A via da conciliação
No ano de 327 a.C., na antiga Báctria, hoje parte do Afeganistão, Alexandre, o Grande, desposou a bela Roxana, filha de um nobre persa. O gesto, mais do que político ou romântico, foi a afirmação de uma ideia poderosa: a de conciliação. Alexandre, educado por Aristóteles e considerado o maior estratega militar da história, não se limitou a conquistar territórios e a derrotar exércitos, procurou unir culturas, numa fusão entre múltiplas nações, línguas, etnias e raças, num império de simbiose, não de supremacia.
Dois mil e trezentos anos depois, o mundo parece ter esquecido a lição de Alexandre. A recente escalada de tensão no Médio Oriente, com o surpreendente, embora previsível, ataque aéreo americano ao Irão, utilizando, mais uma vez, as valências de gasolineira no centro do Atlântico da Base das Lajes, revela até que ponto a diplomacia e o diálogo cederam ao estrépito das bombas e à retórica da destruição.
O Ocidente olha para o Irão quase exclusivamente através do véu da teocracia islâmica xiita. Há, no entanto, um erro profundo nessa visão redutora e obscurecida. Ignoramos que o Irão não é apenas um regime, é uma civilização com mais de quatro milénios. Herdeira da antiga Pérsia, berço de avanços intelectuais, artísticos e políticos que moldaram muito do que hoje consideramos pilares da modernidade e da nossa própria civilização, desde a ideia de unidade política territorial à administração pública, da tolerância religiosa à poesia mística.
Reduzir esta complexidade à figura dos aiatolás ou a um inimigo geopolítico é não só injusto e limitado, é profundamente perigoso. Ao ignorarmos o valor histórico e cultural de um povo, abrimos caminho à sua desumanização. E esse é sempre o primeiro passo para a barbárie. Com a agravante de que, numa guerra pela superioridade, aqueles que não temem a morte serão os primeiros a prevalecer.
A atual política externa americana, marcada pelas decisões erráticas e egocêntricas de Trump, alimenta esta lógica maniqueísta e belicista. Desprezando o contexto, confundindo força com liderança, misturando castigo com solução, gerando apenas vazio. E é nesse vazio que se alimentam o ressentimento e o radicalismo, numa avalanche de consequências imprevisíveis.
O que fará a China? Fará cair a sua força militar sobre Taiwan? Putin terá aqui a porta aberta para acelerar ainda mais os seus intentos de domínio territorial sobre a Ucrânia e, quem sabe, sobre o Báltico? E como reagirão a Índia e o Paquistão, ambos potências nucleares? Está a Europa preparada para o recrudescer do horror do terrorismo? E o que fará o Irão, não hoje, mas no futuro?
No TikTok, imagens de rituais xiitas de homens a bater no peito em honra do martírio de Hussein Ibn Ali na batalha de Carbala, em 680 d.C., tornaram-se virais. Para o nosso olhar ocidental, é um espetáculo incompreensível. Mas para milhões de crentes, é a expressão de uma memória coletiva fundada na dor e na resistência, onde o conceito de sacrifício é o elemento fundacional da sua própria visão da vida. Não entender isso é não entender a alma da nação xiita e a identidade do atual Irão, país moldado por essa ideia de martírio. Combater essa visão com mísseis e bombas GBU-57 é como tentar apagar um fogo com gasolina.
O Ocidente, enquanto entidade
política e civilizacional, baseada na democracia liberal, no primado da vida
humana e nas liberdades individuais, não se deve vergar aos totalitarismos. Mas
também não se pode impor ao resto do mundo pela via da destruição. Num tempo em
que os líderes mundiais parecem obcecados com o poder e a conquista pela
obliteração do outro, talvez valesse a pena lembrar que as civilizações não se
constroem com mísseis, mas com ideias. O futuro ergue-se com palavras, não com
bombas. Como Alexandre demonstrou ao unir-se a Roxana. E que a via da
conciliação é o único caminho que pode evitar que o mundo, mais uma vez,
tropece na sua própria arrogância.
Sem comentários:
Enviar um comentário