Nacional iliteracia
Mandada erigir em 1568 pela Infanta Dona Maria, oitava filha
do Rei D. Manuel I, a Igreja de Santa Engrácia, ali ao alto do campo de Santa
Clara, em Lisboa, foi destruída por um grande temporal em 1681. No ano seguinte,
por obra dos irmãos da Irmandade dos Escravos do Santíssimo Sacramento, a
primeira pedra do novo templo foi lançada pelo Infante D. Pedro, quinto filho
de D. João IV, que viria a ser coroado rei em 1683 e cognominado “o Pacífico”. Ao
que reza a lenda, o templo estaria amaldiçoado pelo fantasma de Simão Pires
Solis, jovem cristão-novo, vítima injustiçada dos horrores da Inquisição, preso,
acusado e julgado, sem prova, de profanação do santuário, quando por ai rondava
enamorado de uma fidalga noviça do Convento de Santa Clara. Ditou a sentença
que ao réu fossem decepadas as mãos e incendiadas à sua vista e, colocado num
poste alto, fosse então queimado vivo e, feito o fogo em pó, as suas cinzas
deitadas ao mar para que de todo se extinguisse a sua memória. Vítima de tal
injustiça Simão Solis amaldiçoaria a reconstrução do templo, que levaria quase
300 anos a ver concluída a sua obra, cujo termino só aconteceria em 1966 por
ordem de António de Oliveira Salazar, jornada que daria origem à popular expressão
“obras de Santa Engrácia”, naquele que é o detalhe mais caricato de um
monumento que é hoje conhecido como Panteão Nacional.
A ideia de um Panteão Nacional data de 1836 e deve a sua
instituição ao então Ministro Passos Manuel com o intuito de homenagear os heróis
da “revolução vintista”, também conhecida como Revolução do Porto, momento
fundamental do Liberalismo português. Já em plena República, em 1916, à Igreja
de Santa Engrácia, cujo desenho do arquiteto João Antunes é justamente
considerado um dos expoentes do barroco português, é acometida a função de Panteão
Nacional mas cuja efetivação plena só teria lugar cinquenta anos depois por ordem
de Salazar, como forma de afirmação do regime contra não só a desconfiança
política num regime ainda abalado pelas ondas de choque das presidenciais de
1958 e do assassinato de Humberto Delgado, bem como da superstição popular que
via no eternamente inacabado monumento um símbolo da fatalidade nacional. Ao historiador
Damião Peres é incumbida a tarefa de liderar a comissão que definiria as honras
de panteão que, em cenotáfios ou tumulares, homenageia e guarda personalidades
tão dispares como D. Nuno Álvares Pereira, Afonso de Albuquerque, Teófilo Braga,
Óscar Carmona, Garrett e Guerra Junqueiro. Já mais recentemente e não sem certa
polémica, as honras de panteão foram concedidas a Amália, Eusébio e Sophia. Hoje,
ao fim de uma longa batalha judicial com os herdeiros, os restos mortais de Eça
de Queiroz recebem também essa distinção, numa cerimónia solene, trasladado o
féretro do grande romancista do cemitério de Santa Cruz do Douro, em Baião, para
uma das salas tumulares da antiga Igreja de Santa Engrácia, num processo
político iniciado pelo deputado socialista José Luís Carneiro, em resposta a um
repto do bisneto do escritor, o também romancista, Afonso Reis Cabral.
“A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas
vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do
ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo
dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre,
de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena
enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores
ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o
privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se,
destrói-se, corrompe-se.” Escreveu Eça em 1867, com intemporal sabedoria. Possam
estas vãs prebendas que hoje lhe são apostas reverter em leitores da sua obra e
incrementos nacionais na sua parca e sempre tão equivoca literacia.
Sem comentários:
Enviar um comentário