida regional, parece antes mais preocupado, com ou sem “Estados Gerais”, em salvar o seu líder do que em salvar os Açores desta deriva calamitosa em que se encontra a governação das ilhas.

É sobejamente conhecida a velha máxima de Sá Carneiro sobre a política sem ética e sem risco. Pelo que se percebe, o Partido Socialista dos Açores não parece querer correr riscos, nem parece ter vergonha de não o fazer.

Entre a bancarrota financeira e a complacência política, a Região vive à custa da dívida… e da falta de coragem.

 

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Speakers' Corner 55

Uma Capital sem ambição

A escassos três meses do seu início foi finalmente assinado o protocolo financeiro de Ponta Delgada Capital da Cultura 2026.

Indiferentes ao ridículo da sua própria situação, a assinatura de um compromisso financeiro para um evento que, a esta altura, já deveria estar praticamente todo programado, calendarizado e, em alguns aspetos, plenamente executado, a sessão solene contou com a presença de dois ministros, secretários de estado, presidentes de governo, secretários regionais e autarcas. Só faltou convidarem os proponentes originais da candidatura, uma pequena deselegância que, para alguns, não passou despercebida.

De facto, este arranque aos solavancos da Capital da Cultura tem sido pródigo em erros, omissões e falhas de comunicação, revelando uma ausência de projeto a todos os níveis preocupante. E, infelizmente, os sinais deixados nestes últimos dias não auguram, para já, nada de bom.

No âmbito da sessão de assinatura do protocolo, o comissariado da Capital da Cultura promoveu uma conferência sob o tema “Cultura, Educação e Território no Lugar do Amanhã”. Ora, o aspeto mais saliente desta iniciativa foi a inconspícua ausência de protagonistas locais. Os painéis foram exclusivamente compostos por especialistas “de fora”. E se a educação, na sua vertente de formação de públicos e de hábitos de consumo cultural, e o território, numa região arquipelágica como esta, se apresentam como eixos fundamentais de um projeto desta natureza, não se compreende como podem ser abordados sem a participação dos agentes locais. Por mais meritórias que sejam as experiências e perspetivas apresentadas, estas revelam-se inevitavelmente desfasadas de uma realidade dispersa e insular como é a nossa.

A questão que se impõe é que território é exatamente este que a Capital da Cultura se propõe abordar? Está esta iniciativa confinada ao eixo Mosteiros–Rosto de Cão? Ou a ilha, as ilhas e a projeção da região para o exterior fazem também parte do seu âmbito de ação?

Ao apartar-se da sua génese, a de uma capital cultural ampla, enraizada nos seus nove bairros, esta Capital da Cultura recusa aquilo que deveria ser uma das suas primeiras preocupações, a de uma Ponta Delgada central na vida do próprio arquipélago, não como imposição, mas como responsabilidade. E essa componente arquipelágica, que deveria estar no cerne do projeto, parece, ao que se sabe e até ver, posta de parte. Não se percebendo porquê.

Por outro lado, duas notas deixadas nestes primeiros momentos públicos causam alguma estupefação ao espectador mais atento.

Desde logo, o “monumento à vaca”. Uma parceria com o Grupo Bel para a construção de uma escultura de homenagem aos produtores de leite açorianos. Trata-se de uma subjugação clara ao marketing privado de uma multinacional dos lacticínios e de uma redução óbvia da imagem dos Açores a um dos seus mínimos denominadores comuns, hoje até dos mais polémicos, pelos impactos económicos e ambientais que acarreta.

Se juntarmos a isto as declarações da comissária, quando questionada sobre a programação já prevista, resumida a um retomar de tradições como os Assaltos de Carnaval e o Menino Mija, temos uma Capital da Cultura prisioneira de uma certa ideia nostálgica e infantil de uma Ponta Delgada dos anos oitenta do século passado, feita de clichés folclóricos e memórias pessoais.

A ideia de uma Capital da Cultura era um sonho bonito, que gerou enorme expectativa e vontade entre os agentes locais, na esperança de um evento capaz de projetar a criação artística açoriana para o mundo e trazer o mundo aos Açores, com rasgo, vanguarda e vontade de rutura. Uma capital que fosse de arte, pensamento e projeção.

Pelo que é público até agora, temos apenas uma velha Ponta Delgada, presa nos seus próprios fantasmas e tradições folclóricas, sem mundo e sem imaginação. Sinceramente, o que espero é que esta Capital da Cultura possa vir a ser mais do que apenas mais uma oportunidade perdida.