quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Speakers' Corner 59

O Candidato Vieira

Nos anos 90, Lisboa fervilhava com uma pulsão indefinida feita em partes iguais de restos do pós-Estado Novo e grandes aspirações europeias, pelo meio, drogas, contracultura, angústia adolescente e uma inocente convicção de que o mundo era a nossa ostra. Antes do Lux, essa catedral do hedonismo urbano, a noite lisboeta era feita de Bananas, Alcântara Mar e do sempre ubíquo Bairro Alto, onde, entre o Estádio, o Frágil, o Mahjong e “As Primas”, numa peregrinação pagã regada a Sagres, B52’s e uma vaidade exacerbada que nos fazia sentir parte de uma qualquer vanguarda cultural, mesmo que muitos de nós, como era o meu caso, ainda vivêssemos em casa dos pais, a nossa ânsia de mundo era engolida a tragos sôfregos de desejo e má poesia.

De vez em quando a cidade estremecia com raves clandestinas em armazéns devolutos em Xabregas, concertos de bandas sem nome e uma vaga sensação de que estávamos a assistir ao nascimento de um novo mundo. Tudo isto num fervor pré-Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura, o momento em que acreditámos colectivamente que a modernidade finalmente tinha chegado a Portugal.

De entre esses fenómenos alternativos que pontuavam por uma Lisboa em busca de si própria destacava-se o cabaret circense dos Irmãos Catita, projeto paralelo do artista plástico Manuel João Vieira, famoso pelos seus Ena Pá 2000 e um talento raro para cantar atrocidades com a ternura de um urso panda com excesso de álcool no sangue. O público, feito maioritariamente por uma juventude à deriva, reconhecia-se na sua ironia corrosiva e na sua recusa sistemática de levar o país a sério, uma qualidade que, infelizmente, o país não soube retribuir.

Três décadas depois, o nome de Manuel João salta agora para a ribalta política, desta vez incarnando o seu perene Candidato Vieira. Com boné de comandante da TAP, gravata demasiado grande e um ar de meliante do Caís do Sodré, o nosso velho Yorick da contemporaneidade nacional invadiu o espaço público com a sua ironia impiedosa. O espanto foi tal que alguns comentadores chegaram a perguntar quem era aquela criatura distópica e o porque desse tempo de antena num teatro político que se finge de sério, mas que tantas vezes é apenas trágico-cómico.

Portugal, de facto, não cultiva o humor. A nossa política muito menos, habituada como está ao cinzentismo burocrático dos gabinetes e da retórica parlamentar. Ao contrário do Reino Unido, onde um tal Lord Buckethead se candidatou defendendo a venda de Nigel Farage às peças e concursos de fato de banho nos debates políticos. Ou o Brasil, onde o palhaço Tiririca foi eleito com o slogan “pior do que tá não fica”.

Talvez seja por isso que tenha escandalizado tanto a proposta de canalizar vinho para todas as casas, proibir as doenças por decreto ou extinguir o Ministério da Educação. Não por serem absurdas, mas porque expõem a verdadeira natureza desta campanha, uma eleição presidencial feita num deserto emocional, vazio de carisma, empatia e visão, mesmo com os seus 8 candidatos e 28 debates televisivos para nos convencer a votar neles. O mais alto cargo da nação parece nivelado por baixo, já não há estadistas ou políticos que se possa apreciar e sem que alguém se apresente como alternativa concreta ao presidente cessante, ele próprio o mais básico dos nossos Presidentes da República, mesmo mais que Cavaco Silva, espécie de espantalho cívico, feito de lata, palha e ausência de coração.

O esvaziamento da nossa classe política, reduzida em apenas uma geração ao estridente Ventura, o abominável Almirante, o inócuo, invisível, Seguro e o mini-Marcelo que é Marques Mendes, criou o terreno perfeito para que o Candidato Vieira surja como uma lufada de ar fresco no bafio sonolento da nossa tristeza nacional. E se o país se assusta com ele, talvez o problema não esteja no humor. Talvez esteja no facto de a realidade ser agora tão absurda que a sátira já nem parece sátira, mas um espelho vivo da nossa desgraça.

 

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Speakers' Corner 58

A (des)comunicação social

Na última semana, o CIVISA elevou para V3 o nível de alerta do vulcão de Santa Bárbara, na ilha Terceira, devido ao aumento da atividade sismovulcânica que se encontra com índices acima dos níveis de referência, em resultado de um processo de intrusão magmática em profundidade. Este recrudescimento do nível de alerta levou a uma súbita excitação dos meios de comunicação social, colocando os Açores no spotlight das notícias de última hora. As tragédias são bons captores de audiência e nada como o prenúncio de uma desgraça para alimentar a sede de sangue dos media. Veja-se, a propósito, como a SATA, na sua longa e agonizada tragédia, alimenta as manchetes dos suplementos de economia.

O episódio mais revelador desta onda noticiosa foi a sucessão de imagens erradas divulgadas pelos principais órgãos de comunicação social nacionais. A Terceira surgiu ilustrada pelas Sete Cidades, e o vulcão de Santa Bárbara foi confundido com a Praia de Santa Bárbara, na Ribeira Grande, em São Miguel, entre outras cómicas representações da iconografia do arquipélago. Este desconhecimento básico da geografia insular é recorrente e não seria particularmente grave se não revelasse algo bem mais profundo: o estado de erosão e degradação daquele que deveria ser um pilar essencial da democracia e do estado de direito, aliás reconhecido enquanto quarto poder – a imprensa livre.

O que assistimos hoje, nesta era da “pós-verdade”, é uma corrosão clara dos principais mediadores entre a informação e o público. Com os órgãos de comunicação social transformados eles próprios em agentes de desinformação. Onde antes existiam redações estruturadas, com editores experientes e revisão rigorosa, encontramos hoje equipas reduzidas, pressionadas por interesses financeiros e dependentes de jornalistas mal preparados e mal remunerados.

Esta degradação não é apenas um problema corporativo. Tornou-se uma ameaça à própria qualidade do debate público. Quando a informação é frágil ou manipulada, abre-se caminho à legitimação de discursos populistas, autoritários e emocionalmente inflamados, que prosperam num ambiente onde o espírito crítico é substituído pelo impacto imediato e baseado na mentira.

O problema torna-se mais inquietante quando são os próprios agentes políticos a controlar a mensagem através das suas estruturas de comunicação. Partidos, organizações e governos criam aparelhos internos que interferem diretamente no ecossistema informativo, moldando agendas e percepções. O Governo de Luís Montenegro, o mesmo que pôs em causa o trabalho da comunicação social no caso Spinumviva, anunciou recentemente a criação da Secretaria-geral Adjunta para a Comunicação Institucional. Trata-se de uma nova central comunicacional, liderada por um antigo jornalista, destinada a profissionalizar a comunicação governamental e a reforçar a presença do Executivo nos media e nas plataformas digitais.

O discurso oficial apresenta esta estrutura como mera racionalização da comunicação pública. Na prática, como bem sabemos na Região, desde os tempos do velho GACS, estas centrais funcionam como máquinas de propaganda institucional, produzindo conteúdos embalados e prontos a publicar, capazes de inundar redações enfraquecidas com narrativas favoráveis ao poder político.

A isto soma-se um novo e determinante risco. Os motores de busca e os sistemas de IA consomem e replicam exatamente o conteúdo que lhes é fornecido. Se esse conteúdo é gerado por aparelhos de comunicação política ou por redações descuidadas, baseado em erros, enviesamentos ou manipulações, a desinformação e a mentira multiplicam-se em espiral. Criamos assim um espaço público onde a fronteira entre facto e invenção se torna praticamente imperceptível. Já não se trata apenas de pós-verdade. É a pós-realidade, um lugar onde a ilusão e a mentira se tornam mais convincentes do que o próprio mundo real.

 

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Speakers' Corner 57

O futuro da esquerda

O tema da refundação da esquerda democrática tem sido amplamente debatido, nos últimos anos, um pouco por todo o mundo ocidental. A ameaça do populismo, da extrema-direita e a deriva demagógica e polarizadora de certos extremismos “woke” colocaram sob enorme pressão os partidos tradicionalmente socialistas ou social-democratas.

Nos Estados Unidos da América, o bipartidarismo funcionou, durante décadas, como uma espécie de tampão ao crescimento de franjas radicais, tanto à esquerda como à direita. Se, por um lado, os movimentos sindicais e, por outro, os radicais evangélicos sempre foram protagonistas relevantes do processo político americano, o espírito “catch-all” de Republicanos e Democratas permitiu, durante muito tempo, controlar a influência desses sectores mais extremados.

Na Europa, mais plural e, em boa medida, mais confusa, o processo sempre foi mais colorido, para não dizer caótico, com uma profusão de pequenos partidos sectoriais dedicados a bandeiras ideológicas específicas. Do ambientalismo aos direitos laborais, passando mais recentemente pelas questões identitárias e de género, numa fragmentação do espaço político tradicional.

A sobrevivência dos partidos moderados do “grande centrão” assentou historicamente na manutenção de um equilíbrio delicado entre as forças nem sempre consensuais da economia de mercado e os valores do Estado Social. Poderíamos recuar a Tony Blair e à sua “Terceira Via” para assinalar o início do fim desse consenso, mas a queda decisiva da social-democracia dá-se, em grande medida, em 2008, com o colapso do Lehman Brothers e o célebre mantra do “too big to fail”.

Obama e diversos líderes europeus, ao salvarem a banca enquanto deixavam vastas camadas da população afundar-se, destruíram os frágeis alicerces desse equilíbrio, abrindo a porta ao avanço de populistas e extremistas de ambos os lados. A dupla experiência traumática da grande crise financeira e do abalo social provocado pela COVID gerou uma sensação de orfandade política e ideológica numa maioria que se viu privada daquilo que é o fulcro da democracia: a esperança num futuro melhor. Acabando por tombar nos braços do voto de protesto radical.

À hora em que escrevo, cerca de 12 milhões de eleitores nova-iorquinos dirigem-se às urnas para eleger o seu novo Mayor, numa eleição já descrita como a mais importante do século nesta cidade fundamental do imaginário político e económico americano. Surpreendentemente, o front-runner é Zohran Mamdani, até há pouco tempo um desconhecido jovem político de origem islâmica, assumidamente socialista.

Numa cidade onde perto de 17% da população vive abaixo do limiar da pobreza e que enfrenta desafios gigantescos nas áreas sociais essenciais, como habitação, educação, mobilidade e infraestruturas, Mamdani construiu uma candidatura alavancada por um carisma invulgar. Desafiou o establishment democrata ao derrotar um dos seus barões locais, Andrew Cuomo, e combinou uma intensa presença no terreno, feita de ações porta a porta e encontros comunitários, com uma comunicação digital eficaz. As suas propostas, frequentemente rotuladas de “radicais”, incluem o congelamento das rendas, transportes públicos gratuitos, taxação da riqueza e supermercados municipais com preços regulados.

Independentemente do resultado, Mamdani deixa claro que a refundação da esquerda democrática exige um retorno às suas bases fundadoras: o primado da pessoa humana, a defesa intransigente da dignidade social e o combate frontal à ditadura do capital que molda, hoje, grande parte das nossas vidas.

Na cidade que viu nascer Wall Street e os seus “vampiros” talvez seja precisamente o resgate da democracia social das mãos de um capitalismo cada vez mais selvagem que possa, ainda, salvar o futuro das sociedades democráticas e, com elas, do próprio socialismo.

 

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Speakers' Corner 56

Da falência à estabilidade cúmplice

O estado de quase calamidade pública da dívida regional atingiu um ponto tal que a situação se tornou digna de notícia de abertura dos telejornais nacionais. Há poucos dias, o telejornal da SIC abriu com os números dantescos deste descalabro financeiro. A dívida pública regional aumentou uns assustadores 42% em apenas quatro anos, atingindo já mais de 3.400 milhões de euros.

Destes, mais de mil milhões são da responsabilidade do atual governo regional, liderado por José Manuel Bolieiro, sustentado pela coligação PSD/CDS/PPM, com o beneplácito parlamentar do Chega e, ao que parece, surrealisticamente, também do PS-A. Mas já lá iremos.

De acordo com os especialistas, esta dívida per capita significa que cada um de nós, pobres cidadãos contribuintes, deve cerca de 14 mil euros. Um peso difícil de compreender, face ao nível dos nossos impostos e aos saldos das nossas contas bancárias. A medo, fui verificar, mas, ao que parece, são responsabilidades futuras. Não digam nada às minhas filhas, coitadas, que ainda não sabem.

Mas as más notícias não se ficam por aqui. O défice orçamental ultrapassa os 165 milhões de euros. As necessidades de financiamento da administração pública regional foram, no último ano, superiores a 247 milhões. A dívida a fornecedores já ultrapassa os 400 milhões, e o rating da Região teima em manter-se estagnado nos BBB, ou seja, as agências internacionais de avaliação financeira classificam o risco de incumprimento da Região como moderado, em contraciclo com a Madeira e a República.

A dívida da SATA já atinge os 400 milhões, e a da Portos dos Açores ronda os 270 milhões. Se juntarmos a isto o aumento do custo de vida e uma inflação que se mantém acima dos 2%, estamos perante um quadro de pré-bancarrota que nos devia preocupar a todos, todos os dias, várias vezes ao dia.

O cenário é de tal ordem que só mesmo uma revisão em alta da Lei de Finanças Regionais poderá permitir salvar a economia regional, o que, na prática, equivaleria a uma espécie de resgate financeiro, embora sem a mão pesada de uma Troika continental a pôr ordem nos nossos desmandos.

Desmandos esses que já inspiram epítetos pouco lisonjeiros. Um querido amigo, por sinal de direita, chama jocosa, mas certeiramente, ao secretário das Finanças o “Freitas das contas mal feitas”. E, nos meios empresariais, já se ouve dizer à boca pequena: “Volta Sérgio Ávila, que estás perdoado”. Porque havia dívida, é certo, mas ao menos havia dinheiro, numa espécie de indulgência retroativa a uma das figuras mais profundamente associadas ao descalabro da governação socialista. Agora, pelo contrário, há dívida, mas não há dinheiro, com muitos pequenos e médios empresários ainda à espera de receber os apoios da era Covid.

É precisamente este cenário que me leva à estratégia, ou à falta dela, do Partido Socialista. Perante esta demonstração de total incompetência e falta de horizonte do pior governo regional de sempre, o PS-Açores, pela voz do seu líder, dá a entender que está não só disponível para viabilizar o Orçamento Regional, como disposto a conceder uma espécie de livre-trânsito ao governo de Bolieiro até 2029, ao afirmar que o PS-A pretende uma longa reavaliação de “três anos sem eleições”, para, nas suas palavras, “se dar a conhecer”.

Num momento em que o Partido Socialista se devia afirmar como a única alternativa sólida de poder, dizendo “presente” neste momento crítico da vida regional, parece antes mais preocupado, com ou sem “Estados Gerais”, em salvar o seu líder do que em salvar os Açores desta deriva calamitosa em que se encontra a governação das ilhas.

É sobejamente conhecida a velha máxima de Sá Carneiro sobre a política sem ética e sem risco. Pelo que se percebe, o Partido Socialista dos Açores não parece querer correr riscos, nem parece ter vergonha de não o fazer.

Entre a bancarrota financeira e a complacência política, a Região vive à custa da dívida… e da falta de coragem.

 

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Speakers' Corner 55

Uma Capital sem ambição

A escassos três meses do seu início foi finalmente assinado o protocolo financeiro de Ponta Delgada Capital da Cultura 2026.

Indiferentes ao ridículo da sua própria situação, a assinatura de um compromisso financeiro para um evento que, a esta altura, já deveria estar praticamente todo programado, calendarizado e, em alguns aspetos, plenamente executado, a sessão solene contou com a presença de dois ministros, secretários de estado, presidentes de governo, secretários regionais e autarcas. Só faltou convidarem os proponentes originais da candidatura, uma pequena deselegância que, para alguns, não passou despercebida.

De facto, este arranque aos solavancos da Capital da Cultura tem sido pródigo em erros, omissões e falhas de comunicação, revelando uma ausência de projeto a todos os níveis preocupante. E, infelizmente, os sinais deixados nestes últimos dias não auguram, para já, nada de bom.

No âmbito da sessão de assinatura do protocolo, o comissariado da Capital da Cultura promoveu uma conferência sob o tema “Cultura, Educação e Território no Lugar do Amanhã”. Ora, o aspeto mais saliente desta iniciativa foi a inconspícua ausência de protagonistas locais. Os painéis foram exclusivamente compostos por especialistas “de fora”. E se a educação, na sua vertente de formação de públicos e de hábitos de consumo cultural, e o território, numa região arquipelágica como esta, se apresentam como eixos fundamentais de um projeto desta natureza, não se compreende como podem ser abordados sem a participação dos agentes locais. Por mais meritórias que sejam as experiências e perspetivas apresentadas, estas revelam-se inevitavelmente desfasadas de uma realidade dispersa e insular como é a nossa.

A questão que se impõe é que território é exatamente este que a Capital da Cultura se propõe abordar? Está esta iniciativa confinada ao eixo Mosteiros–Rosto de Cão? Ou a ilha, as ilhas e a projeção da região para o exterior fazem também parte do seu âmbito de ação?

Ao apartar-se da sua génese, a de uma capital cultural ampla, enraizada nos seus nove bairros, esta Capital da Cultura recusa aquilo que deveria ser uma das suas primeiras preocupações, a de uma Ponta Delgada central na vida do próprio arquipélago, não como imposição, mas como responsabilidade. E essa componente arquipelágica, que deveria estar no cerne do projeto, parece, ao que se sabe e até ver, posta de parte. Não se percebendo porquê.

Por outro lado, duas notas deixadas nestes primeiros momentos públicos causam alguma estupefação ao espectador mais atento.

Desde logo, o “monumento à vaca”. Uma parceria com o Grupo Bel para a construção de uma escultura de homenagem aos produtores de leite açorianos. Trata-se de uma subjugação clara ao marketing privado de uma multinacional dos lacticínios e de uma redução óbvia da imagem dos Açores a um dos seus mínimos denominadores comuns, hoje até dos mais polémicos, pelos impactos económicos e ambientais que acarreta.

Se juntarmos a isto as declarações da comissária, quando questionada sobre a programação já prevista, resumida a um retomar de tradições como os Assaltos de Carnaval e o Menino Mija, temos uma Capital da Cultura prisioneira de uma certa ideia nostálgica e infantil de uma Ponta Delgada dos anos oitenta do século passado, feita de clichés folclóricos e memórias pessoais.

A ideia de uma Capital da Cultura era um sonho bonito, que gerou enorme expectativa e vontade entre os agentes locais, na esperança de um evento capaz de projetar a criação artística açoriana para o mundo e trazer o mundo aos Açores, com rasgo, vanguarda e vontade de rutura. Uma capital que fosse de arte, pensamento e projeção.

Pelo que é público até agora, temos apenas uma velha Ponta Delgada, presa nos seus próprios fantasmas e tradições folclóricas, sem mundo e sem imaginação. Sinceramente, o que espero é que esta Capital da Cultura possa vir a ser mais do que apenas mais uma oportunidade perdida.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Speakers' Corner 54

As vencedoras e os vencidos

Os cenários pós-eleitorais são sempre férteis em elações, conjeturas, explicações e narrativas. Os americanos até têm um nome próprio para os profissionais que se dedicam a esta arte específica da comunicação política: os chamados spin doctors. Que é como quem diz, especialistas em dar a volta aos resultados.

Estas últimas eleições autárquicas, em particular aqui nos Açores, foram ricas em exercícios de contorcionismo verbal, sobretudo por parte dos líderes dos grandes partidos e, de forma bastante contundente, do candidato do PSD à Câmara de Ponta Delgada, todos prontos a clamar para si vitórias, mesmo que fossem vitórias de Pirro, como foi o caso.

Cada um, à sua maneira, cantou vitória, reclamando para si e para os seus os louros de mais votos, mais mandatos, uma percentagem que sobe aqui, uma freguesia ganha acolá. É o habitual nestas ocasiões, mas nem sempre é o mais justo, muito menos o mais verdadeiro.

No meu entender, o facto mais relevante destas eleições é, sem dúvida (ainda mais do que o alarme falso do CHEGA!...), a extraordinária vitória das mulheres. Nunca os Açores tiveram tantas mulheres a liderar autarquias, numa demonstração clara de uma evolução sísmica na política regional. Fátima Amorim, Ana Brum, Catarina Manito, Elisabete Nóia, Catarina Cabeceiras, Vânia Ferreira, Bárbara Chaves e Graça Melo, esta última com uma vitória tão retumbante quanto surpreendente. E, se juntarmos a isto as prestações inesperadas de Sónia Nicolau e de Lurdes Alfinete, uma tirando a maioria a Pedro Nascimento Cabral na maior autarquia dos Açores, e a outra ficando a uns escassos trezentos e poucos votos de virar a Ribeira Grande, temos uma demonstração vibrante de que foram, sem sombra de dúvida, as mulheres as grandes vencedoras desta noite eleitoral.

No campo dos derrotados, e ao contrário do que quiseram fazer parecer nos seus discursos de circunstância, José Manuel Bolieiro, Francisco César, Paulo Estêvão, José Pacheco e Pedro Nascimento Cabral saem da noite de domingo com mais razões de preocupação do que de regozijo. Por mais que o líder do PSD e do Governo queira cantar vitória, não consegue uma vitória robusta que lhe dê lastro para sobreviver às tempestades que aí vêm, nomeadamente as da SATA, da bancarrota e de um orçamento regional com mais austeridade do que o da Troika. Paulo Estêvão sofre uma derrota envergonhante no seu pequeno feudo particular, agravada pelas suspeitas que recaem sobre o seu candidato. José Pacheco ficou longe do que pretendia, ou sequer do que se esperava e, apesar de garantir a eleição para vereador em Ponta Delgada, não consegue, nem nas freguesias, as vitórias que lhe vaticinavam os observadores.

Por último, Francisco César vê o partido resvalar ainda mais no seu processo descendente que, apesar de ter mais votos do que o PSD, se traduziu na perda de câmaras, freguesias e mandatos, com a vergonha maior de ficar em terceiro lugar, atrás de Sónia Nicolau, em Ponta Delgada. Onde, aliás, seria importante que os dirigentes da secção concelhia do partido tirassem as devidas ilações da péssima condução de todo este processo.

Em Ponta Delgada, Pedro Nascimento Cabral perde dois vereadores, fica empatado com Sónia Nicolau e sofre uma queda impressionante de quase quatro mil votos. Fica agora dependente de difíceis negociações para conseguir aprovar o seu programa, tarefa árdua para alguém que já demonstrou não ter feitio para grandes diálogos.

Espero sinceramente que, neste cenário difícil que se avizinha, tanto na Câmara de Ponta Delgada como na Região, não venha a ser o PS de Francisco César a dar a mão aos desmandos de um PSD que, em conjunto, pode reivindicar os dúbios títulos de pior presidente de câmara e pior governo regional de sempre. Nem mesmo com a desculpa esfarrapada da “estabilidade”, porque a estabilidade é o refúgio dos fracos, e os Açores pedem lideranças fortes para navegar tempos de tempestades…

 

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Speakers' Corner 53

A celebração de uma identidade

Por um curioso alinhamento de datas, o país e a região vivem por estes anos uma inusitada sequência de efemérides e celebrações. Dos 50 anos do 25 de Abril, aos 600 anos do descobrimento dos Açores, passando pelos 50 anos da Autonomia Regional, e mesmo a coincidência de Ponta Delgada Capital da Cultura que acontece no próximo ano, entre 2024 e 2027, o país e a região vivem um momento ímpar de celebração da consciência coletiva que nos devia mobilizar a todos como sociedade.

Infelizmente, hoje a ideia de celebração identitária tornou-se numa espécie de anátema social. A minha geração, em particular, foi educada, em grande medida, para desconfiar da ideia de pátria. O Estado Novo apropriou-se de tal forma do nacionalismo que, depois da Revolução, o país pareceu precisar de se purgar daquela sombra do patriotismo que pairava sobre a nação como um xaile negro e opressivo. O orgulho nacional, a simples evocação da glória pátria, tornou-se suspeito, uma relíquia ideológica de um tempo de hinos, fardas, União Nacional e censura. O amor à pátria passou a soar a fascismo e a própria palavra “Portugal” foi, por muito tempo, pronunciada com embaraço, quase com constrangimento, numa surdina envergonhada só levemente aceite nas vitórias da Seleção Nacional e nos golos do Ronaldo.

A história dos últimos cinquenta anos é também a história dessa tensão entre um Portugal ensimesmado e fechado sobre si mesmo e outro, cosmopolita, aberto ao mundo e à Europa. A democracia procurou libertar-se do velho país salazarento, rural e beato, que erguia estátuas ao sacrifício e à obediência, louvando a pobreza e a grandeza do Império, trazendo para o centro da vida coletiva a ideia de um país global. Foi a Europália de 1991, a Lisboa Capital da Cultura em 1994, a Expo 98, o Euro 2004, toda uma galeria de grandes eventos internacionais que pretendiam projetar o país para o exterior, modernizando-o. Mas, ao fazê-lo, o país acabou também por perder algo de essencial e de interior, o sentido de comunidade, o sentimento de pertença, a capacidade de celebrar em conjunto os feitos e a história sem medo de parecer antiquado ou, pior ainda, conservador.

As grandes datas nacionais foram-se tornando quase incómodas. O 5 de Outubro, como vimos nestes dias, tornou-se tóxico. O 10 de Junho transformou-se num ritual sem alma, deslocado das populações, onde nem já Camões se destaca como poeta agregador das massas. Os desfiles do 25 de Abril dividem mais do que unem, com a descida da Avenida seccionada em trupes de cada identidade sectária, com os liberais a fecharem o cortejo ao estilo carro-vassoura das diferenças políticas. As comemorações oficiais tendem a ser tratadas como obrigações protocolares, com tanto de bocejo como de pompa, ou, então, meras oportunidades para ajustes de contas ideológicas com o passado. A esquerda teme parecer nacionalista; a direita fá-lo muitas vezes de forma caricatural e nostálgica, incapaz de se renovar. O resultado é que o país perdeu a capacidade de se rever ao espelho e de se aceitar em si mesmo, com as suas glórias e os seus erros, inteiro, em vez de compartimentado e envergonhado, numa paralisação autodesvalorizante que o faz fugir de si próprio.

Talvez seja por isso que as comemorações dos cinquenta anos do 25 de Abril, que poderiam e deveriam ter sido uma afirmação serena da nossa maturidade democrática, acabaram reduzidas a um eco dos traumas do passado. Entre o revisionismo e a saudade, entre a retórica da “liberdade conquistada” e o ressentimento do “25 de Novembro”, o país parece reviver a infância das suas divisões, incapaz de transformar a memória em projeto. Incapaz de sarar as feridas passadas, unindo-se num ideal comum de liberdade e democracia. Em vez disso, caímos no fosso do revanchismo revisionista, agitando ainda as velhas bandeiras da revolução contra a reação. Como se ser de Abril não fosse, afinal, ser de Portugal e vice-versa.

Até porque celebrar o passado não tem de ser um processo regressivo, feito de traumas e restituições. Pelo contrário. Celebrar é um gesto profundamente afirmativo. É reconhecer que há uma história comum, um percurso que nos precede e uma continuidade que nos sustenta. Não se trata de glorificar o passado, mas de o compreender como parte viva de quem somos e que nos transporta, com segurança, para o futuro. Celebrar é afirmar uma identidade que não precisa de ser nacionalista para ser cultural, cívica ou simplesmente nossa, individual e humana.

Há um equívoco de fundo na ideia de que o passado é um túmulo amaldiçoado de que é preciso fugir ou esquecer. O nacionalismo é uma ideologia; o sentimento de pertença, não. Um povo sem laços é apenas uma soma de indivíduos. E uma comunidade que não celebra as suas datas é uma comunidade que esquece o seu próprio caminho. A memória coletiva precisa de rituais, de símbolos e de encontros. São esses momentos, por mais cerimoniosos ou até artificiais que pareçam, que alimentam a consciência de que pertencemos a algo maior do que nós próprios.

Em 2027, os Açores celebrarão 600 anos do seu descobrimento. É uma data que poderia (e deveria) ser mais do que uma efeméride histórica: é uma oportunidade para pensar o arquipélago como um projeto comum. Porque, na verdade, a ideia de arquipélago nunca esteve totalmente consolidada. Ainda hoje, como não me canso de escrever, persiste uma visão fragmentada, quase insular, da própria autonomia, uma soma de ilhas, mais do que uma consciência coletiva de Açores.

Celebrar os 600 anos não seria apenas recordar a chegada dos primeiros navegadores; seria pensar o que significa hoje viver num território atlântico e europeu. Seria um exercício de imaginação cívica, uma oportunidade de revisitar a história para projetar o futuro. Um futuro que, para os Açores, tem tudo a ganhar em reforçar a sua ideia de conjunto e de verdadeira comunidade arquipelágica na sua circunstância de ponte entre dois mundos.

Essas celebrações poderiam ser um momento de reencontro: entre a história e o presente, entre o local e o universal. Através da cultura, da arte, da ciência, da reflexão crítica e não apenas de discursos ou cerimónias protocolares, com mais ou menos concertos e sopas do Espírito Santo, poder-se-ia afirmar uma nova forma de pertença. Uma pertença aberta, moderna, consciente da sua complexidade e das suas tensões e que abarcasse todas as ilhas desde o Corvo a Santa Maria numa verdadeira Açorianidade.

Os Açores são, afinal, um microcosmo perfeito do dilema português: entre o orgulho de existir e o receio de o declarar. Tal como o país continental, o arquipélago vive entre a vontade de se afirmar e o medo de parecer retrógrado; entre a necessidade de celebrar e o pudor de o fazer. Mas não há nada de reacionário em querer celebrar o que somos. Reacionário é desistir de nos pensarmos, é omitir essa permanente tensão de existir.

Talvez o maior legado dos cinquenta anos do 25 de Abril pudesse ser precisamente este: libertar o amor à pátria da sombra do Estado Novo e devolvê-lo à cidadania democrática. Reconciliar-nos com a ideia de que um país pode orgulhar-se de si sem se fechar, que uma ilha pode celebrar a sua história sem se isolar, que um povo pode ter símbolos sem ser escravo deles.

No próximo ano celebraremos também os 50 anos da Autonomia. Ao que se sabe, pouco ou nada está ainda pensado para esse momento fundacional da nossa contemporaneidade insular. Talvez, nos gabinetes bafientos, algum técnico superior esteja incumbido de organizar o protocolo da celebração, dos discursos, das precedências e das comendas. A nós chega-nos pouco ou quase nada do que deveria ser a celebração do nosso aniversário coletivo enquanto entidade arquipelágica, autonómica, insular, europeia e atlântica. Talvez ainda vamos a tempo.

Talvez ainda vamos também a tempo de celebrar convenientemente esse estatuto de Capital da Cultura, mesmo que os financiamentos se percam nas gavetas das insolvências governativas, que os protagonismos políticos e artísticos tentem cooptar esses gestos simbólicos, retirando-lhes a essência popular e criativa que um momento como este deveria ter. Tal como, aliás, estava previsto na sua génese: um evento agregador da pluralidade insular, fazendo de Ponta Delgada não a capital, no sentido mais retrógrado do termo, mas o epicentro, motor e centralizador da multiplicidade e diversidade insular. Uma cidade feita desses nove bairros, na feliz formulação do Nuno Costa Santos, que se revisitam e se dão a conhecer em conjunto.

Celebrar, celebrarmo-nos, não tem de ser um frete ou um embaraço. Celebrarmo-nos, a nós, como povo, arquipélago e identidade, é antes uma afirmação viva dessa Açorianidade literária que Nemésio cunhou fará agora cem anos e que hoje não vale mais do que um envergonhado prémio literário de dois mil e quinhentos euros.

Perdemo-nos tanto na espuma do presente que nos esquecemos de celebrar o passado e de ambicionar o futuro.