A Vertigem do Fim
Vivemos tempos perturbados. Um pouco por todo o mundo, a
loucura impõe-se devastadoramente sobre a vida das pessoas. O ódio tomou conta
dos areópagos políticos. O declínio moral, institucional e até humano parece
ser o único caminho à nossa frente, como uma frenética avalanche
desmoronando-se sobre a montanha das nossas vidas.
Abrimos os jornais, os poucos de nós que ainda os leem, ou
percorremos mecanicamente os infinitos canais de notícias, e somos assoberbados
por inacreditáveis parangonas, excitações várias, constantes alertas noticiosos
e comentários facciosos, num interminável caleidoscópio de embriagada
alucinação.
A Europa, outrora um projeto civilizacional de paz e
prosperidade, submete-se agora ao desvario da economia de guerra. Passámos do
pacote da PAC para o míssil PAC-3. Os discursos políticos fazem-se em torno do
medo, da ameaça, da necessidade de se estar “preparado” para um inimigo
imposto, mas nunca da urgência de se estar lúcido ou do imperativo de se ser
justo.
Israel, sob a liderança de um governo extremista e
ultraortodoxo, bombardeia a teocracia iraniana num conflito de consequências
inimagináveis. O Médio Oriente volta a arder, como se alguma vez tivesse
deixado de arder, e o mundo, que já deixou de se espantar, assiste em silêncio
cínico ao genocídio e à obliteração cega e mútua de eternos e inquebrantáveis
inimigos. E somos todos cúmplices nessa incapacidade de regressar à raiz da
alma, como apelou Rumi.
Em Espanha, um dos últimos redutos da esquerda na Europa,
Sánchez estremece com escândalos sucessivos que envolvem corrupção, misoginia e
jogos de poder rasteiros. Uma democracia em erosão, onde as instituições vão
perdendo credibilidade a cada nova gravação escondida que vem a público.
Por cá, em Portugal, a violência verbal saltou das redes
sociais e dos discursos políticos para as ruas, transformando-se em violência
real, palpável, física. Sob o disfarce do populismo, a intolerância fascista
voltou a ganhar espaço e, o que é mais grave e paradoxal, aceitação.
Relativiza-se o inaceitável, desculpam-se os que afrontam os direitos mais
básicos, comparando o incomparável. E, no Brasil como cá, transforma-se o humor
em crime, a sátira em insulto, a crítica em perseguição, em democracias corroídas
pelo ácido do partidarismo.
Na América, outrora terra dos livres, desfilam paradas
militares como nos regimes totalitários. Trump e Putin parecem hoje dois lados
de uma mesma moeda, uma moeda cujo câmbio será sempre negativo. O sonho do
Ocidente morreu. E talvez o mais inquietante seja justamente isso: o colapso da
ideia de futuro. O cansaço do mundo é palpável, na linguagem e nos atos do dia
a dia. A banalidade do mal, como assinalou de forma clarividente Hannah Arendt.
Na nossa pequenina realidade insular, percebemos agora, ou
fingimos que só agora percebemos, que o Hospital Modular não passou de um
esquema de contornos pouco claros, onde as decisões foram, no mínimo,
erráticas, dúbias e precipitadas. A política tornou-se uma sucessão de gestos
apressados e de anúncios vazios, feitos mais para encenação mediática do que
para a resolução efetiva de problemas. A IA tomou conta das palavras, tal como
o TikTok tomou conta das narrativas. Ao mesmo tempo, o drama subterrâneo das
drogas sintéticas alastra pelas ruas, pelas casas, pelas famílias, como um
vírus tóxico que se insinua na pele da sociedade.
Até o tempo parece conspirar com este mal-estar difuso: os
nevoeiros de São João molham-nos até à alma, com a sua morrinha húmida e
silenciosa. Há um clima de fim que paira no ar, um cansaço acumulado, um
suspiro abafado, uma sensação de que tudo o que poderia ser feito já não será.
Vivemos cercados por ruínas, algumas visíveis, outras escuras e interiores. O
que nos resta é não perder a capacidade de espanto. A pulsão de resistência.
Talvez este não seja ainda o fim. Mas é, indiscutivelmente,
o início dessa vertigem.
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